DISCURSO DE DÉFICIT NAS PRÁTICAS LETRADAS ACADÊMICAS DE GRADUANDOS EM LETRAS: UMA INVESTIGAÇÃO EM TESES E DISSERTAÇÕES

DISCURSO DE DÉFICIT NAS PRÁTICAS LETRADAS ACADÊMICAS DE GRADUANDOS EM LETRAS: UMA INVESTIGAÇÃO EM TESES E DISSERTAÇÕES

DEFICIT DISCOURSE IN ACADEMIC LITERACY PRACTICES OF UNDERGRADUATE STUDENTS IN LANGUAGE STUDIES: AN INVESTIGATION IN THESES AND DISSERTATIONS

Beatriz Fernanda Fortunato[1]

Victoria Wilson[2]

Resumo

O objetivo deste artigo é verificar a presença de estereótipos, como o discurso de déficit, nas práticas letradas de graduandos em Letras. A análise foi realizada a partir dos resultados encontrados nos resumos de três teses e cinco dissertações que abordaram os letramentos acadêmicos desses graduandos. O referencial teórico utilizado em nosso estudo fundamenta-se nas concepções dos Novos Estudos dos Letramentos, com ênfase na perspectiva social e em abordagens sobre os letramentos acadêmicos. Os resultados apontaram para a presença de indícios do discurso de déficit nas pesquisas, porém com uma orientação distinta, ou seja, voltada para a busca de motivações que pudessem explicar as dificuldades dos alunos em relação às práticas letradas, como, por exemplo, a forte influência dos letramentos escolares anteriores em suas práticas na universidade. Por fim, conclui-se que ainda é necessário pesquisar os letramentos acadêmicos, considerando o processo de mudança dos alunos e as especificidades de cada campo do conhecimento que interferem na elaboração dos gêneros, tendo em vista o desenvolvimento da linguagem especializada e do estilo do gênero, conforme propõe Bakhtin (2003).

Palavras-chaves: Estereótipos. Letramentos Acadêmicos. Discurso de Déficit.

Abstract

This article aims to identify stereotypes, such as the deficit discourse, in the literacy practices of undergraduate students in Literature programs. The analysis was conducted based on the results found in the abstracts of three theses and five dissertations that addressed these students' academic literacies. The theoretical framework used in our study is based on the concepts of New Literacy Studies, with an emphasis on the social perspective and approaches to academic literacies. The findings indicate the presence of traces of the deficit discourse in the research, albeit with a different orientation, focusing on motivations that could explain students' difficulties in relation to literacy practices, such as the strong influence of previous school literacies on their university practices. Finally, it is concluded that further research on academic literacies is needed, considering the process of student transformation and the specificities of each field of knowledge that influence the development of genres, considering the development of specialized language and genre style, as proposed by Bakhtin (2003).

Keywords: Stereotypes, Academic Literacies, Deficit Discourse.

Introdução

A transição da Educação Básica para o Ensino Superior é marcada por um período de enfrentamento aos desafios presentes nas atividades de leitura e escrita de textos acadêmicos. Esses desafios estão relacionados tanto às atividades acadêmicas realizadas antes do ingresso na universidade quanto àquelas realizadas durante o período universitário (GOULART; WILSON, 2020).

Ao ingressarem no Ensino Superior, os estudantes se deparam com práticas distintas daquelas a que estavam habituados, gerando um sentimento de conflito entre seus conhecimentos prévios e os conhecimentos legitimados no meio acadêmico. Diante desse contexto, buscamos compreender se esses conflitos estão relacionados a estereótipos manifestados nas práticas acadêmicas.

Este trabalho tem como objetivo verificar a presença de estereótipos, como o discurso de déficit, nas práticas letradas de graduandos em Letras. A análise foi realizada a partir dos resultados encontrados nos resumos de três teses e cinco dissertações que abordaram os letramentos acadêmicos desses graduandos. O corpus utilizado neste artigo é um recorte da dissertação de mestrado de Santos (2024), defendida no Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Formação de Professores da UERJ.

O artigo está estruturado da seguinte maneira: nas três seções iniciais, discuto os fundamentos teóricos e metodológicos da pesquisa. Primeiramente, ofereço uma visão geral do mito do letramento acadêmico e dos estereótipos associados, como o discurso do déficit, e apresento os conceitos que embasam a pesquisa bibliográfica. Na terceira seção, detalho o contexto da investigação. As quatro seções seguintes são dedicadas à análise dos dados. Por fim, nas considerações finais, apresento reflexões sobre o desenvolvimento da pesquisa.

Letramentos acadêmicos e modos de ser letrado academicamente

Segundo a perspectiva do letramento ideológico, a leitura e a escrita são vistas como processos interativos e adaptáveis, relacionados aos contextos de uso da linguagem. Assim, os diversos letramentos que constituem os diferentes domínios discursivos são práticas sociais que se transformam conforme os eventos de letramento em que ocorrem. Cada contexto social e domínio discursivo exige práticas de letramento próprias. Por exemplo, o ambiente familiar e as interações sociais, onde o aluno inicialmente vivencia o letramento social; a Educação Básica, onde se desenvolve o letramento escolar; os templos e igrejas, onde ocorre o letramento religioso; e o meio eletrônico, onde se dá o letramento digital, entre outros. É importante destacar que os letramentos não são exclusivos de um único contexto e que cada instância oferece diferentes orientações de letramento (KLEIMAN, 2012).

Dentro dessa variedade de letramentos, destaca-se o letramento acadêmico, que envolve as atividades de leitura e escrita realizadas na universidade. Nesse contexto, o indivíduo percebe a conexão entre as práticas de letramento nas diversas atividades do cotidiano acadêmico e as necessidades da escrita na vida diária. Esse tipo de letramento é fundamentado na perspectiva ideológica (STREET, 1984, 2003, 2014).

Dentro do campo do letramento acadêmico, a abordagem desenvolvida por Lea e Street (2014) no Reino Unido oferece uma perspectiva detalhada. Após conduzir uma pesquisa empírica em duas universidades britânicas e analisar as produções textuais dos estudantes à luz das práticas institucionais, dinâmicas de poder e identidades, os autores identificaram três perspectivas – que eles denominaram modelos – de escrita no ensino superior: a) o Modelo de Habilidades de Estudo, b) o Modelo de Socialização Acadêmica e c) o Modelo de Letramentos Acadêmicos. Na primeira perspectiva, das Habilidades de Estudo, a escrita e o letramento são vistos como competências individuais e cognitivas, que exigem dos alunos apenas o domínio das normas gramaticais e sintáticas, além da atenção à pontuação e ortografia. Na segunda perspectiva, da Socialização Acadêmica, destaca-se o processo de construção de significados pelos alunos nos discursos e gêneros específicos das disciplinas. Já na terceira perspectiva, dos Letramentos Acadêmicos, o foco está na construção colaborativa de significados, promovida por alunos e professores durante as práticas de letramento.

Portanto, a análise das abordagens de Habilidades de Estudo e Socialização Acadêmica é essencial para uma compreensão mais completa das práticas de letramento acadêmico. É importante destacar que, segundo Lea e Street (2014), a abordagem dos Letramentos Acadêmicos não exclui as outras duas perspectivas. Os autores consideram que essas três abordagens se complementam. Algumas características das abordagens de Habilidades de Estudo e Socialização Acadêmica estão inseridas nos Letramentos Acadêmicos, pois os alunos também precisam dominar as regras gramaticais e sintáticas, assimilar os discursos e gêneros acadêmicos, e aprender novas linguagens sociais e gêneros discursivos. Concentrar-se exclusivamente em uma dessas abordagens pode resultar na falta de reconhecimento dos letramentos que os alunos já possuem, levando à sua rotulação como sujeitos iletrados, conforme adotado pelos defensores do letramento autônomo.

Conforme destacam Lea e Street (2014, p. 479), o letramento acadêmico “envolve a produção de sentido, identidade, poder e autoridade; enfatiza a natureza institucional do que é considerado conhecimento em qualquer contexto acadêmico específico”. Dentro dessa abordagem, não há desvalorização do percurso de letramento do aluno, das suas práticas escolares nem das suas identidades sociais. Além disso, não se atribui ao aluno a total responsabilidade por não se adequar às práticas acadêmicas. Pelo contrário, na perspectiva dos Letramentos Acadêmicos, tanto as identidades construídas pelos alunos quanto os letramentos adquiridos ao longo de sua trajetória educacional são considerados.

No entanto, muitas universidades ainda adotam a abordagem das Habilidades de Estudo, baseando-se em uma concepção de língua como expressão do pensamento. Sob essa perspectiva, acredita-se que o letramento dos alunos pode ser facilmente transferido de um contexto para outro sem causar problemas; ou seja, as experiências anteriores dos alunos, mesmo que não relacionadas à escola, seriam transferidas desses contextos para o acadêmico. Concordamos com Barton e Hamilton (2000, p. 8) quando afirmam que a escrita é uma coleção de “práticas sociais associadas a diferentes domínios da vida”, na qual a leitura e a escrita são práticas sociais que geram gêneros conforme as necessidades das comunidades discursivas e das práticas de letramento que as rodeiam. Concordamos também com a ideia de que cada esfera da vida social demanda um tipo diferente de letramento, com eventos, práticas e gêneros específicos. Os gêneros discursivos são moldados em uma determinada esfera socio-discursiva, e os alunos só se familiarizam com eles durante a interação e a vivência dessas experiências discursivas.

Segundo Lea e Street (2006, p. 14), “as práticas de letramento de um indivíduo mudam ao longo de sua vida devido a diferentes demandas, recursos disponíveis e suas próprias capacidades e interesses”. Isso significa que um sujeito considerado letrado em um determinado contexto de letramento não terá necessariamente habilidades adequadas para outro contexto de letramento. Portanto, as dificuldades de leitura e escrita enfrentadas pelos alunos na universidade não resultam apenas da falta de conhecimento, mas também da falta de experiência com os gêneros próprios desse contexto socio-discursivo. A mediação entre os domínios discursivos e a linguagem ocorre por meio de enunciados, ou seja, dos gêneros discursivos produzidos pelos sujeitos em práticas situadas (BAKHTIN, 2011).

Um dos conflitos mais comuns enfrentados pelos alunos está relacionado à sua relutância em abandonar a visão de escrita como um modelo fixo, uma habilidade que lhes foi ensinada na escola. Segundo Kleiman (2012) e Street (1984, 2014), o sentimento de estranhamento e de não pertencimento ao ambiente universitário manifestado pelos estudantes recém-chegados é, em grande parte, resultado da ênfase constante da escola na promoção de práticas de escrita autônomas. A frequente associação feita pela escola entre aprendizagem e capacidade individual é uma das razões pelas quais Street (2014) relaciona o letramento escolar ao letramento autônomo.

Dessa forma, é compreensível que alguns alunos que ingressam no ambiente acadêmico enfrentem dificuldades e conflitos em sua jornada de desenvolvimento letrado, enquanto buscam legitimar sua inserção no contexto acadêmico e construir sua identidade profissional (MARINHO, 2010). Os obstáculos surgem em decorrência da falta de correspondência entre a prática de escrita ensinada na escola e a exigida no Ensino Superior, uma vez que os gêneros discursivos são distintos em cada contexto (FIAD, 2011).

Ao se depararem com a escrita acadêmica e perceberem que não a dominam, esses estudantes reagem negativamente devido à crença de que a escrita ensinada na escola os preparou para lidar com todos os tipos de gêneros discursivos ao longo de suas vidas (MARINHO, 2010). É importante reconhecer que as convenções que governam o contexto acadêmico são diferentes das do Ensino Médio; ou seja, os tipos de textos, as formas de agir e interagir, entre outros aspectos, são específicos desse contexto. Consequentemente, os estudantes se deparam com uma variedade de práticas de escrita diferentes das que encontraram em outros níveis de escolaridade. Assim, mesmo que esses alunos sejam competentes leitores e produtores de textos, a aquisição dessas novas linguagens não ocorre de maneira automática.

Portanto, há um desalinhamento entre a bagagem cultural dos estudantes e o que é esperado deles pelos professores. Essa quebra de expectativas pode abrir espaço para o surgimento e a manutenção de práticas fundamentadas em estereótipos, como o discurso do déficit. A fim de verificar essa hipótese, desenvolvemos uma pesquisa bibliográfica que será delineada nas próximas seções.

A pesquisa bibliográfica

A pesquisa apresentada neste artigo é do tipo bibliográfica. Dada a complexidade do problema objeto deste estudo, optamos por essa modalidade de pesquisa para avaliar reflexivamente os estudos sobre letramentos acadêmicos de futuros professores de língua materna. Neste contexto, Moreira e Caleffe (2008, p. 74) observam que a pesquisa bibliográfica:

[...] não é uma mera repetição do que já foi dito e escrito sobre um determinado assunto. Como os demais tipos de pesquisa, a bibliográfica exige do pesquisador a reflexão crítica sobre os textos consultados e incluídos na pesquisa.

É importante destacar que a pesquisa bibliográfica não se resume a uma simples revisão de literatura, já que esta última é uma característica presente em qualquer pesquisa. A pesquisa bibliográfica abrange um conjunto de procedimentos delineados por uma ordem de critérios e metodologias para abordar o problema de pesquisa, conforme destacam Lima e Mioto (2007). As autoras enfatizam que a pesquisa bibliográfica requer uma clara definição de procedimentos metodológicos, como a especificação do tipo de pesquisa, a delimitação do objeto de estudo, a escolha dos instrumentos para coleta de dados, a identificação das fontes, a classificação do material e a exposição do processo de pesquisa.

O contexto da pesquisa

Como fonte de pesquisa utilizamos o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes Neste catálogo, extraímos o corpus de dissertações e teses a serem analisadas. Para delimitar o número exato de trabalhos para compor nosso corpus, realizamos um recorte com base em três critérios de seleção: (i) pesquisas publicadas entre 2013 e 2022; (ii) que abordassem o letramento acadêmico de graduandos em Letras; (iii) cujos principais sujeitos da pesquisa fossem os estudantes. Após seguir esses critérios, chegamos a um total de 18 produções científicas.  

Feita a seleção do corpus, realizaremos uma análise dos seus resumos, com foco nos resultados obtidos. Para o recorte que propomos neste artigo, optamos por selecionar 8 dos 18 trabalhos selecionados, compostos por 3 teses e 5 dissertações. Para organizar nossa análise, nomearemos cada trabalho com a sigla RT para os resumos das teses e RD para os resumos das dissertações. Nossa organização será a seguinte:

Quadro 1: Organização do corpus

Dissertações

Letramentos Acadêmicos e o processo de representação do graduando em Letras na contemporaneidade  

RD1

Letramento Universitário:  Impactos Do Ensino Médio Na Produção Escrita Dos Alunos Ingressos Em Letras  

RD2

O Ethos Dos Alunos Do Curso De Letras/Ufal Nas Práticas De Letramento Acadêmico

RD3

Letramentos Acadêmicos No Curso De Letras: Práticas Em Inglês Na Voz De Licenciandas  

RD4

Práticas De Letramento Acadêmico Na Formação Docente Em Um Curso De Letras De Uma Universidade Pública Do Paraná  

RD5

Teses

O Letramento Acadêmico No Curso De Letras: Saberes, Recursos E Ações Textual-Discursivas Na Produção De Resenhas

RT1

Letramento Acadêmico: Estudo Exploratório Da Escrita Acadêmica Na Comunidade Discursiva Do Curso De Letras Da Universidade Estadual Do Ceará

RT2

Da necessidade de uma intermediação sensível: reflexões sobre letramento acadêmico em um contexto de Educação a Distância do IFAL

RT3

Fonte: produzido pela autora com base em pesquisas disponíveis no Catálogo Capes.

Nas próximas quatro seções, apresentaremos as categorias temáticas identificadas a partir da leitura dos resultados encontrados em cada resumo. Embora distintas, as categorias estão relacionadas, pois refletem experiências que os estudantes podem vivenciar ao ingressar no contexto universitário. Cada estudo direcionou seu olhar para pontos distintos, relacionados aos objetivos propostos. No entanto, em alguns casos, um mesmo resultado abordou mais de uma temática. Portanto, em nossa análise, haverá casos em que os resultados poderão ser citados mais de uma vez. Através da exposição dessas categorias, poderemos inferir se há ou não a presença de estereótipos nas práticas letradas dos estudantes. É importante mencionar que, ao apresentar os destaques de nosso corpus, diferenciamos as citações do corpus das nossas anotações usando itálico.

Os conflitos e tensões no contexto acadêmico

Apenas um dos estudos (RD1) apontou em seus resultados a ocorrência de conflitos no processo de letramento acadêmico, conforme a perspectiva dos estudantes.

Quadro 2: Conflitos no contexto acadêmico

RD1

Como principais resultados, destacam-se, da perspectiva do universitário, conflitos: (i) entre o que a instituição acadêmica oferece e aquilo de que ele necessitaria em sala de aula; (ii) entre ter emprego e ser desvalorizado profissionalmente; (iii) entre quem tem ou não tem domínio atualizado das tecnologias. Evidencia-se, ainda, por ausência, o diálogo que o universitário estabelece com o discurso acadêmico-científico, num distanciamento da instituição.

Fonte: produzido pela autora com base em pesquisas disponíveis no Catálogo Capes.

Ao ingressarem na universidade, os estudantes se deparam com as demandas de produção de gêneros específicos, como artigos científicos, ensaios e fichamentos. Ao longo de sua trajetória acadêmica, espera-se que se tornem cada vez mais proficientes na expressão de suas ideias, seja por meio da fala ou da escrita. No entanto, isso nem sempre ocorre devido a:

[...] motivações relacionadas ao próprio processo anterior de escolarização, ao modo como a língua foi trabalhada, seja por diferença entre os falares de origem, ou seja, as linguagens sociais características de grupos sociais e normas urbanas de prestígio (GOULART; WILSON, 2020, p. 110). 

De acordo com Lea e Street (1998), os conflitos se originam quando o aluno, mesmo ciente da necessidade de adaptar suas práticas, não possui um repertório suficiente de práticas linguísticas para atuar em diversos contextos da instituição. Além disso, ele não dispõe de tempo suficiente para adquirir essas práticas, mesmo que parcialmente, antes de ser avaliado.

Jones, Turner e Street (1999) destacam que a transição para o contexto acadêmico pode gerar conflitos devido às diferenças no uso do repertório linguístico que os alunos supostamente desenvolveram para diferentes situações. Eles observaram que as formas de escrita exigidas em diversas disciplinas podem desafiar a identidade pessoal dos estudantes. Por exemplo, enquanto em algumas disciplinas é necessário usar formas impessoais e passivas, em vez da primeira pessoa e formas verbais ativas, os alunos podem inicialmente sentir-se deslocados por não dominarem as linguagens sociais legitimadas no meio acadêmico.

Devido à falta de familiaridade com as convenções acadêmicas, os alunos muitas vezes recorrem às formas de escrita que usavam em níveis anteriores de escolarização. No entanto, essas formas podem não ser aceitas na produção de determinados gêneros acadêmicos, causando um sentimento de inadequação e desafio à identidade dos estudantes. Esse descompasso pode gerar um sentimento de frustração e dificuldade, enquanto os alunos tentam se adaptar às novas expectativas e normas linguísticas do ambiente acadêmico.

Para Marinho (2010), existe uma relação tensa e conflituosa nas interações mediadas pela escrita na universidade, o que a leva a concluir que “esse é um campo de produção de estigmas e de violência simbólica (2010, p. 383) ”. No processo de letramento acadêmico, os estudantes assimilam formas de expressão convencionalmente estabelecidas, dialogando com outras formas de conhecimento que já possuem. Os discursos dos alunos revelam crenças, valores e normas linguísticas que se alinham com suas experiências com a escrita no âmbito universitário.

Surge então uma falta de alinhamento entre o letramento do estudante e as exigências de letramento na esfera universitária, o que foi destacado por RD1 ao evidenciar a existência de uma série de conflitos, pelo ponto de vista dos estudantes: (i) entre o que a instituição acadêmica oferece e aquilo de que ele necessitaria em sala de aula; (ii) entre ter emprego e ser desvalorizado profissionalmente; (iii) entre quem tem ou não tem domínio atualizado das tecnologias. Esses problemas podem surgir da necessidade de os alunos conciliarem seus conhecimentos e experiências anteriores com as novas demandas e expectativas acadêmicas. Isso geralmente provoca tensão e dificuldades na produção e compreensão de textos acadêmicos, pois os alunos precisam se adaptar a diferentes estilos de escrita, normas de formatação e critérios de avaliação que podem diferir significativamente do que estavam acostumados. Conforme explicam Goulart e Wilson (2020, p.111): 

De um lado, temos os professores com suas expectativas, muitas vezes consolidadas em relação à escrita dos alunos, e suas compreensões (pois também partem de suas próprias experiências com a linguagem), presumindo que os alunos já deveriam conhecer as normas e práticas de leitura e escrita a que são submetidos, estando aptos para as tarefas e atividades propostas. De outro lado, apresentam-se os alunos em termos de suas condições letradas anteriores diante de novas experiências com a linguagem escrita, o que implica valores, crenças e identidades que passam a ser projetadas nessa experiência e nessa relação com os professores e com a academia, isto é, com a nova ordem discursiva.

Os conflitos resultam dos processos de assimilação do letramento acadêmico, que às vezes não correspondem às expectativas dos professores. Isso ocorre devido à “prática institucional do mistério” descrita por Lillis (1999), em que muitos professores universitários presumem que os alunos já conhecem certas práticas de escrita, o que faz com que não expliquem aos alunos o gênero acadêmico. Essa suposição pode levar a lacunas significativas na compreensão e na habilidade de produção dos textos acadêmicos, criando uma barreira adicional para os alunos que estão se adaptando às novas demandas. Consequentemente, é essencial que os professores reconheçam a diversidade de experiências e níveis de familiaridade dos alunos com a escrita acadêmica e forneçam orientações claras e explícitas sobre as expectativas e normas do gênero.

É importante considerar, no entanto, que as convenções que orientam a escrita não são claras nem mesmo para aqueles que participam das atividades acadêmicas, o que pode criar uma tensão entre as práticas de escrita já dominadas pelos estudantes e aquelas utilizadas pela academia. Assim, as orientações dos professores podem parecer distantes da realidade dos alunos, dificultando a compreensão da escrita como uma prática social. Street (2010) afirma que existem “dimensões escondidas” que se apresentam entre o momento em que ocorre a solicitação do professor sobre a produção a ser realizada e como os estudantes vão compreender tal solicitação. Segundo o argumento do autor, essas dimensões não se referem apenas à estrutura textual; referem-se também ao seu ambiente, questionando se um gênero está sendo produzido, se uma entidade pública está sendo produzida, com que finalidade e se está sendo feita a contribuição de alguém para a área de estudo e pesquisas futuras.

Segundo Street (2009), os professores esperam que os alunos escrevam sobre determinados gêneros sem prévia explicitação sobre os critérios que serão considerados no momento da realização da correção. Surge assim, mais um conflito na relação professor-estudante, pois as expectativas de ambos não são correspondentes, e isso não só estaria relacionado à língua, à gramática em sentido estrito, mas também às relações de poder vivenciadas por eles, o que foi evidenciado por RD1 ao mostrar, a ausência, de diálogo entre o universitário e o discurso acadêmico-científico, num distanciamento da instituição. Ou seja, uma vez que os conflitos não são resolvidos, eles contribuem para que esse distanciamento seja mantido.

As dificuldades e/ ou lacunas na produção textual dos estudantes

Souza e Basseto (2014) esclarecem que as dificuldades enfrentadas pelos estudantes de graduação surgem da falta de familiaridade com o ambiente acadêmico, seu discurso, suas práticas e seus gêneros discursivos. Para que esses estudantes sejam inseridos no meio universitário, é essencial que participem ativamente dessa comunidade discursiva, mesmo com as relações hierárquicas e de poder presentes.

Em seus resultados, RD3, RD5, RT1 e RT3 acabam por enfatizar as dificuldades observadas em seus estudos, por parte dos estudantes, principalmente no que se refere à produção textual acadêmica.

Quadro 3: Dificuldades relatadas

RD3

[...] as dificuldades relatadas por eles em relação à escrita acadêmica não são aleatórias, mas estão vinculadas à falta de familiarização desses alunos com a produção dos gêneros no contexto universitário. Através do Ethos, portanto, observou-se que essa familiarização e apropriação dos alunos em relação à escrita acadêmica é advinda da interação estabelecida entre professor e alunos em sala de aula, no momento de orientação dos gêneros.

RD5

Como resultado dessa análise, observou-se uso do apud, geralmente de autores com obras de fácil acesso e trabalhadas em outras disciplinas do Curso, recorrência na citação de autores ou do lugar teórico que embasou a análise dos dados observados e uma organização da análise da observação e colaboração em sala de aula com o objetivo pré-estabelecido de encontrar as concepções de linguagem de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997) e das Diretrizes Curriculares do Paraná (DCE, 2008), representando modelos culturais locais (HAMEL, 2013) de letramento acadêmico. Esses dados dos relatórios apontam para uma certa dificuldade dos estagiários em articular teoria e prática, o que aparece nas citações que fazem e na forma como analisam os dados nos relatórios.

RT1

Conclusões apontam para a dificuldade dos acadêmicos de todos os períodos com marcas estruturais e operações textual-discursivas que indiciam o gênero resenha, o que remete a problemas no processo de letramento acadêmico no andamento no curso.

RT3

Nas análises efetuadas, constatamos que os alunos, professores em formação inicial, apesar de já terem se apropriado da linguagem escrita, apresentam lacunas em determinados aspectos inerentes às produções acadêmicas, tais como: produção textual sem evidência de apropriação de conceitos constantes em textos-base, ausência de elementos linguístico-discursivos inerentes aos gêneros produzidos a partir da solicitação do professor e evidência de dificuldades quanto ao domínio de aspectos formais da língua presentes em processos de retextualização.

Fonte: produzido pela autora com base em pesquisas disponíveis no Catálogo Capes.

Diversas pesquisas (FIAD, 2011; LILLIS; HARRIGTON; LEA; MITCHELL, 2015; MARINHO, 2010) destacam que os professores universitários percebem as habilidades de escrita de seus alunos, especialmente os iniciantes, como deficientes. Com a implementação de políticas de acesso, a universidade passou a receber grupos que anteriormente eram excluídos desse ambiente, muitos dos quais apresentam lacunas em suas competências de leitura e escrita acadêmicas. Este discurso centra-se nas deficiências que indicam a necessidade de uma análise mais detalhada das práticas de leitura e escrita no contexto global.

RD3 aponta que a razão para as dificuldades se dá pela falta de familiarização dos alunos com a produção dos gêneros no contexto universitário. De fato, é necessário proporcionar momentos de integração e familiarização com o discurso acadêmico. No entanto, o processo não é simples. Segundo Gee (1996), quando um indivíduo precisa aprender algo novo, ele utiliza o conhecimento prévio como recurso para encontrar semelhanças entre o conhecimento anterior e o novo conhecimento. No contexto acadêmico, isso significa que os alunos tentam aplicar suas experiências e habilidades anteriores à escrita acadêmica. No entanto, sem orientação adequada, essa transição pode ser desafiadora, pois as expectativas e normas dos gêneros acadêmicos muitas vezes diferem significativamente das práticas anteriores dos alunos.

Para que os alunos se familiarizem com o contexto acadêmico, é essencial participarem de maneira contínua e diversificada em práticas linguísticas e sociais nesse contexto. A familiarização nesse ambiente torna-se uma parte integral das tarefas e ações que os alunos precisam realizar para aprender a gerenciá-las e utilizá-las de maneira a se integrarem ao contexto a ponto de também exercerem influência sobre ele, e não apenas serem por ele influenciados.

Além disso, relacionado à produção textual os estudos RT1 e RT3 indicaram a presença de dificuldades e/ou lacunas relacionados a aspectos textuais e normativos da produção dos gêneros acadêmicos (dificuldade dos acadêmicos de todos os períodos com marcas estruturais e operações textual-discursivas que indiciam o gênero resenha- RT1; evidência de dificuldades quanto ao domínio de aspectos formais da língua presentes em processos de retextualização- RT3). É necessário desenvolver um trabalho que leve os alunos a compreender como as práticas acadêmicas são organizadas, seus significados e as razões pelas quais alguns gêneros são mais privilegiados do que outros (OLIVEIRA, 2015). Outro fator relevante é que os alunos aprendam as normas de escrita acadêmica, que dizem respeito à forma como os gêneros dessa área são construídos.

De acordo com Oliveira (2015), a universidade recebe alunos que não tiveram acesso às práticas de escrita privilegiadas nesse ambiente. Contudo, as dificuldades apresentadas não se limitam apenas às práticas de ensino da leitura e escrita nas disciplinas de Língua Portuguesa/Português. Outros fatores também devem ser considerados, especialmente aqueles relacionados à construção e elaboração do conhecimento, à comunicação dos saberes em contexto pedagógico e à importância da linguagem escrita no desenvolvimento desses processos.

A relação Escola x Universidade

Os resultados dos estudos RD2, RD4 e RD5 apresentaram dados que indicam a existência de lacunas entre a esfera escolar e a universitária.

Quadro 4: Escola x Universidade

RD2

A análise dos dados revelou que a maioria dos alunos não teve aulas de produção textual em sua fase escolar fundamentada em uma concepção de linguagem que a reconhece como prática social, tendo como consequência um ensino na Educação Básica com ênfase na gramática normativa, a partir das estruturas tipológicas tradicionais, reconhecidas como narração, descrição e dissertação, com foco na estrutura dissertativa. Por conta dessas práticas, as produções dos estudantes, no Ensino Superior, apresentam interferências da dissertação escolar, ainda que se trate de resumos, resenhas e artigos de opinião, os quais se caracterizam por outra estrutura.

RD4

Os dados, obtidos tanto nas abordagens escritas (questionário, relatórios de estágio e texto de memórias) quanto nos dados da abordagem oral (entrevista narrativa), sugerem que as licenciandas evidenciam as relações de poder estabelecidas já que, reconhecem a necessidade de aprofundar discussões, apontando para uma autonomia, mas, não se permitem fazê-lo, e, seguem reproduzindo os discursos institucionais entre universidade e escola.

RD5

Um segundo resultado apontou para a necessidade de um trabalho colaborativo entre professor orientador, professor supervisor e estagiário, como meio para minimizar as lacunas existentes entre universidade e escola, o que direciona para a compreensão dos espaços de estágio como ambientes de pesquisa e de formação (REICHMANN, 2015).

Fonte: produzido pela autora com base em pesquisas disponíveis no Catálogo Capes.

Ao permanecer ancorada no modelo autônomo de letramento (STREET, 2014), a escola não se empenha em promover a expansão e o aprimoramento dos hábitos de leitura e escrita que os alunos trazem de casa e das séries iniciais, à medida que progridem em sua trajetória escolar. Com isso, ela não prepara os alunos para enfrentar outras formas de definição de sentido por meio da linguagem, valorizadas fora do contexto escolar. Como destacado por RD2, o ensino na Educação Básica muitas vezes enfatiza gramática normativa, a partir das estruturas tipológicas tradicionais, reconhecidas como narração, descrição e dissertação, com foco na estrutura dissertativa.

É sabido que durante esse período os alunos não têm praticamente nenhum contato com textos acadêmicos, como bem destacado por Carvalho (2013), o que revelando uma lacuna na formação dos futuros professores, que deve ser abordada prioritariamente no Ensino Superior. Marinho (2010, p. 366) ressalta que a uma das prováveis justificativas para essa lacuna pode ser “a crença (subjacente aos discursos de senso comum e aos currículos) no princípio de que se aprende a ler e a escrever (não importa qual seja o gênero) no ensino fundamental e médio”. Portanto, os estudantes só começam a se familiarizar com os gêneros discursivos acadêmicos quando entram em contato com esse ambiente pela primeira vez, um fato que os professores universitários precisam considerar.

 É necessário enfatizar que, na Educação Básica, os alunos não aprendem a escrever todos os gêneros discursivos existentes, assim como não aprendem a ler e escrever para todas as esferas discursivas possíveis. Entretanto, mesmo reconhecendo que os aspectos estruturais dos gêneros acadêmicos são distintos daqueles trabalhados durante a educação básica, há, por parte do estudo RD2, a constatação de que, devido às práticas textuais pregressas, as produções dos estudantes no Ensino Superior apresentam interferências da dissertação escolar.

As práticas de leitura e escrita no âmbito acadêmico exigem, do estudante, a assimilação de normas e padrões, bem como a incorporação de conhecimentos altamente específicos associados a uma postura considerada crítica e científica. Segundo Carlino[3] (2017, p. 28), é preciso reconhecer que “os tipos de escrita esperados pelas comunidades acadêmicas universitárias não são simples aprofundamentos do que os alunos deveriam ter aprendido previamente. São formas discursivas que desafiam a todos os principiantes”. Lidar com a escrita na universidade é uma questão que envolve mais do que o reconhecimento de regras e normas; adentra em contornos pessoais e questões de identidade e socialização. Nesse sentido, entendemos que o conceito de alfabetização acadêmica, proposto por Carlino, ao valorizar as habilidades e estratégias linguísticas e discursivas necessárias para a produção textual dos alunos, também caracteriza modos de ler e escrever específicos de cada campo disciplinar, demandando, por essa razão, a inserção dos alunos em práticas discursivas e sociais na universidade, integrando os três modelos de letramentos acadêmicos tais como explicados por Lea & Street (1998).  

Lillis (1999) salienta que o processo de exclusão do estudante universitário muitas vezes começa devido à percepção dos professores de que as convenções da escrita acadêmica são intuitivas e de fácil compreensão. Além disso, os educadores negligenciam frequentemente o verdadeiro nível de habilidades de leitura e escrita que os alunos trazem consigo para a universidade. Portanto, tanto os alunos quanto os professores dos cursos de graduação parecem carecer do entendimento de que a escrita acadêmica (sem desconsiderar a modalidade oral, é claro) precisa ser experimentada na universidade, para o que também é essencial uma relação de ensino-aprendizagem eficaz.

Ao ingressarem nos cursos de graduação, os estudantes deparam-se com práticas acadêmicas de leitura e escrita que, até então, lhes eram desconhecidas. Contudo, as instituições de ensino superior esperam que esses alunos superem, de maneira autônoma, o desafio de compreender a complexidade dos textos científicos com as linguagens especializadas a cada disciplina e a cada campo.

Nesse contexto, pode-se afirmar que o letramento acadêmico é diretamente influenciado pela atitude do professor em reconhecer que os estudantes, ao ingressarem no Ensino Superior, são “[...] imigrantes que enfrentam uma nova cultura, admite que isto é intrinsecamente um desafio para qualquer um, que se trata de um processo de integração a uma comunidade estrangeira e não de uma dificuldade de aprendizagem” (CARLINO, 2003, p. 20). Essa analogia com a condição de imigrante ressalta a necessidade urgente de fornecer acolhimento e um processo de ensino explícito para a assimilação dos novos métodos de leitura e escrita dentro desses contextos específicos. Nesse sentido, Lillis (1999) explica que as convenções acadêmicas, além de não considerarem a perspectiva dialógica da linguagem, podem se tornar, para os alunos pertencentes a grupos não favorecidos socialmente, uma prática institucional do mistério, uma vez que estes não estão familiarizados com essas convenções da escrita que privilegiam as camadas sociais dominantes.

Segundo Carlino (2017, p. 28), é preciso reconhecer que “os tipos de escrita esperados pelas comunidades acadêmicas universitárias não são simples aprofundamentos do que os alunos deveriam ter aprendido previamente. São formas discursivas que desafiam a todos os principiantes”. Lidar com a escrita na universidade é uma questão que envolve mais do que o reconhecimento de regras e normas; é um assunto que adentra em contornos pessoais e questões de identidade.

Segundo o estudo RD4, os estudantes na busca por autonomia acabam por reproduzir os discursos institucionais entre universidade e escola. Isso é resultado da significativa e constante problemática da separação entre essas duas instituições, em que a universidade é vista como produtora e a escola como reprodutora do conhecimento. Lidar com essa questão pode também envolver uma compreensão mais profunda sobre os diferentes letramentos presentes nessas esferas discursivas. O estudo RD5, em seus resultados, também reforça a necessidade da existência de um trabalho colaborativo entre todos os participantes envolvidos com os letramentos acadêmicos, como meio que possa minimizar as lacunas existentes entre universidade e escola.

As práticas de escrita acadêmica pautadas no modelo autônomo

Quadro 5: Escrita acadêmica pelo modelo autônomo

RD5

Os dados evidenciam para o fato de os alunos do curso de Letras, apesar de haver situações em que a linguagem ainda é trabalhada de forma autônoma (STREET, 2014), estão dispostos a rever os próprios modelos e de irem em busca de uma relação de ensino e aprendizagem mais emancipatórios, reflexivos e que incluam e visibilize as diversidades.

RT2

Os resultados das análises demonstram que não existe um processo de ensino-aprendizagem de escrita acadêmica nas práticas e nos eventos de letramento pertencentes a esta comunidade discursiva do Curso de Letras Português da UECE. Os resultados também demonstram que a escrita, quando ocorre, se pauta no modelo do produto. Além disso, nos documentos oficiais não apresentam indícios ou afirmações de que a escrita, no Curso de Letras, possa ser apoiada no produto, no processo ou na escrita como uma prática social

Fonte: produzido pela autora com base em pesquisas disponíveis no Catálogo Capes.

Os professores universitários, por vezes, “abstêm-se” de produzir uma racionalidade clara e tornar essa prática uma conduta explicitamente regulada” (ANDRADE, 2004, p. 1). Isso resulta na falta de clareza sobre os papéis sociais de alunos e professores em relação às práticas de letramento. Como destacado por RT2, não existe um processo de ensino-aprendizagem de escrita acadêmica nas práticas e eventos de letramento, indicando que as regras do jogo não são explicitamente esclarecidas. Isso pode levar a divergências nas expectativas dos alunos e professores em relação às produções textuais. 

Nesse contexto, os resultados também indicaram que, enquanto a escrita ocorre, ela se pauta no produto (RT2). É muito comum que questões estritamente ortográficas ganhem relevo nas práticas de ensino da escrita, como é possível comprovar nos estudos de Rodrigues (2014), Antunes (2005), Costa Val et al. (2009), etc. Para a primeira autora:

 

O aluno escreve um texto-produto, em suma, sem finalidades claras, sem suporte do professor, embora para o professor, e recebe uma nota ancorada em uma avaliação que não aponta direções para outras produções textuais, porque fixada quase estritamente nos desvios ortográficos e sintáticos da escrita. (RODRIGUES, 2014, p. 298)

Em outras palavras, os estudantes elaboram seus textos com o objetivo de serem avaliados pelo professor, que representa a instituição, em conformidade com as exigências acadêmicas (WILSON, 2009). Isso sugere que os estudantes podem estar mais preocupados em produzir um texto finalizado e ‘correto’ do que em entender e praticar os processos envolvidos na escrita acadêmica, de modo que:

[...] a prática do texto escrito, segundo os estudantes-professores, é apenas um mecanismo para o estudo do texto indicado para a leitura, o que servirá de consulta para as avaliações individuais escritas, ou seja, servirá para a checagem do conteúdo e para a atribuição de uma nota, como objeto de avaliação/ correção monológica, sem que o professor universitário devolva o texto ao aluno revisado ou lhe solicite algum tipo de reescrita (RODRIGUES; RANGEL, 2018, p.49)

Sob o viés do modelo autônomo, a escrita é concebida como um instrumento ou uma tecnologia, uma prática individual, isolada das condições sociais, sendo percebida como:

[...] um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua produção para ser interpretado; o processo de interpretação estaria determinado pelo funcionamento lógico interno ao texto escrito, não dependendo das (nem refletindo, portanto,) reformulações estratégicas que caracterizam a oralidade, pois, nela, em função do interlocutor [...]. Assim, a escrita representaria uma ordem diferente de comunicação, distinta da oral, pois a interpretação desta última estaria ligada à função interpessoal da linguagem, às identidades e relações que interlocutores constroem, e reconstroem, durante a interação (KLEIMAN, 2003, p. 22).

O estudo RT2 também recorreu aos documentos oficiais do curso de Letras para entender se a prática da escrita como produto é amparada oficialmente. No entanto, os resultados indicaram que não existem evidências que comprovem que a escrita possa ser apoiada no produto, no processo ou na escrita como uma prática social. Essa falta de clareza em relação a como a escrita deve ser tratada pode resultar em práticas que priorizem a padronização na forma como os alunos escrevem e se expressam, em conformidade com as convenções acadêmicas e linguísticas estabelecidas.

Na graduação, os estudantes podem se envolver em situações que melhor se adequam às suas funções sociais, como participar de eventos de letramento. Um exemplo disso é a produção de resumos científicos para apresentações em seminários ou congressos. Tais atividades aumentam a probabilidade de que suas produções textuais circulem efetivamente no meio acadêmico. Isso permite que suas práticas de leitura adquiram objetivos mais amplos, escapando das limitações avaliativas, formais e pontuais. Contudo, os resultados também indicaram que, embora a linguagem seja, em alguns momentos, trabalhada de forma autônoma, os alunos demonstram disposição para revisar seus próprios modelos e buscar uma relação de ensino e aprendizagem mais emancipatória e reflexiva, que inclua e visibilize as diversidades (RD5).

Para os alunos poderem se inserir efetivamente no contexto acadêmico, é necessário evitar práticas que fortaleçam o letramento autônomo, caracterizado pela autonomia da escrita, sendo percebida como um “produto completo em si mesmo” (KLEIMAN, 1995, p. 21), dissociada dos contextos socioculturais. De acordo com Street (1984, 2009), esse modelo concebe o letramento como uma habilidade descontextualizada, que, uma vez aprendida, pode ser transferida facilmente para qualquer contexto que demande o domínio da escrita. No âmbito do letramento autônomo, as atividades relacionadas à escrita, ao invés de promoverem uma transformação significativa dos estudantes em participantes ativos do ambiente acadêmico, muitas vezes resultam em uma realidade educacional limitante. Isso ocorre porque a escrita desempenha uma função predominantemente didática, quase como um procedimento padrão, conforme destacado por Gee (1990) e Carlino (2003).

Nesse sentido, é evidente a semelhança entre as práticas de avaliação dos textos produzidos pelos alunos tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior. Essas práticas muitas vezes se concentram na correção superficial da escrita, destacando elementos periféricos do texto durante o processo de aprendizagem da escrita acadêmica. Parece haver uma falta de valorização dos conhecimentos adquiridos pelos alunos ao longo desse processo. Isso ocorre visto que a prática de revisão e reescrita dos textos não parece comum nessas disciplinas, o que pode desmotivar os alunos a produzir novos textos, uma vez que sabem que apenas seus erros serão considerados, sem reconhecimento pelos avanços obtidos.

Considerações finais

Neste artigo, analisei os resultados encontrados nos resumos de 3 teses e 5 dissertações, buscando identificar a presença ou ausência de estereótipos, como o discurso do déficit, nas práticas letradas dos graduandos em Letras. Os dados, conforme as temáticas identificadas durante a leitura, permitiram-nos inferir que:

  1. Conflitos e tensões no contexto acadêmico apontam para o desalinhamento entre os letramentos dos estudantes e as exigências acadêmicas universitárias, evidenciado por diversos conflitos percebidos pelos próprios alunos. Estes conflitos incluem a disparidade entre o suporte oferecido pela instituição e as necessidades reais em sala de aula, a tensão entre a necessidade de emprego e a desvalorização profissional, e as diferenças no domínio das tecnologias atualizadas.
  2. A constatação de dificuldades e/ou lacunas na produção textual dos estudantes, os dados apontaram para a importância de proporcionar oportunidades de integração e familiarização com o discurso acadêmico. As dificuldades persistem, especialmente em relação aos aspectos textuais e normativos da produção de gêneros acadêmicos, como a resenha.
  3. A relação entre os letramentos escolares e os acadêmicos mostrou a forte influência do primeiro como discurso legitimado e instituído pelos alunos em suas novas práticas letradas, havendo, no entanto, por parte deles, a percepção das relações de poder estabelecidas no contexto acadêmico, ao reconhecerem a necessidade de aprofundar discussões e aprimorar a aprendizagem para melhor aproveitamento em seus estudos e suas práticas letradas no novo contexto.
  4. As práticas de escrita acadêmica pautadas no modelo autônomo apontaram para a falta de clareza sobre os papéis sociais de alunos e professores em relação às práticas letradas. A ausência de uma explicação clara das regras do jogo pode levar a divergências nas expectativas entre alunos e professores em relação às produções textuais, contribuindo para um cenário onde a escrita é vista como um produto, conforme mencionado em RT5. No entanto, os resultados indicaram que os alunos estão dispostos a revisar seus próprios modelos e buscar uma abordagem mais reflexiva e emancipatória para o ensino e aprendizagem da escrita, reconhecendo e incluindo as diversidades linguísticas e sociais.

Portanto, os resultados indicam a presença de indícios de estereótipos, como as dimensões ocultas, a prática institucional do mistério e o discurso do déficit. Entretanto, observou-se uma orientação distinta em relação a esses estereótipos, focada na busca de motivações que pudessem explicar as dificuldades dos alunos em relação às práticas letradas. Houve um deslocamento para a discussão desses estereótipos com o objetivo de entendê-los na dinâmica dos processos de letramento, incluindo: o estranhamento inicial dos alunos no novo contexto; a inserção em um ambiente que exige novas habilidades e ações; a falta de clareza e os conflitos de expectativas entre professores e alunos, cujas pautas nem sempre são reveladas, mantendo as “dimensões ocultas dos letramentos”; a constituição de identidades sociais e profissionais nesse contexto; e a aprendizagem de novas regras, parâmetros e condutas que levam a diversas formas de ser letrado na academia.

Também nos chama a atenção o fato, apontado pelo corpus, de que os gêneros discursivos acadêmicos produzidos por graduandos em Letras apresentam características dos gêneros discursivos escolares, o que entendemos poder configurar um desdobramento do discurso do déficit. Sabemos que os gêneros textuais prototípicos da Educação Básica são distintos daqueles privilegiados na esfera acadêmica, o que indica a utilização de práticas fundamentadas pelo modelo das habilidades de estudo. Segundo Lea e Street (1998), o aluno é avaliado com base em seus déficits durante a correção de seu texto, ou seja, enfatiza-se o que ele não sabe e precisa aprender. Entendemos que a manutenção e o surgimento de novos estereótipos indicam a existência de práticas fundamentadas no modelo das habilidades de estudo, onde a aquisição de habilidades é privilegiada e entende-se que as práticas de letramento são transparentes e transferíveis de contexto para contexto.

Referências

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Data do envio:   26/08/2024

Data do aceite: 28/11/2024.

Revista Aleph. Niterói, dezembro de 2024, nº 42, p. 1 - 26                ISSN 1807-6211

                   


[1] Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: beatrizzfernanda@yahoo.com.br. Telefone: (21) 97578-8261.  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2708-6583 

[2] Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: vicwilsoncc@gmail.com. Telefone: (21) 99623-5676.  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5237-8860 

[3] Carlino (2003, p. 410) utiliza a expressão ‘alfabetização acadêmica’ no lugar de ‘letramento acadêmico’ para assinalar “[...] el conjunto de nociones y estrategias necesarias para participar en la cultura discursiva de las disciplinas así como em las atividades de producción y análisis de textos requeridas para aprender em la universidad. Apunta, de esta manera, a las prácticas de lenguaje y pensamiento propias del ámbito académico. Designa también el proceso por el cual se llega a pertenecer a una comunidad científica y/o profesional (Radloff y de la Harpe, 2000), precisamente en virtud de haberse apropiado de sus formas de razonamiento instituidas a través de ciertas convenciones del discurso. ” (Tradução nossa: [assinalar} o conjunto de noções e estratégias necessárias para participar na cultura discursiva das disciplinas assim como nas atividades de produção e análise de textos requeridas para se aprender na universidade. Aponta, desta maneira, para as práticas de linguagem e pensamento próprias do âmbito acadêmico. Designa também o processo pelo qual se chega a pertencer a uma comunidade científica e/ou profissional, precisamente em virtude da apropriação de formas de racionalidade instituídas através de certas convenções do discurso.)