O PODER TRANSFORMADOR INFANTO-JUVENIL: O USO DO AUDIOVISUAL NA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM FORÇA DE AÇÃO
O PODER TRANSFORMADOR INFANTO-JUVENIL: O USO DO AUDIOVISUAL NA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM FORÇA DE AÇÃO[1]
YOUTH'S TRANSFORMATIVE POWER: THE USE OF AUDIOVISUAL MEDIA IN THE EDUCATION OF CHILDREN AND ADOLESCENTS WITH CAPACITY FOR ACTION
Tainá Andrade da Silva[2]
Paulo Cesar S. Oliveira[3]
Resumo
O artigo propõe uma análise da importância do cinema e do audiovisual como ferramentas de resistência e empoderamento na educação, focalizando infâncias e adolescências subalternizadas. Busca-se compreender como algumas narrativas não ocidentais com protagonismo marginal podem promover ideais comunitários e incentivar a tomada de voz contra a narrativa oficial. Por meio das metodologias de revisão bibliográfica, análise fílmica e observação participante, avalia-se a relação entre ensino, audiovisual, juventude, empoderamento e transformação social. Considerando que os jovens podem absorver conteúdos de maneira crítica e agir conforme aprendem e refletem através deles, reforça-se a importância das produções audiovisuais, a exemplo de O menino e o mundo e One Piece, como instrumentos educacionais libertadores.
Palavras-chaves: Educação Cultural. Juventude. O menino e o mundo. One Piece. Transformação Audiovisual.
Abstract
This paper proposes an analysis of the importance of cinema and audiovisual media as tools of resistance and empowerment in education, and focuses on marginalized childhoods and adolescences. It seeks to understand how non-Western narratives with marginalized protagonists can promote community ideals and encourage dissenting voices to oppose official narratives. Through the methodologies of literature review, film analysis, and participant observation, the relations between education, audiovisual media, youth, empowerment, and social transformation is evaluated. Considering that young people can critically absorb content and act upon what they learn and reflect, the article reinforces the importance of audiovisual productions such as O menino e o mundo and One Piece as liberating educational tools.
Keys words: Cultural education. Youth. Boy and the world. One Piece.
Introdução
Somente na comunicação tem sentido a vida humana. Que o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação. Por isto, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes imposto. Daí que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela comunicação, em torno, repitamos de uma realidade (FREIRE, 1994, p. 42).
O artigo parte da perspectiva de que a mídia cinema e a mídia audiovisual, integrantes da comunicação, são meios para educar e, assim, discutir os vários problemas vividos por grupos periféricos conforme se valem de narrativas de resistência e, também, por representar os subalternizados, inspirando e fortalecendo-os. Consecutivamente, entende-se que crianças e adolescentes são um público pertinente para se pensar transformações futuras, afinal, elas têm capacidade crítica e ativa nas mídias e no cotidiano de um mundo a ser construído. Deste modo, ao considerar o ideal comunitário presente em culturas não ocidentais, ainda que o Capitalismo vigente preze por individualidade e meritocracia e a narrativa oficial suprima quem vive realidades invisibilizadas, julgou-se necessário avaliar animações que se concentram no público infanto-juvenil. Por isso, é imprescindível trazer objetos produzidos fora do eixo Estados Unidos, Europa e demais Estados modeladores, com protagonistas e aventuras que expõem contextos nos quais o público consegue se enxergar e refletir. Finalmente, torna-se possível debater a educação libertadora e o quanto a cultura pode ser instrumento potente, visto que a juventude também deve ser avaliada enquanto força de ação.
O diferencial deste projeto é a busca por compreender obras não ocidentais como ferramentas de resistência e empoderamento para comunidades ditas subalternas, principalmente por seu foco nas infâncias e adolescências. O cinema e a análise fílmica são usados regularmente em trabalhos políticos e históricos, contudo, tais narrativas são também meios eficazes de transformação social, especialmente no contexto subalterno que combate o individualismo capitalista através de um olhar transdisciplinar. Além disso, a análise proposta examina a capacidade modificadora de produções audiovisuais voltadas para jovens, área que merece atenção no âmbito da comunicação e da educação, dado o poder de moldar futuras mudanças sociopolíticas com impacto nesta faixa etária, posto que:
Pensar a condição da infância e sua relação com complexos sistemas audiovisuais hoje, é antes de mais nada posicionar esta criança não como aquele que é desprovido de fala (in-fante), e tão pouco como o adulto-pequeno da Idade-Média, mas visá-lo como sujeito em crescimento e desenvolvimento, participante do campo social e comunicativo. Tão logo, como agente da recepção da produção de linguagens, a criança toma um papel crucial (PAES, 2009, p. 1-2).
O atual momento, ainda marcado pela colonialidade e por barreiras geográficas e culturais quebradas por conta da Internet, exige reavaliação das formas tradicionais de conhecimento e ênfase em vozes historicamente relegadas ao silêncio. A pesquisa proposta responde à necessidade de se explorar perspectivas e narrativas que desafiem a hegemonia da cultura ocidental e estimulem a reflexão sobre experiências de quem é sistematicamente marginalizado. Busca-se examinar como obras não ocidentais com protagonismo subalterno transcendem limitações da narrativa oficial e oferecem voz a grupos excluídos. Ao eleger uma área periferizada da cidade do Rio de Janeiro como estudo de caso, aborda-se uma dimensão concreta e localizada, enriquecendo a compreensão de como dinâmicas de necropolítica, segregação urbana e resistência se manifestam.
A partir da visão de que crianças e adolescentes podem absorver conteúdos de maneira crítica e agir conforme as obras os refletem, é válido pensar a importância do cinema e do audiovisual como ferramenta educacional, justamente pela potência da abordagem cultural e por sua força diante do público infanto-juvenil. Tendo como base as formas de ensino que ocorrem em diálogo com a realidade e as experiências de alunos (FREIRE, 1994), e observando as “questões do direito, da cidadania e do protagonismo infantil” (SIQUEIRA, 2014, p. 1), fundamenta-se o que aqui se defende. Ressalte-se que o sistema ataca o diferente e impõe visões absolutas que remontam à colonização, na qual: “Não podia ser um ‘encontro’ de duas culturas – uma ‘comunidade argumentativa’ onde os membros fossem respeitados como pessoas iguais –, mas era uma relação assimétrica, onde o ‘mundo do Outro’ é excluído” (DUSSEL, 1993, p. 64-65).
Isto posto, foram escolhidas as animações O menino e o mundo (2014) e One Piece (1999) como objetos de reflexão. São obras que se chocam com os ideais arquetípicos ao pôr o “outro” no centro da tela em narrativas que desafiam as estruturas da colonialidade, ainda que tenham sido produzidas em países de fora do eixo hegemônico europeu e do American way of life, mas ainda presos ao Capitalismo e, consequentemente, ao colonialismo. Enquanto o sistema hegemônico cria cânones inspirados “em homens ocidentais de cinco países (França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália)” (GROSFOGUEL, 2016, p. 26), o sucesso de produções infanto-juvenis brasileiras e japonesas com conteúdo questionador parece ter força suficiente para mobilizar os jovens. Apesar de serem consumidas por diversas classes e servirem de entretenimento, hobby, ferramenta educacional ou, ainda, estilo de vida, para boa parte delas, certas realidades assombrosas e densas são melhor entendidas por quem não as experiencia como exagero ficcional: no caso, por quem vive em situação de vulnerabilidade e restrição ou mesmo pela dificuldade de acesso a direitos básicos, como educação, saúde e cultura.
Na animação O menino e o mundo, junto do protagonista, uma criança que vive no campo e sente saudade do pai, o público se defronta com a industrialização, a maquinação e o adoecimento trazidos pelo Capitalismo, pela opressão e pelo militarismo. Da mesma forma, One Piece é uma animação que concentra a trama nos espaços de representação dos oprimidos, trazendo como protagonista um jovem pirata que liberta os sujeitos com quem se depara ao longo de sua jornada de aventuras e sonha em ser o homem mais livre do mundo. Tratam-se, assim, de duas obras que dialogam com públicos amplos, mesmo que em diferentes níveis, e que permitem reconhecer as formas de representação hegemônica dos cânones e que apontam e defendem as possibilidades de mudanças positivas das relações interpessoais e de poder.
Na construção do texto, considera-se que “o problema da pesquisa não se esgota na ‘pergunta de partida’, mas envolve ainda os objetivos, as justificativas da abordagem proposta, suas articulações com o trabalho de observar e seus tensionamentos com a teoria” (BRAGA, 2011, p. 11). Visando uma explicação embasada, um tópico de Metodologia irá pormenorizar as escolhas definidas para a composição de um trabalho robusto. Vale adiantar que se deseja trabalhar com uma profunda revisão bibliográfica, exemplificada brevemente nesta introdução; com análise fílmica das obras apresentadas, além de se fazer uso da observação participante por meio do contato com crianças e adolescentes do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.
Finalmente, usar do meio acadêmico para apontar modos de transformar realidades insatisfatórias e violentas é mais do que escolha, é dever: nascer, crescer e viver como suburbana no Rio é ter sonhos esmagados e continuar batalhando por si e pelos seus. Aqui escreve uma voz subalternizada, suburbana, periférica, feminina, LGBTQIA+ e não branca, além de um professor não branco de voz suburbana, que cresceu em um bairro periférico e pobre, tomando um lugar que, por tempos, não era oferecido a ninguém em situação de invisibilidade socioespacial e econômica. Os sistemas têm de ser enfrentados e deve-se dar voz a cada sujeito para que, um dia, todos possam falar por si sem marginalizações, maus tratos e segregação cultural. Fala-se de bons empregos e de direitos negados pelo simples fato de os sujeitos serem quem são e de sua origem. Então, que a pesquisa sobre educação e comunicação seja usada para fortalecer a quem dela precisa mas que, compulsoriamente, a tem negada por quem domina a narrativa oficializada tida como única. O valor deste projeto reverbera na academia e na sociedade porque desafia os resquícios persistentes do colonialismo que mantêm comunidades inteiras invisibilizadas e por se vincular diretamente às ações em que educação e cultura quebram engessamentos ao focarem em experiências que propiciam transformações.
Metodologia
Tendo em vista que “na própria construção do problema – perguntas específicas, objetivos, construção do objeto – nos vemos a braços dados com decisões metodológicas referentes ao ângulo, à acuidade, à própria geração de perguntas em função do referencial teórico” (BRAGA, 2011, p. 9), torna-se indispensável confirmar o porquê das escolhas metodológicas e como serão aplicadas. Trata-se de uma pesquisa construtivista qualitativa de caráter explicativo que, usando de revisão bibliográfica, análise fílmica e observação participante, aprofundará a hipótese relacional entre uma tomada de voz subalternizada e a união comunitária, com vistas mudanças sociais em contextos de violência e exclusão.
O prognóstico inicial é de que as transformações são incentivadas quando os subalternos se enxergam nas telas e se unem em comunidade contra a necropolítica na busca pelo direito à cidade. Assim sendo, tem-se como objetivo geral compreender de que maneira a educação pode fazer uso da força da recepção audiovisual entre crianças e adolescentes em obras que os permitem identificar o contexto vivido e ouvir a própria voz. Para tanto, os seguintes objetivos específicos serão trabalhados nos tópicos do artigo: (1) Explorar a educação libertadora que, mediada pelo audiovisual, auxilia crianças e adolescentes; (2) Entender como a falta de acesso à cidade e a necropolítica afetam vidas subalternizadas nas hegemonias capitalistas individualistas; (3) Analisar obras com voz subalternizada ativa, através das quais se percebem opções de mudanças positivas; e (4) Ouvir a juventude para refletir sobre o impacto da recepção das obras escolhidas e os aprendizados incentivadores de mudanças. Explicam-se, enfim, as escolhas metodológicas, posto que não é possível relacionar educação, juventude, comunicação e ciências sociais sem partir de autores dos respectivos campos. Tão caros quanto a leitura atenta de referenciais teóricos, são o aprofundamento dos objetos e o estudo de recepção em campo, misto de participação e observação.
As principais referências teóricas são Paulo Freire (1994) e Romilson Siqueira (2014), teóricos que tratam da educação libertadora. No caso de Siqueira, soma-se também a questão da infância. Ainda sobre infância e ensino, porém em diálogo com a recepção cinematográfica, Daniel Paes (2009) possibilita averiguar o potencial infanto-juvenil enquanto agente com base em cinema e educação. E, para tecer a forma final do que se propõe, surgem como fundamentais Achille Mbembe (2018), Enrique Dussel (1993), Inocência Mata (2014) e Nelson da Nóbrega Fernandes (2011), pois se a recepção crítica e a ação transformadora são necessárias, deve-se entender as hierarquizações e subalternizações vividas pelos espectadores sob pontos de vista crítico-sociológicos dialógicos trazidos por estes estudiosos. No mais, além dos autores supracitados, os quais aparecerão em destaque, outras teorias serão trabalhadas a fim de compor as ideias de forma embasada e nítida.
Relativo à análise fílmica, os conceitos de paratextual e textual, de Laurent Jullier (1960), servirão como base para uma reflexão completa que vai além de se pensar a cinematografia decidida pelos diretores. Em L’analyse de séquences, Jullier define como uma obra audiovisual deve ser pensada pelo que se vê em tela, mas também, procura entender a história por detrás do que é representado, ou seja, o modo pelo qual algo é demonstrado e a razão para as escolhas estabelecidas. Portanto, leva-se em conta que estes produtos têm camadas e, para analisá-los de forma abrangente, é importante responder às perguntas: “o quê?”, “como?” e “por quê?”. Afinal, tendo em conta que aqui O menino e o mundo e One Piece são selecionados por trazerem personagens e realidades subalternizadas que impulsionam reflexões qualitativas, deve-se atentar para toda a complexidade capaz de fazê-lo. No caso do filme, para além da narrativa sobre a descoberta de um mundo diferente, moderno/capitalista, através da busca do pai, o uso de cores vibrantes e de pouca sonoridade impactam a obra, sendo relevante depreender o que levou o diretor a tais escolhas. Quanto ao anime japonês, ainda que a linguagem seja mainstream e, por vezes, use-se do humor, questões importantes são abordadas conjuntamente à diversão, algo a ser salientado quando for comparado à realidade dos subúrbios cariocas.
Finalmente, a observação participante, vinda da etnografia e da antropologia, permite que em campo os objetivos e hipóteses possam ser tonificados, tensionados ou, simplesmente, testados. Conforme o tempo disponível, a vivência subalternizada da autora no subúrbio carioca, somada ao trabalho como professora no Morro do Fubá, comunidade periferizada da cidade do Rio de Janeiro, possibilitam a realização da pesquisa interativa. Em momentos vindouros, delineia-se como, mais do que observar e participar, será realizada a metodologia de pesquisa-ação, chegando ao estágio de proposições e intervenções nos espaços estudados. Por ora, a participação será por meio de trocas em sala de aula, brincadeiras com jovens do bairro em que a autora reside, e entrevistas semiestruturadas, considerando o conhecimento prévio de cada criança e/ou adolescente perante os objetos.
Fica exposto, então, o desenho metodológico, que parte do paradigma da utilização do audiovisual na educação com fins transformadores para propor uma harmonização complexa entre múltiplos referenciais teóricos e metodológicos advindos de diferentes áreas. Logo, a análise é fundamentada em diferentes estudos e, também, é posta em colisão com o mundo, trazendo o audiovisual como intermediário entre pesquisa e cotidiano. Dado que se entende como pessoas subalternizadas, quando em posição de protagonismo no audiovisual, dão voz a quem costuma ser excluído, é impossível investigar o assunto sem ouvi-las. Sumariamente, a metodologia é empregada sem rigidez e/ou definições engessadas, sabendo-se acrescentar e filtrar decisões conforme o câmbio de ideias e os novos conhecimentos proporcionem debates e reconstruções.
“Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1994, p. 45)
A partir do advento configurado pelo nome de Modernidade, o ideal positivista e difusionista propagou o pensamento estrutural-funcionalista no qual a ciência é dada como método hegemônico de conhecimento, modelo de análise da realidade e solução para os problemas humanos/sociais, negligenciando outras formas de aprendizado (FRANÇA; SIMÕES, 2017). Quer dizer, o senso comum relativo à educação vincula-se ao racionalismo e à ciência cognitiva, inserindo a mente em uma hierarquia que se supõe superior ao corpo e ao mundo, assim ignorando como os contextos físico, social e cultural influenciam a formação de conhecimento. Entretanto, diversos estudos comprovam como o difusionismo falhou em quase tudo, inclusive na promessa interna aos países que desejam se manter enquanto potências por meio da submissão de outros espaços. Como defendem Armand e Michèle Mattelart (1999, p. 185), “diante da derrocada da ideologia racionalista do progresso linear e contínuo”, é indispensável relacionar educação e comunicação, reforçando-se a troca verificada no processo de construção de saberes e nas formas com que grande parte do corpo social se relacionam, desassossegam e transmutam.
Ainda que os países ditos “desenvolvidos” também não consigam se manter incólumes às crises – ao passo que surgem oportunidades nos lugares onde eles acreditavam não ser possível e, mais ainda, mobilizações sociais contra a opressão – persiste um apego ao passado mítico das promessas capitalistas (MATTELART; MATTELART, 1999). Somente com tal alicerce emocional justifica-se como a narrativa oficial e os sistemas educacionais mantêm discursos e métodos nos quais a necessidade da comunicação é negligenciada e ideais de verticalização se repetem, seja enquanto evolucionismo ou repressão. Como consequência, a pesquisa sobre educação problematizadora se opõe à “educação bancária”, como apontou Paulo Freire (1994, p. 75), ou seja, após “feita a ‘redução’ da temática investigada, a etapa que se segue, segundo vimos, é a de sua ‘codificação’ e da escolha do melhor canal de comunicação para este ou aquele tema ‘reduzido’ e sua representação”. Isto posto, fica perceptível que as produções audiovisuais são um canal de comunicação relevante, principalmente ao se ter em mente a representatividade do espectador subalternizado como forma de ensino e empoderamento.
Tomando como apoio a força de ação entre os jovens, abre-se brecha para se entender o quanto o pensamento de educação libertadora e mediada pode ser caro ao aprendizado e ao exercício social deste público – aqui compreendendo o cinema e o audiovisual como meios incentivadores de reflexões. Afinal, quando se põe a infância e a adolescência em pauta, a visão estruturalista se torna cada vez mais rigorosa e generalizada, visto que uma sociedade guiada pela educação como transferência de conhecimento não enxerga a sabedoria e os ensinamentos da juventude. No viés da educação problematizadora, há diálogo com abordagem diversa sobre o que seriam infância e adolescência:
A infância é uma construção social; a infância é uma variável (aqui entendida como categoria) e não pode ser inteiramente separada de outras variáveis, como classe social, sexo ou pertencimento étnico; as relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas em si mesmas; as crianças são e devem ser estudadas como atores na construção de sua vida social e da vida daqueles que a rodeiam (SIQUEIRA, 2013, p. 187).
Tanto quanto “a infância influencia e é influenciada, altera e é alterada, transforma e é transformada” (SIQUEIRA, 2013, p. 185), a comunicação feita por um filme e por um anime que têm crianças e adolescentes dentre o público-alvo é capaz de influenciar, alterar e transformar. Em outras palavras, ao buscar o ensino por um caminho que problematiza para libertar, além de ouvir e se fazer ouvir, um recurso eficiente para facilitar o diálogo e a crítica – tão relevantes para tal abordagem e princípio –, é o da representação do audiovisual.
Através de narrativas, personagens, enquadramentos e efeitos, pode-se abordar temáticas que nem sempre são simples, principalmente a depender da faixa etária – como rotinas de trabalhos análogas à escravidão, combate à fome e racismo, por exemplo. Portanto – independentemente da idade ou justamente contando com o poder de cada fase da vida –, cena a cena, episódio a episódio, filme a filme, afasta-se a separação entre mente, corpo e mundo, unindo o saber às conscientizações conjuntas, ao viver com o outro, com seus locais, e evitando as hierarquizações. Deve-se defender o quanto a recepção de cada indivíduo vale, não importando quem sejam os espectadores, já que todos são essenciais à interlocução e para os saberes absorvidos nas trocas acerca do objeto analisado, elementos imprescindíveis, dada a capacidade de proporcionar novas ponderações e ações:
A arte tem seu papel de, ao poder fazer tudo, sem apegos às lógicas dominantes de homogeneização das linguagens, questionar o estatuto de normalidade e sujeição estética vigente. Um retorno ao olhar e à sensibilidade infantil. [...] É no seu processo criativo, por mosaicos, por traduções, mutações, que a criança nos ensina como a cultura audiovisual pode ser encarada e trabalhada positivamente (PAES, 2009, p. 2).
Por fim, conclui-se que, como “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo” (FREIRE, 1994, p. 45), todos aprendem e ensinam, principalmente quando há foco no uso da comunicação e da cultura como mediadoras e, por que não, também educadoras e educandas. Sustentando-se em Nelson da Nóbrega Fernandes (2011), ao explicar como o poder negou às classes populares o acesso a certas áreas da cidade, essa reflexão constata e reafirma a segregação das camadas subalternizadas em determinados espaços físicos, entretanto, na falta de uma crítica problematizadora dessas discriminações, declara-se a urgência de uma educação formadora de sujeitos críticos. Os poderes definem quem está dentro ou fora, quem terá acesso ou não, quais pessoas podem morrer e quais devem ser mantidas vivas, mas quanto mais a libertação – incentivada pela educação, pela comunicação e pelo audiovisual –, chegar aos diferentes indivíduos, mais coletiva será a força revolucionária.
“Quem é ‘descartável’ e quem não é”? (MBEMBE, 2018, p. 135)
O sistema que alimenta verticalizações nas quais lugares, pessoas e características são considerados superiores perante às demais formas de existir, impulsiona uma realidade que ataca o diferente e impõe visões absolutas, atingindo tudo que foge do padrão masculino, branco e se aproxima do europeu – por exemplo, o padrão de riqueza. Na colonização, “nenhum ‘encontro’ pôde ser realizado pois havia um desprezo pelos ritos, deuses, mitos, crenças indígenas. Tudo foi apagado com um método de ‘tabula rasa’ (DUSSEL, 1993, p. 65), por isso, atualmente a colonialidade segue exterminando e excluindo pessoas marginalizadas. Dussel destaca que a autêntica ética deve emergir da escuta do “outro” e do reconhecimento de sua dignidade, reconhecendo-se a persistente colonialidade nos sistemas sociais. Ademais, como defende Achille Mbembe, tais estruturas operam seguindo o modelo da necropolítica, no qual os poderes vigentes não se restringem a administrar vidas e partem de um pensamento supressor, genocida e epistemicida onde pobres, favelados, mulheres, pretos, indígenas e demais subalternizados são aniquilados diariamente, posto que “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa” (MBEMBE, 2018, p. 135).
Apesar de em alguns momentos a violência ser realizada de forma indireta, quando explora os sujeitos subalternizados que produzem riquezas às quais não acedem (SANTOS, 2007), há instâncias cujas “trajetórias pelas quais o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar” (MBEMBE, 2018, p. 17). Enquanto “o direito à cidade se manifesta como uma forma superior dos direitos: o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar” (LEFEBVRE, 2008, p. 134), perduram realidades em que, para além da falta de direitos em vida, operações policiais, guerras entre poderes supostamente paralelos ou a negligência em meio a uma pandemia, definem quem deve ou não morrer. Geograficamente, já há diferença entre usufruto de bens conforme o peso que cada um ocupa no espaço (SANTOS, 2007); no entanto, quanto mais indivíduos ou grupos são alijados das “estruturas capitalistas, patriarcais, eurocêntricas, cristãs, modernas e coloniais” (GROSFOGUEL, 2016, p. 45), menos “humano” e “merecedor” serão considerados – visto que tais ordenações se valem do ideal meritocrático.
Recapitulando, ao estabelecer um modelo a ser seguido, o que foge a ele é taxado como o “outro”, que não apenas é segregado e invisibilizado como também será visto como problema a ser combatido em nome da manutenção da “paz” – estabelecida pela violência autorizada, bélica e mortal (MBEMBE, 2018). Segundo esse pensamento, habitantes de espaços subalternizados devem permanecer nestes locais e nas condições a eles imposta, pois “estar na periferia significa dispor de menos meios efetivos para atingir as fontes e os agentes do poder, dos quais se está mal ou insuficientemente informado” (SANTOS, 2007, p. 173). A crítica de Mbembe à marginalização alinha-se à perspectiva de Dussel quanto a importância da escuta do “outro”, o que justifica a complexidade dos projetos de exclusão, que enxergam determinadas vidas como inferiorizáveis, ao passo que dependem delas como mão de obra ou para a perpetuação de ideologias excludentes. Isto posto, há uma necropolítica verificada em narrativas em que “desigualdades passam despercebidas por grande parte da sociedade, proporcionando certa estabilidade para o funcionamento do sistema” (BERNARDINO; ROSO; VILLAR, 2022, p. 46).
Uma amostra do assunto é o caso do Rio de Janeiro, onde a formação do município, até atingir a consolidação do ideal de “Cidade Maravilhosa”, abraçou as lógicas colonialistas de preconceitos e exclusões, visando à sustentação de uma determinada ordem social. A capital carioca constantemente produz espaços que material e simbolicamente são suprimidos quando se pensa uma ideia de cidade, por exemplo, no uso da palavra “subúrbio”, que estimula a compreensão destes ambientes enquanto “lugar outro”, satélite do verdadeiro Rio (FERNANDES, 2011). De acordo com Luiz Antônio Simas (2019), “em certo momento crucial para o Rio, aquele da transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre e entre a Monarquia e a República, a cidade encarou os pobres como elementos das ‘classes perigosas’ (SIMAS, 2019, p. 13); porém, estas mesmas pessoas trabalhavam para as elites poderem sustentar o sonho cosmopolita. Na verdade, ao longo da história, as dicotomias que separam ricos e pobres no Rio de Janeiro são programadas para manter os subúrbios e periferias apagados, negados pelo cartão postal, conforme os interesses do mercado:
Encontrar o lugar da cidadania no Rio de Janeiro de hoje é um desafio. A cidade, marcada há muito como espaço de afirmação das diferenças, parece não parar de produzir enormes desigualdades e, ao mesmo tempo, quase como uma força oposta, tem potencial para gerar permanentemente uma série de soluções e visões alternativas (GUILHON; MATTOSO; SANTOS, 2019, p. 11).
Ou seja, para que a cidade do Rio seja o que é, os beneficiados do sistema necessitam de uma organização social hierarquizada, na qual uma massa faz os serviços que ninguém do topo da pirâmide realizará, além de se valer do medo para se manter a subserviência. O sujeito subalternizado “vive na dor” (MBEMBE, 2018) quando sofre por horas no transporte público e não consegue pôr comida na mesa; quando o celular ainda não pago é roubado; quando sua casa é metralhada; e quando enterra filhos menores, por vezes agredidos ou mortos por serem quem são. Enfim, a antiga capital do país, ainda hoje, reflete as condições degradantes da colonização, coagindo seus habitantes a acreditarem em vivências violentas e apagadoras como sendo parte de uma ordem natural. Em outras palavras, como defende Inocência Mata (2014), acaba-se por seguir e legitimar a ideologia dominante de forma inconsciente.
Justamente por conta desse discurso oficial, é urgente realizar um “trabalho de desvelamento, que é também de desmistificação, que permite direcionar o nosso olhar para os (outros e novos) interstícios do poder” (MATA, 2014, p. 31), assim ressignificando a importância da educação libertadora e, neste caso, do uso do audiovisual. Tanto quanto Ocidente e o Oriente são ideias construídas para classificar e separar indivíduos por estágios de poder e relevância, é preciso que haja uma geocrítica do eurocentrismo (MATA, 2018), conforme se propõe aqui, realizada por meio de obras não ocidentais com protagonismo do subalternizado. Ao se deparar com produtos audiovisuais, como as obras fílmicas escolhidas, que representam realidades, pessoas e lugares subalternizados, mas que alcançam sucesso global, o sujeito e as comunidades periferizadas ficcionalizados veem reconhecida sua própria força e podem concluir pela mobilização como forma de se superar o cotidiano opressivo e desalentador.
“Onde o ‘mundo do Outro’ é” (DUSSEL, 1993, p. 65) protagonista e inspirador
O eurocentrismo surge e se mantém forte ao inventar uma Ásia estacionada em um passado atrasado; ao eliminar a África e a América Latina da equação; e quando coloca a Europa como epítome da humanidade (DUSSEL, 1993). Neste sentido, consideram-se as produções audiovisuais realizadas fora desta ideologia como obras não ocidentais. No entanto, para romper com modelos estabelecidos, é imprescindível uma genealogia que repense visões de mundo e seja verdadeiramente baseada no lugar do qual se está tratando (MATA, 2018). O interesse deste artigo se concentra, portanto, em obras capazes de desafiar a hegemonia colonialista; romper arquétipos e dicotomias e, primordialmente, evidenciar experiências, derrotas e vitórias dos que são postos à margem, sem esperança. Somando-se ao exposto, o enfoque nas infâncias e adolescências legitima a escolha de O menino e o mundo e One Piece, obras que propiciam “uma redefinição dos muitos elementos apropriados pela Modernidade eurocêntrica” (GROSFOGUEL, 2016, p. 45) e motivam aprendizados transformadores.
No caso da animação brasileira, o diretor Alê Abreu apresenta uma narrativa “fora” do sistema em que “empresas em sua maioria não-estatais dominam este cenário e, pela relação mercantil com anunciantes de produtos, não desenham qualquer tipo de laço com uma responsabilidade humana que transcenda o lucro mercantil” (PAES, 2009, p. 2). O menino e o mundo não utiliza artifícios do cinema clássico e não foi pensado para o mainstream, sendo distribuído pela Espaço Filmes, com 5,9 mil seguidores no Facebook (https://www.facebook.com/espacofilmes) e menos de 500 seguidores no Instagram (https://www.instagram.com/espacofilmes/), diferindo de números exorbitantes como os da Paris Filmes (https://www.facebook.com/ParisFilmesBR; https://www.instagram.com/parisfilmes/).
One Piece, por outro lado, está vinculado às grandes empresas do setor no Japão, porém é uma criação de Eiichiro Oda, artista oriundo de Kumamoto, cidade a mais de 1000 quilômetros de distância e a quase 15 horas de carro de Tóquio. Por viver grande parte da vida no sul do país, perto de Nagasaki, Oda consegue se aproveitar do sucesso conquistado para pensar questões vividas por pessoas subalternizadas, como ele, e algumas maneiras de transformar essas realidades. Ambas as obras conquistaram destaques, como premiações internacionais (R7, 2016) e recordes no Guinness Book (FERREIRAZ, 2022), assim podendo levar a potência de suas mensagens a diferentes lugares e públicos, sendo interessante investigar o que as imagens expressam, a forma dessa exposição e por que Abreu, Oda e outros envolvidos tomaram tais decisões.
O que O menino e o mundo mostra? A diferença entre um mundo que não sobrepõe o Humano e o moderno a outras formas de existir – sejam elas humanas, animais, elementos da natureza ou objetos – e o mundo da Modernidade, colonialista e capitalista. Como defende Michel Maffesoli no livro Ecosofia (2021), a metragem expõe como a conexão entre os seres humanos e o mundo se perde quando a técnica é priorizada, desprivilegiando a vida, criando relações nas quais quem não produz riqueza não é bem-vindo, já que não se encaixa na lógica do progresso. Quer dizer, em uma hora e vinte minutos de duração, apresenta-se o contraste entre envolvimento com o espaço/com os outros e as lógicas economicistas, inclusive pontuando a dificuldade de se negar o positivismo e o racionalismo.
Como o filme brasileiro põe isso em prática? A animação traduz uma visão infantil do mundo, jogando com formas, cores e elementos que entram e saem da tela, junto a um desenho de som quase inaudível ou incompreensível que define quem são os personagens, onde estão inseridos, como se manifesta sua individualidade e de que forma os arredores afetam suas vivências e possibilidades. A história acompanha uma criança que descobre como o mundo funciona fora da mata e da casa que formam seu mundo, porém, também mostra o contexto de exclusão socioeconômica, desemprego, escravização, guerra e crise ambiental, sem verborragia. Para que se compreenda a violência do mundo menos colorido do capital, a necessidade de sobrevivência obriga o pai do menino a ir para o centro urbano e, por conta da saudade, seu filho também irá até a cidade. Ao final do filme, o menino se tornará mais um trabalhador do sistema.
Como a história se desenvolve? Metafórico em várias escolhas, mas bastante límpido na mensagem, O menino e o mundo trata de temas e teorias que, por vezes, só são debatidas no espaço acadêmico e o faz direcionando a narrativa ao público infanto-juvenil, proporcionando a leitura e a compreensão de algo complexo, mas que atinge diversificadas audiências. Visualizar a transição de um catavento para uma tela girando, com a criança deitada na cama ao centro do quadro, após a partida do pai, permite que outros jovens, e quiçá adultos, se vejam representados ali, talvez com mais intensidade do que pelo uso de palavras como solidão e falta. Da mesma forma, a pequenez de uma criança sozinha em perspectiva diante de uma montanha de lixo simboliza múltiplas possibilidades de leitura e pode tocar o espectador de maneira única. Assim, se compreende como o filme se afasta dos ideais de mercado, não só na maneira de narrar a história, mas também por ter sido feito para ser sentido e não explicado.
No caso japonês, o que é representado em One Piece? Um mundo em que uma organização militar chamada Governo Mundial domina a maioria das nações e guarda segredos por meio de autoritarismo, segregação espacial, criminalização da liberdade e da pesquisa e falta de acesso à mídia e à comunicação. Por meio de uma hierarquização declarada, os cidadãos comuns deste mundo só têm notícias do que o Jornal Econômico Mundial manipula e publica e ao que os líderes mundiais definem como certo e errado. Para saber mais, os caminhos são: o estudo dos proibidos poneglyphs[4]; a pirataria, criminalizada, mesmo quando piratas agem corretamente; ou o alistamento na Marinha, somente para aqueles dispostos a ir mais longe e enfrentar perigos. No topo da estrutura, estão Imu – um soberano desconhecido por todos, fora os anciões –, os cinco anciões – que o mundo acredita comandarem o Governo Mundial –, e os dragões celestiais – nobres mundiais descendentes dos reinos formadores do governo.
Como o anime trabalha esta história? Engraçado e mercadológico, por ser um Shonen[5] de batalha, One Piece parece a olhos desavisados uma animação rasa sobre um pirata que tem o poder de se esticar e luta pelo sonho de encontrar o tesouro que dá título à obra. Fugindo da dicotomia entre bem e mal, o protagonismo da série é dos piratas, à margem da sociedade, aproximados pelo senso comum do que é vil, um mal a ser expurgado – o que a história não necessariamente nega. A narrativa apresenta piratas de todas as índoles, marinheiros de integridades diversas, um exército revolucionário e, com um viés de fantasia, existem poderes esquisitos, raças variadas, seres humanos de alturas descomunais, e vidas humanas nos céus e nos mares. Assim, por meio de episódios curtos, lançados semanalmente, o público ao redor do mundo teoriza, reflete, aprende e se emociona tanto quanto ri, se diverte e vai a eventos temáticos no decorrer dos lançamentos, os quais continuam ocorrendo.
E por que esse é o meio escolhido? Dentro de uma indústria já consolidada no país, Eiichiro Oda criou um protagonista que, a princípio, parece apenas desejar uma alcunha e lutar por ela, mas depois se entende como para Luffy[6] o objetivo é outro: “Eu não quero conquistar nada, só acho que a pessoa com mais liberdade do mundo é o rei dos piratas!” (ONE PIECE, 1999). Usando de atrativos como poderes, mistérios, batalhas e aventuras, aborda-se a importância da união comunitária para derrotar injustiças; a interrupção de infâncias periféricas com a adultificação de crianças; o racismo e a reação de vítimas que buscam vingança; e o direito à vida para quem não acredita poder existir por ser quem é. Conforme “quanto mais longe dos centros de poder, mais difícil é fazer ouvir a própria voz” (SANTOS, 2007, p. 174), One Piece atinge públicos de diferentes lugares e representa subalternizados libertando uns aos outros e desvendando os segredos do mundo para interromper o ciclo de submissão e exclusão.
Finalmente, conhecendo o mundo textual e paratextual (JULLIER, 2002) de O menino e o mundo e One Piece, é possível determinar como as obras podem ser motrizes para se combater a colonização inconsciente (MATA, 2018), permitindo que os espectadores se reconheçam na tela e reflitam sobre os problemas vividos no dia a dia, assim escolhendo o que fazer a partir dessa reflexão. Considerando que “a infância e a criança não podem prescindir da relação entre a criança-adulto-sociedade-ciência, já que é na História, na cultura e no trabalho que as universalidades e singularidades da infância e da criança são construídas” (SIQUEIRA, 2014, p. 195), reitera-se, também, o quanto o contato de crianças com obras deste caráter é capaz de construir uma juventude mais atenta às adversidades e imposições. Para Freire (1994), o povo tem que fazer parte das mobilizações por mudanças ou as transformações não ocorrerão, deste modo, o uso das produções audiovisuais para o diálogo é um instrumento ímpar, pois se o filme/o anime representa sujeitos que estão alheios à realidade social e política do mundo em que vivem e passam a transformá-la conforme se conscientizam, uma educação libertadora está no horizonte dessas narrativas como possibilidade e necessidade.
O jovem “como agente da recepção da produção de linguagens” (PAES, 2009, p. 2)
Visando “situar o debate da relação indivíduo-sociedade naquilo que tem se constituído o campo das ciências que informam a infância e a criança” (SIQUEIRA, 2014, p. 192), para compreender a ligação entre audiovisual, juventude e transformação, é preciso ouvir estas vozes. Trabalha-se, aqui, com respostas de 27 crianças e adolescentes[7], na faixa dos 9 aos 16 anos, sobre o aprendizado feito por meio do audiovisual e as relações entre os contextos vividos nos subúrbios cariocas e O menino e o mundo e One Piece. Antes das informações qualitativas obtidas nas conversas, vale ressaltar pontos quantitativos: 20 jovens responderam que já aprenderam algo com produtos audiovisuais; 24 entrevistados afirmaram que os professores usam do audiovisual em aula e todos concordaram que ele ajuda na compreensão, visualização e dinâmica de aprendizado; por fim, 10 dos jovens já assistiram algum dos objetos aqui trabalhados e os demais comentaram as temáticas apresentadas pelos espectadores.
Inicialmente, as rodas de conversa trouxeram temáticas de aprendizado escolar e científico, tendo falas como a de GL, 11 anos: “Com Dr. Stone, aprendi sobre espelho convexo. Vendo Como treinar o seu dragão, aprendi que um conjunto de ilhas é arquipélago”; e a de RP, 14 anos, que tem aula de audiovisual com a autora: “Eu aprendi muita coisa, aprendi a mexer na câmera. Aprendi a gravar, tirar foto. Aprendi a mexer no computador”. Em menor número, para a mesma pergunta, existiram reflexões sobre aprendizados de cuidado com o mundo e de autoconhecimento, por exemplo quando AR, 12 anos, disse: “Eu vi em um filme, acho que do Bob Esponja, que era pra ajudar, quando for na praia, a catar o lixo, não deixar no chão”, ao que TN, 9 anos, prosseguiu: “No Divertidamente, aprendi que tem um monte de emoção na cabeça, que cada uma dá uma hora. Raiva, inveja”. Ademais, as preferências dos entrevistados revelaram relações entre o assistido e a realidade vivida, como quando TH, 13 anos, introduziu: “Filme, eu gosto quando é de tiro. Tiro, ação”, o que rendeu o seguinte diálogo, RP: “Eu gosto de filme de atirador de elite. Aqueles que são do exército e tem que caçar os caras. Lembra o Morro do Fubá quando tá dando tiro”, AC, 13 anos: “Pra gente, filmes assim, de ação, de elite, é tudo realidade” e BY, 16 anos: “O que passa no filme, eu passo na vida real”.
Da mesma maneira, em outra turma, uma série muito comentada foi Sintonia, através da qual aconteceu um diálogo semelhante, KC, 12 anos, contou: “Eu penso que estou vivendo um filme. Quando vejo um filme de bandidagem, depois olho pra rua, vejo a mesma coisa que estou vendo num filme”, sendo complementada por RS, 13 anos: “Meu pai viu o filme Cidade de Deus, é cheio de bandido e dá muito tiro. Quando eu tava vendo o filme, deu um tiro no filme e na vida real junto”. Já em diálogo com os objetos deste estudo, RP afirmou que “Em O menino e o mundo, quando ele vai atrás do pai na cidade, quando tu vai (sic) pra um lugar que não conhece, é a mesma coisa”, deixando exposto que se identificou com a aventura e o choque com o desconhecido. Entretanto, o maior debate veio pelo afastamento, RP prosseguiu: “Não me identifico muito porque meu pai nem liga pra mim”, rendendo o diálogo em que AC afirmou: “Eu entendo a saudade do menino porque sinto um pouco da minha mãe”, continuando com RP: “Meu pai foi comprar cigarro”[8], BY: “Meu pai fez a mesma coisa que o dele, foi comprar cigarro”, a própria AC: “Na verdade, meu pai foi procurar cigarro na cadeia” e finalizou de volta com RP, que definiu: “O meu padrasto que me criou desde novo. Vou atrás do meu pai? Meu pai não foi embora por necessidade, não”.
Outro assunto abordado quanto ao filme de Alê Abreu foi a solidão das crianças pela longa jornada de trabalho dos familiares adultos, a qual gera consequências, como informou ME, 15 anos: “Quando a minha irmã não tava morando comigo, meu pai trabalhava, minha mãe também, então eu ficava sozinha, sem saber o que fazer. Quando não tenho o que fazer, eu apronto”. Em contrapartida, com One Piece, AC explicou que aprendeu algo positivo: “One Piece me ensinou a ter sabedoria, quando o Luffy conseguiu se superar pra poder proteger os amigos. Ele já tava acabado no chão e despertou um poder novo. É coletividade. Eu acolho as pessoas igual o Luffy”. Aliás, enquanto para alguns a comparação entre a obra de Eiichiro Oda e o contexto cotidiano não é tão evidente, como GE, 11 anos, disse não saber se o que o tritão Arlong faz com a ilha da Nami em One Piece acontece na vida real, para JP, 14 anos, é um fato: “É milícia! Igual a Marinha e o Governo de One Piece mostram a corrupção. E os Tenryuubitos são babacas, escravizam. Só porque são ricos, acham que têm que mandar. Usam um capacete só para não respirar o mesmo ar que os outros”. Tanto quanto Arlong cobrava um valor mensal para a população da Vila Cocoyashi poder viver em casas que já eram deles, RP explica que no Morro do Fubá: “Cobra água, luz, energia. A galera do morro mesmo. Você compra a casa e tem que pagar, senão eles vão te colocar pra fora”.
No entanto, os tópicos mais recorrentes quanto ao anime foram o racismo e a fome, rendendo falas como a de DV, 12 anos: “Os arcos que têm os tritões lembram casos de racismo. Vamos fazer a situação que somos objetos. Você é um lápis, eu sou um lápis, aquele cara é uma borracha. Aí a gente zoa o cara que é uma borracha porque ele não é um lápis, porque é diferente” e a de JN, 14 anos: “O que aconteceu com o Zoro no início, acontece aqui. Pessoas são presas injustamente porque são negras. A pessoa branca, rica, quando faz um crime, não é presa, não acontece nada. Quando é o pobre negro, é preso até injustamente”. Para além de corrupção, abuso de poder e preconceito – palavras usadas pelos jovens –, vários confirmaram aprender com o personagem Sanji, que ficou naufragado sem poder comer, DV disse que: “O cara que salvou o Sanji, se importava muito mais com o Sanji do que com ele mesmo. Se lembra que ele só pegou tesouro? Deixou a comida pro Sanji”. GL refletiu: “O moço que cuidou dele teve que perder uma perna para conseguir comer porque deu toda comida para ele, o Sanji aprendeu que todos merecem comer e que não pode desperdiçar” e GE conectou com a própria vida: “Minha mãe não comeu a perna dela, não. Mas já deixou de comer pra dar comida pra gente. Quando não tem suficiente pra todos e não dá tempo de fazer mais, ela não come”.
Assim, os ponderamentos das crianças e adolescentes não somente corroboram com o que aqui se defendeu anteriormente, visto que só confirmar hipóteses e objetivos é de pouco alcance para uma pesquisa. O uso da observação participante por meio de brincadeiras e aulas nas quais se inseriu uma entrevista semiestruturada fez perceber quanto as crianças e adolescentes têm a dizer e sentem prazer em ser ouvidas. No começo das conversas, foi demonstrada resistência, como se estivessem sendo testadas e não quisessem ser diminuídas; mas, no decorrer das perguntas propostas, cada vez mais os jovens desejavam expor os próprios pontos, chegando a interromper uns aos outros. Algumas vezes, houve falas que demonstraram descontentamento com métodos tradicionais de ensino e com a escola em si. Com a introdução do audiovisual e do diálogo realmente aberto à escuta, notou-se uma alegria por, como afirmou GL, “mesmo sendo crianças”, poderem ajudar.
Considerações finais
O presente artigo investigou como obras audiovisuais não ocidentais com protagonismo e vivências subalternizadas atuam enquanto ferramentas fortes para a educação libertadora de crianças e adolescentes com poder de agência. A análise do mito da Modernidade (DUSSEL, 1993) e das sequelas de exclusão e morte que dele decorrem (MBEMBE, 2018) foi crucial para entender como o aprendizado é uma troca mediada pela comunicação (FREIRE, 1994). Então, o cinema e o audiovisual foram os meios comunicacionais escolhidos para o entendimento da educação que combate o mercado e liberta os jovens, os quais são potentes e decisivos na troca educadora (PAES, 2009). Dessa forma, o estudo evidencia que, ao proporcionar representações significativas, essas obras não só estimulam a reflexão crítica, como também reforçam a voz e a identidade da juventude, fundamentais para uma educação transformadora.
Doravante, para além da revisão bibliográfica, a análise fílmica de O menino e o mundo e One Piece e a observação participante feita com 27 jovens foram fundamentais para, mais do que alcançar, superar os pensamentos iniciais do trabalho. Notou-se que as crianças e os adolescentes também refletem quando se distanciam do que assistem, tanto quanto o fazem quando se assemelham aos personagens, como foi o caso da conversa sobre abandono parental. Assim, além de os objetivos específicos terem sido transformados nos tópicos elaborados, proporcionou-se um acréscimo ao objetivo geral que visava entender qual uso a educação libertadora poderia fazer do audiovisual. Como foi demonstrado que a recepção das obras facilita a identificação com os contextos vividos e empodera os jovens a expressarem suas vozes, reconhecendo a própria agência no processo educativo, fomenta-se um aprendizado mais relevante e participativo.
Assim, também houve fortalecimento relativo à hipótese de que ser representado sem estigmatizações permite a transformação de realidades, conforme se notou como a troca e a escuta atenta, por meio da qual a criança/o adolescente se percebe importante, faz diferença na percepção deles sobre o assistido. Essas descobertas não só expandem a compreensão sobre a recepção do audiovisual, como também indicam a necessidade de práticas pedagógicas que incluam tais representações e diálogos no ambiente de ensino. Tal abordagem pode contribuir significativamente para a construção de uma educação que não apenas instrui, mas também transforma e empodera, valorizando a diversidade de vivências e a riqueza de perspectivas no processo de aprendizagem.
Por fim, recomenda-se que futuras pesquisas se aprofundem nesta linha de investigação, ouvindo vozes diversas e utilizando metodologias de campo mais intervencionistas, como a pesquisa-ação e a cartografia. Caminhos para além dos aqui utilizados possibilitam enriquecer ainda mais a compreensão de que o audiovisual pode servir como um poderoso instrumento de empoderamento e transformação social. Sempre haverá novas vozes e obras a se escutar e analisar, logo, ao levar em conta as experiências dos jovens, trabalhos por vindouros podem auxiliar na promoção de ambientes de ensino mais inclusivos e participativos. Dessa forma, ao se objetivar experiências menos excludentes e violentas, é fundamental que educadores, pesquisadores e formuladores de políticas se empenhem no reconhecimento da comunicação e do audiovisual como meio de ensino e de mudança de realidades.
Referências
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Data do envio: 28/10/2024.
Data do aceite: 26/11/2024.
Revista Aleph, Niterói, dezembro de 2024, nº 42, p. 1 - 25. ISSN 1807-6211
[1] O presente artigo parte da discussão realizada no Resumo Expandido O poder transformador Infanto-juvenil: como crianças e adolescentes podem se tornar agentes através do audiovisual, apresentado e premiado no Intercom Sudeste 2024.
[2] Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda em Comunicação Social (Cultura das Mídias, Imaginário e Cidade) e Mestra em Cinema e Audiovisual no PPGCine UFF (Histórias e Políticas). Professora da Oficina de Áudio e Vídeo da ONG Terr’Ativa. Bolsista CAPES DS. Este artigo conta com o auxílio da bolsa CAPES. Telefone: (21) 98942-2514. E-mail: andradetaina777@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5704-8193.
[3] Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor e Mestre em Letras (Ciência da Literatura) pela UFRJ. Professor Adjunto de Teoria Literária da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Professor Permanente dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPLIN) de Pós-Graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da UERJ. Vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq/UERJ Poéticas da Diversidade. Bolsista Procientista da FAPERJ e Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq. Este artigo conta com o auxílio da Bolsa CNPq (PQ). Telefone: (21) 98884-4824. E-mail: paulo.centrorio@uol.com.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3710-4722.
[4] Pedras entalhadas com escritos de uma língua morta distribuídas pelo mundo de One Piece.
[5] Gênero de histórias em quadrinhos e animações do Japão sobre personagens de aventuras.
[6] O protagonista de One Piece, um jovem com poderes com propriedade de borracha.
[7] Os nomes dos entrevistados foram substituídos por iniciais para garantir a integridade e sigilo dos mesmos.
[8] A expressão se refere ao abandono parental e é bastante usada pelos moradores do Morro do Fubá.