Interfaces de (in) justiça e reconhecimento

das professoras das infâncias em tempo de crise

INTERFACES DE (IN) JUSTIÇA E RECONHECIMENTO DAS PROFESSORAS DAS INFÂNCIAS EM TEMPOS DE CRISE

INTERFACES OF (IN) JUSTICE AND RECOGNITION OF EARLY CHILDHOOD TEACHERS IN TIMES OF CRISIS

Erika Leite Cardoso[1]

Maiane Liana Hatschbach Ourique[2]

Resumo

O momento de crise ocasionado pela pandemia de Covid-19 demandou uma readequação do trabalho docente. A pesquisa teve o objetivo de identificar quais processos de invisibilização são retratados por professoras das infâncias, discutindo o modo com que o não reconhecimento e a ausência de justiça social se expressam como fonte geradora de indiferença e sofrimento. Orientamo-no pelo seguinte questionamento: em que medida as demandas de trabalho das professoras de Educação Infantil durante o período pandêmico geraram sofrimento e alocaram as docentes à categoria dos destituídos do direito a ter suas vidas preservadas? O artigo repercute a precarização do trabalho docente enquanto uma violação da relação pedagógica, que atingiu as subjetividades de professoras, reforçando um quadro social patológico.

Palavras-chaves:  Educação Infantil. Pandemia. Trabalho Docente.

Abstract

The crisis caused by the Covid-19 pandemic required an adjustment in teaching practices. This research aims to identify which processes of invisibilization are depicted by early childhood educators, discussing how the lack of recognition and social justice manifests as a source of indifference and suffering. It is guided by the following question: to what extent did the work demands placed on early childhood educators during the pandemic period cause suffering and put these teachers in the category of those deprived of the right to have their lives preserved? This paper highlights the precarization of teaching work as a violation of the pedagogical relationship, which affected the subjectivities of teachers, reinforcing a pathological social situation.

Keys words: Early Child Education. Pandemic. Teaching work.

Introdução

Passados 4 anos do início da pandemia de Covid-19, parece que já estamos saturados de pensar/discutir sobre as heranças que o vírus deixou para as nossas organizações de vida coletiva. Durante 2 anos, no mínimo, a pandemia exigiu novos modos de viver, de interagir, de ser e estar em sociedade. O que até 2020 era tido como regra, como norma comum a todos, precisou ser modificado para se adequar aos novos modos de vida que se apossaram do coletivo, repletos de inseguranças e medos. Pensar que esta experiência desafiadora passou sem deixar marcas é, de alguma forma, aceitar nossa vulnerabilidade diante da existência, mas também manter um grau de descrença sobre a responsabilidade humana com o que acontece no ecossistema planetário, sem considerar as ações de prevenção e convívio ético como condições para uma vida compartilhada.

O campo educacional também foi impactado pelo cenário trágico da pandemia, em que as decisões foram tomadas de maneira aligeirada e sem ponderar os impactos mais profundos no processo educativo e de constituição dos sujeitos. Com o entendimento de estados e municípios de que a educação não poderia parar, o modelo de ensino remoto configurou-se como uma saída produtiva — para as mantenedoras e para a formação da opinião pública — e aceitável — para os profissionais envolvidos. No entanto, a urgência da implantação desse novo modelo suprimiu a reflexão e o debate sobre suas implicações e consequências para os processos pedagógicos e formativos, considerando tanto as concepções de educação em jogo quanto as próprias condições estruturais e formativas para o exercício do trabalho docente e para o acesso dos alunos. Certamente, os impactos desse novo modelo reverberaram de maneira caleidoscópica nos diferentes espaços educacionais e, nesta pesquisa, enfocamos os reveses vividos pelas docentes na Educação Infantil.

Como uma etapa que possui especificidades próprias e distintas das demais que integram a Educação Básica, a Educação Infantil atende crianças de até 5 anos de idade, ou seja, um grupo geracional altamente exigente do ponto de vista de sua ação, interação, afeto e expressão nos espaços cotidianos. Todas estas experiências de aprendizagem são realizadas em espaços físicos planejados e necessitam do olhar atento do adulto, portanto, as crianças foram denegadas dessas vivências durante o período em que as instituições funcionaram apenas com atendimento virtual. Neste cenário de isolamento social, ser professora das infâncias trouxe inúmeras incertezas e inseguranças, pois como ser uma professora sem poder estar com as crianças de corpo inteiro? Esta questão diz respeito à dimensão profissional docente e, sobretudo, ao seu reconhecimento no espaço-tempo da relação com as crianças. Além disso, práticas pedagógicas já superadas nos documentos curriculares e na legislação nacional sobre o que fazer com as crianças da Educação Infantil foram reativadas durante o isolamento social e acirraram os momentos de crise no trabalho docente. Para ser presença junto às crianças, o modelo docente disseminado socialmente era composto por videoaulas e exercícios em folhas impressas, justamente o que invalida as experiências de exploração, investigação e interação típicas das crianças na Educação Infantil.

Compreendendo esse aspecto e as rupturas ocasionadas nas práticas de trabalho das docentes, questiona-se em que medida as demandas de trabalho das professoras de Educação Infantil durante o período pandêmico geraram sofrimento e alocaram as docentes à categoria dos destituídos do direito a ter suas vidas preservadas? Judith Butler (2021) evidencia que os sujeitos enlutáveis só possuem direito ao luto na medida em que há o reconhecimento da perda, que, por sua vez, só é válido se há condições para isso, se outros indivíduos reconhecem essa vida. Deste modo, pensar no quanto as vidas docentes foram consideradas e preservadas diante das tarefas que deveriam cumprir é uma forma de compreender o valor da educação em nossa sociedade. Mais do que reivindicar a necessidade da educação num tempo de crise sanitária global, o reconhecimento da docência pode ser percebido quando a opinião pública está orientada por uma ética da solidariedade e pela preservação da vida de todos sem sacrifícios ou violências.

A partir desta compreensão ética, o objetivo principal deste artigo é identificar quais processos de invisibilização são retratados por professoras das infâncias, discutindo o modo com que o não reconhecimento e a ausência de justiça social se expressam como fonte geradora de indiferença e sofrimento. A pesquisa caracteriza-se como qualitativa, compondo-se de um levantamento de artigos no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para mapear as narrativas elaboradas pelas professoras das infâncias sobre suas experiências durante a pandemia e tecer uma leitura hermenêutica e reconstrutiva desses discursos.

Este trabalho divide-se em três seções, para além da introdução e considerações finais. Primeiro, centra-se o foco no mapeamento realizado sobre as narrativas das professoras da Educação Infantil a respeito do seu trabalho durante a pandemia; em seguida, debate-se sobre as condições e estrutura para o desenvolvimento do trabalho docente; por fim, aproximam-se as narrativas encontradas nos artigos selecionados da compreensão de reconhecimento e injustiça de reconhecimento, evidenciando os indícios e as denúncias das invisibilidades docentes.

Um mapeamento das narrativas das docentes das infâncias

Quando enfrentamos o espectro pandêmico e suas reverberações na docência, visualizamos um terreno nebuloso, principalmente quando analisamos as obrigações atribuídas às professoras das infâncias e as renúncias que implicaram em dar conta do processo de aprendizagem sem colocar a vida em risco. As docentes da Educação Infantil foram convocadas a estar com as crianças, se fazerem presentes, mesmo que de forma remota, como um modo de continuidade do seu trabalho, tendo que abdicar, por vezes, de seus princípios e das próprias diretrizes que regulam a oferta de atendimento qualificado às crianças (OURIQUE, LAGE e BUENO, 2019, p. 320). Os instrumentos e estratégias utilizadas para estabelecer esta relação com as crianças e suas famílias tiveram consequências para o sujeito professor, que aumentou suas demandas de trabalho, precisou aprender a manejar ferramentas digitais de produção e comunicação, integrou atividades laborais em seu tempo livre e alterou sua rotina familiar.

Estas questões configuram um cenário altamente danoso para a docência, embora entendido pela opinião pública como um sacrifício necessário diante do tamanho da crise que acometeu a vida neste planeta. Tendo passado alguns anos desde o início da pandemia, consideramos ser possível a investigação sobre os efeitos deixados pelas mudanças ocorridas nesse período no trabalho das professoras da Educação Infantil. Neste sentido, foi realizado um levantamento bibliográfico de artigos no Portal de Periódicos da CAPES, a partir de três descritores: “Trabalho docente”, “Educação Infantil” e “Pandemia". Foram consideradas as publicações realizadas de janeiro de 2020 a agosto de 2023. Concomitantemente, para o refinamento do levantamento, foram estabelecidos alguns critérios de in/exclusão: artigos escritos em língua portuguesa, artigos com foco temático na Educação Infantil e que, indispensavelmente, retratassem a pandemia de Covid-19. Dessa forma, consideramos produções que debateram o modo como esse período reverberou e afetou não apenas as práticas, mas também as vivências e, consequentemente, as subjetividades das docentes.

Tendo como base esse percurso metodológico traçado, foram encontrados inicialmente um montante de 46 trabalhos, distribuídos em: 1 resenha; 3 editoriais; e 42 artigos. Usando como base os critérios estabelecidos previamente, foram excluídos a resenha e os editoriais, sendo considerados apenas os artigos. Além disso, usando como base os critérios de in/exclusão, nessas 42 produções, foram descartados 4 artigos que não correspondiam à área da Educação Infantil e outros 3 escritos em espanhol. Houve ainda outros impedimentos que levaram à exclusão de 4 trabalhos que apareceram repetidos, outros 4 com os links corrompidos e 3 com endereços não encontrados via Periódicos CAPES. Tendo realizado esse refinamento inicial, efetuamos a leitura dos resumos de 20 artigos com o principal intuito de consolidar a mostra de artigos que retratassem os relatos das professoras da Educação Infantil acerca do seu trabalho durante o período pandêmico. Com isso, chegamos a um total de 11 artigos que se aproximavam do nosso interesse de pesquisa.


  1. Quadro de artigos encontrados

Autoria

Título

COSTA, Isabela Aparecida Rodrigues; JOVANOVICH, Jacqueline Oliveira; OLIVEIRA, Marta Regina Furlan de; SILVA, Alex Sander da.

Condições do trabalho docente na Educação Infantil: uma análise crítica em tempos pandemias na cidade de Londrina/PR

SOUZA, Ana Paula Jeitoso de; REALI, Aline Maria de Medeiros Rodrigues.

Construção de práticas pedagógicas na educação básica em tempos de pandemia

LEMES, Luciana da Silva Oliveira; COELHO, Cristina Massot Madeira; FARIAS, Rhaisa Naiade Pael; VELHO, Carollina Helena Michell; MARROQUIM, Moara Vilaça Albuquerque.

Subjetividade e formação docente no contexto da pandemia em um sistema municipal de educação infantil

FERRONATO, Eliane Terezinha Tulio; SANTOS, Helen Thais dos.

Bem-estar e o mal-estar docente: sentimentos e emoções de professores que atuam na Educação Infantil e Ensino Fundamental em tempos de pandemia

SILVA, Fernanda Duarte Araújo; SOUZA, Vilma Aparecida de; NUNES, Hélida Cristina Brandão.

Educação Infantil no contexto da pandemia: novas demandas para o trabalho e a formação docente

ALVES, Kallyne Kafuri; VIEIRA, Maria Niceia de Andrade.

Educação Infantil em tempos de pandemia: contribuições das pedagogias da autonomia e da infância para a formação humana

FERREIRA, Eliane Vanderlei; FRANCISCO, Welington.

Docência durante a pandemia de COVID-19: aspectos metacognitivos de professoras da Educação Infantil

VIEIRA, Lívia Maria Fraga; FACIANO, Bruno Tovar.

Docência na educação infantil durante a

pandemia: percepções de professoras e professores

SOMMERHALDER, Aline; OLIVEIRA, Raiza Fernandes Bessa de; MASSON, Giseli Alcassas.

Educação infantil diante da pandemia causada pela Covid-19:no cenário o programa Rio Preto Educ Ação

VENCENTINI, Dayanne; ZOIA, Elvenice Tatiana; SAITO, Heloisa Toshie Irie; BARROS, Marta Silene Ferreira.

Educação Infantil e desenvolvimento humano no contexto da pandemia: Reflexões a partir da Teoria Histórico-Cultural

GUIMARÃES, Erika Cristina Pereira; SANTOS, Joedson Brito dos.

Planejamento na educação infantil e contexto pandêmico: implicações e desafios

Fonte: Tabela produzida pelas autoras, 2023.

Ao nos debruçarmos sobre os artigos mapeados, notamos alguns indícios de precarização da docência, isso se mostrou nas próprias condições e estruturas de trabalho para o exercício de sua profissão e, também, nas atribuições que eram postas a essas professoras como obrigações que precisavam cumprir, mesmo que se mostrassem extrapolando seu papel docente e suas funções profissionais. Há três divisões estruturantes dos artigos mapeados: 4 dissertam sobre os impactos e desafios dos processos pedagógicos ocasionados pela pandemia; outros 4 tratam das condições de trabalho e formação docente; os últimos 3 artigos evidenciam os impasses da construção e organização de novas práticas pedagógicas diante das demandas ocasionadas pelo momento que se colocava.

Condições e estrutura do trabalho docente frente ao uso das ferramentas digitais

A sobrecarga de trabalho foi uma das grandes questões evidenciadas nos artigos investigados, sendo fortemente apontadas pelas docentes as dificuldades com a realização do trabalho no modo remoto, a obrigação em operar com plataformas e linguagens de programação, na maior parte das vezes desconhecidas. Na pesquisa de Guimarães e Santos (2023, p. 13), ao questionarem as professoras sobre as dificuldades que este período trouxe a elas, foi demarcado o problema com o “Conhecimento tecnológico [...]” e “Adaptação com os conhecimentos da tecnologia e o trabalho remoto com as crianças”. Em outro artigo mapeado, as autoras evidenciam que as docentes “[...] em muitos casos, se veem obrigados a produzir vídeos e materiais de forma solitária e disponibilizá-los em redes sociais e/ou plataformas educacionais [...]” (SOMMERHALDER, OLIVEIRA e MASSON, 2021, p. 3).

Esse cenário de dificuldade e carência evidenciado nos trabalhos investigados foi fortalecido pela ausência de regulamentações e precariedade de estrutura institucional. Oliveira e Junior (2020), ao pesquisarem o trabalho docente em meio à pandemia, apontam as desigualdades que estavam implicadas, explicitando que não houve uma preparação ou suficiente auxílio para que as professoras pudessem dar conta das demandas de melhor forma, o que acarretou sobrecarga de trabalho. Em outro artigo investigado, os autores caracterizam a precariedade do contexto de trabalho docente da seguinte forma:

Os professores tiveram que abrir a porta das suas casas para as crianças e suas famílias entrarem, mesmo que virtualmente. O ambiente particular, que antes era considerado de descanso e refúgio, passou a ser chamado de “home-office”. Mas não foi só isso, o professor disponibilizou ferramentas tecnológicas de uso pessoal como: computador, câmera, microfone, impressora, internet, luz elétrica, mobiliário, entre outros, para que as aulas remotas pudessem acontecer (COSTA et al., 2022, p. 988).

Essas distintas faces da precarização do trabalho docente foram implementadas nos primeiros meses da pandemia e constituíram formas de violação da relação pedagógica, atingindo as subjetividades de professoras e crianças e reforçando um quadro social patológico sobre o tempo de trabalho/descanso, as relações trabalhistas e afetivas, a plataformização da educação, a dependência das telas por crianças e adultos, dentre outras manifestações. Durante esse período, estar conectado era uma espécie de permissão e autorização de que se estava disponível a todo momento, as barreiras de horário de trabalho foram rompidas, não havia nenhum ordenamento legal específico para amparar e garantir às professoras os direitos trabalhistas neste cenário descrito. Tal fato se presentificou nos relatos docentes, em que, tarde da noite, em feriados, fins de semana, precisavam atender às demandas das famílias, das crianças e das próprias tarefas colocadas pelas escolas e pelas mantenedoras. Silva, Souza e Nunes (2022, p. 11) trazem, em sua pesquisa, relatos das docentes afirmando que faziam “[...] atendimento aos pais [pelo aplicativo de mensagens WhatsApp] em qualquer horário que seja: segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo e feriado”; outra entrevistada desta pesquisa diz que “Nosso trabalho aumentou, pois acompanhamos as famílias, as crianças e as demandas da escola por meio do WhatsApp durante todo o dia, inclusive fora dos horários de trabalho e em finais de semana”.

Essas narrativas explicitam a maneira bastante abrupta como uma forma extremamente severa e controladora foi se apossando da rotina de trabalho docente, que incidia na vida familiar e social, na saúde física e mental das professoras. Esse ritmo de trabalho obedece a uma lógica e sentido de sociedade, que é a da intensa produtividade e desempenho, afetando os sujeitos de modo a controlar ou fragilizar sua subjetividade, uma vez que as extensões do humano vão se perdendo e se aproximando das dimensões da máquina, conforme já apontava Byung-Chul Han (2015).

A fragilidade das docentes das infâncias configura-se mais alarmante em um cenário em que precisavam suprir várias demandas de diferentes instâncias, com as famílias, com as crianças, com a instituição de Educação Infantil, com a própria mantenedora e, tudo isso, considerando apenas a dimensão profissional. Concomitantemente, havia as próprias questões da vida pessoal e particular dessas professoras, já que estavam igualmente implicadas, como todos os sujeitos, com as inseguranças, incertezas e medos causados pela ameaça do vírus. Em um dos trabalhos investigados, as narrativas das docentes evidenciam essa vivência de exaustão multidimensional: “[...] não temos apenas as demandas do trabalho, uma vez que estamos em nossa casa. Assim, precisamos também atender às demandas das tarefas domésticas, de estudos e outras” (SILVA, SOUZA e NUNES, 2022, p. 12). Logo em seguida, reforçam a dupla jornada que assumiram no mesmo espaço, uma vez que, na maioria das famílias, o papel social de cuidar da casa ainda é atribuído às mulheres: “[...] é desgastante, porque você está trabalhando e está em casa também. Ou seja, você além de trabalhar o tempo todo, você está em casa lidando com os filhos, lidando com o marido, lidando com a casa. Acaba que gera muito estresse” (Ibidem, 2022, p. 12-13).

É compreendido, diante desse cenário, que não há somente uma precarização do trabalho docente, mas há igualmente expressa uma precarização da vida, da existência. As injustiças foram sentidas em uma perspectiva estrutural, com a ausência de recursos e condições mínimas para o exercício do trabalho, mas as injustiças também aconteceram no plano subjetivo, a partir da invisibilidade das necessidades e fragilidade nos recursos de preservação da vida. A concepção de uma vida não enlutável ou de uma vida inelutável, que é passível de ser descartada e facilmente exposta a forças destruidoras e opressoras, de uma existência não digna de ser preservada, é evidenciada por Butler (2021). Podemos traduzir essa ideia para o campo da docência, pois foi percebido que para as professoras das infâncias foi atribuída a etiqueta dos inelutáveis, da negação do direito à vida, do não reconhecimento, mesmo que a essas tenha sido atribuída a tarefa de salvaguardar as vidas das famílias, das crianças e várias outras.

Ainda que algumas dessas formas de violência já fossem sentidas anteriormente ao período pandêmico, as professoras tinham constituído um apoio entre seus pares, entre outras docentes com quem, cotidianamente, conviviam no ambiente da escola, de modo que haviam estabelecido um elo do reconhecimento. Todavia, o isolamento social gerado pela pandemia de Covid-19 causou a perda dessa rede de apoio, fez com que esses encontros de escuta se esvaíssem. Tal solidão sentida pelas professoras foi fortemente marcada nos artigos mapeados, evidenciando a dificuldade de “enfrentar a perda do espaço de diálogo com seus pares. Apesar de o horário de trabalho pedagógico coletivo continuar ocorrendo, [...] a dinâmica passou a priorizar palestras [...]” (SOUZA e REALI, 2022, p. 8).

Nesse sentido, vislumbramos um contexto em que vai sendo permeado por solidão. Han (2015) afirma que a sociedade do cansaço é geradora de um esgotamento psíquico extremo porque se alicerça na solidão do sujeito. Isso foi justamente o que as professoras da Educação Infantil sofreram durante o período pandêmico. Ao lembrar sobre as oportunidades de formação ofertadas às docentes, com vistas justamente a dar suporte para as demandas trazidas pelo contexto de crise, visualizamos ainda mais desses sentimentos de solidão e desamparo descritos por Han. O processo de formação docente necessita que os saberes da profissão sejam partilhados com os pares, caso contrário, adquire um caráter instrumental que retira do exercício profissional a possibilidade de interação na prática pedagógica, relegando a professora a uma executora de tarefas, apenas. Com isso, o processo de autoconhecimento na profissão também fica interrompido.

Vieira e Falciano (2020, p. 799) destacam que a situação da Educação Infantil “[...] revela-se mais fragilizada, pois o percentual dos que não estavam recebendo formação foi de 41,8% para o conjunto da educação básica”. No trabalho de Silva, Souza e Nunes, as docentes destacam que havia formação em sua escola, mas para a recuperação de dias letivos “[...] será oferecido pela escola um curso de formação na segunda quinzena de novembro para compensar os dias 20 de abril a 15 de maio [de 2020], em que ainda não estávamos no ensino remoto [...]”. Nesse cenário, compreendendo que o modelo emergencial demandou inúmeros saberes, os professores não tiveram suporte técnico necessário ou qualquer planejamento prévio (OLIVEIRA e JUNIOR, 2020, p. 733). As docentes precisaram dominar toda uma gramática nova com um escasso ou nenhum auxílio fornecido pelos órgãos de amparo.

Alinhado às questões apresentadas, foi igualmente observado nos artigos investigados o aumento exponencial do trabalho burocrático a ser desenvolvido. Diversas professoras das infâncias relataram que isso se deu, principalmente, como modo de comprovação de trabalho, não necessariamente exercendo as funções docentes típicas, mas demarcando que estavam de fato cumprindo a carga horária de trabalho. As docentes evidenciaram que “O trabalho ligado diretamente com as crianças diminuiu; porém, o trabalho referente à parte burocrática, voltada ao preenchimento de documentos, aumentou bastante” (SILVA, SOUZA e NUNES, 2022, p. 12).

Em alguns relatos, foi posto que mesmo fazendo encontros síncronos com as crianças, realizando os planejamentos, atendendo as famílias e exercendo as demais funções que já faziam anteriormente à pandemia, em outro formato, ainda era necessário se envolver em atividades mais burocráticas, já que seria um modo de materializar o seu trabalho, havendo uma comprovação efetiva, “[...] havia uma preocupação excessiva no preenchimento de papéis e no trabalho burocrático a fim de servir como comprovantes na justificativa das horas trabalhadas” (LEMES et al., 2022, p. 69). Isso vai refletindo sobre a maneira com que a figura das docentes da Educação Infantil foi sendo tecida publicamente durante o período pandêmico. Parece que a essas foi atribuída uma espécie de inumanidade, em que foram sendo destituídas de sua humanidade para orientar, cuidar e prevenir demandas que surgiram com a crise, como mapeamentos e entregas de kits de alimentação na escola, listas de necessidades de famílias em situação de vulnerabilidade, cuidado esporádico de crianças cujas famílias não tinham rede de apoio, etc. Mesmo que fosse de alguma forma viável, seu trabalho ainda assim era inferiorizado, já que precisavam constantemente comprovar seu papel, como se não estivessem fazendo nada mais que sua plena obrigação.

As justiças interrompidas sofridas pelas docentes

Ainda submergido nessas questões, mesmo que não tão evidente e demarcado como foram postos os dilemas de justiça de reconhecimento, houve igualmente narrativas de justiça interrompida. Nancy Fraser (2022) utiliza a terminologia “justiça interrompida” para se referir a processos de injustiça cultural-valorativa e política-econômica que não são vistos, não são validados e, consequentemente, não são reconhecidos. Essa ausência de justiça se caracterizou como uma das mazelas sofridas pelas docentes durante o período de crise sanitária.

Em alguns dos trabalhos investigados, essas questões emergiram com o rompimento do vínculo empregatício de professoras, em regime de contratação, logo no primeiro ano da pandemia, colocando-as em maior vulnerabilidade durante esse momento já inseguro. Em um dos artigos selecionados nesta pesquisa, há expresso que “após os primeiros 30 dias de pandemia, as professoras contratadas temporariamente foram exoneradas de seus cargos e coube a cada instituição distribuir [...] as turmas que perderam suas professoras.” (LEMES et al., 2022, p. 69). Da mesma forma, o artigo de Silva, Souza e Nunes (2022, p. 15) explicita as manobras trabalhistas das instituições: “uma das professoras entrevistadas nos relatou que atuava como eventual em um turno e como regente do berçário contratada em outro [...] durante o período da pandemia, teve o contrato cancelado, mas, como eventual, continuou o trabalho”.

Logo, os relatos de que as docentes perderam seus vínculos empregatícios e suas fontes de renda em um momento incerto da pandemia configuram, com maior veemência, o cenário de precarização. Além disso, ocorreu uma invisibilização do trabalho e das violências sofridas por essas professoras, alocadas em tramas sociais de injustiças econômicas, de gênero e de classe. Em outros relatos, as ameaças às docentes perduraram por mais tempo, exigindo “[...] além daquilo que os professores poderiam realizar dentro da sua jornada de trabalho, tiraram-lhes a voz com um discurso de perda do emprego ou dos seus salários se não o realizassem” (COSTA et al., 2022, p. 990).

Toda essa intensificação do trabalho, marcada por diversas demandas que deveriam desenvolver, produziu uma forma de injustiça alicerçada em argumentos afetivos para a comoção dessas docentes, em um discurso desagregador para que as professoras dessem conta de algo que não era de sua responsabilidade. Foi propagada a ideia de que só elas poderiam dar conta das famílias e das crianças, que faziam parte de sua obrigação pessoal e profissional amparar esses sujeitos, de uma forma que originalmente se consolida como dever do Estado. Nesse sentido, há um uso político dos afetos, o capitalismo usa justamente essa força como uma de suas ferramentas para desresponsabilização dos órgãos (CAMPELLO, 2022) que, de fato, deveriam estar amparando esses sujeitos, em uma tentativa de delegar a outros indivíduos suas obrigações. Dessa maneira, se insinua que as injustiças sofridas pelas docentes são de diferentes campos e instâncias, são de ordem afetiva, distributiva e de reconhecimento, que formam a teia geradora da precarização e da invisibilização.

Apesar de não ser o foco central da pesquisa, é interessante pontuar que havia presente em alguns trabalhos mapeados uma forte imagem de professora salvacionista. Imersos no discurso de uma docência que abraça tudo e todos, dando conta de tudo que é pedido e imposto, esta imagem da professora por vocação e amor, mesmo que diante do pior dos cenários, precisa atender a todas as demandas que lhes são postas. A categoria das professoras foi fortemente marcada pela ideia de uma profissional que se reinventou, que apesar de tudo teve ganhos. Nas palavras de Ferronato e Santos (2021, p. 283):

Sem sombra de dúvida o professor foi uma das profissões que mais se reinventou durante a pandemia. Superamos várias dificuldades, entre elas o de manter o vínculo com os alunos à distância, principalmente quando muitas destas crianças estão em situação de vulnerabilidade. Mas os professores encararam os desafios, inclusive o uso da tecnologia, e se reinventaram.

Essa defesa se repete em alguns dos artigos selecionados, ora de forma implícita, ora de maneira explícita. Como consequência, as denúncias sobre o mal-estar, a precarização da vida e do trabalho durante a pandemia vão perdendo suas forças, como um final feliz depois de tantas experiências de sofrimento e indiferença. Houve professoras que não sobreviveram e muitas dessas perdas foram geradas pela exposição ao vírus no ambiente da escola.

Essa leitura positiva sobre as experiências epidêmicas reforça a tentativa de apagamento das violências e das injustiças sofridas pelas professoras das infâncias, podendo também ser entendida como uma justificativa para a precarização do seu trabalho. Alex Honneth (2018, p. 198) alerta que “[...] alguém que reifica os seres humanos [...] viola as condições elementares que subjazem ao nosso próprio discurso sobre a moral”. Logo, as contradições discursivas sobre o vivido são apresentadas e naturalizadas pela repetição na esfera pública, dependendo de quem articula ou domina os mecanismos do poder, do trabalho e da linguagem. Em nossa leitura reconstrutiva dos artigos selecionados, a contradição apresenta-se como aglutinadora dos discursos de escassez e oportunidade, pois, ao mesmo tempo em que pontua a precarização do trabalho docente, articula com esforço a indicação de que as professoras da Educação Infantil se reinventaram durante a pandemia. De modo a evitar a reincidência reificante na esfera da pesquisa, é necessário mantermos uma posição de denúncia sobre as injustiças sofridas na docência durante a pandemia, alimentando a perspectiva do reconhecimento e da justiça social como horizonte ético de uma vida enlutável para todos.

Considerações finais

Nesta pesquisa, tínhamos como objetivo identificar quais processos de invisibilização são retratados por professoras das infâncias, discutindo o modo com que o não reconhecimento e a ausência de justiça social se expressam como fonte geradora de indiferença e sofrimento. A partir do levantamento de artigos feitos no Portal de Periódicos da Capes, podemos dizer que, no decorrer da pandemia de Covid-19, houve diferentes manifestações de justiça interrompida, traduzidas na ausência de reconhecimento, de direitos e de respeito às professoras, às crianças e suas famílias. As experiências narradas pelas docentes de injustiça social, desprezo e vergonha são justamente os sintomas do não reconhecimento que acomete a profissão na sociedade contemporânea. Nas narrativas das professoras, tais sentimentos vêm acompanhados de outros como medo, ansiedade, insuficiência e baixa autoestima por não darem conta de todas as demandas colocadas para si. Na opinião pública, o trabalho docente durante a pandemia foi colocado na berlinda sob o argumento de que a educação é um valor que não se pode abrir mão e, por isso, é necessário o sacrifício docente. Assim, a demanda pelo trabalho docente, numa sociedade neoliberal em que dinheiro e poder governam o valor da vida, impregnou na subjetividade auto responsabilização e autoculpabilização, pois era preciso dar conta do trabalho, independente das condições existentes, para corresponder a uma promessa de reconhecimento social futura. As violências praticadas contra a docência são de ordem burocrático-profissional, mas também de ordem jurídica e econômica, vão desde a alta carga de tarefas atribuídas, até a obrigação de realizar tarefas que substituíam o entendimento presencial às crianças (limpeza de materiais e dependências físicas, distribuição de kits de alimentação, orientação das famílias sobre acesso a serviços públicos, etc.).

Logo, quando retomamos a problemática das maneiras com que o trabalho das docentes das infâncias gerou sofrimento a partir das questões e espaços que lhe foram colocados, dos destituídos do direito a uma vida enlutável, deparamo-nos com a face sistêmica da violência. Visualizamos, somada às demandas apresentadas, que a ausência de reconhecimento, as injustiças, a sobrecarga e a precarização do trabalho são fatores que, em conjunto, desencadearam um extremo cansaço emocional para essas professoras, agravado se considerarmos um momento delicado para toda a população. Havia, por si só, um medo excessivo, principalmente pelo Brasil ser um dos grandes epicentros de contaminação por Covid-19, o que intensificou a insegurança de todos, inclusive das docentes.

Refletindo sobre tais aspectos, compreendemos que os processos de invisibilização e injustiça que permearam as docentes são processos de violência neural, como lembra Han (2015), uma violência aniquiladora porque é sistêmica, se prolifera em uma sociedade pacificada e permissiva, nada mais causa estranheza e é confrontado. A pandemia foi uma força impulsionadora dessa violência, principalmente pensando no campo da docência.

Campello (2022) evidencia a necessidade de novas ferramentas que tragam condições e qualidade de justiça. Quando olhamos para o que as docentes expressam e relatam do período pandêmico, fica explícito que a invisibilização é gerada por um processo de carência de reconhecimento e justiça interrompida. Dessa forma, o reconhecimento é indissociável da qualidade de justiça, um depende do outro para que possa vislumbrar um horizonte mais humanizado e com melhores condições para a categoria docente.

Referências

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Data do envio:  01/09/2024.

Data do aceite:  08/10/2024.

Revista Aleph, Niterói, V. 1, Out. 2024, nº 42, p. 1 - 17                ISSN 1807-6211

                   


[1]        Pedagoga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. Integrante do grupo de pesquisa LABFORMA - Laboratório de Formação e Reconhecimento das Infâncias. Email: erikaaleitee@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-0888-423X.

[2]        Doutora em Educação. Professora na Universidade Federal de Pelotas. Coordenadora do grupo de pesquisa LABFORMA - Laboratório de Formação e Reconhecimento das Infâncias. Email: maianeho@yahoo.com.br. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-5042-3648.