AS RELAÇÕES DE PODER NA INSTITUIÇÃO

ESCOLAR SOB A ÓTICA FOUCAULTIANA

AS RELAÇÕES DE PODER NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR SOB A ÓTICA FOUCAULTIANA

THE POWER RELATIONS IN THE SCHOOL INSTITUTION FROM THE FOUCAULTIAN PERSPECTIVE

Antonia Heloísa da Costa[1]

Ciclene Alves da Silva[2]

Secleide Alves da Silva[3]

Resumo

O propósito deste artigo é examinar, à luz do pensamento de Michel Foucault, as relações de poder que permeiam a instituição escolar, utilizando como base as pesquisas acadêmicas realizadas ao longo da última década em níveis de mestrado e doutorado, a fim de compreender a forma como as relações de poder e saber se expressam no contexto escolar. Serão apresentadas as noções de poder e discurso no pensamento do filósofo, bem como os dispositivos que moldam a formação dos sujeitos e as práticas discursivas. A pesquisa adotou o método arqueogenealógico foucaultiano. Os resultados evidenciam que a escola é um espaço que disciplina tanto os corpos quanto as mentes, e promove certos regimes de verdade nos quais o governo dos outros está intrinsecamente ligado ao autogoverno.

Palavras-chave: Foucault. Poder-Saber. Discurso. Disciplina. Instituição Escolar.

Abstract

Our purpose with this article is to examine, in the light by Michel Foucault’s thought, the power relationships that around the school educational institution, using as a basis academic research carried out over last decade at master’s and doctorate levels, so that we can understand the way in which relations of power knowledge are expressed in the school context. We’ll showing the notions of power and discourse in the philosopher’s thought, as well as the devices that shape the formation of subjects and discursive practices. For our research, we’re adopted the archegenealogical method by Foucault. The results showed that the school is one space that disciplines both bodies and minds, and promotes certain regimes of truth in which the government of others is intrinsically linked to self-government.

Keys words: Foucault. Power-Knowledge. Discourse. Discipline. School Institution.

Introdução

Os escritos e as ideias de Michel Foucault mostram-se pertinentes e intrigantes, capazes de suscitar inúmeros questionamentos e, sobretudo, possibilitar diferentes formas de se pensar, a partir dos seus estudos. Nesse sentido, as teorizações de Foucault constituem a base para essas indagações e novas descobertas acerca das relações que se estabelecem no espaço educativo, as quais transcendem a mera interação entre os membros da escola. Essa ampliação é fundamental, pois parte desse contexto se projeta para além dos muros da escola, influenciando diretamente a vida social e as práticas cotidianas dos indivíduos, a depender das relações de saber e poder que se constituem como “verdades” no ambiente escolar.

Para investigar essas relações, é necessário compreender as três fases principais da produção intelectual de Foucault – arqueologia, genealogia e ética –, que permitem abordar as questões do saber, do poder e da ética como eixos centrais. Neste trabalho, concentraremos a análise na fase genealógica, período em que o autor se aprofunda na noção de poder, enxergando-o como uma rede de micropoderes que se manifesta em práticas sociais e nas interações cotidianas. Foucault, ao se distanciar da concepção de poder como monopólio estatal, propõe uma "análise diferencial dos diferentes níveis de poder dentro da sociedade" (FOUCAULT, 2001, p. 1680), possibilitando uma leitura mais ampla e descentralizada das dinâmicas de poder.

Essa perspectiva leva-nos a considerar o poder na escola como parte de uma "microfísica[4]" que opera por meio de dispositivos de controle – um conjunto articulado de discursos e práticas que modelam comportamentos e subjetividades. Assim, poder e saber se tornam aspectos indissociáveis: enquanto o poder estrutura e organiza o saber[5], este legitima e perpetua práticas de controle e disciplina.

Com efeito, as observações aqui realizadas partem da seguinte questão de pesquisa: como as relações de poder têm sido produzidas na instituição escolar, considerando os escritos de Michel Foucault. Desse modo, o trabalho tem como objetivo geral: analisar, a partir do pensamento de Michel Foucault, as relações de poder manifestas na instituição escolar, considerando as pesquisas publicadas entre 2012 a 2022 em nível de mestrado e doutorado acadêmico.

Perscrutando os intentos gerais da pesquisa, o artigo organiza-se em três objetivos específicos i) averiguar as pesquisas da última década que abordam as relações do poder na escola, ii) compreender o discurso e as práticas discursivas na articulação do saber-poder, iii) refletir sobre a manifestação do poder na instituição escolar a partir dos saberes construídos, com base nos resultados das pesquisas produzidas no marco temporal indicado. Para isso, são utilizados como referências principais as obras Microfísica do Poder, História da Sexualidade I: A Vontade de Saber, Vigiar e Punir, A Ordem do Discurso e Arqueologia do Saber, nas quais Foucault apresenta a analítica do poder, os traçados históricos de formação dos dispositivos de vigilância e controle do corpo, assim como uma ampliação no instrumento de análise, direcionado à arqueologia e à genealogia, de modo que se inter-relacionam tanto no eixo do saber quanto do poder.

O artigo está organizado em cinco seções. Primeiramente, explora-se a constituição do poder nas relações sociais, destacando os aspectos genealógicos da obra de Foucault e revisando estudos na área da educação. A seguir, discute-se o conceito de discurso como estrutura que articula saber e poder. Na terceira seção, são analisadas duas pesquisas — uma em nível de mestrado e outra em nível de doutorado — que abordam essas dinâmicas na escola, utilizando a Análise de Discurso (AD) foucaultiana. Por fim, na conclusão, retomaremos os aspectos principais da pesquisa, destacando os contributos da relação entre poder e saber na instituição escolar e seus desdobramentos conforme as pesquisas analisadas.

Poder e Escola na Perspectiva Foucaultiana

O estudo da noção de poder e seus mecanismos torna-se imperativo por meio da genealogia, destacando-se pelo rigor analítico que se dá através da investigação das origens dos acontecimentos e do ponto de articulação do corpo com a história.

Um dos aspectos mais evidentes nas análises genealógicas do poder é a relação entre ciência e política, que destaca a distinção entre os conceitos de Estado e poder. Nesse contexto foucaultiano, o Estado não é o detentor e proprietário exclusivo do poder. Foucault argumenta que o poder é difuso e permeia todas as camadas da sociedade, operando através de uma rede complexa de relações que se manifestam em diferentes instituições e práticas sociais.

Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações [...] captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam [...] Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício (FOUCAULT, 1979, 182).

Essa citação enfatiza a necessidade de um olhar mais atento e detalhado às formas cotidianas e informais de poder, que são fundamentais para uma compreensão completa de como o poder funciona e influencia a vida em sociedade. Ao focar nas "extremidades" e nas "ramificações" do poder, Foucault convida a uma análise que vai além das estruturas formais e visíveis, revelando as complexidades e sutilezas do poder em ação.

Na obra Microfísica do Poder (1979), Machado apresenta a pesquisa do filósofo considerando o poder disperso por toda parte, presente nas diversas instâncias sociais. Ele esclarece que o poder não está localizado ou centrado em uma instituição, uma vez que se exerce em níveis variados e em pontos diferentes da microfísica, caracterizando-se como algo produtivo, como destacado por Foucault: "já repeti cem vezes que a história dos últimos séculos nas sociedades ocidentais não mostrava a atuação de um poder essencialmente repressivo" (FOUCAULT, 1988, p.79).

Quando observado apenas como algo repressivo, não é possível caracterizá-lo ou ter uma noção de sua totalidade, limitando seus aspectos a uma única perspectiva que não seria relevante para a compreensão almejada. É preciso estudar essa temática em diferentes momentos históricos para identificar o poder como uma ação sobre ações. Pensar o poder como produtor de seu aspecto positivo, como um poder transformador que tem efeitos de saber e verdade[6].

Nessa perspectiva, Foucault propõe uma analítica do poder, que investiga as estratégias, técnicas[7] e organizações de como o poder é desenvolvido, exercido e controlado. Em suas próprias palavras, trata-se de "[...] determinar quais são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, esses diferentes dispositivos de poder que se exercem, em níveis diferentes da sociedade, em campos e com extensões tão variadas" (FOUCAULT, 1999, p.19).

Nesse sentido, escola é efeito de diferentes práticas de saber-poder, que buscam moldar os corpos dos alunos, tornando-os mais controláveis e conformados às normas sociais, em um processo que Foucault define como docilização. Como ele destaca (1987, p. 163), "é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado". Ao transformar seus alunos em corpos dóceis[8] a escola não apenas instrui, mas também condiciona comportamentos, limitando a autonomia e reforçando estruturas hierárquicas.

Para tanto, o autor aborda dois grandes dispositivos de tecnologia que têm sua base no adestramento de corpos e na constituição de individualidades: a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora. Esses mecanismos de controle disciplinar operam em conjunto para moldar os corpos e os comportamentos dos indivíduos de acordo com as normas estabelecidas pela sociedade, garantindo a reprodução das estruturas de poder e controle.

É por meio da articulação da vigilância hierárquica e da sanção normalizadora que o exame detém um controle normalizante, permitindo qualificar, classificar e punir.

Dessa maneira, a escola se torna uma espécie de aparelho de exame que direciona todo o seu cumprimento à operação do ensino, ritualizando o poder vigente naquele local. A esse respeito, afirma Foucault:

O exame não se contenta em sancionar um aprendizado; é um dos seus fatores permanentes: sustenta-os segundo um ritual de poder constantemente renovado. O exame permite ao mestre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, levantar um campo de conhecimento sobre seus alunos (FOUCAULT, 1987, p. 211).

Foucault argumenta que o exame transcende a mera avaliação do conhecimento dos alunos. Ele enfatiza que o exame desempenha um papel mais amplo e ativo na dinâmica entre professor e aluno. Descrevendo-o como um ritual de poder constantemente renovado, sugere que sua função vai além da simples avaliação do conhecimento.

Nesse sentido, o exame não apenas avalia, mas também reforça e perpetua as relações de poder dentro da instituição escolar. Através do exame, a escola pode controlar seus alunos, não apenas no contexto eminentemente didático-pedagógico, mas, acima de tudo, no aspecto político, colocando seu funcionamento na prévia organização estratégica e vigilância constante.

Diante disso, os alunos se tornam instantaneamente efeito e objeto do poder e do saber, pois "o exame é na escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre" (FOUCAULT, 1987, p. 211). Isso significa dizer que, ao mesmo tempo em que os mestres transmitem seu saber, também geram condições para despertar dados e construir um ritual constante de legitimação do saber sobre seus alunos, articulados na vigilância hierárquica e na sanção normalizadora.

Para além das técnicas disciplinares, que operam como uma mecânica de observação individual, classificatória e modificadora do comportamento, existe uma maquinaria instalada como modelo de arquitetura, formulada para a organização do espaço através da repartição dos indivíduos dentro das instituições, permitindo sua visualização e controle por uma única pessoa.

Este espaço, segundo Foucault, é caracterizado pelo Panóptico[9], capaz de "induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder" (FOUCAULT, 1987, p. 166). Nesse viés, o espaço da escola amplia sua função para além do mero aprimoramento educacional, assumindo o papel de definir o sujeito, enquadrando-o por meio da normatização e internalização do tempo, buscando, desse modo, obter um controle social sobre ele. Moldando o ambiente escolar num espaço estratégico na formação de subjetividades, onde o poder-saber se entrelaça para criar sujeitos “ajustados” aos padrões exigidos pela sociedade.

Foucault: o discurso, o saber e o poder

        

Para Michel Foucault, o discurso vai além da mera comunicação verbal ou escrita; é uma categoria ampla que engloba qualquer forma de prática discursiva que produz efeitos de poder e saber. Em outras palavras, o discurso não apenas transmite informações, mas também é uma prática na qual o poder opera e o saber é construído e disseminado.

Boas (1993) observa que, para Foucault, essas relações não caracterizam apenas a língua que o discurso utiliza, nem as circunstâncias em que se desenvolve, mas o próprio discurso como prática. As práticas, no entanto, não são aquilo que se entende no conhecimento empírico, mas sim a existência de regras às quais o sujeito se submete na prática do discurso.

Os discursos na sociedade não são construídos de maneira fugaz, possuem um encadeamento de processos que visam a controlar a sua produção, assim como os sujeitos      que atuam como produtores dos discursos. Além disso, se constituem em enunciados ditos como verdadeiros, construídos historicamente para atender aos anseios e desejos de um determinado período.

Ao adentrar no campo arqueológico do saber, é crucial compreender, inicialmente, a dimensão da análise do discurso, uma área transdisciplinar que envolve conhecimentos sobre linguística, história e o sujeito. Destaca-se que a arqueologia não busca a origem, o que veio primeiro, mas sim considera os objetos do saber discursivamente, como "um acontecimento a ser descrito e analisado como tendo surgido por tais e tais circunstâncias. Daí a busca das transformações, das descontinuidades, das rupturas" (ARAÚJO, 2008, p. 60). O objeto da arqueologia é, antes de tudo, o saber, e essa abordagem é imprescindível para compreender como esse saber se estabelece social, cultural e historicamente.

Entretanto, ao abordar a arqueologia, Veiga Neto (2004) reafirma que o enunciado, conforme Foucault - um conceito central para a análise do discurso que ele propõe, não é uma proposição, nem um ato de fala, nem uma manifestação psicológica de alguma entidade que se situa abaixo daquele que fala. Assim, um horário de trem, uma fotografia ou um mapa podem ser considerados um enunciado, desde que sejam tomados como manifestações de um saber.

Existe algo que se revela como essencial ao enunciado, tendo sua materialidade significativa destacada. Araújo explica que: "quanto ao enunciado, importa ter sido dito por alguém em certa situação. Importa quais outros enunciados a ele se associam para datá-lo, configurá-lo como sendo único, porém sujeito da repetição" (ARAÚJO, 2008, p. 62). Portanto, é fundamental destacar que, no enunciado, há sempre um sujeito, alguém que vem de algum lugar e que fala sobre algo.

Enunciar é, portanto, sempre situar-se em relação a um já-dito, pois " todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que esse já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um ‘jamais-dito’" (FOUCAULT, 2008, p.28). Isso aciona novos sentidos, pré-construídos e reativa outros discursos ditos em outros lugares e em outros tempos, levando em conta as condições sócio-históricas de produção com as quais ele se relaciona.

A escola, sem dúvida, tende a renovar-se e ampliar seu âmbito de atuação, reproduzindo as condições de existência e formando sujeitos capacitados a ocupar os espaços oferecidos pela organização social. Ao mesmo tempo, ela se encarrega da produção de determinados saberes e discursos a partir da extração de conhecimentos sobre os alunos inseridos nesse ambiente escolar.

Assim, analisar seguindo uma ordem discursiva implica compreender como esses discursos se estruturam em meio às relações de poder, questionando as condições de possibilidade em que se colocam em movimento para o exercício do poder e a produção de subjetividades. Equivale a dizer que o discurso está sempre a serviço do poder, e ambos participam ativamente da constituição das relações sociais.

Pensar com Foucault: uma abordagem arqueogenealógica das pesquisas analisadas

A arqueologia e a genealogia se constituem como elementos complementares que, após um processo de leitura e releitura de ambos, adquirem nova funcionalidade para suprir as necessidades analíticas. Para tanto, a metodologia desse artigo apresenta a abordagem arqueogenealógica, permitindo, por meio desse método, uma análise à luz da AD.

Castro (2009) descreve que:

O termo discurso [...] toca num dos temas centrais do trabalho de Foucault. A arqueologia é uma modalidade de análise de discursos [...] Foucault define o discurso  como o ‘conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação; assim se poderia falar de discurso clínico, discurso econômico, discurso da história natural, discurso psiquiátrico’. O discurso ‘está constituído por um número limitado de enunciados para os quais se pode definir um conjunto de existência’. (CASTRO, 2009, p. 117).

É de suma importância destacar que a metodologia foucaultiana evidencia aos pesquisadores um modo de investigar não o que está por trás dos textos e documentos, nem o que já está posto, mas sim, tentar, aos poucos, recuar as fáceis interpretações, enquanto cabe descrever quais são as condições de existência de um determinado discurso, enunciado ou conjunto de enunciados, é preciso "tornar visível o que precisamente é visível, ou seja, fazer aparecer o que está tão próximo, tão imediato, o que está tão intimamente ligado a nós mesmos que, em função disso, não o percebemos" (FOUCAULT, 2004, p. 44).

Nesse sentido, a base teórico-metodológica funciona, na sua essência, como uma postura investigativa, uma conduta perante o objeto de pesquisa que, segundo Fischer (2007), é interessante tomar a iniciativa de perguntar enquanto pesquisador "os 'modos', as 'formas pelas quais' ou os 'comos' do que propriamente indagações sobre 'quais são', 'o que é', por quê' e 'para quê'" (FISCHER, 2007, p. 56, grifo do autor).

Considerando a delimitação necessária à pesquisa, a investigação envolveu o levantamento de teses e dissertações que abordam e/ou se aproximam do tema desse trabalho, através do banco de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (BDTD/IBICT)[10], abrangendo o período de 2012 a 2022. Para tanto foram usados os seguintes descritores: “Foucault e   Instituição Escolar”; “Foucault e Escola”; “Foucault e Relações de Poder” e “Foucault e Poder Disciplinar.”

Para a primeira etapa de análises, de caráter mais quantitativo, as categorias tipo de trabalho (tese e dissertação), foram compiladas por descritores, estabelecendo um quantitativo de análise inicial amplo referente aos trabalhos encontrados e selecionados para composição do corpus da investigação. Inicialmente, os descritores foram usados da seguinte forma: “Foucault e Instituição Escolar”; “Foucault e Escola”; “Foucault e Relações de Poder” e “Foucault e Poder Disciplinar.”

Considerando o quantitativo dos quatros grupos de descritores, observou-se alta abrangência de trabalhos em áreas diversas da ciência, não obtendo, assim, alinhamento com o tema proposto para esse fim. Dessa forma, para refinar o objeto investigado, foi necessário utilizar as técnicas dos booleanos que consiste na “aplicação da Lógica de Boole a um tipo de sistema de recuperação da informação, no qual se combinam dois ou mais termos, relacionando os por operadores lógicos, que tornam a busca mais restrita ou detalhada” (SAKS, 2005, p.4).

Visando esmiuçar detalhadamente os trabalhos que de fato dialogam com a pesquisa, utilizou-se o operador booleano AND. Para selecionar as informações contidas na busca, foi elencado a combinação dos respectivos descritores, sendo eles: “Foucault” AND “Relações de Poder”; “Foucault” AND “Instituição Escolar” e "Foucault" AND "Poder Disciplinar".

Ao utilizar essa técnica booleana nos bancos de dados, pode-se notar que o operador AND limitou a busca, reduzindo o número de trabalhos recuperados. Entretanto, para uma busca ainda mais avançada/delimitada, foi acrescentado novamente o operador AND aos principais descritores da seguinte forma: "Foucault" AND "Relações de Poder" AND "Instituição Escolar".

Feita a verificação dos principais descritores com a busca booleana, foi possível identificar 8 trabalhos de pós-graduação (mestrado e doutorado). Dessa vez, constatou-se os pressupostos mais condizentes na associação dos itens recuperados pelos sistemas de busca para o recrutamento e seleção; mas, apesar de chegar ao resultado pretendido, é essencial ter um olhar provocativo para o alcance máximo do levantamento. Com esse intuito, foi levantada uma segunda análise, de caráter mais qualitativo, elencando e destacando o ano, autor, título, tipo de trabalho e objetivo; de maneira a verificar, diretamente, os trabalhos que mais se aproximaram do objeto de estudo ora apresentado.

Mediante o recorte temporal de dez anos (2012-2022), foi identificado que houve uma concentração de trabalhos no ano de 2017, ou seja, apresentou maior número nas buscas relacionadas ao tema. Por conseguinte, aprofundando a investigação nas leituras dos resumos, apenas dois trabalhos se aproximaram do tema de estudo, uma do tipo nível de mestrado e outra do nível de doutorado, sendo esses, os trabalhos que conceberão o corpus da pesquisa e análise de dados.

Quadro 1 - Descrição dos trabalhos selecionados para análise.

Ano

Autor(a)

Instituição

Tipo

Título

2014

MENDES,

Vanderlei        da Silva.

Universidade

do Extremo Sul Catarinense

Dissertação

Os corpos e os processos de

docilização na educação: uma leitura foucaultiana

2017

LÔBO,

Daniella Couto.

Pontifícia Universidade Católica        de

Goiás

Tese

Michel Foucault: a sociedade punitiva e a educação

Fonte: elaborado pela autora.

A dissertação de Mendes (2014) foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC. Seu trabalho se insere em um importante movimento de reflexão do pensador francês para a educação, especialmente na compreensão do papel dos corpos disciplinados pelas relações de poder presentes na escola.

O objetivo de Mendes foi “compreender os corpos nos processos de subjetivação escolar, pautados, sobretudo, pelo poder da docilização e do disciplinamento no ambiente escolar, a partir de uma leitura foucaultiana” (MENDES, 2014, p. 22). Ele concentrou sua pesquisa na problematização de como pensar os corpos dóceis e sua posição nos processos de subjetivação escolar, visando conhecer e refletir sobre os elementos disciplinares no contexto da educação.

A segunda pesquisa selecionada foi a tese de Lôbo (2017), apresentada ao Programa de Pós-Graduação stricto-sensu em Educação na Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO. Ela busca compreender as concepções de Foucault sobre a sociedade disciplinar, utilizando como principal referencial teórico a obra Vigiar e Punir assim como os discursos presentes nas instituições educativas. O objetivo geral do estudo foi “compreender os discursos da educação moderna [...], fazendo uma reflexão sobre o poder, a verdade, as práticas punitivas, as instituições e os discursos da educação” (LÔBO, 2017, p. 10).

Ambos os trabalhos exploram como os discursos da educação, ou das instituições educativas, constroem verdades e contribuem para a divulgação e normalização de práticas disciplinares e de controle desde o surgimento desse poder que disciplina os corpos. Por exemplo, Lôbo analisa a obra “Emílio ou da Educação” de Rousseau como um discurso que serviu de base para a educação moderna.

A partir dos dois trabalhos selecionados para a análise, buscou-se responder à questão de pesquisa, assim como atingir os objetivos traçados neste trabalho. Frente a isto, é fundamental “fugir das explicações de ordem ideológica, das teorias conspiratórias da história, de explicações mecanicistas de todo tipo” (FISCHER, 2003, p.385-386). Todavia, para ir adiante “exige trabalho, dedicação, estudo pormenorizado de práticas, apropriação criativa do referencial teórico escolhido” (FISCHER, 2003, p.386).

Diante disso, analisaremos os resultados dos "ditos" e "feitos" nas pesquisas que constituem o corpus deste trabalho, sendo uma dissertação e uma tese, que serão investigadas, considerando os seguintes trajetos temáticos[11]: poder-saber; discurso e enunciado; vontade de verdade e saberes produzidos, sendo estudados considerando a Análise do Discurso foucaultiana (AD)[12] no que se refere à materialidade discursiva.

Desse modo, a AD baseada no pensamento de Foucault mostra um modo de fazer pesquisa instigante,  pois não busca desvelar o significado dos discursos que ali circulam, mas destacar acerca de “como” os saberes legitimam determinados discursos e com isso, relações de poder. Nesse sentido, analisar os discursos é entender como as coisas ditas são acontecimentos que ocorrem  em traços delimitados “no interior de certa formação discursiva – esse feixe complexo de relações que ‘faz’ com que certas coisas possam ser ditas (e serem recebidas como verdadeiras), num certo momento e lugar” (FISCHER, 2003, p. 373).

Assim, realizar uma análise pelo método foucaultiano significa não ocultar a dimensão histórica e social na constituição das discursividades, mas sim deslocar o foco para a análise do que é explicitamente dito, como muitos outros analistas de discurso já ressaltaram. Esse é o modus operandi da arqueologia, que por si só já carrega elementos de uma genealogia e, portanto, incorpora à essência do pensamento de análise do discurso a noção de descontinuidade e materialidade.

Práticas Discursivas e Relações de Poder na Escola: o que as pesquisas revelam?

Foucault discute a prática discursiva como um mecanismo fundamental de análise em sua obra. O discurso é concebido como uma prática que se inter-relaciona com outras práticas no campo social. Surge, então, a ideia de considerar essa prática a partir do que é “propriamente discursivo (linguagem, discurso, enunciado) como também podem ser observadas em práticas institucionais[...] práticas que jamais ‘vivem’ isoladamente (FISCHER, 2003, p. 387, grifo do autor).

Nessa perspectiva, é interessante observar as práticas produzidas nas relações de saber-poder e analisar, por meio dos enunciados das pesquisas selecionadas, como essas relações se manifestam no interior da instituição escolar. Para isso, será apresentada a função enunciativa[13], extraída do arquivo[14] da pesquisa dissertativa de Mendes (2014) e da tese de Lôbo (2017), para a descrição e observação das práticas discursivas recorrentes na escola e sua discussão à luz do pensamento de Foucault.

A ponderação dos discursos na instituição escolar é constituída como o lugar onde os sujeitos têm acesso a muitos discursos e aprendem a reproduzi-los, de modo que, num estágio avançado do processo, ele não é mais dono da ação comunicativa, torna-se apenas repetidor das “verdades” ditas e manifesta na escola.

Nesse sentido, as relações de poder-saber e os jogos de verdade[15] que se permeiam no entrelaçamento entre os modos de produção e controle dos discursos implicam um tipo de subjetivação do sujeito, no desejo de conduzir as condutas. Para o filósofo “somos submetidos pelo poder à produção de verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção de verdade [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 28-29).

Assim, as práticas discursivas são apropriadas na sociedade, manifestando a relação que se estabelece entre saber e poder, emanadas desses valores de verdade. Essa relação se firma no trajeto temático da vontade de verdade, pois todo discurso carrega uma "vontade de verdade" que precisa ser questionada para compreender as condições de formação de um discurso, entendendo os desejos e poderes que o sujeito enfrenta e deseja possuir.

Essa análise ressalta a interseção entre poder, saber e verdade, como delineado por Foucault. A subjetivação do sujeito é profundamente influenciada por essas relações à medida que os discursos e práticas de poder moldam as condutas individuais e coletivas. Nesse sentido, as relações de poder-saber[16] e os jogos de verdade se entrelaçam nos modos de produção e controle dos discursos, como afirma o filósofo, "somos submetidos pelo poder à produção de verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção de verdade" (FOUCAULT, 1999, p. 28-29).

Ao seguir o trajeto da vontade de verdade nos discursos de Lôbo, percebe-se que, dentro da esfera educacional, há um conjunto de práticas discursivas que leva os sujeitos a considerar o arquivo discursivo como materialidade enunciativa. Essa noção amplia a compreensão de que a formação do sujeito se baseia em conhecimentos científicos sistematizados e organizados nos currículos e que existe um sistema de poder que, ao invés de incluir, exclui e controla os alunos.

Essa questão reforça o discurso historicamente constituído como verdadeiro, ou seja, uma maneira de instaurar um discurso positivo que se preocupa com os rumos da educação diante dos sujeitos-alunos. Isso, por um lado, garante credibilidade à instituição escolar e, por outro, gera descrédito diante dos alunos. Como destaca Lôbo:

TL: Os discursos veiculados pelas mídias e, também, pelos manuais que contêm a ideia de liberdade, que se entende que cerceia a possibilidade de os indivíduos pensarem, se situarem e agirem conforme as suas próprias escolhas e vontades, são orientados por múltiplas relações de poder intrínsecas nas instituições que compõem  a sociedade moderna, incluindo o mercado. Dentre essas instituições encontra-se a escola, considerada como uma instância historicamente reconhecida como espaço que prepara os indivíduos para “se situarem” no mundo social. Nesse sentido, ela acaba corroborando com a ordem presente no discurso da sociedade disciplinar voltada para a multiplicação de mecanismos de normalização e de assujeitamento dos indivíduos (LÔBO, 2017, p. 110-111).

DM: É evidente que de nada adianta um corpo, ainda que individualmente bem treinado, adestrado e vigiado, se não for capaz de executar os procedimentos a ele determinados sem o devido sincronismo com os outros corpos. Mas a disciplina busca uma espécie de autorregulação. No caso das instituições educacionais, quanto mais eficiente for o sistema disciplinar, menor será o número de colaboradores e outras figuras que se agregam ao universo escolar com o objetivo de manter a ordem, corrigir, organizar, regulamentar e, em última instância, transformar o que não é útil em utilidade e eficiência (MENDES, 2014, p.80-81).

No enunciado de Lôbo, percebe-se a forte ligação do poder-saber produzido nos discursos educacionais e na própria escola; um lugar privilegiado onde os discursos se mantêm e se modificam a partir do acesso ao saber, inserido nas relações de poder. A escola é vista como um instrumento significativo para sujeitar o indivíduo conforme as necessidades do capitalismo no mercado de trabalho. Segundo Foucault, o discurso institucionalizado "tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que o poder de coerção" (FOUCAULT, 1999, p. 18).

Ademais, o enunciado de DM, mostra a sujeição dos corpos e sua docilidade, apresentando a disciplina como uma anatomia política; como uma tecnologia de poder, que vai fabricar os alunos mediante uma vasta gama de ferramentas de controle, fazendo com que a própria docilização dos corpos seja trabalhada por meio do detalhe, a qual determina que “[...] todo movimento é cronometrado para não haver desperdício de tempo em relação a nenhum movimento. Todo gesto deve ter a sua função, que deve ser realizada em um momento específico” (MENDES, 2014, p.91).

É por meio desses discursos que os sujeitos internalizam suas experiências e se moldam. No entanto, é necessário reconhecer a presença de outras forças na sociedade, pois os efeitos desse processo coercitivo de subjetivação são notáveis ao longo dos anos de permanência na escola. Foi a partir dessas reflexões que Foucault introduziu o conceito de poder disciplinar, que visa transformar os indivíduos em "corpos dóceis".

A partir desse conceito preliminar, o pesquisador Mendes (2014) faz a seguinte indagação: “[...] como nossa sociedade pode transformar-se numa sociedade disciplinar, com tantos detalhes e instrumentos que a permitem controlar o corpo de cada homem, mulher e criança minuciosamente?” (MENDES, 2014, p.73).

É preciso considerar, nesse enunciado, que Foucault apresenta inúmeras reflexões sobre o corpo[17], é uma discussão fundamental para o autor a maneira que o corpo se tornou pertinente nas relações de poder para o sujeito moderno que “[...] atende aos ditames do economicamente produtivo, da docilidade de atitudes e de uma utilidade política apregoados numa relação dicotômica do normal/anormal” (LÔBO, 2017, p. 117).

Para o filósofo, além do corpo ser socialmente coagido e produzido, “também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOUCAULT, 1987, p. 28). Nesse aspecto, a dissertação do pesquisador Mendes (2014) mostra que as práticas educativas por meio da disciplina não é apenas um processo de coerção de corpos, mas também um processo de produção de dispositivos que conceberão uma espécie de maquinaria eficiente ao sistema disciplinar, com o princípio de docilidade-utilidade.

O exercício desse poder disciplinar visto pelo viés pedagógico pode ser identificado nos dispositivos de subjetivação contidos, colocando-se à disposição dessa tecnologia de “adestramento humano” por meio das relações de poder. O grande impasse é que esses dispositivos de subjetivação estão a serviço da ideologia dominante. As subjetividades estão encarceradas. Os bons alunos são aqueles que obedecem ao professor, não questionam, fazem os exercícios de forma exemplar e, por isso, recebem elogios e recompensas. Todo esse jogo discursivo só reafirma a constatação: "o indivíduo vigiado é que se transforma no princípio de sua própria sujeição" (MENDES, 2014, p. 79).

Ao contextualizar esse processo dentro do trajeto temático de saberes construídos, o texto aponta para a forma como o controle avaliativo alimenta a máquina pedagógica da escola, consolidando seu discurso e prática. Essas práticas não apenas moldam o ambiente educacional, mas também constituem um campo de saber em si, onde certas verdades são narradas, descritas e registradas para definir o destino escolar de cada aluno.

Entretanto, essas práticas não ocorrem em um vácuo; há regras e normas que governam a produção e circulação desses discursos escolares, sancionando ou interditando certas práticas. Além disso, o compartilhamento desses enunciados não apenas influencia a percepção dos alunos, mas também contribui para a construção das identidades dos professores e a materialização da prática escolar como um todo.

Portanto, os documentos inerentes a um arquivo podem ser vistos como resultado de construções e relações sócio-histórico-ideológicas, que passam a ter característica discursiva de manipulação e mutação dos sentidos. A documentação arquivista[18] dos alunos se consolida como lugar de memória de práticas discursivas por meio da enunciabilidade, princípio inerente ao corpo, ao monumento e ao enunciado-acontecimento. Assim, “a individualidade é um objeto de descrição e documentação, que, por receber esse tratamento, pode ser controlado e dominado a partir de um processo constante de objetivação e sujeição” (MENDES, 2014, p. 86).

Instituição Escolar: que práticas e saberes construir?

Na concepção de Foucault, a escola é apresentada como uma instituição da modernidade[19] que se constitui na relação de poder, onde existe uma violência[20] – força que age sobre o indivíduo para a formação dócil e disciplinar. Ela “funciona como o lugar – ou, se quisermos, a instituição – capaz de articular íntima e eficientemente o saber com o poder” (MENDES, 2014, p. 105), buscando exercer controle e disciplina sobre seus alunos. Além disso, a escola produz modos de subjetivação em cada indivíduo, tornando-se mais eficiente através de uma vigilância que envolve jogos estratégicos, pelos quais o governo dos outros é indissociável do autogoverno.

Compreender as relações de poder na escola é perceber que as áreas do saber se formam a partir de práticas políticas disciplinares, mantendo o aluno sob um olhar permanente. A escola é um espaço de produção de relações de poder e saber que permeia a esfera social, sem se apoiar em nada fora de si mesma; por isso, é rápida, instável, única e pontual. Ela é, portanto, um suporte que garante não apenas o disciplinamento dos corpos e mentes, mas também a difusão de determinados regimes de verdade, possibilitando o governo de si e dos outros.

Por fazer parte da disseminação de verdades, a escola coloca em funcionamento as relações de opressão através do saber-poder, sendo distribuída, segmentada e repartida, exercendo uma espécie de coerção sobre os indivíduos. Além disso, nem todos têm permissão para falar sobre qualquer coisa, já que hierarquias de autoridade e poder podem influenciar quem tem voz e quem é silenciado. Essa dinâmica revela como os poderes instituídos podem restringir ou promover certos discursos de acordo com seus interesses, moldando assim a narrativa dominante.

Essa realidade é dissimulada pelo discurso segundo o qual a escola é construtora do sistema socio político-econômico vigente, que inclui os alunos em um contexto de articulação do “saber” por meio do exercício da disciplina, enquanto os condiciona na maquinaria do poder, materializando-os para a construção de um determinado tipo de sujeito: aquele que repete o modelo social dominante atrelado ao mecanismo opressor.

Nesse viés, ao estudar os processos históricos que o corpo disciplinar carrega, Paulo Freire faz uma crítica[21] às práticas direcionadas para a normatização e o controle social, pois, segundo ele, a escola deveria ter um caráter libertador e não domesticador. Ele propõe uma “pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 2005, p. 34). Para Freire, a educação deve ser uma práxis capaz de “libertar” o homem de toda situação de opressão, tornando-o um sujeito crítico e reflexivo através da libertação de sua consciência, capaz de transformar sua realidade e atuar na sociedade de forma efetiva.

Portanto, ao analisar os dois trabalhos selecionados no corpus, foi possível observar como os corpos são normalizados e produzidos através de saberes especializados e articulados às práticas escolares. Constatou-se que os mecanismos de controle servem para vigiar, observar e individualizar os alunos, criando discursos que legitimam as dificuldades enfrentadas por eles. Esses mecanismos combinam forças e “prendem” corpos, tornando-os efeitos dessa maquinaria escolar que normaliza e moraliza por meio das práticas escolares, perpetuando a lógica do mercado como expressão de um fracasso escolar, que é sempre atribuído ao sujeito.

Diante destas análises, torna-se cada vez mais pertinente (re)pensar a instituição escolar como espaço para a construção de práticas menos opressoras; práticas para libertar, não disciplinar. À vista disso, as teorizações de Foucault foram essenciais para redimensionar essas atitudes, uma vez que “seus estudos [...] trazem inúmeras possibilidades para se pensar a constituição do sujeito moderno, das verdades, do corpo e da alma nas instituições, principalmente as educativas[...]” (LÔBO, 2017, p. 118).

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi analisar as relações de poder na instituição escolar a partir do pensamento de Michel Foucault, utilizando dois trabalhos acadêmicos, um de mestrado e outro de doutorado, no marco temporal de 2012 a 2022. A pesquisa empregou o método arqueogenealógico foucaultiano, permitindo uma análise de discurso (AD) e facilitando um diálogo mais profundo com o corpus estudado.

Os resultados da pesquisa revelam que a escola, longe de ser um ambiente neutro e desvinculado de interesses políticos e econômicos, foi concebida para atender aos modos e interesses do sistema capitalista. Essa modalidade disciplinar opera como uma espécie de "fábrica de cidadãos", moldando os indivíduos e preparando-os para se inserirem na divisão social do trabalho.

Com isso, mostra que a disciplina não só reprime e proíbe, mas também produz, induz e molda. Portanto, na analítica do poder de Foucault, o corpo é um elemento fundamental na compreensão das relações de poder, tornando-se objeto e alvo dessa anatomia política e/ou maquinaria do poder.

Ao analisar a escola sob essa perspectiva, percebe-se uma semelhança com a administração empresarial, embora com diferenças fundamentais. Enquanto uma empresa tradicional lida com produtos tangíveis, como bens materiais, a escola trabalha com produtos intangíveis, como educação e aprendizado. Portanto, o desafio da escola é desenvolver não apenas habilidades técnicas, mas também capacidades humanas essenciais para o pleno desenvolvimento dos indivíduos.

Essa reflexão evidencia a necessidade de repensar o papel da escola na sociedade contemporânea, reconhecendo sua influência na reprodução e na transformação das estruturas sociais. Além disso, sugere a importância de promover uma educação crítica e emancipatória, que capacite os alunos a compreenderem e a questionarem as dinâmicas de poder e dominação presentes na sociedade, contribuindo assim para a construção de um mundo mais justo e igualitário.

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VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

Data do envio:  31/08/2024

Data do aceite: 02/12/2024.

Revista Aleph, Niterói, dezembro de 2024, nº 42, p. 1 - 24                ISSN 1807-6211

                   


[1] Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN – Campus Pau dos Ferros, Brasil. E-mail: antonia.heloisa31@gmail.com. Telefone: (84) 99840-2686. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-9871-8708

[2] Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Estado, Educação e Sociedade (GEPEES). Coordenadora e idealizadora do projeto de extensão "MobilizAção" e professora adjunta IV da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERN (POSEDUC). E-mail: ciclenealves@uern.br. Telefone: (84) 98134-7327. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2704-5415

[3] Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Professora efetiva da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e Coordenadora do Curso de Licenciatura em Letras Libras na modalidade a distância na UERN. E-mail: secleidealves@uern.br. Telefone: (84) 98132-8718. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-0389-0656

[4] Na teoria política de Michel Foucault, o poder não possui um determinado lugar na sociedade e não se concentra apenas no setor político (macropoder). Na verdade, ele se encontra pelos vários âmbitos da vida social como, por exemplo (prisão, família, escola, hospital, entre outros), fragmentando-se em micropoderes.  

[5] A temática do saber em Foucault vai além de um mero conhecimento. O autor argumenta que o saber e o poder são indissociáveis. Ele usou o termo "poder-saber" para descrever como o conhecimento e as práticas de poder se influenciam mutuamente. O saber não é neutro; ele é produzido, regulado e disseminado por meio de relações de poder.

[6] Foucault sugere que a verdade é um produto das práticas discursivas que determinam o que é considerado verdadeiro em uma determinada época e contexto cultural. Isso implica que a verdade está sujeita a mudanças ao longo do tempo e varia de acordo com as relações de poder que governam uma sociedade.

[7] “Foi principalmente em Vigiar e Punir e nos cursos que ministrou no Collège de France, nos anos de 1970, que  Foucault mostrou como surgiram, a partir do século XVII, novas técnicas [...]. Tais técnicas tomam o corpo de cada um na sua existência espacial e temporal, de modo a ordená-lo em termos de divisão, distribuição, alinhamento, séries (no espaço) e movimento e sequenciação (no tempo), tudo isso submetido a uma  vigilância constante” (VEIGA-NETO, 2004, p.78).

[8] O corpo se torna dócil quando passa a ser enxergado com objeto de poder, atribuído como uma “máquina” essencial para o funcionamento da sociedade moderna. Sua função se dá por meio da disciplina, capaz de controlar,      dominar e aperfeiçoar o sujeito, mantendo-o adestrado.

[9] O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca  ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto. [...] Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o desequilíbrio, a diferença. Pouco importa, consequentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase  tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina[...] (FOUCAULT 1987, p. 225-226).

[10] A Biblioteca Digital de Teses e Dissertações foi escolhida enquanto fonte para a seleção dos documentos analisados por integrar, em um único portal, as produções acadêmicas dos programas de pós-graduação do País, de modo a dar visibilidade no acesso a esses documentos.

[11] A noção de Trajeto Temático é desenvolvida por Guilhaumou e Maldidier (1997, p. 166) que consideram o trajeto temático como um trajeto de leitura que “reconstrói os caminhos daquilo que produz o acontecimento na linguagem”.  

[12] A Análise do Discurso (AD) é um campo de pesquisa que não possui uma metodologia pronta/acabada. É o objeto – corpus e os efeitos de sentido que vão aplicando a teoria a ser trabalhada, pois em AD, teoria e metodologia caminham juntas, lado a lado, sem haver uma separação.

[13] Com o intuito didático, será adotada a sigla DM (Dissertação Mendes) e TL (Tese Lôbo) como sequência discursiva na análise dos dois documentos.

[14] Revel aponta que “Da História da Loucura à Arqueologia do Saber, o arquivo representa (...) o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados numa época dada e que continuam a existir através da história. Fazer a arqueologia dessa massa documentária é buscar compreender as suas regras, suas práticas, suas condições e seu funcionamento” (REVEL, 2005, p. 18- 19).

[15]Para Foucault, os "jogos de verdade" referem-se aos sistemas de conhecimento que são aceitos e legitimados em uma determinada época e lugar e influenciam como as pessoas pensam, falam e agem. Eles são parte integrante dos mecanismos de poder em uma sociedade, pois determinam quem tem autoridade para falar e quem é considerado como sujeito válido do conhecimento.

[16] Gore (2000, p. 14) salienta o fato de o mecanismo de poder-saber estar em constante movimento a forma produtiva e: “[...] funcionam não apenas em relação a pedagogias defendidas em discursos educacionais [...], mas também em relação à pedagogia dos argumentos que caracterizam discursos educacionais específicos, isto é, aos próprios argumentos”.

[17] “O corpo passa a ser manipulado, modelado, treinado para obedecer e responder habilmente às exigências da sociedade. É dessa forma que as instituições dotadas de poder divulgam discursos e rituais com aparência de verdade, buscando adestrar, excluir e conformar os indivíduos à lógica imposta a eles de maneira sutil pelo poder disciplinar” (LÔBO, 2017, p.83).

[18] Os documentos não constroem um fato, dito como verdade. Esses documentos relatam um acontecimento.

[19] Segundo Oliveira (2017, p.45) na sua dissertação Um diálogo com Freire e Foucault sobre poder e saber: “A escola é apresentada, na concepção de Foucault, como a instituição da modernidade que se constitui na relação de  poder, dispensando o uso da violência física para a formação do sujeito dócil e disciplinado.”

[20] Esse termo não é compreendido como o uso da violência como estratégia política. A violência que Foucault remete é um elemento importante para a formulação das relações de poder entendidas como condução de condutas.

[21] Essa expressão de Paulo Freire parte da obra Pedagogia do Oprimido, na qual também propõe uma relação de poder com menos opressão, ou seja, a libertação do sujeito oprimido por ele mesmo do seu estado opressor. A pedagogia freiriana, assim, induz uma aproximação da proposta do cuidado de si e da pedagogia libertária, que Foucault estuda na sua última fase, denominada ética.