A permanência do desejo e a vivência do
gozo da excelência escolar
A PERMANÊNCIA DO DESEJO E A VIVÊNCIA DO
GOZO DA EXCELÊNCIA ESCOLAR
THE PERMANENCE OF DESIRE AND THE EXPERIENCE
OF ENJOYMENT OF SCHOOL EXCELLENCE
Luciana dos Santos Barcelos[1]
Marília Etienne Arreguy[2]
Resumo
Buscamos tratar do desejo pela excelência escolar por parte daqueles sujeitos que nutrem anseios de enquadramentos diante dos ideais que constituem o contexto escolar. Assim, pode ocorrer a dualidade entre os interditos aos quais o estudante se submete para o alcance desse ideal e o gozo advindo com a sua realização desse desejo. O objetivo deste trabalho é, portanto, refletir sobre questões subjetivas referentes ao conflito de classes na vivência do gozo da excelência escolar, como resultante da cisão social que reverbera na escola e atua no campo do desejo, segregando aqueles que podem desejar o êxito escolar daqueles que supostamente não podem. Contudo, a permanência do desejo, mesmo diante de demandas coletivas que pressupõem os “reais” destinatários da possibilidade de desejar a excelência, pode instigar sujeitos de classes populares a questionar as normas inconscientemente idealizadas e as consequências de suas escolhas.
Palavras-chaves: Excelência escolar. Supereu. Desejo.
Abstract
We seek to treat of the question of desire for school excellence on the part of those subjects that nourish desires for frameworks in the face of the ideals that constitute the school context. Therefore, may occur the duality among the interdicts to which the student submits to the achieving this ideal and the enjoyment that comes with the fulfillment of this desire. The objective of this work is, therefore, reflect on the subjective issues relating to the class conflict stands out in the experience of school excellence’s enjoyment, as a result of the social split that reverberates in the school and acts in the field of desire itself, segregating those who can desire the academic success those who cannot. However, the permanence of desire, even in the face of collective demands that presuppose the “real” recipients of the possibility of desiring the excellence, can instigate popular class subjects to question the unconsciously idealized norms and the consequences of their choices.
Keys words: School Excellence. Superego. Desire.
Preâmbulo
O presente artigo busca tratar da excelência escolar como um ideal visado por alguns estudantes, ainda que aparentemente postulado para todos. Tendo em vista a complexidade da paisagem educacional no país, a oferta de escolarização ocorre através dos entes federados (União, Estados e Municípios), seguindo a organização e a gestão autônoma dos sistemas educativos, o que gera, segundo Dourado e Oliveira (2009), o binômio descentralização e desconcentração das ações educativas. Para os autores:
Esta constatação revela o quadro complexo, relativo ao estabelecimento de parâmetros de qualidade em um cenário desigual e combinado que caracteriza a educação brasileira. Este cenário é fortemente marcado por desigualdades regionais, estaduais, municipais e locais e por uma grande quantidade de redes e normas nem sempre articuladas (DOURADO e OLIVEIRA, 2009, p. 204).
Diante desse quadro, debates sobre os fatores que deveriam constituir a qualidade, bem como a multiplicidade de compreensão em torno da excelência escolar, poderiam contribuir para qualificar o perfil de educação a ser oferecido, tendo em vista o tipo de escolarização que se busca garantir em larga escala e o tipo de sujeito que se pretende “formar”.
Entretanto, se de um lado não temos a garantia de uma escola de qualidade para todos, de outro, a tentativa de definição de excelência escolar é imperativa, e, ademais, parece ganhar certa unicidade coincidente com a pregnância da meritocracia. Tal prerrogativa se sustenta na demanda de performance acadêmica dos alunos, representada por provas padronizadas que produzem dados em torno da “qualidade” das escolas (Prova Brasil, para o Ensino Fundamental e Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM). Essas avaliações costumam se centrar na mensuração dos conteúdos ensinados, supostamente adquiridos a priori pelos estudantes.
Em paralelo ao ideal da excelência escolar se estabeleceria, assim, certo ideal de aluno, o excelente, aquele que se afinaria com as demandas impostas por uma escolarização de alto padrão educacional, exclusivista, individualista, sustentada em uma competição coletivamente aceita (DUNKER, 2020) e estruturalmente desigual (ALMEIDA, 2019).
Em uma perspectiva subjetiva, a procura pela excelência escolar pode assumir dois aspectos. Em um viés, pode ser envolvida por fantasias e idealizações em torno de uma pretensa perfeição no contexto da trajetória educacional, por outro, a busca imperativa por esse ideal pode impingir algumas interdições ao estudante. Evocamos diretamente aqui a noção de supereu, baseada na internalização de interditos parentais primordiais que permitem a entrada do infans na cultura. Do ponto de vista da constituição subjetiva, a disputa, rivalidade, e subsequente abdiquação do amor exclusivo de uma das figuras parentais idealizadas levaria à autorecriminação, impelindo o pequeno sujeito em formação a adequar-se aos modelos societários permitidos, de modo a reprimir os próprios impulsos. Em diferentes graus desse processo, resulta a culpabilidade como moção interna (FREUD, 1923/1996), que permanece como um resíduo, um resto traumático a ser ressignificado. É no plano da socialização secundária, com as vivências entre os pares e professores na escola, que crianças e, posteriormente, os jovens poderão vir a ressignificar tais perdas infantis através de novas escolhas e desejos.
No caso da imposição do ideal de excelência escolar, num segundo tempo, as leis interditoras não operariam para proibir, mas sim no sentido de exigir a consumação do desejo por alcançar um ideal. Trata-se de algo sutilmente diferente de impedir a satisfação imediata das pulsões perigosas à manutenção do coletivo, considerado o incesto um dos exemplos limite (NASIO, 1997). A excelência escolar propriamente dita seria atingida por meio da proibição de outras necessidades e demandas pulsionais, cujas concretizações afastariam o estudante de alcançar esse ideal, como a sexualidade e a lassidão. Com isso, transgressões que poderiam levar a certo gozo, como a indisciplina ou o confronto das autoridades, devem ser evitadas quando o aluno almeja para si a reprodução do modelo de excelência escolar. Haveria, portanto, um processo de assimilação das leis interditoras que caracterizam os rituais escolares, tais como: obediência para com as autoridades escolares, atendimento às regras cotidianas, disciplina, dedicação aos estudos, etc. Somente assim, assentindo a esse árduo caminho de vetos e enquadramentos, o sujeito estaria apto a desfrutar dos benefícios da excelência escolar.
Doravante, após este preâmbulo, discutiremos a formação do supereu como a instância que possibilita a internalização das leis frente à persistência de moções pulsionais ligadas à demanda de gozo e à constituição do desejo[3]. Após a explanação teórica em torno da dinâmica entre a lei e o desejo, analisaremos o desejo pela excelência escolar enquanto equivalente a uma demanda social de reparação da falta. Indagamos se as desigualdades sociais, que incidem na escola como desigualdades escolares, cindem ou clivam o desejo pela excelência, fomentando uma (im)possibilidade que se apresenta para determinados grupos e não para outros.
Desse modo, este escrito tem como objetivo ponderar acerca de questões subjetivas relativas ao conflito de classes na vivência do gozo da excelência escolar, como resultante da cisão social que reverbera na escola (ARREGUY & MONTES, 2019) e que atua no próprio campo do desejo, segregando aqueles que podem/devem desejar o êxito escolar daqueles que, suposta e inconscientemente, não podem. Por fim, apontaremos a questão do ato desejante como uma das manifestações da pulsão de vida, ou seja, aquilo que tende à integração subjetiva, conduzindo o sujeito à autoconservação e à ligação com o entorno, de modo que o regime pulsional venha a agregar e construir (LAPLANCHE e PONTALIS, 2016, p. 414-416), em vez de levá-lo a se resignar, ou mesmo, a adoecer e perecer. Nesse escopo, o campo pulsional pode convocar o sujeito a questionar, inclusive, aquilo que deseja para si, além de dar direcionamento a suas escolhas, seja permanecendo atrelado ao status co dominante, seja vertendo seus impulsos e desejos por vieses de transformação.
A formação do Supereu e o rosto tirânico da excelência escolar
Freud buscou relacionar a dinâmica entre as instâncias ideais – eu prazer - eu realidade, posteriormente, eu ideal e ideal do eu –, desdobradas na formulação do conceito de supereu (Überich), instaurado com a superação do complexo de Édipo (FREUD, 1914/1996; 1923/1996). Por meio dessa superação, o sujeito passaria a encontrar satisfação em investimentos não diretamente libidinais na relação com os demais membros de um grupo (FREUD, 1921/1996). Desta forma, os vínculos sociais ocorreriam e os coletivos poderiam ser formados.
Com a dissolução do complexo de Édipo (FREUD, 1923/1996), o supereu vai ser composto em oposição às escolhas objetais do Isso, de onde advém seu aspecto repressor. Não sendo uma atividade de simples operação no âmbito de tal complexo, a criança passa a conceber os pais como barreira para a concretização dos anseios edipianos. Segundo Nasio, (1997, p. 15): “As admoestações verbais [de ambos os pais] (…), progressivamente internalizadas pela criança, estarão na origem do supereu”. Quando o eu infantil incorpora os obstáculos proferidos pelos pais em si mesmo, ele acaba por se fortalecer de modo a operar o recalque. Para efetivar esse aspecto, o ego recorre à força das figuras parentais, introjetando parte da personalidade deles.
Pode-se dizer que há uma relação diretamente proporcional, ou seja, quanto mais dominante for o complexo de Édipo e mais intenso for o recalcamento sofrido pelo ego para a superação deste complexo, “(...) mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa” (FREUD, 1923/1996, p. 20).
Como resultado da derrocada do complexo de Édipo, o gozo incestuoso, outrora impedido, cede lugar para a incorporação das imposições morais. Com isso, a autoridade parental passa a fazer parte do eu, sustentada pelo sentimento de culpa como um movimento interno e, não mais apenas “de fora para dentro”.
Todavia, seria um equívoco achar que as moções pulsionais se esvaem completamente com o fim do conflito edípico. Ao contrário, permanecem ou mesmo se intensificam subterraneamente, uma vez que a lei não o proíbe, mas somente impede a sua concretização. “Em outras palavras, a lei não proíbe o desejo, não pode impedir a criança de desejar, mas proíbe exclusivamente a satisfação plena do desejo; numa palavra, a lei proíbe o gozo” (NASIO, 1997, p. 15).
Esse desfecho superegóico como uma nova porção constitutiva do eu somente é possível devido ao “medo da castração” (FREUD, 1909/1996; 1924/1996; 1925/1996). Em função desse medo, como salvaguarda do objeto precioso do desejo (para Freud: o pênis no menino), o sujeito abdica da realização do desejo incestuoso[4], sem contudo conseguir eliminá-lo. Assim, o eu é formado pela relação entre a lei e o desejo, como que se bifurcando. A parte do eu que é constituída psiquicamente pela lei interditora, o supereu, passa a trabalhar constantemente para manter a marca da lei proibitiva das pulsões perigosas (prototipicamente os tabus do incesto e do parricídio) no psiquismo adulto. Contraditoriamente, o supereu não incide apenas na interdição do gozo, mas ele também contribui para reter o desejo. “O fato de o supereu existir é seguramente um sinal do vigor do desejo” (NASIO, 1997, p. 151). Nesse ponto, podemos aludir e parafrasear a máxima lacaniana (LACAN, 1966) de que é na falta, isto é, através da interdição, ou ainda, a partir da internalização da Lei Simbólica, que se constitui o desejo. Retornando a Freud (1930), atesta-se certa função tirânica do supereu, ligada à gramática inconsciente do: “- Faça!”, ou seja, “Realize seu desejo!”.
Assim, se a consciência emerge para o supereu primordial com a resolução do complexo edipiano, essa não é a sua única expressão. Além de seu desdobramento racional, o supereu pode revelar um aspecto tirânico inconsciente (FREUD, 1930/1996). Suas demandas podem caminhar entre o sadismo e o sentimento de culpa, entre o prazer da dor dirigida ao próprio eu através das proibições muito severas e a culpa pelos desejos proibidos, mas, ainda sim, preservados no eu.
O supereu tirânico (FREUD, 1923/1996; LACAN, 1966/1998; 1975/2009) aponta três gestos fundamentais para o fim do complexo de Édipo. Uma primeira hipótese: em lugar da renúncia ao gozo incestuoso, emerge uma proibição severa por qualquer outra coisa que resultaria em qualquer forma de gozo, fazendo o eu sentir prazer pelo próprio sadismo impingido a si mesmo. Em seguimento, a negociação que o supereu estabeleceria com o eu, para a manutenção do desejo em relação ao gozo proibido, cede espaço para o ímpeto desenfreado e, mesmo, suicida, que leva o sujeito, em alguns casos, ao ponto de se desintegrar diante da satisfação do desejo. E, por último, uma função protetiva em relação à castração e à desintegração de si, que poderia ocorrer ao se ceder a alguma forma de gozo. Esse se volta para o sujeito, através de um supereu tirânico, como inibição, levando o eu a evitar qualquer objeto que assuma ares ameaçadores. Nesse sentido, o sujeito retém o gozo que poderia advir de suas moções pulsionais, desconectando totalmente a satisfação atual do gozo primitivo relacionado ao infinito do corpo materno. Com a proibição de todo e qualquer gozo por intermédio do supereu, o sujeito inibiria o próprio desejo em nome da proteção excessiva que a instância superegóica exerce para com o eu.
O entendimento aqui proposto assevera que o conflito de classes se atualizaria na escola, por meio da vivência do gozo com a excelência escolar. No imperativo do ideal da excelência escolar, diferente do incesto, parece não haver nada que freie esse desejo de encontrar a satisfação. Não questionamos aqui a necessidade de interdição de um gozo trágico, porque “(...) proibido do ponto de vista da lei” (NASIO, 1997, p. 151), mas sim, buscamos compreender a quem caberia a satisfação do desejo pela excelência escolar, de maneira a se estabelecer hierarquias que tendem inconscientemente a se tornar trágicas. Para muitos, o gozo com a excelência é absolutamente inacessível e, dessa forma, se constitui e se mantém como um gozo proibido.
Além disso, a tirania superegóica se revela para todos, se não no alcance do gozo com a excelência propriamente dita, mas no processo de busca por esse ideal. Em primeiro lugar, estaria a tirania do sujeito para consigo próprio quando tolhe outros gozos próprios, aqueles a que renuncia porque o afastariam de ser o aluno do ideal da excelência. A proibição desses outros gozos pode ser tão intensa, porque reforçada inclusive pela escola e pela família, que o eu passa a conversar com o rosto tirânico do supereu no que este tem de sádico. A auto comparação com colegas que estariam numa posição privilegiada em relação à transposição do gozo (beleza, riqueza, supremacia, sagacidade atribuída ao outro, etc.) se tornaria um ideal tirânico, intocável e insuperável. E, assim, os tantos gozos proibidos (com a indisciplina ou com os enfrentamentos das normas e resistências) podem recair severamente sobre o sujeito, a ponto de esse gozar com a própria dor que essas proibições implicam. Por isso, nesse processo de busca pelo ideal da excelência, de satisfação de desejos, mas também, de tantas exigências, enquadres e de tantas dores, o supereu pode desenvolver uma proteção excessiva ao Eu, o que seria mais um movimento da tirania inconsciente. Nesse sentido, alguns objetos corriqueiros no cotidiano escolar podem parecer ameaçadores (a realização de provas, a exposição pública de falas, o exercício de posturas críticas, etc.) e, ao invés de o sujeito transpor o gozo a que eles levariam, inibe tais realizações, a fim de se proteger. Em consequência, os sintomas que podem advir com esse processo são inúmeros: autocomiseração, rivalidade invertida, timidez, vergonha, ansiedade, angústia, fracasso escolar, etc.
O desejo pela excelência diante do conflito de classes
Podemos inferir que, onde há uma proibição, ainda há um desejo. E, quanto mais incisiva for uma proibição, mais intenso é o desejo que procura abafar. Ocorre que, mesmo diante de uma proibição imposta aos integrantes de um coletivo, o desejo de transgressão parece maior e, para refreá-lo, é preciso se agregar uma faculdade a mais, com o intento de superar o empreendimento repressor presente no ritual de interdição. Essa faculdade se refere à consciência moral – uma das definições do supereu - a que Freud relata da seguinte forma:
A consciência é a percepção interna da rejeição de um determinado desejo a influir dentro de nós. A ênfase, contudo, é dada ao fato de esta rejeição não precisar apelar para nada mais em busca de apoio, de achar-se inteiramente ‘certa de si própria’. Isto é ainda mais claro no caso da consciência de culpa — a percepção da condenação interna de um ato pelo qual realizamos um determinado desejo (FREUD, 1913/1996, p. 47).
Assim, interditos e desejo caminham juntos, numa tentativa de equilíbrio entre o indivíduo e o contexto social; equilíbrio nunca completamente conquistado, o que confere dinamismo à relação entre o desejo e a consciência moral, entre o indivíduo e a sociedade. Parece que, quanto mais um objeto é envolvido por interdições, mais ele instiga o desejo como satisfação de uma falta.
Nesse sentido, o movimento entre o ser pulsional e o ser social é observado por Enriquez (1990) não somente por meio dos obstáculos à pulsão oferecidos pela sociedade, mas também, através da dinâmica da realização dos desejos no contexto social. A pulsão não admite sua característica social apenas quando tem sua realização refreada pela sociedade, ou seja, quando se relaciona com os interditos próprios da civilização. Mas, inclusive, quando se expressa através de desejos que convocam o outro para serem validados. Para o autor, as energias pulsionais integram o esquema das identificações, uma vez que todo jogo pulsional se coloca essencialmente como um jogo identificatório. “Na medida em que todo ser humano está constantemente dividido (e é esta própria divisão que designa sua humanidade) entre o reconhecimento de seu desejo e o desejo de reconhecimento (identificação), as pulsões que o animam são obrigadas, para encontrar satisfação, a voltar-se para a existência do outro” (ENRIQUEZ, 1990, p. 17). Dessa forma, tanto o desejo só encontra sentido ao ser reconhecido pelo outro, quanto o sujeito pulsional também necessita da mesma validação, ao ser posicionado pelo outro no arranjo simbólico social. Enquanto o pulsional alimenta o eu, ele também se manifesta em um desejo particular, que se direciona ao outro como fonte de reconhecimento. Assim, “o pulsional faz parte do fundamento de cada sujeito e do fundamento da vida social” (ENRIQUEZ, idem).
A escola é um espaço muito claro sobre as normas e padrões incutidos aos sujeitos pertencentes a um grupo escolar. Há também um processo de homogeneização intensa, calcado em marcas de vestimenta (uniformes), percursos de aprendizagem (definidos no currículo), rotinas escolares pontuadas na organização do tempo (o mesmo para todos), instrumentos de avaliação, etc. Na escola, ocorre um trabalho muito veemente de controle das pulsões em prol de outras realizações que podem se dar no grupo. Ou seja, lado a lado convivem as interdições mais gerais e a permanência de alguns desejos socialmente aceitos. A qualquer vestígio de se escapar dos ditames da cultura escolar, pode haver uma movimentação por parte do grupo em relação ao diferente, mas também, por parte desse, pode haver o medo do desamparo e da perda do amor (FREUD, 1930/1996), o que pode desembocar em alguns sintomas alimentados pelo sentimento de culpa por se saber desviante. Então, atender às normas tem a ver com a renúncia das pulsões diretas, mas também, com outros tipos de satisfação que se encontram respaldadas no coletivo. Por isso, o desejo vai assumindo diferentes faces, tanto as interditórias quanto as preconizadas pelo Outro.
Em relação ao ideal da excelência, o aluno precisa aceitar uma série de enquadres, mas também, pode encontrar um tipo de satisfação, devido à integração ao grupo escolar. Ao alcançar a excelência, o sujeito se percebe como parte de um grupo, porque não se trata de qualquer desejo que colocaria em xeque a unidade do grupo, mas é um desejo aceito e vivido por todos, porque é valorizado socialmente. Desejar a excelência escolar não implica evidentemente em uma interdição imposta pelo coletivo; ao contrário, quanto mais identificado se está com a excelência, mais integrado ao grupo se é, significando aquilo que Enriquez (1990) tratou como a necessidade de reconhecimento do desejo pelo outro. A princípio, desejar a excelência não implica no desamparo e na perda de amor. Então, esse tipo de desejo parece satisfazer a noção de ser amado por um grupo, afastando a angústia que poderia ser gerada pela exclusão.
É cabível ponderar que o ideal da excelência escolar opera como um padrão social de grande contundência para a trajetória escolar dos estudantes, funcionando como uma espécie de medida de “enquadramento” do sujeito nos limites dos moldes sociais. Se, por um lado, reconhecemos que para que o processo educativo ocorra é necessária certa dose de ideal, por outro, nem tudo se restringe aos ditames comportamentais da excelência, na medida em que o sujeito precisa da falta e da liberdade para se constituir e criar caminhos singulares. Consecutivamente, diante do reconhecimento das suas faltas, o sujeito pode ir ao encontro do outro, também constituído de faltas e falhas. Entretanto, nem sempre esse contato com o outro ocorre sem conflitos. Em algumas situações e contextos, essa relação pode ser, inclusive, traumática, principalmente diante da percepção da não disposição dialógica entre as fronteiras culturais na escola e da condição de ser outro, o que pode gerar um recalcamento violento no indivíduo. Assim, quando o estudante, por algum motivo, percebe a desvalorização de suas origens culturais por parte da escola, inconscientemente, pode ficar submetido ao recrudescimento de processos traumáticos causadores de sintomas ligados à impossibilidade estrutural de partilhar de um ideal, no caso, de sucesso e excelência escolar.
Desse modo, não podemos deixar de pensar sobre quem pode e quem não pode desejar aceder a um plano de excelência, já que por definição esse posto seria para poucos. No topo do pódio só cabe um. É importante pensar o indivíduo em relação ao grupo, se e quando alcança a excelência; se se sente integrado ou não. Mais do que pensar as contradições entre interdições e desejo, como se bastasse aceitar algumas renúncias corriqueiras para a aproximação do desejo pela excelência escolar, é necessário observar as divisões no próprio campo do desejo, no que diz respeito às desigualdades sociais e ao conflito de classes sorrateiramente atualizado no âmbito escolar. Alguns grupos já são de tacada marcados como aqueles que não podem desejar, porque vivem imersos na lógica constrangedora das necessidades cotidianas mais urgentes. Estes já seriam excluídos de antemão da possibilidade de sonhar e buscar em alguns desejos valorizados socialmente a satisfação de ausências menos primárias, mas importantes para o sentimento de integração a um coletivo e para sua própria vinculação ao ideal primordial da excelência numa cultura absolutamente capitalística. Estes já seriam excluídos da possibilidade de serem reconhecidos pelo outro, por não terem condições financeiras ou culturais semelhantes aos da elite.
Nesse sentido, lado a lado coexistem a excelência escolar, como uma espécie de dádiva alcançada por poucos, e o fracasso escolar (PATTO, 1990/2015) como uma realidade vivenciada por muitos e pré-determinada para a maioria. O fracasso na escolarização seria um resultado amargado por aqueles que foram distanciados da excelência, por não terem atingido as metas correspondentes a esse ideal.
Há, portanto, um descompasso estrutural entre o aluno de classe popular e o suposto aluno que pode almejar o ideal de excelência escolar. Da discrepância de classes sociais desponta uma relação de conflito cultural (LAHIRE, 1997), quando esse aluno não se vê representado nas escolhas curriculares e nas práticas pedagógicas concernentes ao objetivo da excelência. Nessa distinção ocorre uma espécie de apagamento das diferenças, diante de uma tentativa homogeneizante de viver a escola. Com isso, o fracasso advém como uma realidade maciça para as classes populares. O ideal de excelência se embasa na “corrida” pelo alcance de metas, finalidade destacada nos textos políticos e no campo das práticas, o que acaba por fomentar a noção de mérito com base em ideais liberais, levando a uma seletividade excludente, sob a égide de uma suposta eficácia das redes de ensino (TORRES et al., 2018). Nessa corrida pela excelência, os alunos oriundos das classes populares estariam sempre em desvantagem. O discurso de defesa da igualdade de oportunidades educacionais com base na avaliação das capacidades individuais dos discentes, na verdade, esconde uma política meritocrática (PATTO, 2015, p. 125), que alude ao movimento liberal ao desconsiderar a diversidade cultural e socioeconômica que chega nas escolas.
Nesse cenário, a produção do fracasso escolar se desvela como uma questão histórica em nosso país (PATTO, 2015). O fracasso se faz significativamente presente em escolas públicas, aquelas que deveriam democratizar não somente o acesso da população ao ensino, mas também aos meios de permanência com qualidade em seu interior. Desse modo, ainda que o fracasso escolar tenha sido concebido, sob uma perspectiva liberal e meritocrática, como uma consequência das capacidades individuais do aluno e do patrimônio cultural com o qual pode contar a partir de seu contexto de origem, o baixo rendimento educacional das classes populares, na verdade, resulta da segmentação do sistema educacional em correspondência à divisão de classes, com a sua injusta distribuição de recursos (PATTO, 2015).
O fracasso e a evasão escolar têm sido a grande marca da escola pública. Em geral, a escola tem dificuldade em lidar com as classes populares desde as mais tenras propostas de democratização do ensino, até mesmo desde as propostas escolanovistas. Essa dificuldade se daria, pois, segundo uma crítica já levantada pela tendência pedagógica multiculturalista (SILVA, 1999): a democratização não se sustentaria somente por meio da ampliação do acesso das camadas populares a uma escola cujo currículo ainda é equivalente à cultura hegemônica. Sem ter havido uma mudança curricular substancial visando a recepção da diversidade social na escola, a distância entre a escola e as especificidades das classes populares vem sendo mais um fator, senão o principal, de produção do fracasso escolar. Mas, não se trata apenas de uma necessidade de mudança em currículos ou na infraestrutura escolar. Lidamos, nesse contexto, com o problema mais grave da estrutura da sociedade brasileira, ainda de espírito intensamente escravagista, logo excludente, embora se preconize o contrário. Necropolítica, invisibilização das populações indígenas, subalternização das mulheres, capacitismo, escanteamento de diversidades sexuais e culturais são alguns dos grandes eixos em que se entrecruzam as impossibilidades estruturais de emergência dos grupos populares ao ideal de excelência. Essas condições, por sua vez, se somam à própria internalização subjetiva de um interdito, onde a mentalidade de grupo (BION, 1975) corrobora a falaciosa diferença intransponível de classe para o próprio estudante, desistente, inibido e evasivo, por consequência.
Em vias de concluir...
O corrente trabalho produziu considerações sobre o ideal em torno da excelência escolar, levando-se em conta certa tendência meritocrática assumida como prerrogativa desse ideal, quando se centra no viés mais acadêmico-conteudista dos processos de ensino-aprendizagem e na consequente performance do aluno no alcance de metas, em detrimento de sua condição sociocultural.
Em uma dimensão subjetiva, tratamos do desejo do aluno pela excelência escolar por meio da dinâmica entre os interditos impostos pelo próprio ideal e a permanência do desejo. Em uma perspectiva coletiva, o desejo e o sujeito desejante buscam ser reconhecidos pelo outro, sobretudo quando consideramos a excelência escolar como um desejo valorizado socialmente. Refletimos, portanto, sobre a cisão no âmbito do desejo pela excelência escolar, destinada para alguns e não para outros.
Com Green (1988, p.21), podemos entender o desejo como:
(...) o desejo é o movimento pelo qual o sujeito é descentrado, isto é, que a busca do objeto da satisfação, do objeto da falta, faz o sujeito viver a experiência de que seu centro não está mais nele mesmo, que está fora de si num objeto do qual está separado, ao qual tenta se reunir para reconstituir seu centro, por meio da unidade – identidade reencontrada – no bem-estar consecutivo à experiência de satisfação.
É necessária a consciência de um descolamento temporal e espacial em relação ao objeto para que ele seja desejado. Distância espacial, porque há o reconhecimento de que o objeto não está em si e distância temporal, porque a noção é de adiamento da satisfação, conquistada somente quando o encontro com o objeto ocorre. Então, o objeto, para ser desejado, precisa estar no futuro em relação ao sujeito, como uma “coisa” que mobilizaria a busca. É essa experiência de postergação temporal que faz com que o objeto seja ainda mais desejado. Assim, o sujeito passa a pretender se vincular ao objeto de desejo a fim de sanar uma ausência sentida, haja vista esse encontro ser uma espécie de solução reparadora para a falta.
Todavia, é preciso muito desejo pela excelência para aceitar as renúncias que esse ideal em específico implicaria. Os vazios que a realização desse desejo de excelência, “como ilusão reparadora da falta” (GREEN, 1988, p.21), pretende preencher dependem de questões muito singulares, que cabem a cada indivíduo pensar e viver na sua própria trajetória escolar. Mas, quando esse vazio é de cunho social, quando é ressentido coletivamente, quando tem a ver com desigualdades econômicas e culturais, esse ideal se apresenta como uma falta praticamente intransponível para determinados grupos e não para outros.
Contudo, em qualquer sujeito (o aceito ou o outsider), para além das tentativas de enquadre social, também pode haver a manifestação de um desejo de tipo mais singular, aquele que tem a ver com a satisfação mais individual e que permanece, ainda que faça parte de um coletivo. Este desejo pode se manter pulsando, a despeito de toda a ameaça de exclusão em relação ao grupo, e instigando ao questionamento das imposições e à busca por alternativas outras.
No caso da escola, a manifestação mais particularizada do desejo, como resultante da pulsão de vida, mesmo diante das demandas de um coletivo que intenta definir os destinatários da possibilidade de desejar a excelência e como devem proceder para o seu alcance, pode convocar o sujeito a questionar inclusive aquilo que ele deseja para si. Ou seja, o desejo pode permanecer antes como ato pulsional que instigaria o sujeito a interpelar a própria busca e a alimentar a pulsão com objetos substitutos. Nesse sentido, ele pode ser levado a problematizar as consequências de suas escolhas, e se estas assumem a direção da preservação do status co ou, ao contrário, se alcançam vieses de mudança diante do confronto das normas. Em todo caso, para além de qualquer peripécia das singularidades híper desenvoltas, daquelas pessoas híper especiais que conseguem furar a bolha do ideal de excelência atrelado à meritocracia, é preciso questionar o ideal de excelência escolar em si mesmo. Afinal, para onde nos dirigimos quando todos buscam um lugar absoluto em que só cabe o melhor, o excelente, o maioral? Certamente, para um ideal tirânico e inconsciente, em que tanto escola quanto aluno estariam em vias de se confrontar. O imperativo do ideal de excelência para todos, paradoxalmente, acaba por preconizar a supremacia do indivíduo único, acima de todos, como modelo hegemônico de si, mas que, em geral, apenas aqueles oriundos de uma pequena elite financeira conseguem almejar e, quiçá, realizar. E mesmo para os que são reconhecidos nesse lugar, pesaria sobre si a violência de manter essa meta desigual e inatingível.
Referências
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Data do envio: 03/06/2024.
Data do aceite: 05/11/2024.
Revista Aleph, Niterói, Nov. 2024, nº 42, p. 1 - 19 ISSN 1807-6211
[1] Doutora em Educação - Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPG em Educação da UFF). Pedagoga da Rede Municipal de Educação de Niterói. E-mail: lucinedu@gmail.com. Telefone: (21) 98056-5496. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4528-349X .
[2] Pós Doutora em Ciências da Educação pela Universidade Paris 8. Professora Associada do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense/UFF. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. E-mail: mariliaetienne@id.uff.br. Telefone: (21) 99811-7129. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4157-0128.
[3] Será necessário redimensionar, ao longo da leitura, a contundência do referencial fálico no que concerne à descrição do complexo edipiano, uma vez que não se deve jamais cair no “erro freudiano”, já datado, de negar a singularidade da feminilidade ao subsumir hierarquicamente o gênero através de critérios patriarcais. A noção de “castração”, portanto, deve ser compreendida enquanto “castração do gozo” no que concerne a entrada do sujeito no campo do desejo e da cultura. (Lacan, 1966). Preciado (2019), como um dos pensadores atuais contra o predomínio da lógica fálica e o binarismo de gênero, reflete que a distinção sexual consolidada com o dualismo e a hierarquização dos gêneros se fundamentou na centralidade do falo, intensificando-se a partir da segunda metade do século XIX. Tal cartografia anatômica contribuiu para referendar uma epistemologia histórica que elaborou e legitimou a perspectiva do patriarcado. Porém, essa epistemologia está sendo questionada desde meados do século XX, o que revela o quanto essa lógica não é imutável, mas integra uma epistemologia política do corpo e, portanto, pode ser modificada no viés de contestação da soberania “do pai branco sobre qualquer outro corpo” (PRECIADO, 2019). Todavia, é certo considerar que Freud (1925/1996, p.278) já havia admitido que a trajetória sexual das mulheres ainda era pouco conhecida e tomada por noções turvas. Em 1932, tratou do complexo de castração de modo distinto entre os sexos de forma a diferenciar as trajetórias de gênero. Mesmo que ainda compreendesse a mulher a partir de uma falta irreversível (ausência fálica), Freud destacou o feminino como um enigma e como uma constituição em devir. Por fim, reconheceu a incompletude de suas concepções sobre a feminilidade, o que não invalida o pioneirismo de suas teorias para se pensar a relação entre idealização, angústia e desejo. Levada em consideração a complexidade da noção de supereu, ainda que aquém de uma problematização de gênero (vide nota 1), é importante questionar a centralidade assumida pelo significante fálico. Assim, Lacan (2003) tratou de um não-todo fálico e de seus gozos consequentes. Para ele, a mulher não assumiria a posição de um negativo, por lhe faltar um pênis, mas se conceberia através de um furo não simbolizável. De acordo com Lacan, ainda que o complexo de castração tenha uma atuação importante na constituição do feminino, a mulher não está completamente colada a ele, tendo uma porção de si que escapa à função fálica. Lacan acaba por dizer que “a mulher não existe”, por não haver um significante que a defina tal como o falo define o homem (LACAN, 2003, p. 1971-1972). Nesse caso, a mulher é “não-todo fálica”, de modo que ser mulher é um processo em aberto, compondo um vir-a-ser, por meio de um real sem nome.
Resta, então, diante das indagações sobre o que é a mulher e o quer a mulher (ANDRÉ, 1998; SOLER, 2003) considerar os efeitos subjetivos de um “(...) gozo suplementar que a feminilidade furta e que faz dela, não um outro sexo, mas o Outro absoluto. E isso só pode ser abordado a partir dos caminhos dos ditos das mulheres” (SOLER, 2003, p. 28). Caminhos ainda em aberto e que precisam ser constantemente reivindicados pelas mulheres, ainda que seja sempre uma tentativa árdua de lidar com a angústia do inominável.
[4] Poderíamos dizer, de forma mais abrangente, desejos libidinais transgressivos ou fora da norma.