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Capa da RevistAleph nº 39.

[Início da descrição da Imagem]

No topo em letras brancas o título: RevistAleph, no canto direito o logo do
periódico.
Abaixo, em letras menores, na cor azul escuro: Revista vinculada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação - FEUFF. Ano 2022. Edição número 39. ISSN
1807-6211.
No centro, em letras brancas título do dossiê: Educação e Democracia, em
tamanho menor: permanências e transformações no mundo contemporâneo.
No fundo a imagem de uma paisagem da Universidade Federal Fluminense,
campus Gragoatá. Sob um céu azul claro, ao longe, vista parcial da Baía de
Guanabara, entrecortada pela ponte Rio-Niterói. Mais a frente árvores e um
gramado verde escuro. Em um plano mais próximo a imagem de duas corujas
pousadas numa mureta. Um raio de sol em diagonal ilumina parcialmente a
paisagem.
No rodapé, em letras miúdas: Revista com Licença Creative Commons CC; By; SA.
Endereço: Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n. Bloco D -
Faculdade de Educação. Sala 536. Telefone: 55 (21) 2629-2706. E-mail:
aleph.ese@id.uff.br. Endereço eletrônico: https://periodicos.uff.br/revistaleph.
Facebook: RevistAleph.

[Fim da descrição da imagem]

RevistAleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro - 2022 - ANO XIX- Nº 39

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF
R454Revista Aleph / Universidade Federal Fluminense, Faculdade de
Educação. - Ano 1, n. 1 (jun. 2004). - Niterói: ESE/UFF, 2004- .

Dois números por ano (fev., nov.): ano 19, n. 39, nov. 2022 .
Irregular: ano 1, n. 1, jun. 2004 -ano 5, n. 15, ago. 2011.
Modo de acesso: World Wide Web.
Disponível em: http://revistaleph.uff.br

ISSN: 1807-6211

1. Educação. 2. Ensino. I. Universidade Federal Fluminense. Faculdade
de Educação.

CDD 370

RevistAleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro - 2022 - ANO XIX- Nº 39

CONSELHO DE POLÍTICA EDITORIAL
Dr. Allan Damasceno, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Dra. Bruna Molisani F. Alves, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Sec. Mun. de Ed. de Duque de Caxias
Dra. Carmen L. Vidal Perez, Universidade Federal Fluminense
Dra. Carmen L. Guimarães de Mattos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dra. Eugenia Luz Foster, Universidade Federal do Amapá
Dra. Estela Scheinvar, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dra. Lisete Jaehn, Universidade Federal Fluminense
Dra. Mairce da Silva Araujo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dra. Maria Tereza Goudard Tavares, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dra. Márcia Denise Pletsch, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Dra. Marília Etienne Arreguy, Universidade Federal Fluminense
Dra. Mônica Pereira dos Santos, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dra. Mônica Vasconcellos, Universidade Federal Fluminense
Dra. Paula Almeida de Castro, Universidade Estadual da Paraíba
Dra. Francisca Geny Lustosa, Universidade Federal do Ceará
Dra. Rosane Barbosa Marendino, Universidade Federal Fluminense
Dra. Rosângela Branca do Carmo, Universidade Federal de São João Del-Rei

CONSELHO EDITORIAL NACIONAL
Dra. Adriana Mabel Fresquet, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dra. Carmen L. Guimarães de Mattos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dra. Celia Frazão Soares Linhares, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Dra. Eliana Yunes, Pontificia Universidade Católica - RJ
Dra. Lisandra Ogg Gomes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dra. Ludmila Thomé Andrade, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dra. Maria Alice Rezende, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dra. Maria Elizabeth de Barros, Universidade Federal do Espírito Santo
Dra. Mylene Cristina Santiago, Universidade Federal de Juiz de Fora
Dra. Mônica Pereira dos Santos, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dr. Nelson de Luca Pretto, Universidade Federal da Bahia
Dra. Rita de Cássia Morem Cóssio Rodriguez, Universidade Federal de Pelotas
Dr. Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, Universidade Estadual de Campinas
Dra. Wilma Favorito, Instituto Nacional de Educação de Surdos - RJ

CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL
Dra. Maria Nazareth Trindade, Universidade de Évora (PORTUGAL)
Dra. Adriana Püiggrós, Univerdidad de Buenos Aires (ARGENTINA)
Dra. Maria do Céu N. Roldão, Universidade do Minho (PORTUGAL)
Dra. Thamy Ayouch, Université Lille III, Paris VII (FRANÇA)
Dr. Nicanor Rebolledo Recendiz, Universidad Pedagógica Nacional (MÉXICO)
Dr. Juan Espejo Cornejo, Universidad del Bio Bio, (CHILE)
Dra. Isabel Maria da Cruz Lousada, Universidade Nova de Lisboa (PORTUGUAL)
Dra. Natalie McGuire-Batson, Social History and Community (ESTADOS UNIDOS)

EQUIPE EDITORIAL
I

EDITORAS CHEFES
Dra. Érika Souza Leme, Universidade Federal Fluminense
Dra. Nazareth Salutto, Universidade Federal Fluminense
Dra. Rejany dos S. Dominick, Universidade Federal Fluminense
Dra. Walcea Barreto Alves, Universidade Federal Fluminense

EDITORAS DE ACESSIBILIDADE E INCLUSÃO

Dra. Dagmar Mello e Silva, Universidade Federal Fluminense
Dra. Érika Souza Leme, Universidade Federal Fluminense

BOLSISTAS 2022
Maria Paula G. Magalhães, Universidade Federal Fluminense
Renata Juliana José Paixão, Universidade Federal Fluminense
Jullia Geraldo Assumpção, Universidade Federal Fluminense

ESTAGIÁRIA DE LÍNGUA PORTUGUESA 2022
Júlia Martins Flôres de Oliveira, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

CAPA

Idealização – Comissão editorial
Produção Gráfica – Revista Aleph usando o CANVA (disponível em
https://www.canva.com/pt_br/)
Imagens: Foto de Renata Juliana José Paixão

DIAGRAMAÇÃO DESTE VOLUME
Maria Paula G. Magalhães
Renata Juliana José Paixão
Jullia Geraldo Assumpção
Júlia Martins Flôres de Oliveira

REVISÃO ORTOGRÁFICA DOS TEXTOS E DECLARAÇÃO DE ORIGINALIDADE
Responsabilidade dos autores

RevistAleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro - 2022 - ANO XIX- Nº 39

EQUIPE EDITORIAL
II

Adriana Campani, Universidade Estadual Vale do Acaraú
Adriane Matos de Araújo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Carlos Samuel Rossi, Universidade Estadual Paulista
Clairen Angélica Santiago de Oliveira, Universidade Federal de São Carlos
Cristina Angélica A. de C. Mascaro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Dagmar Mello e Silva, Universidade Federal Fluminense
Danúsia Lago, Universidade Federal da Bahia
Disneylândia Maria Ribeiro, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Erika Souza Leme, Universidade Federal Fluminense
Estela Scheinvar, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Helder Molina, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Jaqueline Luzia da Silva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Jordanna Castelo Branco, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Lucimar Rosa Dias, Universidade Federal do Paraná
Luiza Alves de Oliveira, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Nathália Souto Gomes, Universidade Federal Fluminense
Nazareth Sallutto, Universidade Federal Fluminense
Nicanor Rebolledo Recendiz, Universidad Pedagógica Nacional
Paola Regina Carloni, Universidade de São Paulo
Rafaela Louise Silva Vilela, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rejany dos Santos Dominick, Universidade Federal Fluminense
Renato Pontes Costa, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rita de Cássia de Oliveira E Silva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Ruth Maria Mariani Braz, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, Universidade Estadual de Campinas
Tiago Ribeiro, Instituto Nacional de Educação de Surdos
Walcea Barreto Alves, Universidade Federal Fluminense

III

RevistAleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro - 2022 - ANO XIX- Nº 39

AVALIADORES

IV

;

INFORMAÇÕES PARA AUTORES

Deseja enviar contribuições à revista? Convidamos todos a conferir a seção Sobre a revista e ler as

políticas das seções disponíveis, bem como as Diretrizes para autores. Solicitamos que os artigos

tenham entre 6.000 e 9.000 palavras, incluindo as referências, notas e anexos.

Todos autores devem ser cadastrados individualmente, incluindo todos os dados solicitados pelo

sistema, antes da submissão do artigo. Depois do cadastro de todos, o primeiro autor deve acessar o

sistema e realizar o processo de 5 passos de submissão. Não deixe de informar ORCID e ORCID ID de

cada autor. Caso o sistema não esteja aceitando, exclua o S do final, pois esse é um problema de

atualização do OJS.

Não se esqueça de passar o artigo pelo https://copyspider.com.br/main/pt-br/download, fazer a

revisão ortográfica e das referências. Esse processo encurta o período necessário para avaliação do

artigo.

Coloque no Modelo para publicação (baixe para editar):

https://drive.google.com/file/d/1RhwjtM5cYXbD28oqs08HHUtTz9Fpb4f-/view?usp=sharing

A Revista não tem fins lucrativos. A submissão e o acesso aos artigos são gratuitos, dentro da política

do Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER). Os autores devem arcar com os custos de

revisão .

Não temos profissionais revisores. O contato e custeio desse profissional deve ser providenciado

pelos autores.

A RevistAleph é vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF.

RevistAleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro - 2022 - ANO XIX- Nº 39

NORMAS DE FORMATAÇÃO PARA ENVIO DE ARTIGOS
Papel:
Formato A4 Margens: Todas as margens 3 cm.

Artigos em Espanhol devem conter título, resumos e palavras-chave em Inglês e Português.
Título: Em Português e Inglês, em sequência. Centralizados, espaço simples, negrito, Calibri 14, em CAIXA
ALTA. Espaço entre os títulos e entre o em Inglês e os autores: 1,5, tamanho 12.
Sub-títulos: (O que inicia as partes do texto): em negrito, Calibri 12, dois espaços após o item anterior e um
espaço antes do parágrafo seguinte. Norma culta da língua. Usar controle de linhas órfãs e manter com o
próximo.
Autor (es): (Não esqueça de suprir o nome dos autores em “manuscrito” – arquivo que será enviado para
avaliação cega): Parágrafo simples: alinhamento à direita. Sem espaço entre dois ou mais autores. Fonte:
Calibri 12. Incluir nota biográfica de rodapé com a formação do autor, área de pesquisa; instituição de origem e
e-mail (Calibri 10 – justificado).
Resumos: (Obrigatórios no “manuscrito” – arquivo submetido para avaliação): em Português e em Inglês. Um
terceiro pode ser enviado em outra língua opcional, com até 800 caracteres (com espaço), em espaço simples,
sem citações e parágrafo único. Colocar um espaço simples entre autor e resumo. Fonte: Calibri 12.
Palavras-chave: 3 a 5, em português e outra língua. Começar por letras maiúscula e separadas por pontos.
Parágrafo: espaço simples. Fonte: Calibri 12. Seguida do resumo, com espaço. Ex. Escola. Cultura. Inclusão.
Corpo do texto: Parágrafo Justificado; Recuo da primeira linha do parágrafo: 1,5; Fonte: Calibri/ tamanho 12;
Espaçamento: 1,5, sem espaço antes ou depois;
Citações: Até 3 linhas, no corpo do texto com aspas. Mais de três linhas: em parágrafo recuado, à direita, em 4
cm da margem esquerda, espaço simples sem aspas. Incluir um espaço simples antes e depois. Fonte: Calibri
/tamanho 11. Seguir Norma ABNT 10520, disponível em
https://www.tccmonografiaseartigos.com.br/regras-normas-formatacao-tcc-monografias-artigos-abnt.
Notas no rodapé: Tamanho 10, justificadas. Calibri, espaçamento simples,
Gráficos e Imagens: Incluir numeração e título acima. Incluir fonte abaixo.
Descrever as figuras e gráficos, utilizando-se da ferramenta de texto alternativo.
Orientações (passo-a-passo):
Sobre a imagem, clique no botão "Editar Texto Alt”.
Na lateral à direita, aparecerá uma caixa onde você poderá descrever a figura.
Importante: A quantidade de caracteres para essa descrição não será contabilizada no total de caracteres
permitidos para a submissão de trabalhos.

Referências: Apenas para autores citados e segundo normas da ABNT, Calibri, tamanho 11, espaço simples,
com espaço de uma linha antes de cada obra citada. Justificado.
Arquivo da submissão: Em formato DOC ou ODT, sem autores. Faça a revisão da língua portuguesa.

Formatação do artigo de acordo com o template da Revista disponível em:
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DIRETRIZES PARA AUTORES
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Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por
esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
REVISÃO ORTOGRÁFICA E DE NORMAS DA ABNT
São responsabilidade dos autores. A revista não tem verba para custeio, nem dispõem de profissional da área.
Artigos com muitos erros ortográficos serão imediatamente recusados.

V

RevistAleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro - 2022 - ANO XIX- Nº 39

SUMÁRIO

EXPEDIENTE I
AVALIADORES III
INFORMAÇÕES PARA AUTORES IV
NORMAS DE FORMATAÇÃO PARA ENVIO V

EDITORIAL

EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA: PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
Erika Leme, Nazareth Salutto, Rejany Dominick, Renata Paixão e Walcea Alves 8

AUTOR CONVIDADO

30 ANOS DA ECOPEDAGOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE ORIGEM E REINVENÇÃO
Ivo Dickmann 14

DOSSIÊ TEMÁTICO

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS, RETROCESSOS
E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
Nelma Alves Marques Pintor 27

O MURMÚRIO CONSERVADOR. NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM ESTUDO
DE SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO
Gabriela Rodríguez Bissio 45

INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS EM
DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E VIGOTSKI
Rodrigo Torquato da Silva, Fábio Rodrigues e Willian Alencar 66

DE UMA MÁQUINA A OUTRA: POLÍTICAS ATUAIS DE SUJEIÇÃO SOCIAL E
DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO BRASIL EM TEMPOS DE
CRISTÃOCRACIA
Andreia Alves Monteiro de Castro e Luciana Pires Alves 86

EXPERIÊNCIAS INSTITUINTES

ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS
PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA
Mariana Sá Alcantara Gomes e Cláudia Helena Martins Frias 109

Revista Aleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro. 2022 - ANO XIX - Nº 39

DO SILÊNCIO DOÍDO A UMA ESCRITA DE MUITOS FIOS: PARTILHAS, DESAFIOS E
AFETAÇÕES NAS PRÁTICAS DE PESQUISA ACADÊMICA
Wallace Araujo de Oliveira, Angela Maria Carneiro Silva, Bruna Tibolla Mohr, Daniel
Vitor Gomes de Sousa, Hebert Silva dos Santos, Isadora Gonçalves Duque Mendes,
Loíse Lorena do Nascimento Santos, Otávio Vendramin dos Santos, Priscila Sá da
Silveira e Rafaella Nóbrega Esch de Andrade 128

SUPERANDO AS FRONTEIRAS VIRTUAIS: A INTERAÇÃO HUMANA COMO
FERRAMENTA DE ALCANCE E ATENDIMENTO A ALUNOS COM COMPORTAMENTO
SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL
Ailana de Sousa Bezerra, Sonia Regina Alves Nogueira, Alice Akemi Yamasaki e
Fernanda Serpa Cardoso 148

PULSAÇÕES E QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS

DA GULA ALIMENTAR À TECNOLÓGICA: REFLEXÕES REDUTORAS DE DANOS DIANTE
DA SOCIEDADE DO CONSUMO
Francisco José Figueiredo Coelho, Georgianna Silva dos Santos e Maria de Lourdes da
Silva 169

Revista Aleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro. 2022 - ANO XIX - Nº 39

CAPA: EDITORIAL

Início da descrição da imagem: Folha azul claro com a logomarca da Revista Aleph sob
a forma de marca d'água. A marca d'água é uma imagem sombreada que, apesar da
transparência, torna possível visibilizar a sua presença sem impedir a visão da imagem
ou escrita que fica sobreposta a essa imagem. O logo da Revista é o grafema da letra
Aleph que é a primeira letra do alfabeto grego. Centralizado na página está a frase em
letras cursivas no mesmo tom de azul das margens: Editorial

Revista Aleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro. 2022 - nº 39

EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA: PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES NO
MUNDO CONTEMPORÂNEO

EDUCATION AND DEMOCRACY: PERMISSIONS AND TRANSFORMATIONS IN
THE CONTEMPORARY WORLD

Erika Leme1

Nazareth Salutto2

Rejany Dominick3

Renata Paixão4

Walcea Alves5

A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto6

Darcy Ribeiro

Como sociedade, temos clareza dos riscos advindos de uma possível ruptura do

processo democrático? Quando a democracia está em risco de ruptura é possível tecer a

educação como um projeto de sociedade? Sem educação pode haver democracia?

Hoje, 05 de outubro de 2022, quando as primeiras linhas deste editoral são tecidas,

celebra-se o aniversário da Constituição Federal de 1988. Dentro do contexto de tantas lutas

por direitos, esse documento se coloca como um marco de referenciais basilares para que a

democracia seja o cerne das políticas e práticas em nossa sociedade. Neste contexto, os

6 Frase emblemática do pesquisador brasileiro, proferida no Congresso SBPC, em 1977, cujo título foi “Sobre o
óbvio”.

5 Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Educação.
Professora Adjunta. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano (PPGMC/UFF).
E-mail: walceaalves@id.uff.br Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8294-917X

4 Designer de moda (Anhanguera), Designer Gráfica (Microlins), graduanda em Pedagogia (Universidade Federal
Fluminense), e bolsista da Revisa Aleph (Revista vinculada ao Programa de Pós Graduação em Educação -
FEUFF). Email: renatapaixao@id.uff.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6658-2777

3 Doutora em História, Filosofia e Educação (UNICAMP). Professora, extensionista e pesquisadora da Faculdade
de Educação da UFF e do Curso de Mestrado em Diversidade e Inclusão do Instituto de Biologia-UFF. 1ª
Secretária da Associação Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica, coordenadora de
área do PIBID-UFF Pedagogia - Niterói 2022 e Editora da Revista Aleph. E-mail: rejany_dominick@id.uff.br Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-0456-4201

2 Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Educação
Brasileira (PUC-Rio). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Infância, Bebês e Crianças
(GERAR). Editora da Revista Aleph. E-mail: m_n_salutto@id.uff.br ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8043-595X

1 Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em
Educação (UFF). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas LaIFE - Laboratório de Inclusão, Formação Cultural e
Educação. Membro da AIIIIPE - Associação Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica.
Editora da Revista Aleph. E-mail: erikaleme@id.uff.br ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8088-6002

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 8 - 12 ISSN 1807-6211
8

Leme, Salutto, Dominick, Paixão e Alves

termos Educação e Democracia, que são os pilares desse número, que concretizamos ainda

no meio de um processo eleitoral, nos convoca à reflexão sobre o próprio sentido de ser e

existir de uma sociedade democrática. Mas, como seria essa sociedade democrática nos

tempos atuais, visto que o conceito de democracia é uma construção sócio-histórica?

O período pandêmico revelou as diferentes exclusões que estávamos e estamos

vivenciando no Brasil e no mundo. No ano de 2022, em especial no campo da educação,

reafirmamos tempos de muitos reencontros, de re-ocupação dos espaços físicos onde se

corporificam as vivências de ensinar aprendendo e aprender ensinando; fortalecendo a

grande potencialidade de, a partir de uma visão progressista, vivenciarmos a grande festa da

democracia. Mas, no sentido dialético em que flui a vida, 2022 também vem sendo um ano

de angústias e tensões frente ao contexto de esgarçamento sócio-político e de afronta à

Carta Magna de 1988.

As sistemáticas e perversas intervenções do atual governo da união, por meio de

discursos aparentemente contraditórios, mas que no seu cerne acenam ao totalitarismo via

interpretações, tensionam as quatro linhas da constituição. Como tais discursos são

implementados na tessitura político-social brasileira, mas também em outros espaços

mundiais. A deterioração paulatina das políticas públicas e das instituições democráticas por

meio de cortes e congelamentos de verbas e desmonte de órgãos que implementavam

políticas visando a equidade de acesso à população pobre, negra, feminina à tem produzido

uma nefasta exclusão. As escolas públicas de todos os níveis de educação e ensino sofrem

impactos que vão desde o congelamento do valor unitário para a merenda escolar até a

implementação da BNCC que esvazia o ensino médio de disciplinas ligadas à formação do

pensamento artístico e crítico.

Para Lalande (1993)7 Democracia é o “Estado político no qual a soberania pertence à

totalidade dos cidadãos, sem distinção de nascimento, de fortuna ou de capacidade” (p.

238). Democracia não se esgota no exercício de ir às urnas votar em nossos governantes, o

que é importante, sem dúvida. Mas significa a participação ativa na geração de políticas que

atendam a população como um todo, sem a criação de privilégios para aqueles que já

participam de forma privilegiada da estrutura social com maior acesso a bens culturais e

7 LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Também disponível
em https://www.skoob.com.br/livro/pdf/vocabulario-tecnico-e-critico-da-filosof/livro:149743/edicao:166956.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 8 - 12 ISSN 1807-6211
9

EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA: PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES NO
MUNDO CONTEMPORÂNEO

materiais. Uma democracia nunca está pronta! Mas, é preciso que o Estado e seus gestores

se percebam como a serviço da população e se ocupem de garantir estruturas que

possibilitem a equidade de acesso.

O Estado Democrático, responsável pela implementação de políticas sociais

constituídas a partir do debate público e das demandas da população, é aquele que tem

como sentido a representatividade do povo e não a soberania de alguns. O que temos visto

nos últimos anos é o desmonte do Estado, das políticas públicas, a precarização dos serviços

públicos e a reapropriação do Estado para fins privados.

Este número da Revista Aleph conta com artigos de autores que, diante do cenário

contemporâneo, apontam críticas e caminhos para seguirmos esperançando e lutando por

direitos. Em sintonia com a temática, as corujas da capa dessa edição - fotografadas no

campus da UFF Gragoatá, em Niterói/RJ, por Renata Paixão, estudante de Pedagogia e

bolsista da revista - representam o símbolo da sabedoria da deusa Minerva, bem como a

logo do curso de Pedagogia, locus privilegiado dos debates sobre educação e formação

docente em nossa universidade. Escolhemos esse registro como metáfora que ratifica nosso

compromisso e engajamento com os processos democráticos

Inicia esta publicação, o artigo do autor convidado Ivo Dickmann, no qual apresenta

análise dos 50 ANOS DA ECOPEDAGOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE ORIGEM E REINVENÇÃO, no

qual há resgate das elaborações sobre o pensar-fazer sobre o processo que está em curso de

reinvenção e reestabelecimento de novas bases teóricas e práticas desta proposta diante dos

desafios do tempo atual em que vivemos.

Abrindo o Dossiê Temático temos o artigo, EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA: REFLEXÕES

SOBRE AVANÇOS, RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO

BRASIL, que aborda a necessidade da educação inclusiva para a participação individual e

coletiva das pessoas com deficiência nos rumos da democracia no país. Há, também, o texto

O MURMÚRIO CONSERVADOR: NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM ESTUDO DE

SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO, artigo que aborda a pesquisa na

perspectiva apresentada por pesquisadores Uruguaios sobre as produções discursivas a

respeito da educação no país, onde há avanços de propostas conservadoras.

O artigo INTELIGÊNCIA BANDIDA: ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS EM

DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E VIGOTSKI parte da leitura de mundo e experiência dos

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 8 - 12 ISSN 1807-6211
10

Leme, Salutto, Dominick, Paixão e Alves

autores na educação popular nas favelas brasileiras aprofundando teoricamente a

problemática que emerge como conceito: INTELIGÊNCIA BANDIDA. Esta nasce do resultado

de experiências de classes que se forjaram à revelia das conformações mais cruéis impostas

às Classes Trabalhadoras das Favelas, pelo capitalismo.

DE UMA MÁQUINA A OUTRA POLÍTICAS ATUAIS DE SUJEIÇÃO SOCIAL E

DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO BRASIL EM TEMPOS DE CRISTÃOCRACIA,

discute a evangelização midiática e a reconversão da sociedade brasileira, no período

recente, em uma nação evangélica ou cristãocracia.

Em ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E

ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA, é apresentado um relato de

experiência com base na observação de aulas no curso de Pedagogia. Identifica-se o

distanciamento entre a bagagem cultural dos alunos e a expectativa do corpo docente. O

artigo intitulado DO SILÊNCIO DOÍDO A UMA ESCRITA DE MUITOS FIOS: PARTILHAS,

DESAFIOS E AFETAÇÕES NAS PRÁTICAS DE PESQUISA ACADÊMICA, trás reflexões

experienciadas ao longo de uma oficina de construção de textos para artigos, no contexto de

um Programa de Pós-Graduação.

SUPERANDO AS FRONTEIRAS VIRTUAIS: A INTERAÇÃO HUMANA COMO FERRAMENTA

DE ALCANCE E ATENDIMENTO A ALUNOS COM COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE

O ISOLAMENTO SOCIAL, apresenta debate sobre as transformações do mundo causadas pela

pandemia da Covid-19 e suas consequências para as relações intra e interpessoal de alunos

com comportamento superdotado, atendidos em Curso de Férias organizado por um grupo

de pesquisa.

Em Questões contemporâneas, o artigo DA GULA ALIMENTAR À TECNOLÓGICA:

REFLEXÕES REDUTORAS DE DANOS DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO expressa a relação

da juventude atual com a frequente aquisição de novas tecnologias para informação e

comunicação para diversas finalidades, apresentando argumentos para se pensar uma

educação para a gula tecnológica.

A educação, em seus espaços institucionais de saberes e fazeres, se constitui como

campo privilegiado para o exercício crítico e a abertura à diversidade, tratando de temas que

podem estar excluídos ou destituídos do contexto escolar. A possibilidade de refletir e pensar

com o outro corrobora a experiência democrática, que se compõe de modo relacional,

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 8 - 12 ISSN 1807-6211
11

EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA: PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES NO
MUNDO CONTEMPORÂNEO

intencional e estratégico.

Aos autores e autoras que contribuíram com suas reflexões e posicionamentos,

manifestamos nossos sinceros agradecimentos.

Aos leitores, desejamos reflexões que favoreçam a defesa da democracia e da

educação.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 8 - 12 ISSN 1807-6211
12

CAPA: AUTOR CONVIDADO
Início da descrição da imagem: Folha azul claro com a logomarca da Revista Aleph sob a
forma de marca d'água. A marca d'água é uma imagem sombreada que, apesar da
transparência, torna possível visibilizar a sua presença sem impedir a visão da imagem ou
escrita que fica sobreposta a essa imagem. O logo da Revista é o grafema da letra Aleph
que é a primeira letra do alfabeto grego. Centralizado na página está a frase em letras
cursivas no mesmo tom de azul das margens: Autor convidado.

Revista Aleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro. 2022 - nº 39

30 ANOS DA ECOPEDAGOGIA:
BREVE ENSAIO SOBRE ORIGEM E REINVENÇÃO

30 YEARS OF ECOPEDAGOGY:
BRIEF ESSAY ABOUT ORIGIN AND REINVENTION

Ivo Dickmann8

Resumo: Esse ensaio é uma introdução à Ecopedagogia e ao processo que está em curso de
reinvenção e estabelecimento de novas bases teóricas e práticas, diante dos desafios do
tempo atual em que vivemos. Partindo da leitura aprofundada e da discussão de teóricos
que identificamos como originários, buscamos responder a uma questão: o que é a
Ecopedagogia? Para responder à pergunta, o texto foi dividido em três partes: 1) sobre as
origens latino-americanas da Ecopedagogia, há 30 anos; 2) os caminhos da Ecopedagogia ao
longo dos seus 30 anos; 3) o processo de reinvenção da Ecopedagogia com base nos três
pilares de crítica: o patriarcado, a modernidade e o capitalismo. Encerramos o ensaio com
um conjunto de proposições para uma caminhada coletiva visando a constituição da
Ecopedagogia como campo de investigação.

Palavras-chave: Ecopedagogia. Origem. Reinvenção.

Abstract: This essay is an introduction to Ecopedagogy and the ongoing process of
reinvention and establishment of new theoretical and practical bases, given the challenges of
the current time in which we live. Starting from an in-depth reading and discussion of
theorists we identify as originating, we seek to answer a question: what is Ecopedagogy? To
answer the question, the text was divided into three parts: 1) on the Latin American origins
of Ecopedagogy 30 years ago; 2) the paths of Ecopedagogy throughout its 30 years; 3) the
process of reinventing Ecopedagogy based on the three pillars of criticism: patriarchy,
modernity and capitalism. We close the essay with a set of propositions for a collective
journey aiming at the constitution of Ecopedagogy as a field of investigation.

Keywords: Ecopedagogy. Origin. Reinvention.

8 Pós-doutor em Educação pela Uninove-SP, doutor e mestre em educação pela UFPR. Graduado em Filosofia.
Professor do Programa de Pós-graduação em Educação (mestrado) e do Programa de Pós-graduação em
Ciências da Saúde (mestrado e doutorado) da Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó.
Líder do Palavração: grupo de pesquisa em educação. E-mail: educador.ivo@unochapeco.edu.br ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6293-8382

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Dickmann

Primeiras palavras: marco zero

O tema da Ecopedagogia não é uma questão fácil, geralmente me fazem a mesma

pergunta: Afinal, o que é a Ecopedagogia? Ou ainda, de outra forma, uma que também é

muito recorrente: Quais as diferenças entre Ecopedagogia e Educação Ambiental?

Este breve ensaio é uma tentativa de responder a estas perguntas – o que acredito

que seja uma tarefa para mais de um texto, como venho explicitando nos momentos em que

sou chamado para falar sobre a temática. A reinvenção da Ecopedagogia é uma missão que

assumimos para a vida inteira, além do mais, não se faz isso sozinho, mas num trabalho

coletivo, de muitas mãos, de homens e mulheres que se debruçam, de forma sistemática,

sobre o estudo das suas origens (parte um), de sua trajetória com seus autores e obras de

referência (parte dois) e, por fim, a explanação do processo, que ousamos iniciar em meados

de 2017, de reinvenção da Ecopedagogia depois de vinte anos de um quase esquecimento

do tema (parte três).

Assim se constitui o itinerário da reflexão que buscamos neste ensaio, escrito

especialmente para a Revista Aleph que propõe nesse número discutir o tema Educação e

Democracia: permanências e transformações no mundo contemporâneo.

O que caracteriza a Ecopedagogia? Aos neófitos e neófitas que pretendem

conhecê-la, espero que neste texto os leitores e leitoras tenham aqui uma chave inicial para

entrar na sua história e trajetória e se sentirem instigados a seguirem pesquisando sobre a

temática – sem querer construir uma “igrejinha ecopedagógica” de forma proselitista, ou

buscar seguidores, mas sim, como um semeador que espalha as sementes em solo fértil.

De modo prático, para darmos a devida importância que o tema necessita, temos um

grupo de pesquisa, o Palavração, que se encontra quinzenalmente para estudar capítulo por

capítulo da obra capital de Francisco Gutiérrez e Cruz Prado sobre a temática: Ecopedagogia

e cidadania planetária. Esse movimento tem como foco a esperança de que possamos

compreender melhor as perspectivas dos autores, aprofundando nossos saberes para

podermos dar nossa contribuição de forma consistente a esse pensamento latino-americano,

de modo rigoroso cientificamente e, ao mesmo tempo, realizando um exercício prático de

ternura e intuição, majoritariamente feminino, que fazemos coletivamente nos encontros.

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30 ANOS DA ECOPEDAGOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE ORIGEM E REINVENÇÃO

Não estamos postulando que essa é a melhor maneira de estudar a Ecopedagogia,

mas acreditamos que com esse rigor, especialmente nessa fase inicial, precisamos retomar as

obras de referência para compreendermos melhor o que não foi percebido na primeira

leitura. É preciso destacar aspectos e conectá-los às pesquisas que estamos conduzindo, seja

na iniciação científica, nas monografias, nos mestrados, nos doutorados ou nos

pós-doutorado. Além disso, estamos reunindo um conjunto de outras referências em

português, espanhol e inglês que ainda serão objeto de análise e reflexão para a produção da

Ecopedagogia nesse tempo de permanências e transformações do mundo atual: um novo

tempo.

1. Origens da Ecopedagogia

A Ecopedagogia começou a ser pensada e desenvolvida nos anos de 1990, mais

especificamente em 1992 (30 anos, em 2022), na Costa Rica com Francisco Gutiérrez e Cruz

Prado (2013) e no Brasil a tradução do livro se deu no final da década de 1990. No início do

ano 2000, surge a obra de Moacir Gadotti: Pedagogia da Terra. Estes dois livros inauguram o

que hoje chamamos de Ecopedagogia, tanto que não é possível produzir ou falar sobre o

tema sem passar por esses escritos. Ao mesmo tempo, numa herança ligada à Teologia da

Libertação, dois livros de Leonardo Boff se destacam: Saber Cuidar e Ecologia: Grito da Terra,

Grito dos Pobres.

O surgimento da Ecopedagogia, por ser recente, é muito fácil de ser delimitado e nos

garante certa condição de perceber sua potencialidade e, ao mesmo tempo, aspectos

limitadores. Seu potencial está na nova visão de como aprendemos e como nos relacionamos

com o Planeta Terra – o que acontece de forma simultânea –. Assim, a Ecopedagogia se

apresenta como uma nova forma de aprendizado conectado com o cotidiano, provavelmente

pela grande influência de Paulo Freire (1996) que afirmou que o processo gnosiológico é um

fazer que se dá de forma mais eficiente quanto mais perto estão os sujeitos e o objeto do

conhecimento. Explicitando de outra forma, afirmou ele, na Pedagogia da Autonomia (1996),

que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as condições dialógicas para a

produção de novos conhecimentos.

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Identificados os autores e autora de referência (GUTIÈRREZ, PRADO, GADOTTI e

BOFF) e sabendo de sua principal influência teórica (FREIRE), pode-se estabelecer também

que a Ecopedagogia é tributária da Carta da Terra, pois ela emerge e se consolida como uma

produção teórica e pedagógica, mas também como uma filosofia latino-americana que se

apresenta ao mundo.

É importante, contudo, destacar algumas diferenças entre elas. A primeira é que a

Carta da Terra se torna um documento mais universalizante que os princípios da

Ecopedagogia. Outra diferença, que me parece importante registrar, é que a Carta da Terra

está centralmente preocupada com a relação sociedade-ambiente, enquanto a Ecopedagogia

tem uma preocupação centrada na relação sujeito-conhecimento do mundo. Essas

diferenças não significam que uma é mais importante que a outra, mas explicitam que o foco

dado na produção do documento Carta da Terra e na produção da nova abordagem da

cidadania planetária (Ecopedagogia) são próximos, mas distintos.

Aliás, a Ecopedagogia também produziu a sua Carta. No encontro internacional em

São Paulo, no Instituto Paulo Freire, em 1999, foi criado o movimento pela Ecopedagogia e

escrita a “Carta da Ecopedagogia: em defesa de uma Pedagogia da Terra” (GADOTTI, 2001).

Ela é orientada por dez princípios fundamentais:

1) a Terra é um organismo vivo, em evolução, interdependente com os seres vivos;
2) é necessário mudar o paradigma econômico para um desenvolvimento justo, equitativo na
direção do bem-estar sócio-cósmico;
3) dependência da sustentabilidade econômica e ambiental a uma consciência ecológica e
educativa;
4) consciência de pertencimento a uma única comunidade de vida gera solidariedade e cidadania
planetária;
5) a problemática ambiental cotidiana processa uma consciência ecológica e uma mudança de
mentalidade;
6) a ecopedagogia não é só para educadores, mas para toda a humanidade em vista da mudança
das relações;
7) a sociedade planetária exige trabalhar a partir dos contextos da vida e interesses das pessoas;
8) reeducar o olhar desenvolvendo atitudes de reversão da cultura do descartável;
9) biocultura, cultura da vida, geradora de vida e de harmonia entre os seres vivos e a natureza;
10) nova forma de governabilidade, de gestão democrática, ética e participativa associada aos
direitos humanos e planetários (GADOTTI, 2010, p. 75-78)

Deste modo, a Ecopedagogia se caracteriza como um movimento pedagógico na

perspectiva freiriana, que incorpora a questão socioambiental, não ficando restrita a ela,

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30 ANOS DA ECOPEDAGOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE ORIGEM E REINVENÇÃO

avançando na reflexão sobre a relação sociedade-natureza em sua multiplicidade e

complexidade de aspectos, tecendo uma crítica contundente ao atual modelo

socioeconômico insustentável, ao pensamento moderno e às diversas formas de exploração

da vida. O nosso papel, ao estudar e pesquisar a Ecopedagogia, é ser fiel à sua origem e se

desafiar a seguir produzindo sobre ela, a partir de seus conceitos chaves e de suas bases

epistemológicas.

2. Caminhos da Ecopedagogia

Podemos afirmar que a Ecopedagogia está se fazendo no caminho, ela é a própria

caminhada, ela é o processo entre a partida e a chegada. Isso nos permite olhá-la como uma

possibilidade de intervenção sócio-pedagógica e ambiental na história. Dizendo de outra

forma, temos a oportunidade de nos unirmos aos precursores para produzir juntos o

desenvolvimento da Ecopedagogia, a partir de nossas realidades, orientados pelos princípios

originários.

Isso não significa afirmar que é preciso mudar radicalmente a Primeira Ecopedagogia.

Contudo, muitas transformações sociais aconteceram e estão por vir provocando

transformações nas formas de ver e fazer Ecopedagogia.

As transformações já são perceptíveis na produção dos norte-americanos Richard

Kahn (2010) e Greg William Misiaszek (2020), bem como nas do australiano Phillip Payne

(2017). Eles estão com os pés noutros lugares do mundo, mesmo sendo freirianos, e

constroem abordagens da Ecopedagogia a partir do conceito de desenvolvimento. Na

América Latina, temos um livro singular sobre a Ecopedagogia que expressa a preocupação

da urgência de preservação do Planeta (Zimmermann, 2005). Sabemos que ainda é

incipiente a produção na área, mas a revisão de Ruiz-Peñalvez et al (2021) demonstrou que

há muitas produções em inglês (na Austrália, nos Estados Unidos e na Europa). Em espanhol

ou português a produção é menor e há uma diversidade de abordagens (confundindo

Educação Ambiental com Ecopedagogia) que se dissipam em temáticas que não estão

aproximadas com as origens da Ecopedagogia. Ou seja: há muito ainda o que produzir sobre

Ecopedagogia na América Latina. A própria Cruz Prado vem sinalizando o câmbio de

cidadania para cuidadania, um neologismo que supera a visão burguesa/sexista de cidadão,

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para uma perspectiva do cuidado com todas as formas de vida, anunciada pelas mulheres

argentinas com quem dialogava (PRADO ROJAS, 2020).

A Ecopedagogia é uma pedagogia do caminho, que se faz caminhando e, sem

pedantismo, é assim que ela vem se constituindo como uma das perspectivas mais crítica de

abordagem das relações ser humano e mundo, mas também e principalmente, entre seres

humanos e seres humanos no mundo. O que não torna uma tarefa fácil se debruçar sobre

ela, pelo contrário, exige de nós a assunção do tema como centralidade de nossas pesquisas

e de uma postura “franciscana”, sabendo que não seremos entendidos agora, mas no futuro,

quando consolidarmos a Ecopedagogia, esta será um campo de investigação.

Acredito que em ritmo variado, mas consistente, estamos redescobrindo a

Ecopedagogia para aprofundar suas raízes (radicalizá-la) e, com isso, talvez em longo prazo

(vinte anos, na nossa projeção), construirmos uma Segunda Ecopedagogia, que incorpora a

anterior e avança para temas que não estavam na ordem do dia, nem no contexto de origem.

Talvez seja essa uma característica intrínseca da Ecopedagogia – e também foi muito de

Freire – o constante reler-se, reinterpretar-se, no diálogo aberto e crítico com o contexto

concreto, o mundo vivido, a materialidade do real, a realidade-mundo, os lugares de

vivência.

Numa tentativa de explicar o que estou afirmando, a figura abaixo demonstra que há

uma Ecopedagogia primeira, não há como negá-la, ela tem consistência teórica e está

assentada numa base que é uma crítica ao pensamento moderno hegemônico, dialogando

com o que havia de vanguarda nos anos 1960-1990. Vinha também na esteira da Educação

Popular e de identidade latino-americana, mas dialogava com autores de diversos lugares do

mundo, da Física, da Química, da Complexidade, do Marxismo, da Teoria Crítica da Educação,

num amálgama inovador e com caminhos bem definidos.

Ao mesmo tempo, o movimento da Histórica permitirá avançarmos para outras

Ecopedagogias – no plural –, porque já há núcleos de pesquisadores se organizando e

produzindo constantemente sobre o tema, como nunca antes. Tais produções logo se

tornarão referências para alavancar mudanças, proporcionando novas concepções do que é a

Ecopedagogia – o que, no meu entendimento, é um movimento potente para a constituição

de campo de pesquisa e investigação. Se da primeira para a segunda fase foi preciso 30 anos,

temos muito chão pela frente!

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30 ANOS DA ECOPEDAGOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE ORIGEM E REINVENÇÃO

Fonte da Imagem: elaboração do autor (2022)

3. Reinvenção da Ecopedagogia

Esse momento da virada epistemológica e temática da Ecopedagogia, é propício para

definirmos o caminho a seguir ou até mesmo para decidirmos que podemos ir por diversos

caminhos, resguardar os princípios orientadores originários para criar outros que vão se

acoplar ao terceiro momento da Ecopedagogia.

Na produção sobre a qual estamos nos debruçando nos últimos anos, já localizamos

três questões centrais que merecem nosso olhar atento e nos levam a crer que a

Ecopedagogia pode contribuir para a derrocada do patriarcado, a superação do pensamento

moderno dominante e para aprofundar as críticas ao capitalismo.

Há nessas três questões basilares, grandes enfrentamentos e dificuldades a serem

superados, visto que somente a produção de pesquisas não será suficiente para mudar

aspectos que são estruturais em nossa sociedade. A busca por essa superação não é uma

invenção ecopedagógica, mas precisa ser vista como uma pauta que vale a luta, seja na

Academia ou fora dela. De modo sucinto, a seguir, como tais questões se apresentam no

cenário político-ecopedagógico, a partir dos estudos e elaborações teóricas da Ecopedagogia.

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A - Patriarcado
Esse é o nome dado a uma forma de dominação masculina branca, cisgênera e

heteronormativa (SAFFIOTI, 2004; LERNER, 2019), mas ela se desdobra num conjunto de

outras formas de violência de gênero, de cor, de raça/etnia, de classe, de deficiência. Ele foi

criado há milhares de anos para justificar socialmente uma supremacia, inicialmente do

homem sobre a mulher, que depois foi se ampliando em diversas esferas da sociedade.

Trata-se, em última instância, da legitimação da superioridade de uns em detrimento de

outros, o que, em si mesmo, já é uma violência simbólica. Portanto, devemos nos colocar em

reflexão sobre como podemos desenvolver movimentos contrários à permanência dessa

racionalidade e de práticas patriarcais. No que tange às questões ecopedagógicas ele

legitima a usurpação dos bens naturais e a destruição da natureza, inviabilizando a

reprodução de todas as formas de vida com dignidade no Planeta Terra.

B - Modernidade
Com o pensamento cartesiano (embora, não só com ele), uma forma de produção de

conhecimentos e de explicar o real é inaugurada e se torna hegemônica. Nesses termos, há a

predominância de uma racionalidade que divide os campos do conhecimento no sentido de

compreender e analisar o mundo. O que, inicialmente, se apresentou como uma retomada

da razão grega, gerou a falência dessa razão. Podemos tomar como expressões mais

singulares desse fenômeno as crises humanitárias geradas pelas duas grandes guerras,

quando o método científico sectarizou o humano entre razão e emoção (praticamente

matando a segunda). Simplificando o complexo e linearizando o cíclico, como forma de

pensar e agir no mundo que, segundo Adorno (1995), produziram os campos de

concentração. O autor considera tais eventos como as maiores provas de que o projeto da

Modernidade faliu, apesar dos grandes avanços científicos. É preciso estabelecermos outras

bases, agregar outras dimensões humanas na construção de saídas para a produção de

conhecimento, tais como: a emoção, a intuição, a ternura, a amorosidade e a alegria. Em

vista de construir novas formas para solucionar os problemas e evitar danos socioambientais

precisamos incluir o sentir-pensar como um par potente para a produção de sínteses nos

novos tempos.

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C - Capitalismo
Trata-se da forma de organização de processos de trocas, produção e consumo que

reflete sobre a própria produção da vida contemporânea. Mesmo que nem sempre tenha

sido assim, é necessário admitir que o capitalismo está revestido de uma capacidade incrível

de se regenerar após cada crise econômica. A base desse sistema se alicerça na acumulação

de riqueza pela alienação do trabalho, na iniciativa privada como princípio ordenador da

capacidade empreendedora humana e no fetiche da mercadoria como propulsor do

consumo, esses mecanismos geram produção em massa e poluição na mesma escala,

destruindo o Planeta, ao fazer uso desordenado dos recursos naturais. As tentativas de

criação de alternativas ao modelo tem se mostrado incipientes e este sistema renasce cada

vez mais forte. Essas renovações se aliam à precarização do trabalho (ANTUNES, 2018) e a

uberização dos trabalhadores (SLEE, 2017). Hoje é possível comprar e vender qualquer coisa,

pois tudo se transforma em mercadoria, inclusive a vida humana. Porém, como afirmou

Marx (1975), o capitalismo não é eterno, mas uma fase transitória da história, que

estabelecerá seu próprio fim ao gerar contradições indissolúveis dentro do sistema de

exploração do trabalho e de acumulação de riqueza.

O leitor ou leitora pode se sentir chamado a se unir nessa empreitada acadêmica e

escolher por qual caminho quer andar para contribuir na construção de outra Ecopedagogia.

Penso que ao tomarmos esses três pilares como crítica ecopedagógica do mundo, nos

colocamos no espectro amplo da Teoria Crítica de Educação e de Sociedade, mantendo-nos

coerente com os últimos vinte anos de estudo sistemático do pensamento e da práxis

freiriana.

A isso chamamos reinvenção, que é o processo pelo qual nos mantemos fiéis às

origens, mas ousamos ir além e criar algo novo. É como se ouvíssemos a mesma música, com

melodia diferente. A dialética busca fazer a superação do velho, que não desaparece mas é

incorporado ao novo, dando origem a outra perspectiva. A contradição é o motor da dialética

que nos coloca em movimento criativo e crítico permanente, com seriedade acadêmica e

rigorosidade científica.

O processo de produzir a reinvenção da Ecopedagogia é uma ferramenta de luta em

busca de uma sociedade mais justa e solidária e de um mundo mais sustentável e a defesa

dos Direitos Humanos, a garantia das políticas sociais para as classes mais desfavorecidas, a

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opção preferencial pelos pobres torna-se um horizonte, um guia para a construção das

nossas trajetórias acadêmicas.

Não cansamos de repetir que: todas as lutas são uma só! A construção desse

entendimento também é tarefa dos/das ecopedagogos/as. Não é algo espontâneo, que se

faça de qualquer jeito, mas um processo coletivo e coletivizante, que agrega pessoas, que

respeita o ritmo de cada um, que instiga ao acompanhamento, mas que não tem ponto de

partida e objetivo final. É processo, é caminho que se faz caminhando, passo a passo, mão na

mão!

(In)Conclusões: sementes…

Deixo aqui algumas palavras desse caminhar como sugestões para que as pessoas ou

grupos que estão lendo esse ensaio ecopedagógico possam contribuir com a reinvenção da

Ecopedagogia:

- Primeiro: ir aos textos de referência, ler cada um (já que são poucos), refletir sobre

eles, trazê-los para dentro das produções que fazemos, levar para a sala de aula, instigar

outros para que também façam tal leitura.

- Segundo: investigar tais textos coletivamente e nos procurem, pois o Grupo de

pesquisa Palavração está disponível para debater formas de pensar coletivamente a

Ecopedagogia e produzir juntos conhecimentos coletivos. Penso ser mais eficiente do que

realizar essa tarefa histórica de forma solitária.

- Terceiro: formar uma rede internacional de pesquisadores/as que se considerem

ecopedagógicos, tendo a Ecopedagogia como ponto de partida para TCC, IC, dissertações,

teses e pós-doutorados, produzindo conhecimentos consistentes e relevantes sobre o tema.

- Quarto: retomar o evento da Ecopedagogia, centralizando a produção e

disseminando as ideias e princípios ecopedagógicos, constituindo-a como um campo de

investigação científica.

- Quinto: iniciarmos uma revista internacional, diferente das que existem em função

do produtivismo acadêmico, que congregue as produções dos pesquisadores/as da

Ecopedagogia de todo o mundo, sendo referência para quem pesquisa sobre o tema.

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30 ANOS DA ECOPEDAGOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE ORIGEM E REINVENÇÃO

Esses cinco tópicos podem ser o começo de uma grande revolução ecopedagógica na

Academia, lugar privilegiado para produzir conhecimento, além de ser uma tarefa coletiva

instituinte de aproximação de um núcleo irradiador de pessoas focadas no mesmo objeto

de pesquisa.

Em outras palavras, precisamos fazer um deslocamento do método para novos

caminhos possíveis de inéditos viáveis; superar a ideia fechada de conceito e estabelecer

novos horizontes de conhecimentos; superar o absolutismo da razão pela perspectiva

dialógica da emoção e da amorosidade (DICKMANN, 2022).

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Data do envio: 14 setembro 2022
Data do aceite: 10 outubro 2022

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CAPA: DOSSIÊ TEMÁTICO

Início da descrição da imagem: Folha azul claro com a logomarca da Revista Aleph sob a
forma de marca d'água. A marca d'água é uma imagem sombreada que, apesar da
transparência, torna possível visibilizar a sua presença sem impedir a visão da imagem
ou escrita que fica sobreposta a essa imagem. O logo da Revista é o grafema da letra
Aleph que é a primeira letra do alfabeto grego. Centralizado na página está a frase em
letras cursivas no mesmo tom de azul das margens: Dossiê temático

Revista Aleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro. 2022 - nº 39

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

INCLUSIVE EDUCATION AND DEMOCRACY: REFLECTIONS ON ADVANCES,
SETBACKS AND RESISTANCE IN THE CONTEMPORARY CONTEXT IN BRAZIL

Nelma Alves Marques Pintor9

Resumo
Este artigo visa refletir acerca de avanços, retrocessos e resistências observados nos campos
da educação inclusiva e da democracia no contexto contemporâneo no Brasil. Como
referencial teórico, dialoga com Arroyo (1988), Freire (1987, 1996), Adorno (2020), Costa
(2011, 2012, 2015), entre outros autores, e com legislações do acervo jurídico brasileiro da
área. A metodologia está alicerçada no diálogo com esses autores e com algumas legislações
relativas à Política de Educação Inclusiva, expondo manobras ideológicas do atual governo
para obstruir os direitos das pessoas com deficiência. Como resultado, reforçamos a
imperiosa necessidade de educação para a participação individual e coletiva nos rumos da
democracia no país.

Palavras-chave: Educação. Democracia. Direitos Humanos. Resistência. Diferenças.

Abstract
This article aims to reflect on advances, setbacks and resistance observed in the fields of
inclusive education and democracy in the contemporary context in Brazil. As a theoretical
framework, it dialogues with Arroyo (1988), Freire (1987, 1996), Adorno (2020), Costa (2011,
2012, 2015), among other authors, and with legislation from the Brazilian legal body in the
area. The methodology is based on the dialogue with these authors and with some
legislation related to the Inclusive Education Policy, exposing ideological maneuvers of the
current government to obstruct the rights of people with disabilities. As a result, we
reinforce the imperative need for education for individual and collective participation in the
direction of democracy in the country.

Keywords: Education. Democracy. Human Rights. Resistance. Differences.

Introdução

No mundo contemporâneo é impossível considerar uma democracia sustentável que

professe igualdade e liberdade sem o esteio e garantia de um sistema educacional inclusivo

9 Doutorado (FIOCRUZ), Mestrado em Educação (UFF). Membro do Grupo de Pesquisa "Políticas em Educação:
formação, cultura e inclusão", do Programa de Pós-Graduação em Educação (GRUPEPE/UFF). Membro da Red
Internacional de Investigadores y Participantes sobre Integración Educativa (RIIE), UNAM, México. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3929705037181995. E-mail: nelmapintor@uol.com.br. Link ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5037-7365

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que subsidie a construção da cidadania popular. Da mesma forma, não se cogita pensar num

sistema educacional que fere os princípios de uma escola para todos e todas, que não cultiva

o respeito às diferenças, que não acolhe a diversidade, que incita a exclusão ao invés de

incluir aqueles e aquelas que, historicamente, estiveram e estão à margem das relações e

realidades sociais que defendem uma democracia sustentável.

Com a redemocratização do país a partir do Golpe Militar de 1964 e com a

promulgação da Constituição Cidadã de 1988, a força dos movimentos sociais pela

consolidação das liberdades democráticas têm buscado na educação um dos principais

instrumentos de combate na luta contra a desigualdade social, instalada no Brasil desde suas

raízes históricas. Os avanços alcançados, ainda insuficientes, permanecem aquém do

necessário para uma educação de qualidade desejada, também para uma sociedade

inclusiva almejada. Educação Inclusiva e Democracia se caracterizam como condições

profundamente interdependentes, o que torna inviável imaginar um melhor

desenvolvimento de uma sociedade democrática sem uma melhor educação. Mas, uma

revolução possível depende da aceitação e do acolhimento de mudanças de comportamento,

de mentalidade, de atitudes e valores daqueles e daquelas que forjam e lideram os

processos sociais, educacionais e democráticos. Urge, assim, a necessidade de transformação

de uma cultura excludente, onde pessoas, com e sem deficiência, são excluídas do convívio

social por serem avaliadas sob o crivo das diferenças.

A construção de uma sociedade inclusiva exige a implementação de um modelo

educacional, cujos objetivos preconizem o respeito à diversidade humana, reconhecendo nas

diferenças, oportunidades de enriquecimento do conhecimento, de homens e mulheres

enquanto seres humanos, e da democracia. Este modelo de educação está assentado na

vontade política de lideranças voltadas para experiências significativas de inclusão social, em

todos os sentidos.

As percepções e as representações sociais relativas às diferenças entre os indivíduos

integrantes da nação brasileira marcaram os comportamentos e as atitudes discriminatórias

e excludentes a eles dirigidos, sobretudo os que apresentavam deficiência, desde o período

da colonização. Os colonizadores europeus invadiram o território brasileiro imbuídos do

desejo de dominação e grandeza, e assim foi com relação aos nossos antepassados indígenas

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EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

que foram alvo de verdadeiros genocídios, nos quais sucumbiram aldeias inteiras, restando

atualmente algumas tribos isoladas nas regiões norte e centro oeste do Brasil.

Também os negros foram e permanecem sendo discriminados pela sociedade, como

alvo do persistente racismo, pelo qual se nega, consciente ou inconscientemente, o

sofrimento e derramamento de sangue durante mais de três séculos de escravidão. Segundo

esta mesma análise, outros grupos de indivíduos, a quem se atribuem diferenças étnicas,

sociais, econômicas, culturais sofrem preconceitos e marginalização, como por exemplo: os

quilombolas, mulheres, idosos, pessoas com deficiência, LGBTQIA+.

Esses são indivíduos cujos direitos sociais têm sido violados persistentemente em

função do pouco espaço de poder, e, portanto, de prioridade, que ocupam nas agendas de

governos no Brasil. Convém, então, questionar: Há motivações político-ideológicas

impulsionando avanços e retrocessos no atual contexto da educação inclusiva, no Brasil?

Por meio de leituras com teóricos da área, de legislações e seus destaques no âmbito

da educação, este estudo reconhece o papel estruturante da inclusão educacional de sujeitos

com e sem deficiência, a fim de garantir seus direitos fundamentais em uma democracia

participativa. Tal relevância social justifica e referenda a urgência dessa discussão, como

forma de esclarecer o debate e fortalecer resistências contra hegemônicas, em oposição a

um modelo de educação e de sociedade excludentes. É uma realidade que nos convoca à

reflexão sobre formas de resistir e se posicionar, enquanto cidadãos e cidadãs, diante de

avanços e rupturas enfrentados contemporaneamente no contexto da educação e da

democracia brasileira.

Em um primeiro momento, o estudo aborda a estreita relação entre educação

inclusiva e direitos humanos como base para a constituição de uma sociedade que se

pretende democrática, com justiça social. Expõe, que essa estreita relação, encontra terreno

fértil nos princípios do movimento em defesa da educação em direitos humanos.

No segundo momento, o texto discute propriamente a evolução de avanços

alcançados pela Política Nacional de Educação Especial, promulgada pelo Ministério da

Educação, em 2008. Discute também os retrocessos implementados pelo atual governo do

país, em consequência de proposta visando implantar nova política educacional, de caráter

excludente, explicitamente ideológica e repressiva, para educação de crianças e jovens com

deficiência.

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Por fim, nas considerações inconclusivas observa a presença de movimentos cíclicos

no cenário da educação inclusiva, bem como no campo democrático, onde se verificam

avanços e retrocessos em seus processos, além de mecanismos de resistências daqueles que

se percebem aviltados em seus direitos sociais.

Educação e Direitos humanos: esteios de uma sociedade democrática

Os seres humanos são seres de educação, de cultura e de direitos, que necessitam

viver com dignidade e respeito, considerando-se suas possibilidades, capacidades,

fragilidades e limitações. Os direitos humanos contemplam atitudes e condutas de aceitação,

tolerância e acolhimento. Entre os direitos sociais destacamos o acesso à educação como

fundamental, pois, por meio do conhecimento e da emancipação que promove, a ação

educacional possibilita o alcance a outros direitos. Entre estes, abordamos o direito à

inclusão social, num mundo, numa realidade de tanta exclusão; e reforçamos a importância

do direito de resistência a tantos preconceitos e às variadas formas de discriminação, que

ferem os princípios de autonomia e dignidade humanas.

Assumimos, assim, a defesa por uma educação contra hegemônica que se opõe ao

modelo ideologizado preconizado pelas elites, que seguem os princípios do neoliberalismo

tendo por base a reprodução de um modelo arcaico, no qual impera uma relação vertical

entre professor (a) aluno (a); onde o (a) professor (a) é o (a) transmissor (a) do

conhecimento, e o (a) aluno (a), passivamente, é receptor (a) do conteúdo curricular

hermético e sem significado para a vida. Um conteúdo planejado por terceiros e à revelia do

(a) aluno (a); ou seja, um currículo construído ideologicamente para atender às necessidades

do mercado. Semelhante ao modelo de “educação bancária” descrito por Freire (1987).

Aos sujeitos subjugados e oprimidos por esse modelo de educação, não lhes é

concedido o direito de escolher e intervir no que desejam aprender, de romper com práticas

metodológicas repetitivas, sem criatividade e de optar por formas de avaliação flexíveis que

valorizem diferentes modos de expressar as aprendizagens. Dessa forma, os egressos desse

modelo de ensino são condicionados a ser meros repetidores e dificilmente atingem o

desenvolvimento de uma consciência crítica e autônoma, confirmando a afirmação de Paulo

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EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

Freire: “Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve

ser uma prática imobilizadora e ocultadora da verdade” (FREIRE, 1996, p. 111).

Em outras palavras, a educação praticada segundo os interesses das elites

dominantes não objetiva desenvolver nos (nas) aprendentes a capacidade de autonomia

individual ou coletiva; ao contrário, se empenha na manutenção de seres heterônomos,

dependentes da orientação de terceiros. Uma educação que se empenha em ocultar a

vocação ontológica dos seres humanos para o ser mais (FREIRE, 1996).

Adorno (2020), nos convoca a pensar a formação do indivíduo sob o viés de outra

alternativa que não seja uma educação voltada para a reprodução de uma sociedade dividida

em classes, para a mera adaptação aos ditames do mercado financeiro e tecnológico; que

seja uma educação que tenha como meta a superação de todo e qualquer modelo

homogeneizador dos seres humanos. Assim, ele alerta:
Mas a realidade sempre é simultaneamente uma comprovação da realidade, e esta
envolve continuamente um movimento de adaptação. A educação seria impotente
e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para
se orientarem no mundo. Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisso,
produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em
consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de
pior (ADORNO, 2020, p. 156).

Mesmo afirmando que a educação muda historicamente de acordo com a realidade,

o autor conclui “(...) que a realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o princípio

aos homens” (ADORNO, 2020, p. 157). Entretanto, apresenta a educação como forma de

resistência contra a barbárie e o conformismo:
A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da
escola, da universidade, teria neste momento de conformismo onipresente muito
mais a tarefa de fortalecer a resistência do que fortalecer a adaptação (ADORNO,
2020, p. 157).

Mas, como fortalecer a resistência contra a realidade opressora? Adorno defende a

resistência por intermédio da formação crítica, desde a presença da criança na Educação

Infantil, ao indicar: “A crítica desse realismo supervalorizado parece-me ser uma das tarefas

educacionais mais decisivas, a ser implementada, entretanto, já na primeira infância”

(ADORNO,2020, p.157). Por meio da educação, portanto, é possível desenvolver uma

consciência crítica que se oponha aos limites sociais, sem negá-los obviamente, porque eles

são partes inerentes à realidade; mas, é possível resistir como forma de buscar mudanças e

possibilidades para a igualdade e emancipação social.

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Cabe aqui esclarecer a concepção inicial de educação proposta por Adorno:
Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o
direito de modelar pessoas a partir de seu exterior; mas também não a mera
transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que
destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isso seria inclusive da
maior importância política, sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência
política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar
conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. (...). Numa democracia,
quem defende ideais contrários à emancipação e, portanto, contrários à decisão
consciente independentemente de cada pessoa em particular, é um antidemocrata
(...) (ADORNO, 2020, p. 154).

A partir da afirmação do teórico, podemos compreender que a resistência contra

desmandos e desvios de antidemocratas no poder, será possível com o povo educado, com

formação de consciências críticas e com seres autônomos em suas decisões; uma educação

que forme a sociedade para o respeito aos direitos humanos.

Sabemos que os contornos da democracia começaram a ser delineados, sobretudo a

partir do século XVIII, por via das conquistas oriundas das pressões populares por igualdade

e participação social. Igualdade jamais alcançada até os dias atuais, porque tem a força de

interferir nos domínios do capitalismo que se fortaleceu contemporaneamente com a

instalação do neoliberalismo no Brasil. Tal realidade tem impactado os rumos da educação

brasileira em que se observam movimentos de resistência e de lutas de camadas sociais,

como a das pessoas com deficiência, por reconhecimento individual e coletivo de seus

direitos à educação. Mesmo sem negar a presença de avanços, ainda são as péssimas

condições materiais de existência a que são submetidas as camadas vulneráveis da

população atualmente, que as mantêm alijadas de políticas sociais equitativas, de seus

direitos e de educação pública de qualidade para todos e todas. Com Arroyo, entendemos

que “A educação não é uma precondição da democracia e da participação, mas é parte, fruto

e expressão do processo de sua constituição” (ARROYO, 1988, p. 79).

Dessa forma, no atual estágio civilizatório da sociedade brasileira, não podemos

prescindir da educação inclusiva e da escola pública, mesmo reconhecendo a complexidade e

a conflituosidade em que se veem imersas, muito por ação de forças externas que negam

sua centralidade na produção dos conhecimentos veiculados pelas ciências. Causa

perplexidade e indignação o acentuado aumento da precarização das escolas públicas, o

rebaixamento dos parcos investimentos destinados à educação, bem como o descaso em

promover a valorização do trabalho dos (as) profissionais e docentes, sendo essas algumas

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EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

das condições que têm afastado a procura pela formação no magistério. A desigualdade de

condições materiais, que diferencia a educação, sobretudo a que se pretende inclusiva, e a

escola pública em relação às instituições privadas de ensino, permanece visível e reforçada

principalmente, por transferências de recursos públicos para o setor privado.

Acentuando essas complexidades, o atual governo no país, de perceptível índole

fascista, estimula conflitos para o processo educativo por meio da militarização de escolas

públicas, da apologia ao ‘homeschooling’, à ideologia da escola sem partido, buscando coibir

a liberdade de ensinar em todos os níveis de ensino, como forma de atingir a autoridade e a

autonomia docente. Essa situação nos remete ao pensamento de Paulo Freire na defesa de

que ensinar exige liberdade e autoridade, enquanto um dos saberes necessários à prática

educativa. Em relação à liberdade, ele afirma que “(...) sem ela a existência só tem valor e

sentido na luta em favor dela” (FREIRE, 1996, p. 118). Mas, também reconhece a difícil e

correta posição do pensador democrata que é “(...) coerente com seu sonho solidário e

igualitário, para quem não é possível autoridade sem liberdade e estar sem aquela” (ibid,

1996, p. 122).

Então, cabe refletirmos sobre para quê promover uma educação democrática se, por

meio do autoritarismo, o Estado impõe barreiras que limitam a liberdade de ensinar? Que

democracia é esta que regula o Estado Democrático de Direito e se utiliza de estratagemas

ideológicos para inibir as liberdades e os direitos de cidadãos e cidadãs?

Os efeitos das mudanças resultantes desse autoritarismo e imposições geram

tensionamentos e resistências, tanto em nível interno nas instituições, como em nível das

estruturas estatais, e mesmo nacionalmente. Os grupos sociais afetados por mudanças e

retrocessos políticos, econômicos, educacionais, entre outros, impetrados à revelia da

condição de cidadãos e cidadãs com e sem deficiência, manifestam expressões de desagrado

e oposição, por meio de movimentos de resistência, que são próprios dos que lutam por

direitos humanos.

Movimentos semelhantes, como sabemos, nasceram por ocasião da ditadura militar,

com o Golpe de 1964, como expõe Dourado (2019) a seguir:

(...) a contraposição ao Estado autoritário, expresso no país pela ditadura militar,
conquistou espaços com os movimentos sociais, partidos políticos e por intermédio
da busca efetiva por maior participação política e pela democratização do Estado no
país, visando superar os limites advindos da ditadura militar, por meio da retomada
do Estado Democrático de Direito (DOURADO, 2019, p. 7).

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Para esse teórico, o progresso em direção à democracia e justiça social, visando o

resgate do Estado Democrático de Direito, ocorre com a promulgação da Constituição

Federal, em 1988, ao promover “(...) o alargamento formal da cidadania e dos direitos

sociais, entre eles a educação” (DOURADO, 2019, p. 7). Em relação aos governos que se

sucederam após a Constituição de 1988 (Collor de Melo, Itamar Franco, Fernando Henrique

Cardoso), Dourado aponta avanços no campo da educação promovidos nos Governos Lula,

de 2003 a 2010. Destacamos aqui alguns deles relativos ao setor público:
(...) a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB); o estabelecimento de piso
salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da
educação básica pela Lei nº 11.738/2008; a aprovação da Emenda Constitucional
nº59/2009, que instituiu a ampliação da educação básica obrigatória passando do
ensino fundamental obrigatório para a educação de 4 a 17 anos (envolvendo a
obrigatoriedade da oferta e universalização do pré-escolar, do ensino fundamental
e do ensino médio); a definição de que o Plano Nacional de Educação (PNE) de
duração decenal, deve ser estabelecido por lei (...)” (DOURADO, 2019, p. 8).

Após esses e outros avanços nos campos educacional e sociais, que permaneceram

por mais de uma década (incluindo o Governo de Dilma Rousseff), a democracia brasileira e

as políticas educacionais começam a sofrer grandes abalos, com retrocessos visíveis em

diversos níveis e modalidades da educação.

O movimento em defesa da implementação da educação em direitos humanos nos

sistemas e instituições de ensino abriu uma porta de esperança com o lançamento da

Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (Resolução CNE/CP 1/2012), pelo

Ministério da Educação (MEC) em 2012. Em seu artigo 3º, está estabelecido:
Art. 3º A Educação em Direitos Humanos, com a finalidade de promover a
educação para a mudança e a transformação social, fundamenta-se nos seguintes
princípios:
I - dignidade humana;
II - igualdade de direitos;
III - reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades;
IV - laicidade do Estado;
V - democracia na educação;
VI - transversalidade, vivência e globalidade; e
VII - sustentabilidade socioambiental.

Percebemos, portanto, também nesse dispositivo, a indissociabilidade entre a

educação e a democracia e o firme propósito de respeito às condições de dignidade humana,

igualdade de direitos, o reconhecimento e a valorização das diferenças e das diversidades;

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EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

elementos inerentes a uma sociedade plural e multicultural, como a do Brasil. As Diretrizes

também reforçam em seu artigo 4º, inciso V, que a Educação em Direitos Humanos deve

estar articulada com o “fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e

instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem

como da reparação das diferentes formas de violação de direitos” (RESOLUÇÃO CNE/CP

1/2012). Trataremos de uma das práticas sociais de proteção e defesa dos direitos de

crianças, jovens e adultos com deficiência, mais adiante, neste artigo.

Com o Governo Bolsonaro surgem reformas educacionais manipuladas por

manobras ideológicas e reducionistas que não demoraram a insuflar movimentos de

resistência de educadores. Uma dessas manobras recaiu sobre a tentativa de abolir os

fundamentos e princípios estabelecidos na Política Nacional de Educação Especial na

Perspectiva da Educação Inclusiva, instituída pelo Ministério da Educação, em 2008.

Avanços, retrocessos e resistências na Política de Educação Inclusiva: tentativas de negação
de direitos

As discussões para ampliação do acesso à uma educação de calibre democrático

visando a inserção de todos os indivíduos, em escala internacional, começa a tomar força no

final do século XX e início do século XXI, lideradas por representantes de diversos países,

inclusive do Brasil. Este assume posição de signatário dos instrumentos legais resultantes dos

acórdãos que tiveram ampla circulação em países do Ocidente e da América Latina.

No Brasil, as expectativas em torno da implementação da educação inclusiva sofrem

tensões geradas pelos desafios à prática escolar, gerados pelas demandas da diversidade e

de suas diferenças.
O novo século encontra um clima de efervescência política e social no campo da
educação inclusiva, propício para as polarizações das discussões em torno das
teorias e políticas educacionais. Entre os educadores, há os que apoiam e apostam
nas propostas inclusivas, há os que resistem e são contra e há os que desconfiam,
afirmando se tratar de um “modismo” temporal (PINTOR, 2016, p. 49).

Tal clima de desconfiança começa a se dissipar diante de resultados satisfatórios no

crescimento do acesso à escola comum de alunos e alunas com deficiência, originários (as)

de escolas especiais, excludentes, e de experiências de aprendizagem fracassadas. No campo

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governamental surgiram programas de formação para professores (as),10 além da expansão

das legislações visando a garantia dos direitos à igualdade de oportunidades na escola

pública. Cabe destacar a implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos

Humanos como importante instrumento de formação em direitos humanos, que visa:
(...) sobretudo, difundir a cultura de direitos humanos no país. Essa ação prevê a
disseminação de valores solidários, cooperativos e de justiça social, uma vez que o
processo de democratização requer o fortalecimento da sociedade civil, a fim de
que seja capaz de identificar anseios e demandas, transformando-as em conquistas
que só serão efetivadas, de fato, na medida em que forem incorporadas pelo Estado
brasileiro como políticas públicas universais (BRASIL, 2007).

Do acervo jurídico do Brasil, destacamos alguns documentos, não apenas por sua

importância; mas, porque visam orientar e organizar a construção da política de inclusão nas

escolas do sistema educacional:

✔ Resolução CNE/CEB nº 2/2001 – Instituição das Diretrizes Nacionais para a Educação

Especial na Educação Básica;

✔ Lei nº10.436/2002 – reconhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira

língua da pessoa com surdez;

✔ Cartilha “Acesso de Alunos com Deficiência às Escolas e Classes Comuns da Rede

Regular”. Ministério Público Federal, 2004;

✔ Decreto nº 5296/2004 – Garantia de Acessibilidade em espaços, equipamentos e

dispositivos;

✔ Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – 2008 –

Nova Política em substituição da Política de 1994;

✔ Resolução nº4/2009 – institui as Diretrizes Operacionais da Educação Especiais para o

Atendimento Educacional Especializado (AEE).

O crescimento da legislação e dos estudos na área da inclusão social e educacional,

visam oferecer subsídios para se contrapor às barreiras atitudinais carregadas de

discriminação e preconceito. Defendemos, nesse sentido, que essas barreiras são as mais

impactantes e de difícil dissolução, porque estão alicerçadas em mentalidades formadas por

conceitos herméticos de preconceitos históricos na sociedade. A garantia de materiais

didáticos e tecnológicos, de mobiliários e equipamentos acessíveis, como facilitadores do
10 Com destaque para o Programa “Educação Inclusiva: Direito à Diversidade”, promovido pelo MEC/SEESP de
2003 a 2010.

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EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

acesso ao currículo, em tese, não enfrenta as dificuldades vividas no enfrentamento das

barreiras atitudinais. Entretanto, estas e outras barreiras, com destaque para a formação de

professores (as) para a docência, na perspectiva da inclusão social e educacional, são

fortemente citadas nas pesquisas de teóricos (as). Entre eles, citamos Costa (2011, 2012,

2015). Concordamos com Carvalho (2011), em relação à formação de professores (as),

quando coloca:
O destaque desse tema se deve, em parte, à projeção que a formação de
professores em geral alcançou nos últimos anos, e por outro lado, pela perspectiva
da educação inclusiva, ou seja, uma educação que atenda a todos, inclusive os que
apresentam deficiência. Essa temática também é apontada por muitos como um
dos principais entraves para a efetivação da educação especial na perspectiva da
educação inclusiva (CARVALHO, 2011, p. 25).

Por outro lado, é por intermédio da formação inicial e permanente, que mergulha

nos fundamentos da educação e dos direitos humanos, que é possível desenvolver nos (as)

educadores (as), elementos que possibilitem uma análise crítica das circunstâncias em que

se encontram a escola pública, a sociedade, a democracia, enfim; desenvolver uma práxis

não tecnicista e uma sensibilidade que permita olhar e acolher os indivíduos para além de

suas diferenças. Um olhar que os (as) reconheça como sujeitos de direitos, de modo a

preservar sua dignidade humana.

Em prosseguimento a esta discussão, trazemos um destaque sobre a Política

Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). Está,

alinhada com o reconhecimento e a defesa dos direitos humanos à diferença, se opõe aos

processos que hierarquizam os sujeitos e os distinguem em função de capacidades e

características nas dimensões físicas, intelectuais, linguísticas, sociais e culturais, entre outras

presentes historicamente no ambiente escolar. Esta Política desconsidera, em sua

organização, qualquer forma de atendimento educacional que pretende substituir o ensino

comum, compartilhado e inclusivo.

Este documento reconhece, ainda, que todas as crianças, jovens e adultos são seres

singulares, possuidores de um ritmo, um tempo e um modo específico de processar a

aprendizagem; portanto, cabe à escola conhecer as demandas e desenvolver práticas para

respondê-las, eliminando as barreiras, sejam atitudinais, materiais e de acessibilidade ao

conhecimento.

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A meta da educação inclusiva é extinguir o hiato histórico que polarizou as escolas,

diferenciou processos educativos e instaurou crenças na sociedade que legitimaram a

segregação e a exclusão social. Trata-se de uma educação que acolhe o (a) aluno (a) em si,

como pessoa com dignidade, antes de perceber ou qualificar características de gênero, de

cor, de etnia, de poder aquisitivo, de orientação religiosa; enfim, que acolhe o ser humano

em sua subjetividade e integralidade. Uma educação na qual a busca da aprendizagem está

no centro da ação pedagógica.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de

2008, que se propõe democrática e inclusiva, vem sofrendo uma tentativa de retrocesso a

partir do ano de 2020, com a apresentação, pelo Ministério da Educação do atual governo do

país, do documento intitulado “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e

com Aprendizado ao Longo da Vida”, regulamentado pelo Decreto nº 10.502 de 30 de

setembro de 2020. Desconsiderando importantes avanços alcançados por educadores (a),

intelectuais, políticos, pais e pessoas com deficiência, o referido Decreto causou espanto

pelos retrocessos defendidos, ignorando as políticas democráticas, a inclusão social e os

direitos humanos já instituídos nacional e internacionalmente. Por exemplo, o documento

rechaça o compromisso assumido pelo Brasil, enquanto signatário dos princípios

estabelecidos no Encontro Mundial de Educação Para Todos (Jomtien, UNICEF, 1990) e da

Declaração de Salamanca e suas Linhas de Ação (ONU, 1994). Desconsidera proposições da

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2009), das Diretrizes

Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2012), entre tantos outros

dispositivos formulados em prol da convivialidade e do respeito humano.

O caráter regressivo da Política regulamentada pelo Decreto nº 10.502/2020 está

materializado quando propõe o retorno de crianças, jovens e adultos com deficiência,

transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação às escolas e

classes especiais consolidando, assim, a segregação, a exclusão social e educacional, a

discriminação e o preconceito. O documento é regressivo ao negar a diversidade como fator

de enriquecimento cultural e para a aprendizagem, ao negar que a construção do

conhecimento se dá no entrelaçamento com, os(as) outros(as) no coletivo e por intermédio

de trocas nas interações interpessoais, como atestam pesquisas de pensadores como

Vygotsky (2015), expondo os fundamentos da zona de desenvolvimento proximal (ZDP), e de

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EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

Feuerstein (1988), demonstrando a inquestionável influência da Experiência de

Aprendizagem Mediada (EAM). Portanto, trata-se de uma política que vai na contramão das

lutas por uma sociedade democrática.

Em boa hora, foi possível presenciar uma Audiência Pública realizada pelo Supremo

Tribunal Federal (STF), para discutir com diversos membros da sociedade civil, uma “Ação

Direta de Inconstitucionalidade, 6.590” (ADI 6.590)11. Nela, o Ministro Dias Toffoli, após dois

dias (23 e 24 de agosto de 2021), ouvir os 56 pronunciamentos tanto em oposição como em

defesa da “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa,

Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”, emitiu o Parecer de Inconstitucionalidade da

referida Política.

Foram incontáveis as emissões de documentos de repúdio12 advogando contra esta

política, entregues aos poderes públicos instituídos e disponibilizados na Internet por grupos

e movimentos sociais, universidades e instituições de educação pública, demonstrando que a

luta continua e permanece a resistência como elemento contra- hegemônico em prol do

respeito à diversidade humana, apesar dos retrocessos no cenário educacional brasileiro.

Reafirmamos a indissociabilidade entre a educação e a democracia, junto com Costa,

ao afirmar
Que o potencial democrático da educação inclusiva contribua tanto para a
formação de professores, para que não se submetam aos limites das ‘condições
materiais’, quanto para a organização da escola pública, agora disponível para
educar alunos com e sem deficiência, juntos e compartilhando experiências que
contribuirão para sua humanização (COSTA, 2012, p. 31).

Temos consciência de que vivendo sob a égide do capitalismo selvagem, fruto do

neoliberalismo ideologizado, teremos ainda muita luta para enfrentar na construção da

sociedade democrática e inclusiva que desejamos e a que temos direito, como condição

inalienável de nossa dignidade humana, na defesa insistente dos direitos humanos.

12 Alguns fragmentos de documentos de repúdio contra o Decreto nº 10.502/2020 constam nas notas, ao final
deste artigo.

11 Disponível em <
https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1265081139/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-6590-df-0106
743-4720201000000/inteiro-teor-1265081143>.

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39

Pintor

Considerações (in) conclusivas

Diante dessa discussão, entendemos que, para tecer os fios que amarram educação e

democracia, importa necessariamente conceber a interligação entre autoridade e

emancipação, liberdade e autonomia, igualdade e diversidade, enquanto condições

nucleares para a organização social. Buscamos mais que resgatar, reforçar a urgência da

reflexão sobre a práxis político-pedagógica de educadores (as), de gestores (as) no cenário

atual de desmantelamento de concepções de educação inclusiva e de democracia, por força

da ideologia neoliberal, ora vigente no país.

Respondendo ao questionamento inicial, nos posicionamos por concluir

positivamente quanto à presença de motivações político-ideológicas no contexto da

educação inclusiva no atual cenário da educação brasileira. A promulgação do Decreto

nº10.502/2020 atesta, por meio de seu conteúdo, as manobras ideológicas, de feição

fascista, em verdadeiro retrocesso dos avanços na educação inclusiva. As notas de repúdio

ao Decreto, bem como a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa,

Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, disponibilizadas na internet, expressam total

resistência por parte de educadores, famílias e gestores, entre outros militantes da educação

inclusiva, reforçam esta conclusão.

O que se observa no momento atual, tanto em nível local como nacional, é o

obscurantismo da política que, ao se estender em suas determinações (pseudo)

democráticas, abrigam a finalidade de cooptar e confundir a consciência da sociedade.

À educação, cabe formar os seres humanos para a ação, para agir diante das

necessidades, das barreiras e das imposições que obstam o indivíduo de produzir e

produzir-se. A participação ativa no contexto da produção política é crucial para a

constituição da cidadania individual e coletiva, como forma de reconhecimento de sujeito de

direitos. Mas, a formação em redes de participação coletiva nos destinos da democracia, por

meio de uma educação crítica, abre caminhos para a construção de uma cidadania plural e

uma democracia qualificada.

Lembremos que no Preâmbulo de nossa Constituição Federal consta que ela foi
promulgada

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40

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE AVANÇOS,
RETROCESSOS E RESISTÊNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

(...) para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias (...) (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

Então, procedem os movimentos de resistência que se avolumam em diversos setores

da sociedade atual, expressando seu rechaço às violações dos direitos individuais como

educação, saúde, trabalho, saneamento básico, transporte, entre tantos outros. Há uma

demonstração explícita da falta de ética no trato com a coisa pública! Diante da ausência de

ética, a violência alcança a barbárie que atenta contra o respeito à dignidade humana.

Quando falamos em dignidade humana, queremos lembrar da importância e da

necessidade de aproximação entre seres humanos que, através de movimentos de

resistência, lutam para investir e ter acesso aos direitos humanos, enfrentando conflitos,

desesperanças, adversidades, em busca de melhores condições de paz, de saúde e de vida.

Essa luta, em favor da dignidade, exige vontade de libertação e desejos de um tempo e de

um mundo onde as pessoas, em suas relações de troca, vivenciem atitudes e condutas de

autonomia, de ética e de respeito entre iguais.

Urge, assim, introduzir a discussão sobre os direitos humanos nas escolas, nas

universidades e em todos os espaços onde se pratique educação formal que envolve a

Educação Básica e o Ensino Superior; e a educação não formal, que ocorre em diferentes

momentos da vida. Espaços e momentos onde se faça possível, racional democraticamente,

analisar as contradições das políticas públicas de educação inclusiva e cidadania no atual

contexto da sociedade brasileira. Assim, reforçamos a imperiosa necessidade de educação

inclusiva para a participação individual e coletiva nos rumos da democracia no país.

Referências

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Pintor

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Notas - Fragmentos de Documentos de Repúdio ao Decreto nº 10.502/2020 (MEC)

● Universidade Federal Fluminense – UFF - Faculdade de Educação - Programa de
Pós-Graduação em Educação - Grupo de Pesquisa (CNPq): Políticas em Educação: Formação,
Cultura e Inclusão

[...] A Política promulgada por intermédio do Decreto nº 10.502 (2020), representa uma regressão por
decretar um dispositivo que se constitui na violação dos direitos das pessoas com deficiência e no
impedimento da experiência entre diferentes subjetividades e culturas presentes no ambiente da
escola inclusiva.
Disponível com membros do GRUPEPE

● Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

[...] vimos nos manifestar nosso REPÚDIO e posicionar-mo-nos veementemente CONTRA o Decreto
Federal nº 10.502/2020, que, de forma inadequada e falaciosa, IMPLODE a EDUCAÇÃO INCLUSIVA
alcançada após mais de trinta anos de incessante trabalho, materializado em 2008 na Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, editada pelo MEC, documento
amplamente discutido em todo o País com as pessoas com deficiência, suas famílias, professores e
demais interessados.
Disponível em <NOTA DE REPÚDIO AO DECRETO FEDERAL Nº 10.502/2020 – Incluir (ufrgs.br)>.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 27 - 44 ISSN 1807-6211
43

Pintor

● Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.- UFJF

[...] O Decreto nº 10.502 de 30 de setembro de 2020, portanto, não só fere os acordos internacionais
firmados pelo Brasil, como também promove o que podemos chamar de desmonte da Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, construída a partir do diálogo
com diversos setores da sociedade civil.
Disponível em
https://www.ufjf.br/faculdadedeeducacao/files/2020/10/Decreto-10502-Nota-de-Professores-da-Fac
Ed.pdf .

● Associação Nacional de Pesquisa em Educação – ANPEd

[...] este coletivo de pesquisadores reafirma o seu repúdio ao Decreto 10.502, ressaltando que o
caminho não é alterar a política de inclusão vigente no sentido de retrocedê-la, mas compreender
tecnicamente como transformar os problemas em oportunidades, aprendizados e afirmação da
inclusão. Esta nota pretende endossar as vozes de tantas outras entidades públicas, da sociedade civil
e do movimento das pessoas com deficiência que imediatamente se levantaram contrárias a esta
normativa que fere princípios constitucionais.
Disponível em
https://anped.org.br/sites/default/files/images/nota_de_repudio_ao_decreto_10.502-2020.pdf.

● Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas
com Deficiência e Idosos – AMPID

[...] ao tomar conhecimento da publicação do Decreto nº 10.502/2020, de 30.09.2020, que instituiu a
Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida,
REPUDIA-O à luz das normas constitucionais e legais, pois verifica uma afronta desmedida à
Constituição da República, à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e à Lei nº
13.146/2015, em flagrante retrocesso às conquistas obtidas em relação ao direito humano à
Educação Inclusiva.
Disponível em https://ampid.org.br/site2020/nota-publica-de-repudio-ao-decreto-no-10-502-2020/ .

Data do envio: 24/05/2022.
Data do aceite: 17/08/2022.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 27 - 44 ISSN 1807-6211
44

O MURMÚRIO CONSERVADOR. NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM
ESTUDO DE SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

EL MURMULLO CONSERVADOR. APUNTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
UN ESTUDIO DE SISTEMAS EN DESEQUILIBRIO EN EL CAMPO DE LA

EDUCACIÓN13.

THE CONSERVATIVE MURMUR. THEORETICAL-METHODOLOGICAL NOTES FOR
A STUDY OF SYSTEMS IN DISEQUILIBRIUM IN THE FIELD OF EDUCATION.

Gabriela Rodríguez Bissio14

Resumo
O artigo é o resultado de uma pesquisa que aborda as produções discursivas que são geradas
em torno da educação no Uruguai, onde há atualmente um avanço de propostas
conservadoras. Através de dois eventos iniciais apresentam-se algumas das lógicas
discursivas a serem estudadas. Em seguida, aborda-se o desenho metodológico do projeto e
as formas pelas quais a abordagem metodológica deriva do trabalho conceitual e do diálogo
com pesquisas anteriores. A metodologia e seus fundamentos teóricos são centrais para a
discussão que o artigo procura elaborar. Finalmente, são apresentados alguns debates e
reflexões abertas. A ênfase é colocada nas construções subjetivas conservadoras que estão
ganhando força com relação à educação uruguaia e na noção de "crise educacional" que
ganhou destaque no debate público e que articula linhas discursivas ligadas ao tema desta
pesquisa.

Palavras-chave: Conservadorismo. Metodologia. Sistemas em desequilíbrio. Enunciação.
Educação.

Resumen
El artículo es fruto de una investigación que aborda las producciones discursivas que se
generan en torno a la educación en Uruguay, donde actualmente se ve un avance de
propuestas conservadoras. A través de dos eventos iniciales se presentan algunas de las
lógicas discursivas a estudiar. Luego se aborda el diseño metodológico del proyecto y las
formas en que el enfoque metodológico deriva del trabajo conceptual y del diálogo con
investigaciones antecedentes. La metodología y su sustento teórico son centrales en la
discusión que el artículo busca elaborar. Por último, se presentan algunos debates y

14 Universidad de la República (Uruguay), Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación (FHCE). Email:
gabriela.rodbis@gmail.com; Telefone: +598 99 632 189. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1959-3523

13 Parte de este trabajo fue presentado en las I Jornadas de Investigación en Política Educativa (Bs.As, junio,
2022) organizadas conjuntamente por los colectivos organizadores de los Encuentros de Cátedras, la revista
RELAPAE (Revista Latinoamericana de Política y Administración de la Educación) y la ReLePe (Red
Latinoamericana de Estudios Epistemológicos en Política Educativa), y con el apoyo y difusión de la SAIE
(Sociedad Argentina de Investigación en Educación).

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45

Bissio

reflexiones aún abiertos. Se hace hincapié en las construcciones subjetivas conservadoras
que cobran fuerza respecto a la educación uruguaya y en la noción de "crisis educativa" que
ha cobrado protagonismo en el debate público y que articula líneas discursivas vinculadas al
tema de esta investigación.

Palabras clave: Conservadurismo. Metodología. Sistemas en desequilibrio. Enunciación.
Educación.

Abstract
The article is a result of a research that addresses the discursive productions generated
around education in Uruguay, where there is currently an advance of conservative proposals.
Through two initial events some of the discursive logics to be studied are presented. Then
the methodological design of the project and the ways in which the methodological
approach derives from the conceptual work and the dialogue with previous research are
discussed. The methodology and its theoretical underpinning are central to the discussion
that the article seeks to elaborate. Finally, some still open debates and reflections are
presented. Emphasis is placed on the conservative subjective constructions that are gaining
strength with respect to Uruguayan education and on the notion of "educational crisis" that
has gained prominence in the public debate and that articulates discursive lines linked to the
subject of this research.

Keywords: Conservatism. Methodology. Systems in disequilibrium. Enunciation. Education.

Introducción

Este artículo se enmarca en una investigación aún en curso que aborda las

producciones discursivas que se generan respecto de la educación en Uruguay, donde en la

actualidad, en términos amplios y en particular en el marco del sistema educativo, se

observa una avanzada de propuestas conservadoras.

Surgieron inicialmente algunas preguntas tentativas que fueron el punto de partida

de esta investigación: ¿Qué hilos discursivos se entretejen sobre lo educativo a partir de

lógicas conservadoras? ¿Cómo se articulan en un debate amplio las demandas y las

responsabilidades que se atribuyen a la educación escolar en relación con los problemas

sociales que se denuncian desde distintos sectores conservadores? ¿Qué concepciones sobre

la educación y los docentes se ponen a circular en el contexto de esos debates?

Reconocemos la existencia de procesos en los que agentes de diversos ámbitos

(entre ellos empresarios, expertos que trabajan para think tanks locales o internacionales,

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 45 - 65 ISSN 1807-6211
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O MURMÚRIO CONSERVADOR. NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM
ESTUDO DE SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

variedad de grupos antifeministas y antimarxistas) promueven ideas y acciones

privatizadoras, mercantilizadoras y conservadoras para la educación en un país donde la

importancia de la educación pública ha sido considerada históricamente como un fuerte

consenso. La investigación no se centra en esos agentes o en algunas de esas iniciativas en

particular, sino en las olas discursivas sobre las que prosperan. Si existen procesos de

producción subjetiva que permiten un impulso conservador en el debate público sobre la

educación en Uruguay, el interés en este caso radica en aproximarse a los modos en los que

funcionan esos desplazamientos subjetivos y aportar a la comprensión de las concepciones

sobre educación que así se gestan. ¿Cómo? Este artículo propone un acercamiento a

referencias metodológicas para el análisis de las tensiones en ese campo de debate.

“¿En qué medida y cómo modos de subjetivación que tienen su regla propia entran

en relación con nuevas luchas, a tal punto que se podría decir como fórmula que toda

transformación de las relaciones sociales implica modos de subjetivación nuevos?”

(DELEUZE, 2015, p.144). Esta pregunta formulada por Deleuze en ocasión de su análisis de la

obra de Foucault resultó provocadora para este trabajo. No es que el proyecto pueda o

pretenda responderla, sino que el problema planteado dialoga con ella en tanto, dentro del

escenario de disputas en el campo de la educación, se mantiene un interés por la producción

subjetiva en el tiempo presente. De la mano de Deleuze y Guattari, el proyecto se aproxima a

la comprensión de los modos de subjetivación siguiendo el camino de la enunciación como

producto de agenciamientos colectivos y de los enunciados como marcas de una formación

histórica.

Mercantilización y privatización de la educación, militarización, disputas sobre

género y educación sexo-afectiva, denuncias de adoctrinamiento contra docentes que

abordan en sus clases temas “polémicos”; todos estos elementos parecen generar un

entramado en el que se dan sinergias y relaciones transversales. No pretende verse en estas

distintas expresiones conservadoras ni un bloque ni un conjunto homogéneo con

funcionamiento sistemático, sino algo más cercano a la idea de un “sistema en desequilibrio”

(DELEUZE, 2015). Deleuze y Guattari introducen la idea del estudio de sistemas en

desequilibrio, la sistémica —por oposición a “sistemática”—: “el estudio de las relaciones

transversales entre sistemas, es decir de las relaciones que van de un heterogéneo como tal

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47

Bissio

a otro” (DELEUZE, 2015, p. 152), un estudio que se aparta de la dialéctica y que no busca

identificar homogeneidades.

La investigación pretende entender qué lugar ocupa la educación en el debate

público no sólo en términos del rédito político-electoral que involucra sino como objeto de

enunciaciones colectivas capturado y movilizado por diversos agenciamientos del entramado

social en el que conviven lógicas diversas y antagónicas. Esto supone considerar estos

discursos y producciones sobre la educación en un régimen de historicidad y en un campo de

disputas más amplio que el estrictamente educativo.

Este artículo pone el foco en las referencias teórico-metodológicas adoptadas para

la investigación. En ese sentido, interesa presentar el proceso de construcción de una

estrategia para el abordaje del problema que no estaba dada a priori y los modos en que el

planteo metodológico deriva de un trabajo conceptual y de diálogo con antecedentes del

campo de la investigación en educación y otros campos afines. En la primera sección, con el

fin de introducir las lógicas sobre las que el proyecto propone detenerse, el texto registra dos

eventos en los que se anudan algunas de las tramas discursivas que se pretenden estudiar.

Prestar atención a la dimensión metodológica permite llegar, por último, a algunas

discusiones y reflexiones aún abiertas. Se hace hincapié en la noción de una “crisis de la

educación” que ha ganado protagonismo en el debate público uruguayo y que resulta

articuladora de líneas discursivas vinculadas con el tema de esta investigación.

1. Indignades por la educación. Dos eventos que dan que hablar.

En junio de 2019 la Intendencia Municipal de Montevideo albergó en su hall

principal una muestra de ilustraciones. La exposición fue parte de la agenda de actividades

organizadas en el marco de la celebración del Día Internacional del Orgullo LGTBIQ+15.

“Un espanto ver cómo les quieren cambiar la mentalidad a las personas.
Cuiden a sus hijos no permitan que nadie le llene la cabeza de mierda. El
mundo se está llenando de perversos pedófilos. Y toda esta movida comienza
en las escuelas. Ojo.”

15 Ver: https://montevideo.gub.uy/noticias/diversidad/celebramos-el-dia-del-orgullo-lgbtiq

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O MURMÚRIO CONSERVADOR. NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM
ESTUDO DE SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

El comentario citado fue posteado en una red social como reacción a una

publicación en la que se compartían fotos de varias de las ilustraciones con el mensaje “En el

Hall de la Intendencia de Montevideo. Un acto más de la imposición ideológica que venimos

denunciando.

Las fotos suscitaron además comentarios como “repudio, vergüenza y asco” o “que

inmundicia”, así como alusiones a la pérdida de valores, el atentado violento al pudor y la

intensión de compra de votos por parte del gobierno; dieron también lugar a reiteradas

llamadas a votar en el prerreferéndum contra la Ley Integral para las Personas Trans (N.°

19.684) que se llevaría adelante en agosto de ese año. La publicación fue hecha por FECOPRI

—Federación Estudiantil Contra la Opresión Ideológica16.

El tiempo que parece haber estado activa esa federación es muy corto (entre

mediados de 2018 y fines de 2019). Se podría adelantar la idea, tentativa, de que se trata de

un ejemplo de expresión conservadora que toma forma organizada en un momento dado

muy puntual y que asume un par de objetivos específicos sin vocación de permanencia. Pero

importa, también, registrar la proliferación de movimientos con mayor o menor duración

que, sin embargo, contribuyen a afirmar un discurso político contra reivindicaciones y

prácticas que son producidos en el inicio del siglo XXI en un campo de disputa ante prejuicios

y discriminaciones históricos.

Y toda esta movida comienza en las escuelas”. Llama la atención la fuerza con la

que se vincula el repudio a la expresión artística que da color y forma a la causa LGTBIQ+ en

el atrio de la intendencia con la denuncia de cierto origen del mal ubicado en la escuela; “el

mundo se está llenando de perversos pedófilos”, “quieren cambiar la mentalidad a las

personas” y “llenar[le] la cabeza de mierda” a sus hijos.

Otro comentario en la misma publicación iba en la misma línea: “Y esto es el arte

que alimenta nuestra cultura? Qué mentes depravadas. Estudien y trabajen duro, verán que

no les queda tiempo para pensar en pavadas.

***

16 Ver: https://twitter.com/FECOPRI1 y https://www.facebook.com/fecopri1/

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Una maestra de la localidad de Salinas, Canelones, propuso la siguiente tarea

domiciliaria para su grupo de 6to año de escuela:

“Lee los tres artículos que les enlacé. Conversa e investiga en familia sobre
el tema. Luego responde:
1) ¿Qué se conmemoró el día de ayer en nuestro país? ¿Por qué se
realiza en este día?
2) ¿Por qué habitualmente se hace una marcha en silencio? ¿Qué se
hizo este año, por ser un año especial, para conmemorar la fecha?
3) ¿De quiénes son los rostros que aparecen en esas fotografías?
4) ¿Con qué acontecimiento histórico de nuestro país está
relacionado?
5) ¿Qué representa esa margarita negra a la que le faltan pétalos?”

Era 21 de mayo de 2020. Sus alumnos y alumnas accedieron a la tarea en la

plataforma virtual del sistema de educación pública.

Hacía semanas que la Marcha del Silencio estaba en la agenda pública uruguaya, ¿se

podría realizar el 20 de mayo una marcha masiva, como suele ser, en medio de la pandemia?

¿Se suspendería por primera vez en 25 años la manifestación dedicada a la memoria de las

víctimas de la última dictadura y al repudio del terrorismo de Estado?

Alguien sacó una foto de la pantalla del laptop de algún niño o niña de esa clase y

publicó en sus redes sociales un cuestionamiento a la tarea. La dinámica del mundo virtual

no tardó en dar lugar a re-posteos de la imagen con alusiones a “una violación de la

laicidad”, “adoctrinamiento marxista”, “abuso ideológico de la izquierda” y “comunismo de

los maestros”, entre otros. Tampoco faltó quien apelara a que “las autoridades tomen

medidas contra esta maestra” —de quien se estaba publicando nombre, escuela en la que

trabaja y grupo— o directamente a “destituirla ya”. En muchos casos en el entramado de

publicaciones en más de una red social en los que se publicó la misma foto de la tarea con

comentarios como los citados en el párrafo anterior, se etiquetaron o mencionaron los

perfiles de autoridades del sistema educativo o del presidente de la República.

3. Una propuesta teórico-metodológica.

¿Cómo estudiar, a partir de eventos del debate público, las nociones sobre

educación que circulan en la contemporaneidad uruguaya y los modos en los que en ellas se

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O MURMÚRIO CONSERVADOR. NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM
ESTUDO DE SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

articulan perspectivas conservadoras? Esta investigación procura habilitar la comprensión de

los modos en que se construyen y operan lógicas conservadoras respecto de la educación en

el “murmullo” (DELEUZE, 1987) de una arena discursiva amplia y actual.

De este modo, cobra relevancia el cometido de entender el tejido de líneas de

subjetivación que atraviesan el debate público en el presente político de Uruguay y los

modos en los que estos se trazan en y hacia el plano de la educación. Interesa entender

cómo se articula la discusión pública sobre la educación —y el sistema educativo— más allá

de los agentes institucionales o de los programas oficiales. Así, la investigación pretende ser

sensible a ese “murmullo” en el que se habla de educación desde múltiples ámbitos, de

muchas formas y a distintas escalas; un “se habla” en el sentido que elabora Deleuze (1987)

a partir del análisis de la obra de Foucault17. Me pregunto qué resonancias se pueden

escuchar entre los pronunciamientos de legisladores o ministros en sus intervenciones

públicas y las expresiones de padres y madres que deciden exponer en sus redes sociales las

decisiones metodológicas de las maestras de sus hijos, o de organizaciones de distinto tipo

que militan aspectos más o menos abarcativos del campo educativo y los posteos indignados

de particulares anónimos.

Guattari (2013) propone caracterizar de manera esquemática dos tipos de abordaje

que suponen respectivamente:
- o bien poner al día una arqueología externa de formaciones de poder

cuyo funcionamiento se ejerce a partir de sistemas de redundancia
extrínsecos de códigos explícitos, de instancias represivas manifiestas: por
ejemplo la constitución de poderes escolares, médicos, psiquiátricos, que
moldean «desde el exterior» la familia, el cuerpo, el individuo, el deseo, en
función de tecnologías micropolíticas y microfísicas particulares;

- o bien localizar la emergencia de esas mismas formaciones de poder
a partir de redes moleculares de máquinas deseantes que atraviesan de
forma mucho más subterránea los niveles del cuerpo, del individuo, de la
familia, de la escuela, del ejército, etc.

Ninguna de estas dos perspectivas podría tener anterioridad o
prioridad sobre la otra (GUATTARI, 2013, p.84).

17 Esta lógica se vincula con la elaboración de discurso y de enunciación: “un mismo enunciado puede tener
varias posiciones, varios emplazamientos de sujeto (…) Pero todas estas posiciones no son las figuras de un Yo
primordial del que derivaría el enunciado: al contrario, derivan del enunciado, y por esa razón son los modos de
una «no-persona», de un «ÉL» o de un «SE», «El habla», «Se habla», que se especifica según la familia de
enunciados.” (DELEUZE, 1987, p.33) “El «SE habla», como murmullo anónimo que adquiere tal y tal aspecto
según el corpus considerado.” (DELEUZE, 1987, p.44).

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Una preocupación de este proyecto fue evitar proponer un recorte basado en el

medio, ámbito o soporte de la enunciación (no se propone un estudio restringido a notas de

prensa o a discusiones parlamentarias o a textos de política educativa). Tampoco se basó,

estrictamente, en el análisis de discurso de determinados agentes, en el sentido de que lo

que importa no es poner el foco en quién enuncia. Se descartó por lo tanto un estudio de

caso que mirara tal o cual grupo, partido, institución o particular. Dada la construcción del

problema y del objeto a tratar, sí importó poder dar cuenta de las interacciones y resonancias

que se generan desde instancias, plataformas y posiciones diversas en un debate amplio, a

partir de determinados asuntos que se vinculan con la educación. De la separación

esquemática realizada por Guattari, esta investigación se ubicaría principalmente en el

segundo tipo de análisis.

Se hacía difícil encontrar el camino en los manuales de metodologías de las ciencias

sociales. Inicialmente, dos conceptos sirvieron de apoyo y de herramienta en el camino a

construir.

En primer lugar, de la tradición del socioanálisis, en el contexto del análisis

institucional francés, surge el concepto de analizador, que autores como Lourau (1993)

toman y elaboran a partir de Guattari (2004). Los analizadores son elementos, hechos o

fenómenos en los que se manifiestan con mucha pujanza las contradicciones, relaciones y

concepciones de un sistema, de modo que permiten el análisis de los procesos instituidos e

instituyentes que les dan lugar. Pueden ser hechos aparentemente insignificantes o episodios

de gran notoriedad, disrupciones del orden esperado o escenas de la vida cotidiana. Son

“acontecimientos (…) que hacen aparecer, de un solo golpe, la institución ‘invisible’”, dice

Lourau (1993, p. 35), y a partir de los cuales se puede elaborar un análisis. Claro que, desde

esta perspectiva, la implicación de quien investiga es otro elemento central, motivo por el

cual debe comprenderse que ese “aparecer” de lo “invisible” no se vincula con un

movimiento de “descubrimiento” de una realidad objetiva. Justamente, la apuesta está en

los procesos de producción de la investigación que habilita partir de un analizador o un

conjunto de analizadores.

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En segundo lugar, de Foucault y de Veyne viene el aporte del concepto de

acontecimiento18. Las historias que cuentan los historiadores, dice Veyne (1984), se pueden

entender como los itinerarios que han decidido seguir en el campo de los acontecimientos:

“ningún historiador describe la totalidad de este campo, pues al tener que escoger un

itinerario no puede recorrerlo en toda su amplitud; ninguno de esos itinerarios es el

verdadero, ninguno es la Historia” (p.37). Además, “un acontecimiento no es un ser, sino una

encrucijada de itinerarios posibles” (p.37), “no existe hecho histórico elemental,

acontecimiento-átomo” (p.35). El acontecimiento, desde una perspectiva foucaultiana se

vincula con un trabajo en el que no se incorpora la historia en el sentido de una linealidad

sino de pliegues y fisuras. Así, como se verá más adelante, el material empírico que se

utilizará (las declaraciones, los comentarios, los hilos o posteos en redes sociales con sus

materiales audiovisuales, las leyes o documentos) no asumirá un estatus de verdad, sino que

compondrá un registro de una historia en la que no hay una mecánica continua: los

acontecimientos irrumpen en instancias singulares, son algo cortante, punzante, expresan “el

azar de la lucha” (FOUCAULT, 1992, p. 20).

Foucault nos hace una advertencia: no hacer con el acontecimiento “lo que se ha

hecho con la estructura”,
[es importante] considerar detenidamente que existe toda una
estratificación de tipos de sucesos19 diferentes que no tienen ni la misma
importancia, ni la misma amplitud cronológica, ni la misma capacidad para
producir efectos. El problema consiste al mismo tiempo en distinguir los
sucesos, en diferenciar las redes y los niveles a los que pertenecen, y en
reconstruir los hilos que los atan y los hacen engendrarse unos a partir de
otros (FOUCAULT, 1992, p. 179).

19 En esta traducción en oportunidades se utiliza “suceso” para “acontecimiento”.

18 También será importante para la realización de la investigación el aporte de Deleuze y Guattari sobre
acontecimiento —por ejemplo, a partir de cómo elaboran la relación entre acontecimiento y concepto
(DELEUZE y GUATTARI, 2010), o a partir de la singularidad en el acontecimiento y su carácter problemático y
problematizante (DELEUZE, 1994)— pero no se aborda esa vertiente en este apartado. Por otro lado, Lazzarato
(2006), propone una lectura en la que vincula la filosofía del acontecimiento con algunos asuntos centrales a
este proyecto. “Las sociedades de control se caracterizan por la potencia y el poder de sus máquinas de
expresión. La filosofía del acontecimiento nos permite instalarnos en el centro de este nuevo terreno de lucha,
desestimado por las sociedades disciplinarias, donde se enfrentan las lógicas y las prácticas de la expresión y de
la creación con las lógicas y las prácticas de la comunicación y la información.” (LAZZARATO, 2006, p. 151) El
autor señala que, a partir de Deleuze, puede entenderse el mundo como “una multiplicidad de relaciones y de
acontecimientos que se expresan en agenciamientos colectivos de enunciación que crean lo posible” (p.48) y
avanza sobre los modos en los que actúan las máquinas de expresión en el proceso de actualización de lo
virtual (o creación de lo posible) y en el control de la subjetividad.

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Los conceptos de analizador y acontecimiento se tomaron como insumo para la

estrategia de trabajo a seguir20. Enfocarse en el “murmullo” implica identificar los hilos

discursivos y las producciones subjetivas que hacen “engendrarse unos a partir de otros”

elementos de distintas características y magnitudes en el debate sobre educación de modo

que los efectos se propagan al mismo tiempo de lo macro a lo micro y de lo micro a lo macro

de maneras que no están ya dadas.

A estos dos conceptos quisiera sumar una tercera referencia metodológica: el

“evento”, de la cual en este caso importa el cómo de su utilización más que el contenido

concreto que tuvo en la investigación de la que la tomo. En el programa de investigación

“Alternativas pedagógicas y prospectiva educativa en América Latina” (APPEAL), coordinado

por Adriana Puiggrós en los años 1980, se propuso la categoría “alternativas pedagógicas”

para referir a distintas experiencias de prácticas educativas que modifican, varían o

transforman uno o varios elementos del modelo educativo tradicional. En el capítulo de

“recaudos metodológicos” del volumen que presenta el programa, la autora explica: “se

eligió la categoría alternativas pedagógicas entendiendo que permite recopilar una variedad

importante de eventos que tienen en común contener elementos que se distinguen del

modelo educativo dominante” (PUIGGRÓS, 1990, p. 18). Y luego agrega:
Hemos capturado cerca de tres mil eventos de cinco países
latinoamericanos, del periodo que abarca desde 1880 hasta 1980, a partir
de la amplia categoría “alternativas pedagógicas”. La mayor parte de ellos
no había sido registrada por los textos de historia de la educación de los
respectivos países (PUIGGRÓS, 1990, p. 22).

Lo que interesa en este caso, ciertamente, no es la temática de las alternativas

pedagógicas ni el número de eventos sino la manera en la que se trabaja con ellos.
La categoría alternativas no interesa como pauta para construir una historia
paralela de la educación o una historia de la educación popular desligada de
la historia oficial. El hallazgo de las alternativas en forma fragmentaria
obliga a producir un trabajo de reinserción en la historia de la educación
que modifica el conjunto de los discursos en juego [...].
No se trata de coleccionar alternativas, sino de tomarlas como huellas de
discursos desarrollados en complejas situaciones sociales. De lo contrario,
nos transformaríamos en coleccionistas de experiencias, hechos y discursos,

20 No son conceptos equivalentes. Los alcances de este texto impiden un desarrollo conceptual más profundo
de cada uno de ellos. La intención es subrayar que se recurrió a ambos en el proceso de diseño metodológico,
como herramientas que permitieron acercarse a una manera de pensar, a una forma de imaginar la
investigación posible.

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a la manera de los viejos botánicos incapaces de superar una lógica
clasificadora.
El tratamiento de las alternativas no nos interesa como “estudio de casos”
sino de síntomas que denuncian procesos (PUIGGRÓS, 1990, p. 23).

Tomé prestada la idea de los “eventos” como una forma posible de hacer tangible el

acontecimiento para su análisis en este proyecto.

Así, el tema propuesto en esta investigación se estudia a partir de una combinación

de fuentes, a fin de dar cuenta de múltiples esferas de producción y vehiculación del debate

público contemporáneo en el que se trata sobre educación. Se consideran, inicialmente, dos

tipos de “eventos”: por un lado, las instancias en que un determinado asunto genera

producciones sobre la educación en ámbitos variados (redes sociales, prensa, discursos de

autoridades, documentos oficiales); por otro, las instancias en que, a raíz de un asunto no

directamente vinculado a la educación, se introduce en el debate algo de lo educativo. El

apartado anterior de este artículo inicia con un evento de este segundo tipo.

Se parte entonces de la recopilación21 y análisis de contenidos mediáticos o de redes

sociales producidos por grupos, movimientos, instituciones o particulares que se

identifiquen con banderas anti-derechos, anti-“ideología de género”, anti-“marxismo

cultural”. A partir de ese material, se identifican los eventos sobre los que se va a profundizar

el análisis y se rastrean y analizan, según sea pertinente, notas de prensa que hayan tratado

el tema, discusiones parlamentarias y/o documentos programáticos de campaña electoral en

sus apartados vinculados a la educación, así como pronunciamientos de otras organizaciones

o actores, y otras manifestaciones que hayan tenido lugar en ocasión de esos eventos.

Se podría establecer este como el elemento arqueológico que se desarrolla en la

investigación a partir de un corpus “de palabras, de frases y de proposiciones” (DELEUZE,

2013, p. 68) conformado a partir de focos de producción discursiva (y no discursiva) de un

campo conservador.

Cuando Deleuze (1987, 2013) aborda el esfuerzo de Foucault por trabajar con los

enunciados de una determinada formación histórica, subraya que ninguna época oculta nada

—no se trata de que las lógicas o mecanismos del poder estén ocultos ni de que las

21 Parte de este trabajo está siendo realizado con los aportes de otros miembros del Grupo de Estudios sobre
Políticas y Prácticas Educativas (GEPPrEd), coordinado por Dr. Pablo Martinis en la Facultad de Humanidades y
Ciencias de la Educación de la Universidad de la República, Uruguay.

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producciones sean veladas— y que, sin embargo, los enunciados no están explícita o

inmediatamente dichos. Hay que extraerlos —identificarlos en el trabajo arqueológico con

ese corpus del que se parte.
[…] cada formación histórica ve y hace ver todo lo que puede, en función
de sus condiciones de visibilidad, al igual que dice todo lo que puede, en
función de sus condiciones de enunciado. Nunca hay secreto, a pesar de
que nada sea inmediatamente visible, ni directamente legible. Y, en los dos
casos, las condiciones no se reúnen en la interioridad de una conciencia o
de un sujeto, ni tampoco componen un Mismo: son dos formas de
exterioridad en las que se dispersan, se diseminan, aquí los enunciados, allí
las visibilidades (DELEUZE, 1987, p. 87-88).

En efecto, lo visible y lo enunciable son las condiciones que, al articularse,

posibilitan definir una época como formación histórica: son los a priori de una formación

histórica. Deleuze (1987, 2013) identifica en Foucault un uso particular del concepto de a

priori: observa que “las condiciones de la experiencia son a priori, es decir, no están dadas en

la experiencia misma” (DELEUZE, 2013, p. 38). Por lo tanto, desde esta perspectiva, los a

priori son históricos.

Este marco da lugar a otra preocupación metodológica de este proyecto: el

elemento genealógico — la pregunta por las condiciones de posibilidad de un

acontecimiento, la pregunta por las huellas históricas de los enunciados.
La genealogía no pretende remontar el tiempo para restablecer una gran
continuidad por encima de la dispersión del olvido. (…) Nada que se
asemeje a la evolución de una especie, al destino de un pueblo. Seguir la
filial compleja de la procedencia, es al contrario mantener lo que pasó en la
dispersión que le es propia: es percibir los accidentes, las desviaciones
ínfimas —o al contrario los retornos completos—, los errores, los fallos de
apreciación, los malos cálculos que han producido aquello que existe y es
válido para nosotros; es descubrir que en la raíz de lo que conocemos y de
lo que somos no están en absoluto la verdad ni el ser, sino la exterioridad
del accidente (FOUCAULT, 1992, p. 13).

Ni la búsqueda de los orígenes, ni la clausura en la explicación de la irrupción de una

singularidad: “La inteligibilidad que se propone en la genealogía no funciona según un

principio de cierre” (FOUCAULT, 1995, p. 16). Los análisis que trabajan en líneas de

genealogía consideran relaciones de fuerza, desarrollos estratégicos, tácticas.

De este modo, la intención metodológica es la de que puedan articularse vectores

que no encierren el análisis en sentidos importados de conservadurismos pasados, sino que,

por el contrario, lo abran a líneas en las que puedan observarse espacios, fracturas y fugas.

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Nuevamente, sirve la referencia de la estrategia de trabajo de Puiggrós en el

programa APPEAL:
Las categorías que utilizamos se nutren de nuestra concepción sobre la
realidad y la educación; se configuran en torno a los problemas que nos
preocupan y deben ser modificadas en el curso de la investigación de esos
problemas. Que se produzca ese cambio de las categorías o de aspectos de
ellas durante el trabajo, es una prueba contundente de la fertilidad de la
relación que establecemos con los problemas que nos preocupa estudiar. Si
el vínculo entre el intelectual y su campo problemático se establece, puede
haber producción de conocimiento y los nuevos saberes modificar las
teorías que les preceden (PUIGGRÓS, 1990, p. 14).

Importa asimismo colocar la investigación en diálogo con los estudios del presente

que prestan atención a la producción de subjetividad y a los movimientos de adaptación del

capitalismo en la era digital. En particular, son antecedentes relevantes una serie de trabajos,

de investigadores e investigadoras de nuestra región, que toman estos elementos de una

tradición teórica común a la que se propone en este proyecto y avanzan sobre estas

reflexiones de la mano de Foucault (gubernamentalidad, biopolítica, subjetivación), Deleuze

y Guattari (control, agenciamientos maquínicos, dividuos). Así, se plantean entonces

preguntas acerca de las condiciones de posibilidad de una episteme que se (re)organiza en el

espacio tecnológico así como de las relaciones de fuerzas y modos de subjetivación que

operan en el marco de estas formas de saber-poder (RODRÍGUEZ, 2018, 2019). Dirigen

también su atención al aumento del interés tecnocientífico y de las inversiones económicas

que manejan volúmenes escandalosos de bigdata para el estudio y la modificación del

comportamiento humano, llegando a hablar de una “Economía Psíquica de los Algoritmos”

vinculada a “procesos algorítmicos de extracción y uso de datos psíquicos y emocionales”

(BRUNO, BENTES, FALTAY, 2019). O se apoyan en la hipótesis de que asistimos a un cambio de

época, un pasaje de la conocida era moderna (siglos XIX y XX) hacia lo contemporáneo

(últimas décadas del siglo XX al presente) en el que lo público y lo privado se estremecen y

que las subjetividades producidas en este pasaje, configuradas en estrecho contacto con las

tecnologías digitales, tienen que ver con un modo de vida definido como “performático”, tan

disperso como visible y conectado (SIBILIA, 2005, 2008, 2012).

Estos antecedentes aportan a la manera en que podemos comprender los “eventos”

del campo que interesa indagar y permiten el análisis de los caracteres novedosos del

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fenómeno a estudiar en su expresión actual, así como de sus continuidades y raíces

históricas: el trabajo debe tener en cuenta la historicidad del asunto que se aborda (CASTEL,

2013), entender los mecanismos de larga duración a los que responde y ser sensible a las

particularidades de la coyuntura actual.

4. Algunas consideraciones a modo de cierre

¿Cómo se producen “verdades” sobre la educación? ¿Cómo se le da impulso al

mismo tiempo a una avanzada conservadora? Seguir el rastro de los financiamientos, las

donaciones, las vinculaciones contractuales o comerciales sería un camino. También sería

relevante centrar el análisis en los tomadores de decisiones, los actores de peso en

posiciones de poder, o identificar las redes de instituciones y agentes que intervienen en el

debate22.

Este trabajo apuesta a realizar un aporte para la comprensión de los modos en que

lógicas conservadoras respecto de la educación en el Uruguay actual se manifiestan de forma

cotidiana en un murmullo que nos envuelve. Ante el abanico amplio de discusiones que se

vinculan con el problema de investigación propuesto, surge la necesidad de abordar las

solidaridades que emergen entre la actualidad del neoliberalismo y un conservadurismo que

cobra fuerza a nivel planetario pautado por el moralismo, el autoritarismo, el nacionalismo,

el racismo y el mantenimiento del status quo en cuanto a las desigualdades de género, clase

y diversidad sexual.

El estudio de “sistemas en desequilibrio” permite pensar en esta multiplicidad de

facetas del problema como un campo en el que se observan relaciones transversales entre

elementos que no necesariamente pertenecen a las mismas líneas pero que convergen en

determinado momento, si más no sea provisoria y precariamente, generando efectos

específicos. En el evento relatado al inicio de este artículo aparece una pequeña organización

en la que conviven puntualmente y por un período breve la denuncia de adoctrinamiento

22 De hecho, dentro del Grupo de Estudios en Políticas y Prácticas Educativas (GEPPrEd) en el que también se
inscribe esta investigación, se están realizando esfuerzos por avanzar en estos dos caminos: a) mapear actores
individuales, empresariales y organizacionales y analizar prácticas y discursos, b) observar las redes de
financiamiento y de apoyos económicos directos e indirectos atrás de grandes iniciativas vinculadas con la
educación en Uruguay (por ejemplo, aquellas habilitadas por el mecanismo de las donaciones especiales). Ver:
Martinis, 2020a y 2020b.

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marxista en la educación pública uruguaya con la militancia en contra de los derechos de la

población LGBTIQ+. En un trabajo reciente (MARTINIS y RODRÍGUEZ, 2021) nos preguntamos

si, bajo la óptica de procesos de escandalización23, se podían pensar relaciones entre la

mediatización de denuncias de proselitismo docente y los modos en que se publicitan los

índices de cobertura de la educación media y los resultados de las pruebas PISA. Buscamos

entender, a partir de las lógicas transversales a esos procesos, algunos elementos que hacen

a la construcción de una idea de crisis de la educación pública uruguaya. Eso permitió

esbozar, como parte de un trabajo en construcción, algunas hipótesis sobre los caminos que

se abren paso para la educación, en particular en cuanto a su carácter público, desde las

perspectivas conservadoras analizadas.

La construcción discursiva que sostiene que la educación se encuentra en crisis y

debe ser repensada permea la historia de la educación y ha tenido mucha fuerza en el

debate público uruguayo de los últimos años. Las campañas electorales de todos los sectores

han recurrido a esa imagen en distintas oportunidades. Vale recordar la campaña del Frente

Amplio por “cambiar el ADN de la educación”24 a partir de 2014-15. Además, ha sido

defendida recientemente por distintos actores del campo social y político. El Senador Manini

Ríos en un debate de febrero de 2022 en campaña previa a un referéndum25 afirmó que “la

inmensa mayoría de los uruguayos está de acuerdo de que la educación está en franca

decadencia” (sic, RÍOS, 2022). El think tank EDUY21 advirtió que “la crisis de la educación,

prolongada, instalada y crecientemente percibida como tal, permea al sistema educativo en

su conjunto y se explicita más claramente en el sistema de educación media” (EDUY21, s/f:

1). La existencia de una “emergencia educativa” apareció además en el acuerdo

programático de la actual coalición de gobierno:

25 Debate del 22 de febrero de 2022 organizado en el contexto de la campaña previa al referéndum contra 135
artículos de la Ley de Urgente Consideración Nº19889. Dentro de esa cantidad de artículos, el referéndum lleva
a consulta ciudadana si admitir o derogar 34 de los 79 artículos del área “educación”.

24Ver por ejemplo:
https://www.180.com.uy/articulo/64446_revitalizar-la-comunidad-educativa-es-el-inicio-profundo-del-cambio-
del-adn-de-la-educacion o
https://www.elobservador.com.uy/nota/vazquez-insistio-en-necesidad-de-cambiar-adn-de-la-educacion--20168
30500

23 Concepto que tomamos de Steiner-Khamsi (2003) quien estudia procesos de escandalización o glorificación
de acuerdo a los modos en los que se elaboran consideraciones sobre los sistemas educativos a partir de
distintos énfasis puestos o bien en las debilidades o bien en las fortalezas de los resultados de pruebas
estandarizadas de gran escala.

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Bissio

El país enfrenta una emergencia educativa. Si no conseguimos revertir a
corto plazo los problemas de cobertura, desvinculación, inequidad y calidad
de aprendizajes, corremos el riesgo de dejar de ser la sociedad que hemos
sido y que queremos ser (COALICIÓN MULTICOLOR, 2019, p. 27).

De este modo, el programa presenta la idea de que la “emergencia” en la educación

pone en riesgo a la sociedad. Como señalamos en un trabajo anterior (CONDE, FALKIN y

RODRÍGUEZ. 2020), se deduce de ello una demanda hacia lo educativo que no reconoce en la

desigualdad propia de nuestra sociedad un elemento que atenta contra las posibilidades de

configurar un sistema educativo universal e igualitario. Interesa indagar en esas

significaciones asociadas a la educación y a su lugar en la construcción de lo que somos como

sociedad.

“Deberían hacerlo ya!!! No se puede perder más tiempo!!! Si no se hace[,] el mal va

a ser irreparable!!!” clama una respuesta a un tweet de que expresa:
Nivel de fanatismo, agresividad e ‘intoxicación’ que se lee en algunas
‘maestras de escuela pública’, según perfiles de sus cuentas en redes, es
alarmante. La grieta se siembra y alimenta desde la escuela pública.
Autoridades deben actuar sin más dilaciones y ponerle fin al disparate
(Tweet de 1:46 PM · Jul 20, 2021).

La idea de urgencia, de alarma, de potencial daño irreparable, de disparate, remite a

la noción de riesgo ante una crisis o situación de emergencia asociada a lo que se identifica

como “fanatismo”, “agresividad”, “intoxicación” por parte de los y las docentes. Además de la

ya citada, el tweet recibió una larga fila de respuestas. Alguien aporta una captura de

pantalla con una tarea de historia relacionada con el período de dictadura del 1973 al 1985

que una docente puso a su clase (como en el segundo evento relatado al inicio de este

artículo, son particularmente copiosas las respuestas que suscita este tipo de publicaciones

en las que se exponen en redes sociales propuestas didácticas relacionadas con el tema de la

denominada “historia reciente”.) La idea de “adoctrinamiento” no tarda en aparecer: “El

Instituto Normal viene adoctrinando maestras desde hace más de 50 años”; “No tienen la

sagrada vocación del magisterio. El amor por la Enseñanza es totalmente opuesto al

adoctrinamiento de la inocencia”.

En un hilo que comienza con un tweet del Senador Juan Sartori sobre cómo “las

pruebas PISA demostraron, una vez más, la difícil situación en la [que] está la educación en

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O MURMÚRIO CONSERVADOR. NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM
ESTUDO DE SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

Uruguay” (@JuanSartoriUY, 2019 Twitter se dan intervenciones de apoyo y de crítica. En

algunos casos el diagnóstico es reforzado por una experiencia personal —“Tengo un hijo

adolescente y te aseguro q la educación es un desastre, hay q reformar muchas cosas”— o

por una suerte de generalización, vagamente relacionada con algún caso cercano —“Sin

duda que la educación del Uruguay se ha deteriorado, es triste que nuestros hijos no

conozcan quiénes fueron nuestros próceres, que no sepan las fechas patrias, que ya no se

usen recordar con actos en las escuelas [es] vergonzoso”. En otros casos los comentarios

parecen apuntar a las causas de “la difícil situación en la que está la educación”: comienzan a

circular ideas como que “lo que existe es inadecuada metodología para la educación” o que

el problema se relaciona con “[el] cogobierno y que los maestros en primaria decidan en

lugar de acatar las directivas”, con “los funcionarios puestos a dedo, caso UTU26, y que van a

hacer nada solo hablar de los beneficios del Frente Amplio” o con “esos dos votos de

maestros en el CODICEN27 [que] te la van a hacer cuadritos y si los sacas te la van a hacer el

doble” —y de ahí, nuevamente, la idea de que la crisis está asociada con las trabas impuestas

por los sindicatos docentes o la avanzada de prácticas de adoctrinamiento y proselitismo en

los centros educativos.

La idea de emergencia educativa asociada a la inminencia de un “mal irreparable” o

al “riesgo de dejar de ser la sociedad que hemos sido y que queremos ser” es

llamativamente cercana a la de “Una nación en riesgo”, el informe de la Comisión Nacional

de Excelencia en la Educación de los Estados Unidos que, en 1983, durante la administración

Reagan, sostuvo que a lo largo y ancho del país la educación estaba fallando y apuntó la

imperiosa necesidad de una reforma educativa. El informe afirmaba que "los fundamentos

educativos de nuestra sociedad están siendo erosionados actualmente por una creciente

marea de mediocridad que amenaza nuestro propio futuro como nación y como pueblo"28

28 Traducción de la autora.

27 El Consejo Directivo Central (jáCODICEN) es el órgano rector de la Administración Nacional de Educación
Pública (ANEP). De él dependen la Dirección General de Educación Inicial y Primaria, la Dirección General de
Educación Secundaria, la Dirección General de Educación Técnico Profesional (o UTU) y el Consejo de Formación
en Educación. Tres de sus cinco miembros son designados por el Presidente de la República actuando en
Consejo de Ministros, previa venia de la Cámara de Senadores; los dos restantes son electos por el cuerpo
docente de la ANEP.

26 La UTU (llamada así hasta hoy por la sigla de la Universidad del Trabajo del Uruguay) integra la Administración
Nacional de Educación Pública (ANEP) actualmente constituida en Dirección General de Educación Técnico
Profesional (ver https://www.utu.edu.uy/institucional/presentacion). Ofrece educación técnica y tecnológica de
nivel de enseñanza media y terciaria y formación profesional básica y superior.

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Bissio

(NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p.6). Más que por su

impacto directo en la política, siguiendo a Schneider (2018) se puede entender que la

importancia de "Una nación en riesgo" se ubica en que es un mojón relevante en el

momento en que se establece una narrativa de fracaso de la educación pública en Estados

Unidos que ha perdurado durante las últimas décadas y sobre la cual se han edificado

revisiones de la política educativa. Schneider y Berkshire (2020) señalan que los discursos

sobre el fracaso de las escuelas públicas y la consecuente necesidad de intervenciones

drásticas y urgentes se puede rastrear, al menos, a los años 1820 (SCHNEIDER y BERKSHIRE,

2020, p. xviii). Los autores se dedican a analizar las particularidades del avance

contemporáneo de discursos de descrédito del sistema público al tiempo que se vive un

revival de las políticas de váuchers. Además, la actualidad y la fuerza de la narrativa de

fracaso pueden verse por ejemplo en las encuestas realizadas por Phi Delta Kappa, que

indican que los estadounidenses mantienen una tendencia cada vez más pronunciada a

evaluar negativamente al sistema educativo en general, incluso cuando evalúan

positivamente a las escuelas a las que concurren sus hijos e hijas29 (PKD, 2019).

¿Dónde y cómo se arraigan esas imágenes sobre el estado de la educación? ¿Cómo

cobra fuerza esa producción de verdad? Parto de la idea de que adentrarse con profundidad

en las disputas discursivas cotidianas directamente concernientes a lo educativo (un tipo de

“eventos” con el que se pretende trabajar) y explorar los modos en que emergen

argumentos vinculados a la educación en debates sobre asuntos amplios (segundo tipo de

“eventos”) puede aportar a la generación de conocimiento en este sentido, en particular

sobre las lógicas conservadoras que resuenan con respecto al lugar que otorgamos a la

educación dentro del espectro de asuntos que interpelan nuestro presente.

29 En sus sucesivas ediciones la encuesta del PDK trabaja a nivel nacional con muestras estadísticas encuestando
docentes del sistema público de enseñanza, padres y madres de niños, niñas y adolescentes que concurren
actualmente estudian en escuelas públicas y público en general. La encuesta incluye preguntas en las que pide
calificar a las escuelas públicas a nivel nacional y local con la tradicional escala de A, B, C, D y Reprobado que se
utiliza en el país para evaluar los desempeños de estudiantes. En la edición 2019, el 19% de los
estadounidenses da a las escuelas del país una calificación de A o B, mientras que el 44% da esas notas a sus
escuelas locales (porcentaje en el que de todos modos se registra una caída frente al 53% seis años antes).
Considerando únicamente a padres y madres de alumnos de primaria y secundaria, el 60% valora positivamente
a las escuelas de su comunidad, el 76% da una calificación de A o B a las escuelas de sus hijos e hijas, y solo el
25% califican las escuelas del país con esas notas. Si se considera únicamente a docentes, las respuestas siguen
las mismas tendencias (PKD, 20219).

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O MURMÚRIO CONSERVADOR. NOTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA UM
ESTUDO DE SISTEMAS EM DESEQUILÍBRIO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

Cabe subrayar un cuidado que la investigación procura tener: que el reconocimiento

de tendencias conservadoras vinculadas con posturas tradicionalmente identificadas con la

derecha política no fosilice una razón binaria derecha/izquierda o

conservadurismo/progresismo, sino que permita comprender ciertas lógicas como

producciones discursivas que circulan en campos más complejos de producción de verdades

y que tienen efectos cotidianos y moleculares más allá de esos binarismos.

El bullicio virtual suscitado por el evento de la tarea domiciliaria sobre la Marcha del

Silencio del 20 de mayo de 2020, relatado en el segundo apartado de este artículo, llegó a un

grupo de Facebook de maestros y maestras uruguayos. “Lean el programa”, reclamaba una

maestra copiando imágenes del curriculum oficial vigente. Tras lo que fuera un espinoso

debate público en los años 2005 a 2008, el programa prevé para sexto año de primaria un

bloque temático sobre rupturas institucionales que incluye “la crisis política y el golpe de

Estado de 1973, (…) la ruptura del Estado de Derecho, la supresión de garantías individuales

y colectivas, la represión y violación de los derechos humanos” (ANEP, 2013, p.220). De todos

modos, otra maestra responde a esa publicación en el grupo diciendo: “Por eso es mejor no

meterse con esos contenidos ni con los de sexualidad. Si bien el programa nos ampara, el mal

trago lo pasamos. Yo opté hace años por no trabajar más estos contenidos, son muy vidriosos

(para el ojo exterior).”

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Data do envio: 27/05/2022
Data do aceite: 27 /07/2022

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 45 - 65 ISSN 1807-6211
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INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS EM
DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E VIGOTSKI

BANDIT INTELLIGENCE – SKETCH OF AN EPISTEMOLOGY OF THE SLAMS IN
DIALOGUE WITH PAULO FREIRE AND VIGOTSKI

Rodrigo Torquato da Silva30

Fábio Rodrigues31

Willian Alencar32

Resumo
O artigo que segue é resultado do amálgama de 50 anos de “Leitura de Mundo” com pelo
menos 30 anos de experiência com a Educação Popular em favelas e escolas. Trata-se de uma
formulação teórica banhada na potência criativa (VIGOTSKI, 1984) que emerge de vivências e
experiências de classe nesses espaços. O artigo é o resultado de um desdobramento, com
aprofundamento, de estudos anteriores. É deste aprofundamento teórico que emerge a
problemática que será apresentada a seguir, ora denominada de INTELIGÊNCIA BANDIDA. É
importante ressaltar que não se trata de uma ode à bandidagem das favelas e sim do
resultado de experiências de classes que se forjaram à revelia das conformações mais cruéis
impostas às Classes Trabalhadoras das Favelas, pelo capitalismo brasileiro, um capitalismo
dinamizado pela “Dialética da Dependência” (MARINI, 2000) e por uma educação bancária
(FREIRE, 1987).
Palavras-chave: Educação Popular. Favelas. Inteligência Bandida.

Abstract
The following article is the result of the combination of 50 years of “Reading the World” with
at least 30 years of experience with Popular Education in favelas and schools. It is a
theoretical formulation immersed in the creative power (VIGOTSKI, 1984) that emerges from
experiences and class experiences in these spaces. This article is the result of the deepening
of previous studies. It is from this theoretical deepening that emerges the issue that will be
presented below, now called BANDIT INTELLIGENCE. It’s important to emphasize that this is
not about the exaltation of the banditry of the favelas, but the result of class experiences,
which they were forged despite the cruelest conformations imposed on the Working Classes,
by Brazilian capitalism, capitalism dynamized by the “Dialectic of Dependence” (MARINI,
2000) and the banking education (FREIRE, 1987).
Keywords: Popular Education. Slams. Bandit Intelligence.

32 Professor de sociologia da rede estadual do Rio de Janeiro (SEE-RJ). Cria do Complexo da Maré. E-mail:
william_alencar@yahoo.com. Telefone: (21) 96649-7003. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4300-1471

31 Professor/Analista de Educação – Escola SESI / RJ. Cria da Favela Nova Holanda-Maré. E-mail:
frodriguesdasilva76@gmail.com. Telefone: (21)99187-5685. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7365-158X

30 Professor Associado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Líder do Grupo de Pesquisa ALFAVELA;
Advogado e Presidente da Comissão de Educação da OAB/MARICÁ-RJ. Cria da Favela da Rocinha. E-mail:
rtorquato@id.uff.br. Telefone: (21) 986517058. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8381-3821.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 66 - 85 ISSN 1807-6211
66

Silva, Rodrigues e Alencar

Introdução

O Capítulo que segue é resultado do amálgama de algo em torno de 50 anos de

“Leitura de Mundo” – considerando aqui a perspectiva mais radical trazida por Paulo Freire –

com pelo menos 30 anos de experiência com a Educação Popular em favelas e escolas.

Trata-se de uma formulação teórica banhada na potência criativa que emerge de vivências e

experiências de classe nesses espaços. Aqueles que subscrevem este artigo, além de

professores de distintas Instituições de Ensino, são “Crias” de favelas do Rio de Janeiro. Suas

trajetórias os levaram a se constituírem como Professores-Pesquisadores dos três Níveis de

Ensino Brasileiro (Fundamental, Médio e Superior), atravessados pela Educação Popular em

Favelas. No entanto, ao problematizarem e teorizarem sobre as próprias práticas de

pesquisas, constataram, em estudos anteriores já publicados, que estavam diante de um

conceito novo, denominado “Pesquisas Viscerais”. O artigo é o resultado de um

desdobramento, com aprofundamento, dos supracitados estudos e pesquisas. É deste

aprofundamento teórico que emerge a problemática que será apresentada a seguir, ora

denominada de INTELIGÊNCIA BANDIDA.

É importante ressaltar que não se trata de uma ode à bandidagem das favelas, mas

sim do resultado de experiências de classes que se forjaram à revelia das conformações mais

cruéis impostas pelo capitalismo brasileiro às Classes Trabalhadoras das favelas; um

capitalismo dinamizado pela “Dialética da Dependência” (MARINI, 2000) e por uma

educação bancária (FREIRE, 1987).

Cabe explicitar que a reivindicação da radicalidade da “Leitura de mundo” em Paulo

Freire tem o objetivo de preparar o terreno contra críticas meramente moralistas daqueles

que desconhecem os contextos e circunstâncias de existência do Brasil-Favela, visto que a

categoria Inteligência Bandida não é um recurso discursivo, mas sim uma realidade que está

presente nas favelas e se constrói na experiência histórico-social das classes trabalhadoras

que ali sobrevivem.

Os que aqui assinam são ávidos por compreender e problematizar as suas

circunstâncias e a dramaticidade de se conceber na favela. Isso nos permite dialogar com

Paulo Freire, no sentido de compreender a essência da Pedagogia do Oprimido, exatamente

porque ao nos encontrarmos

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 66 - 85 ISSN 1807-6211
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INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS
EM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E VIGOTSKI

(...) desafiados pela dramaticidade da hora atual, [homens e mulheres] se
propõe a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de
seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no
reconhecimento do seu pouco saber de si, uma das razões desta procura.
Ao se instalarem na quase senão trágica descoberta do seu pouco saber de
si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas
respostas os levam a novas perguntas [grifo nosso] (FREIRE, 1987, p. 29).

Embora “Crias” de favelas distintas, os pesquisadores vivenciaram situações que

confirmam a existência de um tipo de inteligência forjada a contrapelo da epistemologia

científico-hegemônica. Tal inteligência, supostamente oriunda dos mais fracos, desafia a

epistemologia da ordem burguesa.

Para melhor compreensão do que está sendo defendido aqui, será apresentado um

capítulo de empirias, no qual será possível constatar as fontes de origem da Inteligência

Bandida, por meio de situações viscerais que expõem as entranhas do capitalismo de

dependência brasileiro e, paradoxalmente, a potência de uma epistemologia engendrada na

favela.

Inteligência bandida – Bases e Fundamentos

A tese central aqui defendida funda-se na ideia de que a Inteligência é o resultado

de complexas interações entre um ser cognoscente – o bicho humano, capaz de internalizar a

representação daquilo que não conhecia, a partir da atribuição de sentido – e a

externalidade cognoscível – aquela que, ao ser estudada, ganha um sentido de existência a

partir do que ela passa a representar. Dito de outra forma, a Inteligência é o que permite

conhecer o que já existe e criar o que ainda não existe. Assim, temos uma espécie de

paradoxo, pois a Inteligência é, ao mesmo tempo, produto dos contextos e criadora de

contextos.

Nesse sentido, os ‘crias’ de favelas são, concomitantemente, produzidos por ela e

criadores dela. Ou seja, são forjados inicialmente a partir de conformações sociais, culturais

e normativas das favelas, ao mesmo tempo em que são criadores de lógicas de sobrevivência

nas circunstâncias que lhes são postas, nas quais o uso da força e a sociabilidade violenta

impõem, dentre o conjunto de possibilidades, a construção e as operações cognitivas das

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 66 - 85 ISSN 1807-6211
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Silva, Rodrigues e Alencar

pessoas nascidas e criadas em favelas.

O aporte teórico que sustenta e impulsiona as reflexões e as bases da tese

apresentada origina-se do diálogo com outras categorias, oriundas de árduas pesquisas, em

especial as de Pesquisa-Pesquisador/a Visceral e Sociabilidade Violenta. Elegemos como foco

empírico-analítico as vivências de pessoas nascidas e criadas em contextos de favelas

distintas, porém dentro de uma mesma contemporaneidade. Assim, a partir dessas

experiências, serão consideradas três fases/dimensões de usos distintos da Inteligência

Bandida: a 1ª, a qual denominamos Gênese, que se limita a uma prática internalizada, mas

ainda não refletida; a 2ª, aqui chamada de Conscientização, que é o agir deliberado e dotado

de uma consciência estratégica; e a 3ª, a Teorização, que se materializa no uso de categorias

para a teorização desse agir.

Cabe ressaltar, porém, que essa categoria é datada a partir de vivências e contextos

históricos específicos. Isso, de algum modo, leva-nos a uma ponderação em relação a sua

aplicação (generalizada) em contextos distintos. No entanto, há uma potência analítica, visto

que ela se consubstancia na problematização aqui proposta.

Aspectos da genealogia da inteligência

Não é possível desconsiderar Piaget como pioneiro nas pesquisas sobre o

desenvolvimento da inteligência e a construção das estruturas cognitivas que vão desde o

nascimento do bebê até a juventude. No entanto, é Vigotski quem vai melhor contribuir para

o que estamos problematizando aqui. Este autor propõe a noção de “Internalização das

funções psíquicas superiores”, na qual inclui a importância das palavras/conceitos (ou seja,

da língua/cultura) na construção do pensamento e da inteligência.

Chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação
externa (...). A internalização das atividades socialmente enraizadas e
historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da
psicologia humana. Até agora, conhece-se apenas um esboço desse
processo (VIGOTSKI, 2007, p. 56-58).

Nota-se: “Até agora, conhece-se apenas um esboço desse processo.” Isso justifica a

nossa hipótese. Coadunados com Vigotski e instigados pela práxis oriunda das nossas

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INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS
EM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E VIGOTSKI

vivências e estudos, defendemos que a sociabilidade que se constitui na favela é uma

externalidade que implica o desenvolvimento de um tipo de inteligência distinta da que se

convencionou como padrão. Por isso, entendemos a “escavação” que estamos realizando

como um processo de descobrimento das raízes das inteligências forjadas nas favelas, na

medida em que as relações sociais e culturais que se dão nesses contextos são fontes

genealógicas dessas inteligências.

Noutra perspectiva, mas na mesma direção, Paulo Freire aduz que:

(...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior
leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.
Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do
texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações
entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato
de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a "reler" momentos
fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as
experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de
minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de
ler se veio em mim constituindo (FREIRE, 2000, p. 11).

Assim, ao apresentarmos as bases teóricas e etimológicas que sustentam a

categoria Inteligência Bandida, problematizamos a tese de que as relações e os contextos das

favelas constituem a condição de possibilidade predominante para a formação do

pensamento. A necessidade de resolver – “desenrolar” – problemas extremamente

complexos nesses espaços (o que, na favela, se chama “DESENROLO”) faz emergir conceitos

originais – sejam eles espontâneos ou reflexos de alguma base científica – resultantes da

dialética entre pensamento e linguagens que estão ali disponíveis. É nesse caldo de culturas

efervescentes que se formam as Inteligências não mapeáveis, radicais (de raiz), distintas do

padrão formal mediano, tal como a Inteligência Bandida. Corroborando com o exposto,

Vigotski, em outra obra, propõe que “a formação dos conceitos surge sempre no processo de

solução de algum problema que se coloca para o pensamento do adolescente. Só como

resultado da solução desse problema surge o conceito” (VIGOTSKI, 2009, p. 237).

Isso permite sugerir que a peculiaridade da inteligência que se forja na favela se dá

a partir de outras bases de mediação, possibilitando, a nosso ver, o desenvolvimento da

Inteligência Bandida. Para Vigotski, a interação social mediatizada pelas

culturas-palavras-circunstâncias em que os sujeitos estão inseridos, e interagem, é condição

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Silva, Rodrigues e Alencar

sine qua non para o desenvolvimento da inteligência. Isso nos possibilita dar outro sentido, e

até mesmo outra valoração, para os contextos socioculturais que servem de base para as

internalizações dos sujeitos cognoscentes ‘crias’ de favelas.

Considerando que as palavras-conceitos-culturais são ferramentas mediadoras que

permitem internalizar e reproduzir mentalmente o que ocorre na externalidade, podemos

afirmar que as estratégias de sobrevivência formadas no cotidiano da favela são

instrumentos de mediação fora do padrão. É isso que permite a coexistência de

pensamentos operando dentro da cabeça das crianças das favelas, por exemplo. Se por um

lado, elas sabem quando devem utilizar a inteligência padrão para resolver os problemas de

Língua Portuguesa ou Matemática propostos pela escola, por outro, sabem também operar

com a Inteligência Bandida, quando, por exemplo, escutam um boato ou assistem a uma

cena que pode implicá-las como testemunha de um fato que as coloque em risco. Isso fica

evidente quando, por exemplo, um comerciante nos traz a seguinte narrativa:

“As crianças vêm aqui comprar bala e evitam falar o número três e
dizem que querem 2+1 de balas… e quando eu perguntava o porquê
disso, ainda brincavam: Qual é tio? aqui é dois mais um...”

Trata-se de um exemplo de uma determinada favela onde se convencionou associar

o número três à facção dominante da favela vizinha: o Terceiro Comando. Nesse caso, as

crianças evitavam pronunciar o número três ao comprarem balas e doces no referido

estabelecimento. Essas crianças sabiam operar com o raciocínio lógico matemático (2+1),

mas ao mesmo tempo operavam com uma estratégia que as colocavam afastadas de riscos,

evitando a pronúncia do número três. Esse fato corriqueiro aponta a capacidade de acionar a

inteligência padrão e/ou a Inteligência Bandida.

Em outra perspectiva, buscamos o sentido etimológico da segunda categoria que

forma o outro pilar de sustentação da tese aqui defendida, a categoria “Bandida”. Apesar da

escolha por essa adjetivação possuir um verniz provocativo, como forma de ressignificar os

estereótipos criminalizantes colados pelo senso comum a tudo que remete à favela, optamos

por afastar o sentido tradicional que relaciona bandido à delinquência ou a alguém fora da

lei. Nesse sentido, nos remetemos ao dicionário Houaiss (2009), que nos lembra a raiz

oriunda do termo italiano bandito, originário do verbo bandire, que significa banir, exilar. Ou

ainda, a raiz etimológica na forma latina bannire. Assim, optamos por acionar tal categoria

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visando retomar seu sentido original para designar uma Inteligência que está à margem,

banida, não legitimada e não reconhecida.

Por isso, as narrativas que iremos apresentar são fundamentais para estabelecer os

nexos lógicos da tese aqui defendida. Essas narrativas serão apresentadas mais adiante, bem

como os exemplos dos usos e operações da Inteligência Bandida no cotidiano, os quais não

somente estão presentes o tempo todo no processo de produzir este artigo a seis mãos, mas,

sobretudo, formam os pilares empíricos de sustentação da tese. Por isso, são cruciais para a

compreensão do que estamos defendendo.

1ª Dimensão – Gênese da Inteligência Bandida. Das Infâncias à Adultização Precoce:
interações, internalização e operações com a Inteligência Bandida

Diante do exposto, temos aqui o que podemos classificar como a 1ª dimensão da
Inteligência Bandida
, pois os sujeitos cognoscentes e a realidade cognoscível da favela se

forjam num processo dialógico no qual inquietudes e cautelas formam um amálgama. Ou

seja, a necessidade de se construir estratégias de sobrevivência e ao mesmo tempo refletir

sobre a sua condição circunstancial de classe impulsiona a elaboração de processos criativos

que materializam o desenvolvimento de uma inteligência para além do padrão. Por isso,

muitas crianças das favelas munidas dessa Inteligência Bandida “zombam” da inteligência

padrão exigida pela educação bancária formal. Embora numa tenra idade, essas crianças

estão tentando se compreender nesses mundos distintos em que elas estão inseridas: na

escola, tentam enquadrá-las num modelo padrão de infância; na favela, elas precisam estar

“ligadas” o tempo todo, senão...

É possível admitir que a Inteligência Bandida se desenvolve tal como a inteligência

padrão, em sucessivas fases, no entanto, a fase inicial, a da infância, se dá submetida a um

conjunto de possibilidades sociais e culturais nas quais a opressão, a escassez e a violência

passam a nutrir a criatividade sagaz, a expertise da escuta e do que se pode falar, a opressão

do trabalho infantil, o ter que fazer dinheiro para ajudar em casa e a violência da adultização

precoce.

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Silva, Rodrigues e Alencar

Essa adultização precoce impacta por toda a vida do indivíduo, inclusive pode

comprometer o desenvolvimento cognitivo do adulto em sua forma plena no sentido de

poder operar com reflexões que lhe permitam superar a consciência ingênua. Assim, é

possível identificar alguns comportamentos de indivíduos em sua fase adulta operando

apenas na primeira fase.

No entanto, a questão não é tão simples, ela é constituída de uma complexidade

descomunal. Vejamos.

Vigie os ricos, mas ama os que vêm do gueto

A mãe de um dos que assinam este artigo, tal como a mãe do Mano Brow (Grupo de

Rap Racionais MC’s), ensinou-lhe que deveria sempre olhar para os ricos e prestar muita

atenção nas suas escolhas, naquilo que eles faziam para enganar os pobres. Em seguida,

completava: “temos de ter o compromisso é com a nossa gente, os pobres!” Essa foi a base

ideológica sobre a qual ele foi formado. À guisa de exemplo, segue o relato de um fragmento

que aponta as rotas da Inteligência bandida dessa fase. Para melhor fluidez do texto, a

narrativa abaixo segue na primeira pessoa:

“Minha mãe trabalhou como babá, durante 15 anos, para uma família muito rica, no

Rio de Janeiro. Criou as três filhas dessa família, desde a mais tenra idade. Em função da falta

de tempo dos patrões (pais) para cuidar das suas crianças, e seguindo a lógica do “vigiar os

ricos”, ela desenvolveu uma metodologia de sobrevivência para a luta de classes, dentro dos

limites que o capitalismo lhe impôs, como não saber ler e escrever. Ao levar as filhas dos

patrões às consultas médicas de rotina, ela percebeu que havia um elemento ali que

impactava na luta de classes entre pobres e ricos: as vitaminas que os médicos receitavam

para as filhas dos ricos, com o objetivo de melhorar o desenvolvimento físico e intelectual

das crianças. Ela me contava que enchia os médicos de perguntas acerca dos medicamentos.

Com isso, ela selecionava e categorizava os medicamentos entre aqueles que eram para a

inteligência e os que eram para o desenvolvimento físico. Como não sabia ler e escrever,

tampouco tinha dinheiro suficiente para comprar todos, ela optava pelos medicamentos

vitamínicos, pois ajudavam a desenvolver a inteligência. Ela recortava as frentes das caixas

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desses medicamentos e guardava. Quando voltava para casa, na favela, comprava os

mesmos medicamentos e me dava para tomar, seguindo a mesma orientação médica dada

para as filhas dos patrões. Para me convencer de encarar o amargo das vitaminas, dizia:

“Bebe, meu filho, porque senão os ricos estarão sempre na nossa frente. Isso é para você

ficar tão inteligente quanto os filhos deles.”

A experiência narrada demonstra que a atitude dessa mãe está muito além da mera

sagacidade. Há, nessa narrativa, o desenvolvimento de um método de enfrentamento para a

luta de classes, ainda que ingênuo, pois prevalecia um certo moralismo religioso na busca

por agir de forma correta. Isso é a configuração do primeiro nível de uso da Inteligência

Bandida, pois não se configura ainda a tomada de consciência, tal como sugere Paulo Freire,

pois:

Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização, porque esta
consiste no desenvolvimento crítico da tomada de consciência. A
conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de
apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a
realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma
posição epistemológica (FREIRE, 1980, p. 26).

Nestes termos, coadunando com o Patrono da Educação Brasileira, ressaltamos aqui

a demarcação que distingue essa primeira fase da segunda, sobre a qual falaremos a seguir.

2ª Dimensão – A Conscientização e a interação com o asfalto: Nós cá e eles lá, a vida é
assim.

A 2ª dimensão da Inteligência Bandida configura-se em um momento/estágio em

que os ‘crias’ de favela tomam consciência da existência de um tipo de sagacidade oriunda

da sua socialidade na favela. Compreendem que há formas específicas de interpretar

contextos, pois estão munidos de ferramentas cognitivas que possibilitam interpretações de

contextos distintos. Ou seja, eles lidam com uma ambiguidade de se relacionarem com os

diferentes grupos em que se inserem, sejam da favela ou fora dela, como por exemplo na

escola, no emprego ou em qualquer espaço relacional da vida cotidiana, da vida social.

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De forma geral, é nesse momento que “os/as ‘crias’” percebem que possuem uma

espécie de sagacidade distinta dos conhecimentos formais oriundos de contextos que se

constituem fora da favela. Ao tomarem consciência dessa sagacidade, passam, aos poucos, a

fazer uso dela nos diversos contextos, tornando-a um elemento estruturante do seu

pensamento-raciocínio nas tomadas de decisões. A partir daí, com base na perspectiva

histórico-social de Vigotski, o que era apenas um elemento rudimentar de interpretação de

contextos – a sagacidade – torna-se um elemento estruturante do pensamento: a

INTELIGÊNCIA BANDIDA.

Dito de outra forma, a sagacidade, um tipo de operação intelectual rudimentar que

se pauta na espontaneidade e no “calor dos acontecimentos”, por meio da malícia oriunda

das sociabilidades apreendidas na favela, transforma-se em uma lógica estruturante para a

tomada de decisões e construção de estratégias de sobrevivência. Tudo isso se desenvolve

sob uma esfera do capitalismo de extrema exploração e opressão.

Esse é o segundo momento da constituição/consolidação da Inteligência Bandida. É

o momento em que se toma consciência de que a nossa operação intelectual conta com

ferramentas cognitivas-conceituais que só estão presentes dentro da favela. Os indivíduos

nascidos e criados em favelas estão umbilicalmente conectados com os contextos que os

formam. É nesse sentido que o grupo de rap paulista Racionais MC’s afirma que “a gente sai

da favela, mas a favela nunca sai da gente”. Em outras palavras, a favela não se limita a um

espaço geográfico, mas se constitui também como um conjunto de relações que são

internalizadas no indivíduo e passam a fazer parte da sua subjetividade. A essa conexão,

chamamos, em outro trabalho, de visceralidade, pois, ao externalizar a favela que nunca sai

da gente, estamos também expondo as nossas próprias vísceras.

As ferramentas intelectuais construídas primeiramente na relação com a lógica da

favela e, posteriormente, com as lógicas formais, independem do fato de o sujeito se

conscientizar sobre isso. Elas operam à revelia da sua vontade ou da sua consciência. No

entanto, defendemos que, num determinado momento, muitos dos ‘crias’ de favelas passam

a ter consciência de que eles possuem uma forma de “Ler o mundo” diferente daqueles que

não se socializaram em favelas. Esse é o momento que estamos considerando aqui como a

segunda dimensão do processo que evidencia a existência e o funcionamento da Inteligência

Bandida.

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INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS
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Objetivamente, podemos definir essa dimensão como uma espécie de ethos que,

gestado a partir de um conjunto de vivências e práticas inerentes às favelas, vai dando forma

a uma expertise, uma habilidade para o enfrentamento das situações complexas do

cotidiano. Esse conjunto de práticas pode ser constituído basicamente por três pilares: a

escassez de recursos, imposta pela limitação financeira; a contiguidade geográfica da

violência e/ou da sociabilidade violenta; e o ethos religioso que permeia direta ou

indiretamente as relações sociais nos espaços de favela.

Permitindo-nos fazer uma analogia com o futebol, essa segunda dimensão, tal como

um drible, não é um conhecimento que se aprende por meio de métodos, tampouco com

uma educação bancária, mas é uma solução criativa possível (ginga) para se desvencilhar do

impeditivo (marcador). A criança, ao brincar de futebol, vai adquirindo ginga, malemolência,

sagacidade para ludibriar seu adversário, encontrar o espaço vazio e avançar com a bola em

direção ao gol. Ou seja, são as circunstâncias que se impõem no jogo, no caso nas relações

da favela e fora dela, que fazem com que o “jogador” encontre soluções imediatas e consiga

inclusive pensar à frente do seu adversário. Vê-se aqui que não é apenas um acionamento

automático da sagacidade, mas, ao contrário, é um uso consciente da Inteligência Bandida.

Desse modo, a sociabilidade típica do cotidiano da favela forjaria então uma

expertise que, uma vez tendo consciência dela, o indivíduo poderá acioná-la para enfrentar

um conjunto de situações que tentará colocá-lo para fora do jogo.

Para demonstrar de forma mais concreta o que argumentamos acima, seguem

outras situações empíricas.

Preto no banco de trás? Quem dá esse mole? – O perrengue é meu workshop

No ano de 2011, um grupo de intelectuais da favela instituiu o CRIA. Esse grupo se

propunha a promover reflexões, a partir das vivências de cada integrante em sua favela de

origem e, assim, sistematizá-las. Os encontros ocorriam mensalmente nas casas dos próprios

‘‘crias’’, em diferentes favelas, dentre as quais, Rocinha, Maré, Acari, Timbau. Cabe destacar

que foram desses encontros que surgiu a inspiração para gestarmos o conceito-chave deste

artigo.

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Silva, Rodrigues e Alencar

Era uma tarde de sábado, quando finalizávamos um desses encontros na Nova

Holanda, uma das 16 comunidades da Maré, conjunto de favelas que fica às margens da Baía

de Guanabara, entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha. Como de praxe, após as nossas

discussões, algumas rodadas de cervejas eram quase que necessárias para fluirmos os

desdobramentos dos debates com a leveza que uma “trocação” de ideias proporciona. Além

dos componentes de favela do Cria, participavam ativamente um professor de Geografia da

Universidade Federal Fluminense e sua companheira. Ainda que não pertencente ao espaço,

o referido professor estava contido – tomando aqui emprestado os conceitos da matemática

– e como tal não abria mão desses pós encontros etílicos.

Na ocasião, seguimos para um bar numa das movimentadas ruas da Nova Holanda,

onde o fluxo de gente se intensifica naturalmente aos sábados, como em qualquer outra

favela. Passava das 17h quando fomos surpreendidos pela entrada do veículo blindado da

Polícia Militar do Rio de Janeiro, popularmente conhecido como “caveirão”, embora isso não

fosse surpresa para os moradores, já que incursões ostensivas (e ofensivas) desse tipo

compõem o cotidiano desses espaços. Apesar de não surpreender quem é cria, estas

incursões se dão sob uma tensão generalizada, dadas as marcas traumáticas guardadas na

memória dos moradores. Nesse cenário, observávamos do bar a movimentação de pessoas

se abrigando à medida que o “caveirão” avançava. Alguns minutos depois, ouvimos alguns

tiros. O professor da UFF se abismava diante da sua primeira experiência com esse tipo de

medo. Comentava que aquele alvoroço observado era sintomático e muito dizia sobre a

relação polícia x favela.

Passado o breve período de tensão, não nos restava outra opção que não fosse

fechar a conta e cada um seguir o seu caminho de retorno. Um rapper e fotógrafo integrante

do CRIA, de talento e inteligência singular, seguiria para a Avenida Brasil, de onde pegaria seu

ônibus de volta para casa, na região do subúrbio. Por estarem de carro, já estacionado no

interior da favela Nova Holanda, o professor e sua companheira oferecem carona ao

rapper/fotógrafo, que, sem titubear, recusa a oferta. Em princípio, tal gesto soa

incompreensível para o professor. Seria um acanhamento? Um gesto de humildade? Ou até

mesmo o entendimento de que não era mesmo necessário a carona do amigo?

Como quem explicasse o óbvio, o rapper esclarece o motivo da recusa: certamente

a polícia ainda estaria nas entradas da favela, como geralmente ocorre após as incursões e,

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INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS
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com isso, ele previa uma abordagem policial. Afinal qual é a leitura do servidor público de

farda ao avistar um homem preto no banco de trás do carro de um casal branco?

O professor compreende então que a atitude foi uma forma de poupar a vida do

casal ou no mínimo evitar um constrangimento e tensões na possível abordagem e revista

policial, ainda que não tivessem absolutamente nada que os colocasse sob suspeita. No

entanto, tomamos esse fato como um exemplo de acionamento da Inteligência Bandida em

seu segundo nível: possui a sagacidade apreendida nas vivências na favela, tem consciência

que a possui e passa a acioná-la em situações complexas que exigem estratégias para

alcançar algum objetivo ou desvencilhar-se de possíveis problemas.

O nosso fotógrafo e rapper, homem negro da favela, traz consigo um sem-número

de situações em que foi vítima de constrangimentos e violências perpetradas pelo racismo.

Ele não seria “otário” de dar “esse mole” e passar de carro saindo da favela, após a entrada

do caveirão. Dito de outro modo, o nosso artista consegue pensar alguns passos à frente e se

antecipa prevendo também a lógica que rege a norma do “asfalto” para se proteger.

É possível que se argumente que essas marcas que o nosso rapper traz no corpo, e

suas consequentes estratégias apreendidas, originam-se das vivências em um país racista. O

que não podemos negar, no entanto, é que a inteligência ali posta em prática, em que se

prevê os movimentos de uma incursão policial e seu modus operandi, adveio do olhar sagaz

obtido nos becos e vielas das periferias.

Cabe ainda uma outra reflexão, embora secundária, mas não menos importante,

para delinearmos o conceito de Inteligência Bandida. A bagagem intelectual e acadêmica do

estimado professor não lhe proporcionou uma leitura e análise daquele cenário, para aquele

momento vivenciado na Nova Holanda, em julho de 2011. A Inteligência Bandida não se

desenvolve como um conjunto de competências apreendidas na educação formal, mas

absorvidas na necessidade de dar soluções imediatas e criativas diante do “perrengue”.

Isso quer dizer que, independentemente do fato de o sujeito ter consciência de que

a forma como ele se relaciona com a favela e com o “asfalto” são distintas e contíguas, a sua

práxis está orientada por essa contiguidade. O modus operandi de pensar e responder aos

desafios da externalidade (asfalto-favela) está umbilicalmente conectado à Inteligência

Bandida. Logo, essa segunda dimensão é uma ferramenta de operação cognitiva, resultante

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da capacidade do sujeito de acionar essas inteligências de acordo com os desafios que

emergem nesses distintos contextos.

Uma proposta inversa: da favela para escola

No livro A Magia dos Invencíveis: Os meninos de rua na Escola Tia Ciata, Ligia Costa

Leite (1991) nos traz a narrativa de um fato que pode elucidar e, de certa forma, prever a

elaboração da ideia de Inteligência Bandida. A autora, que também era professora na

referida escola, apresenta uma proposta de passeio a um ponto turístico da cidade do Rio de

Janeiro. Na ocasião, ocorrida na década de 1980, os alunos – entre os quais alguns que

passavam muito tempo nas ruas da cidade – iriam ao Cristo Redentor, monumento localizado

em uma área nobre da cidade, o bairro do Cosme Velho. É bom lembrar que a Escola Tia

Ciata se localiza no centro do Rio de Janeiro, em uma área relativamente afastada da qual

aconteceria o passeio.

A professora Ligia, no entanto, aponta um problema objetivo que é o fato de se ter

apenas um ônibus disponível para o passeio. Dessa forma, seria preciso dividir o grupo em

dois. Ela logo percebe o descontentamento geral. “Tia vamos todos, sem essa de dividir a

galera, a gente só anda junto”, diz um dos alunos. A professora argumenta: “Não há vagas

para todos, aí está a lista do grupo 1 e a do grupo 2. Grupo 1 vai na segunda-feira e grupo 2

na terça-feira. Sendo assim o pessoal do grupo 2 não precisa vir para a escola segunda feira.”

Os alunos descontentes falavam “qual é tia? A senhora não entende. A gente vai junto”.

Na segunda-feira, dia do passeio, para a surpresa da professora, mas não para

nenhum dos grupos, todos os alunos estavam na escola. Os dois grupos unidos da sua forma.

Vamos, tia?” A professora pega a lista do grupo 1 e diz: “Eu avisei: só vai o grupo 1”. Outra

vez, todos descontentes. “Qual é, tia? Nada a ver.” “O ônibus sai com o grupo 1 e o grupo 2

fica na escola.”

Depois de algum tempo, o ônibus com o grupo 1 chega ao Cristo Redentor. Para

espanto apenas da professora, os alunos do grupo 2 já estavam lá. “Porra, tia! Demoraram

hein...”. A professora faz uma observação: “Não vai ter lanches para vocês!”. Tanto o grupo 1

quanto o grupo 2 respondem: “A gente se vira, tia...

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No final do passeio, a professora ressalta: “Amanhã só vai o grupo 2, vocês do grupo

1 não precisam vir para a escola”. Ninguém prestou a atenção ao aviso da professora. Na

terça-feira, a mesma cena, os dois grupos estavam na escola, agora com menos espanto por

parte da professora. “A gente vai outra vez, tia. Gostamos.”

O elemento central da narrativa sobre a escola Tia Ciata é a limitação da escola em

lidar com as múltiplas inteligências e, fundamentalmente, com as inteligências que não se

apresentam com uma metodologia para ser ensinada. A escola fundada com teorias

eurocêntricas é incapaz de entender a lógica criativa e sem método teórico. E, por não

entender, despreza, bane e até tem medo, uma vez que não tem capacidade criativa de

entender. Esse banimento se dá desde a infância, no ensino primário, até os bancos

universitários.

No caso desses meninos, não houve por parte da escola o entendimento de que

eles, além de demonstrarem conhecimento sobre o espaço da cidade, traçaram uma

estratégia e “se viraram” ou foram astutos o suficiente para chegarem até o ponto turístico

em que a professora levaria parte da turma e que era distante da escola. Isso sem ao menos

terem o dinheiro para pagamento da passagem33. A professora ignora essa inteligência, que é

tratada na maioria das vezes como desobediência, falta de educação ou falta de limites,

porque está mais interessada em apresentar o que é considerado culturalmente elevado,

que é a visita a um ponto turístico.

Além da inteligência desses meninos sobre a espacialidade, também é interessante

destacar o senso de união “a gente só anda juntos”. Esses jovens aprenderam a viver e a se

defender em coletivo, e suas estratégias são organizadas e realizadas em grupo. O que a

escola faz é justamente tentar separá-los por causa de “bagunça”, entretanto é nessa suposta

bagunça que esses meninos vão se fazendo presentes e visíveis na cidade e na escola.

O que é possível ver em mais essa narrativa é que a Inteligência Bandida sempre

esteve presente, em diferentes épocas, entre as crianças crias de favela ou ocupadoras das

33 Cabe ressaltar aqui que a experiência narrada ocorreu na década de 1980, período ainda de transição do
passe escolar para a gratuidade da entrada dos estudantes pela porta da frente do ônibus (governo Leonel
Brizola). No entanto, o mais importante é notar que, mesmo na atualidade, o deslocamento dos estudantes das
escolas públicas ainda acontece com dificuldade, visto que muitos motoristas nem param o ônibus quando
percebem um ponto cheio de estudantes. Os meninos da situação descrita chegaram mais rápido ao local
porque dominavam os atalhos da cidade e as estratégias para percorrê-los.

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ruas, configurando o germe para que tal categoria pudesse ser pensada e elaborada

teoricamente.

3ª Dimensão – A Teorização: A Favela e a Universidade

“A vida é diferente da Ponte pra cá…”
Racionais MC’s

A terceira dimensão se consolida quando, para além da tomada de consciência, a

Inteligência Bandida passa a ser problematizada e transformada em teoria. Ou seja, como

categoria analítica e dimensão política, a consolidação da Inteligência Bandida é a teorização

acerca do seu valor e da sua operacionalidade para além da espontaneidade da vida

cotidiana. Isso exige uma compreensão mais aprofundada e uma ressignificação de conceitos

construídos historicamente e, sobretudo, a construção de novas categorias semânticas e

ferramentas conceituais próprias, tal como o que se propõe neste capítulo.

Nessa terceira dimensão, emerge uma compreensão mais sofisticada que permite

perceber que tais ferramentas conceituais e categorias são distintas, visto que sua origem se

dá em contextos cujas sociabilidades se forjam numa ambiguidade de mundos que

coexistem: o mundo formal-constitucional-legal e o mundo no qual as regras e sociabilidades

se fundam na sagacidade da favela.

Assim, o cerne está na capacidade de transformar a própria existência, e suas

circunstâncias, em objeto de teorização, fazendo uso de categorias analíticas. A diferença

nesta dimensão é que, agora, os/as “crias” das favelas ascendem a outro nível de

conscientização e passam a operar com a compreensão de que para fazer uso de uma

categoria analítica mais complexa é necessário acionar um rol de conhecimentos históricos

que ultrapassam as vivências nas favelas, embora as categorias necessárias, tais como a de

Inteligência Bandida, emanem das favelas, já que são estes espaços que permitem o

nascimento desses conceitos.

Dito de outra forma, mas na mesma direção, uma categoria analítica é construída e

enriquecida ao longo do tempo e em diversos contextos. Na medida em que os “crias”

passam a ter inserção nas Universidades e acesso às teorias sociais, aprofundam seus

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estudos e desenvolvem pesquisas diferenciadas. Isso permite, a partir de um acúmulo e de

um arcabouço teórico multifacetado, construir categorias “viscerais”, tais como a que

estamos apresentando.

Nesse sentido, é fundamental ressaltar a importância do que vimos chamando de

Pesquisas e Pesquisadores/as Viscerais (SILVA, 2012; 2020), em que podemos identificar um

embrião da categoria Inteligência Bandida:

Desse modo, os/as Pesquisadores/as Viscerais, ao narrarem os contextos
nos quais estão inseridos, são obrigados a expor as próprias vísceras, isto é,
as suas NARRATIVAS VISCERAIS, criam uma vulnerabilidade para si, pois,
após narrar, são obrigados a conviver com as consequências que a sua
narrativa vai gerar.
As vísceras existenciais do/da Pesquisador/a se materializam numa relação
social em que a reflexão crítica acerca da sua vivência com a história local
cria os nexos necessários para a conexão dos contextos com a produção de
conhecimento científico, o que configura a Pesquisa Visceral. Ou seja, o/a
Pesquisador/a Visceral é um sujeito do conhecimento comprometido
politicamente que, ao se valorizar na pesquisa, enquanto sujeito, cria nexos
entre contextos históricos diferentes, que amalgamam a sua biografia às
histórias locais.
O/a Pesquisador/a Visceral estuda aquilo que expõe as próprias vísceras,
tentando compreender as Favelas e as Quebradas das suas experiências,
percebendo que está dentro e fora, ao mesmo tempo, daquilo que
pesquisa. Não há como esse/a pesquisador/a se distanciar dos marcos
históricos e identitários que o/a constroem (SILVA, 2020, p. 169).

Nossos estudos-pesquisas-vivências, dentro e fora da favela, nos levaram a

problematizar a própria existência e a transformá-la em objeto de análise. Embora se tenha,

aqui, a ideia do “nós, por nós mesmos”, a discussão não se esgota apenas nisso. Trata-se de

experiências específicas que se coletivizam na troca com outras pessoas ‘crias’ de favelas.

Nas narrativas de outrem, se confirma a hipótese de que a favela é um contexto gerador de

estratégias coletivas de sobrevivência, cujo resultado é o desenvolvimento de um tipo de

inteligência distinta do padrão: a Inteligência Bandida (muitas vezes banida).

Nesse sentido, a terceira dimensão é a capacidade de articular as categorias

analíticas tradicionais da academia com a sagacidade oriunda da favela e operar de forma

dialética essas categorias, pleiteando novas epistemologias periféricas. Dentro de uma

disputa semântica e conceitual, o que se galga com isso é que a Inteligência Bandida seja

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Silva, Rodrigues e Alencar

entendida como uma ferramenta analítica nos espaços da educação formal e,

fundamentalmente, entre outros ‘crias’.

Considerações Finais

Historicamente, as classes que se apropriam e dominam os conhecimentos

reconhecidos como científicos guardam para si, nos “cofres das mansões”, não somente as

ferramentas conceituais que operam na construção de teorias, mas, sobretudo, as chaves

que abrem as portas dessas mansões. Para isso, criam uma rede blindada de “solidariedade”

de classe que permite perpetuar os privilégios oriundos desse poder, o de teorizar acerca da

própria condição de existência no capitalismo. O uso dessas ferramentas como propriedade

de classe é avalizado pela sociedade acadêmica.

No entanto, ao nos apropriarmos, a partir de nossas condições, das “chaves dessas

mansões” e das ferramentas conceituais necessárias, essa inteligência toma forma e é

aguçada à medida que o indivíduo intensifica a problematização acerca da sua existência,

dialogando com seus pares nos contextos da sua vivência na favela.

Precisamos ressaltar que o esboço dessa categoria analítica pretendida encontra um

limite de recorte de tempo e espaço. Estamos nos debruçando sobre vivências das décadas

de 1980, 1990 e 2010. Geograficamente, nossas percepções foram construídas a partir do

ângulo que as favelas da Maré e da Rocinha nos proporcionaram. O apontamento das

características de uma certa inteligência se justifica prioritariamente em conseguirmos

entender as capacidades de ações, as formas de sentir e de interpretar o mundo de um

grupo social cujas leituras possuem limites, embora seja um dos objetos mais estudados da

sociologia urbana moderna: a favela.

Tais limites desencadeiam ideologias e estigmas que geram prejuízos tanto para os de

dentro como para os de fora e provocam consequências que vão nortear de forma

equivocada, tanto as políticas no campo da segurança pública (reconhecimento por fotos de

suspeitos, caveirão, etc.) como também a capacidade de compreensão por parte da classe

média que, ao desconhecer todos os códigos da cidade (incluídos aí também os da favela),

tem a sua liberdade de circulação limitada, ferindo frontalmente o tão almejado Estado

Democrático de Direito.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 66 - 85 ISSN 1807-6211
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INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS
EM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E VIGOTSKI

Além disso, acreditamos que uma análise mais sofisticada e precisa sobre as práticas

sociais que caracterizam as sociabilidades dos moradores de favelas pode nos indicar formas

metodológicas de atuação, seja na educação, na saúde, assim como no mundo do trabalho.

Por fim, e com a intenção de instigar o debate, o que estamos denominando

Inteligência Bandida são as acepções, os desenvolvimentos e as aplicabilidades de uma

inteligência que se desenvolve e se aplica tanto nos espaços das favelas quanto fora dela. Por

tal motivo, se fez necessário um aprofundamento da genealogia dessa categoria bem como

das operações cognitivas ressaltadas, a partir das três fontes de sua materialidade: a

escassez de recursos, a violência recorrente e o que podemos chamar de uma espécie de

mística que transcende a imanência e que permeia as relações de solidariedade na favela.

Esses três elementos são os genes de uma inteligência própria e que sempre se dá a

posteriori na sua aplicabilidade.

Referências

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Paulo Freire
. São Paulo: Moraes, 1980.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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VIGOTSKI, Lev Semyonovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos
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7 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 66 - 85 ISSN 1807-6211
84

Silva, Rodrigues e Alencar

Data do envio: 25/05/2022.
Data do aceite: 06/07/2022.

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DE UMA MÁQUINA A OUTRA: POLÍTICAS ATUAIS DE SUJEIÇÃO
SOCIAL E DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO

BRASIL EM TEMPOS DE CRISTÃOCRACIA

FROM ONE MACHINE TO ANOTHER: CURRENT POLICIES OF SOCIAL
SUBJECTION AND DE-SUBJECTIVATION OF BLACK POPULATIONS IN BRAZIL IN

TIMES OF CHRISTIANCRACY

Andreia Alves Monteiro de Castro34

Luciana Pires Alves35

Resumo
O presente artigo pretende discutir a evangelização midiática e a reconversão da sociedade
brasileira, no período recente, em uma nação evangélica ou cristãocracia. Principalmente, o
agenciamento de populações historicamente marginalizadas pela fábula neopentecostal que
tem como alvo a subjetivação das mulheres negras ao defini-las como viga de sustentação
moral de um regime inimigo das tradições de terreiro, subserviente ao homem e temente a
deus. Nossa metodologia de análise compreende a leitura dos jornais, publicados a partir da
década de 1980, que registraram a emergência desses grupos religiosos e o uso dos
equipamentos culturais populares, como os antigos prédios dos cinemas e programas de
rádio e TV, enquanto meio de conversação de populações marginalizadas, principalmente as
mulheres negras.

Palavras-chave: Corpo. Subjetividade. Política. Educação.

Abstract
This article intends to discuss media education and the reconversion of Brazilian society, in
the recent period, into an evangelical nation or christocracy. Mainly, the agency of
populations historically marginalized by the neo-Pentecostal fable that targets the
subjectivation of black women by defining them as a beam of moral support of a regime that
is hostile to terreiro traditions, subservient to man and fearing God. Our methodology of
analysis comprises the reading of newspapers from the 1980s that recorded the emergence
of these religious groups and the use of popular cultural facilities, such as the old buildings of
cinemas and radio and TV programs, as a means of conversation for marginalized
populations, especially black women.

Keywords: Body. Subjectivity. Politics. Education.

1. Representações: as formas de chamar a mulher negra a existir na sociedade
brasileira

35Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: lualpires@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-8470-4966

34Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
andreiaacastro@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-2586-6789

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Castro e Alves

Segundo Chartier (1990), o conceito de representação se pauta em duas realidades

distintas, mas que se interpenetram. Uma diz respeito às identidades coletivas, aos ritos, aos

modos que fundamentam as instituições sociais. A outra se refere à identidade do sujeito, às

formas de exibição individual e à avaliação desse indivíduo pelo grupo. Por meio da

representação, fundam-se padrões, crenças e valores, muitos deles marcados pela

transitoriedade, pela instabilidade, pela fluidez, mas todos relacionados a questões estéticas,

morais, religiosas, filosóficas, políticas e econômicas, sustentando relações de poder, de

dominação e de resistência.

A arte, como instrumento de construção, de interpretação, de disseminação e de

questionamento das representações dominantes, obviamente, também projeta, mantém e

subverte identidades individuais e coletivas. Documentos oficiais, quadros, gravuras,

propagandas, romances, contos e poemas construíram e difundiram a imagem da mulher de

pele escura como um ser dotado de malícia, imoralidade e permissividade, consolidando, no

imaginário mundial, como o um corpo posto sempre à disposição, pronto para consumo.

As africanas e suas descendentes brasileiras, reificadas e exploradas, receberam, de

pronto, a imagem de “amantes mais quentes”, de mulheres sempre dispostas a realizar todo

e qualquer desejo masculino. A representação destas ardentes “morenas”, “pardas” ou

“mulatas”, trazendo à baila toda a carga significativa subjacente a estes termos, contribuiu

para a consolidação e a difusão desta visão, base para a estigmatização, a inferiorização e a

marginalização social. Fossem cor de jambo, de canela ou de trigo maduro, a menção às

diferentes tonalidades de pele resultantes da miscigenação, com frequência, estava aliada à

descrição estereotipada do corpo das brasileiras em geral: seios rijos, cintura fina, quadris

largos, glúteos avantajados e pernas bem-torneadas. Todo este conjunto de atributos

determinaria movimentos peculiaridades, apresentados, quase sempre, como gestos e

requebros atraentes e lascivos, sobretudo quando cantam e dançam os ritmos populares.

No entanto, visão, audição e tato não se separavam de paladar e olfato no que

tange à percepção do corpo feminino. Segundo Alain Corbin (1987), as sutilezas olfativas

permitiam uma nova gestão do desejo para os burgueses. Mães, irmãs, esposas e filhas

deveriam exalar o delicado perfume das flores, condizente com o recato e com a discrição a

elas convenientes. Jardins passam a ser separados das hortas domésticas e perfumes mais

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DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO BRASIL EM TEMPOS DE

CRISTÃOCRACIA

artesanais são superados pelas fragrâncias preparadas por perfumistas. Aromas almiscarados

ou aqueles que despertavam o apetite, como o de frutas, ervas e temperos, poderiam ser

interpretado como eróticas mensagens olfativas, sendo destinados àquelas que queriam

despertar a libido e estavam dispostas aos “gozos sensuais” (1987, p.239-265). Essa

representação, perpetrada pela ação conjunta do racismo e do sexismo, foi empregada para

justificar a exploração e o estupro dessas mulheres ao longo de séculos. Sem dúvidas, a

nossa cultura colonizadora e escravagista produziu uma vasta iconografia, insistindo em

representar esses corpos como dotados de uma sexualidade voraz, a perfeita encarnação de

um erotismo primitivo e desenfreado.

Muitas das teorias científicas oitocentistas a respeito das raças desenvolvidas com

base na cisão entre corpo e razão, e que ainda ecoam no século XXI, ajudaram a sustentar

esse imaginário. Segundo essas teorias, os povos colonizados eram destituídos de razão, o

que evidenciava sua inferioridade. Enquanto corpos não racionais, esses não-sujeitos

estavam muito mais próximos da natureza do que as pessoas brancas, e, como tais, deveriam

ser objeto de conhecimento, dominação e exploração.

Além da opressão racial, também a opressão sexual foi facilitada por esse

pensamento. A associação da mulher com a natureza – distanciada da capacidade de

raciocinar – colocou-a na posição do objeto que deve ser dominado, sustentando a

apropriação e a exploração de seus corpos e de seu trabalho. A iniquidade de toda essa

lógica atinge seu ponto mais alto quando analisamos a situação das mulheres não brancas:

sua objetificação, tanto por ser mulher, como por pertencer a uma “raça” dita inferior – e

quanto maior a inferioridade, mais próxima da natureza ela estará – sujeita a formas intensas

de exploração e dominação.

Como afirma Boaventura de Souza Santos, a mestiçagem marcada pelo “uso dos

corpos” das mulheres indígenas e negras pelo branco europeu é uma marca da colonização

portuguesa e explica a relação entre colonizador e colonizado nas colônias portuguesas,

como no Brasil:

No caso do pós-colonialismo de língua oficial portuguesa há que contar com
a ambivalência e a hibridação na própria cor da pele, ou seja, o
espaço-entre, a zona intelectual que o crítico pós-colonial reivindica para si,

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encarna no mulato e na mulata como corpo e zona corporal. O desejo do
outro em que Bhabha funda a ambivalência da representação do
colonizador não é um artefato psicanalítico nem é duplicado pela
linguagem: é físico, criador, multiplica-se em criaturas. A miscigenação não é
a consequência da ausência de racismo, como pretende a razão
lusocolonialista ou lusotropicalista, mas certamente é a causa de um
racismo de tipo diferente. Por isso, também a existência da ambivalência ou
hibridação é trivial no contexto do pós-colonialismo português. Importante
será elucidar as regras sexistas da sexualidade que quase sempre deitam na
cama o homem branco e a mulher negra, e não a mulher branca e o homem
negro. Ou seja, o pós-colonialismo português exige uma articulação densa
com a questão da discriminação sexual e o feminismo (SANTOS, 2003, p.
27).

Essa dupla discriminação racial e de gênero, Grada Kilomba (2020) apresenta,

através da ambígua relação entre presença e existência. Relação essa criada pelas sociedades

coloniais ao revelarem a condição da mulher negra como “a outra de outrxs”, aquela “sem

status suficiente para a Outridade”. Assim que criado pelo processo de significação colonial,

o lugar de identificação “mulher negra” foi constituído como duplamente inexistente,

justamente, por ser a outra em relação à categoria “mulher branca” e a outra em relação à

categoria “homem negro”, que por sua vez, são os outros em relação à categoria “homem

branco” (2020, p.15-16). Tornar ausente o existente é um dos expedientes mais usados pelas

estratégias de subjetivação do racismo. O modo de fabular das igrejas neopentecostais não é

diferente. Seu aparelho de captura marca como negativas ou ausentes as potências

matrilineares das populações negras. Criando, assim, um dispositivo de dessubjetivação, que

visa converter os sujeitos, fazendo com que tenham a sua subjetividade atada à

subjetividade do meio neopentecostal, visando a sujeição maquínica.

Por outro lado, é importante ressaltar que há, ainda, resistência a esse processo

advinda das mais diversas camadas populares, dos setores organizados da sociedade e de

instituições da educação pública, como: a defesa do povo de terreiro de seus espaços e

práticas; os trabalhos de pesquisa e ressignificação do ensino junto às escolas, incluindo a Lei

10.639 de 2003; e os movimentos sociais que promovem estudos e lutas entorno do

conceito de interseccionalidade.

Marcada por duas funções sociais, a condição da mulher negra, de acordo com

Gonzalez (2020), é regulada pelo lugar da “doméstica” e da “mulata”. Segundo a autora:

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O termo “doméstica” abrange uma série de atividades que marcam seu
“lugar natural”: empregada doméstica, merendeira na rede escolar,
servente nos supermercados, na rede hospitalar etc. Já o termo “mulata”
implica a forma mais sofisticada de retificação: ela é nomeada “produto de
exportação”, ou seja, objeto a ser consumido pelos turistas e pelos
burgueses nacionais. (...) Esse tipo de exploração sexual da mulher negra se
articula a todo um processo de distorção, folclorização e comercialização da
cultura negra brasileira (GONZALEZ, 2020, p. 44).

Considerando que a manutenção da ordem da representação é dependente do

modo de produzir subjetividade, manter compulsoriamente a mulher negra como alguém

que não é visto nem ouvido é possuir um território a explorar, é manter um corpo que serve

a diferentes fins por encontrar-se duplamente distante, e que, ao mesmo tempo, existe ao

alcance das mãos e da boca, como afirma Gonzalez (2020). Confrontar os modos de

representação, e, assim, desafiar a manutenção da ordem do sistema representativo,

depende de um trabalho ético e estético de confrontação das formas de dessubjetivação que

demonizam, que condenam e que abordam como espetáculo os ataques às religiosidades e

aos valores civilizatórios presentes nas religiões de matrizes africanas. É preciso reinscrever

subjetivamente, sob as normas da cristãocracia, os modos de perceber e representar o real e

o imaginário.

A cena trágica nossa de cada dia, encenada em nosso inconsciente colonial

capitalístico, tem como motor a cafetinagem generalizada, como afirma Rolnik:
A esse regime de produção da fábrica do inconsciente propusemos nomear
de “inconsciente colonial-capitalístico”. A espoliação dessa fábrica de
futuros se dá por meio de uma operação de cafetinagem: o movimento
pulsional é desviado de seu curso ético, no qual produziria “novos mundos”
em função do que pede passagem, para que, em seu lugar, produza
“novidades”, mais e mais cenários que multiplicam as oportunidades de
investimento e acumulação de capital e excitam a voracidade de consumo
numa velocidade exponencial. O abuso da pulsão é a medula micropolítica
do regime colonial capitalístico. Para viabilizá-lo, o inconsciente é um dos
alvos essenciais do megaempreendimento colonial operado pelo
capitalismo, que hoje tornou-se globalitário. Sendo assim, é impossível
transformar o atual estado de coisas sem intervir na esfera micropolítica:
descolonizar o inconsciente é o que almeja a insurreição nesta esfera
(ROLNIK, 2019, p. 29).

Como uma das tentativas de descolonizar o inconsciente e enfrentar política e

pedagogicamente essa questão, temos a produção da experiência com estudantes do curso

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de Pedagogia da UERJ/FEBF e do terceiro ano do CIEP 218 Ministro Hermes Lima, ambos

situados na Baixada Fluminense, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. No

coletivo de estudos, composto por jovens mulheres de áreas periféricas urbanas, nos

dedicamos a trazer referências discursivas diferentes das que estão presentes neste lugar e a

perceber as provocações vividas pelas estudantes e professoras durante o compartilhar das

vivências. Como os textos vão ressoar nos modos de significar instituídos? Quais são

incômodos? O que irromperá desse terreno? Nos permitirá tecer ou encontrar redes de

significação que possam criar uma esfera de insurreição? O sugerido nos possibilitará criar

uma via de emancipação real, que nos livre do reaparecer dos fantasmas civilizatórios que

julgávamos derrotados e avançar numa pauta de construção de uma sociedade emancipada

da condição colonial?

2. Religião e garantia da ordem representativa da mulher da Baixada

“Professora, apesar da minha crença... Minha mãe sempre foi feminista: cuidou da casa e trabalhou

fora. Apesar do meu pai ganhar mais que ela, foi o dinheiro dela que nos criou”

“Aqui, só tem abelha rainha. Elas criam os filhos sozinhas, são as donas da casa. Têm crush: ele pode

passar a noite na casa delas, mas só tem direito a uma refeição”

“Professora, só a verdade liberta!”

“Professora, quando vamos falar de criança?”

“Filho é da mãe!” “A mulher é a viga da família!”

Como enunciam as falas das praticantes, nosso trajeto docente é feito, muitas das

vezes, no confronto e no carinho, entre silêncios, sorrisos e lágrimas. A relação entre

infâncias e mulheres têm essa característica: é delicada e dura, é feita de memórias de

grandes esforços maternos e da vontade de retribuir a luta. “Comprar uma casa para minha

mãe”.

Essa representação da mãe como sacrificado esteio ou duro pilar que sustenta a

família, dividindo e sobrepondo o lugar da figuração da mais velha detentora de

conhecimentos e afetos, é legitimada pela igreja. Situação que conhecemos na prática, é

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DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO BRASIL EM TEMPOS DE

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confirmada pelas estatísticas do IBGE36 e IPHAN37, mais da metade dos lares brasileiros são

chefiados por mulheres. São elas as provedoras, as responsáveis pelas crianças. Mas também

são elas que se desdobram e pouco a pouco, com a ajuda das políticas afirmativas, garantem,

pelo menos, às filhas a permanência nas instituições de ensino.

Sobretudo o acesso à universidade é uma experiência nova para as famílias de

Duque de Caxias, muitas de nossas alunas fazem parte da primeira geração a chegar ao

Ensino Superior ou a participar de projetos de Extensão Universitária. Num contexto

desenhado pelo acesso à Escola Normal e ao ensino nas escolas dominicais, encontramos

traços de uma formação pelo espetáculo (a exemplo do teatro dos Jesuítas), amplamente

presente em nossos cotidianos. A presença das igrejas neopentecostais é marcada na rádio

da casa de sucos, nos adesivos nos cadernos, nas mensagens e nos agradecimentos a Deus

nos trabalhos monográficos, nas reclamações das mães e alunas: “só Jesus na causa”.

A multiplicação das igrejas evangélicas cresceu exponencialmente nos últimos

quarenta anos. As variadas designações e grupos foram avançando e dominando

ideologicamente os espaços periféricos como forma de conversão ao cristianismo

pentecostal. A “Guerra Santa Fabricada”, como definem Gomes & Oliveira (2019), foi declara

às casas de terreiro e aos valores e tradições dos Orixás entre a segunda metade da década

de 1980 e a década de 1990. A “Cruzada Pentecostal” representou uma luta aguerrida

através da demonização dos espaços, sujeitos, práticas e saberes populares de origens

africanas. A militância contou com o equipamento cultural à deriva nos bairros. A compra

dos cinemas de bairro garantiu a existência física da maioria dos templos da Igreja Universal

do Reino de Deus, que ficou conhecida através dos jornais, à época, como a Igreja Midiática

e lugar de milagres eletrônicos.

Na coluna “Tribuna Bis”, do jornal Tribuna da Imprensa, no dia 07 de fevereiro de

1988, é possível encontrar uma notícia intitulada “Exibindo fé e orações”, que não só

evidencia a ocupação das salas de cinema como também a infiltração das igrejas

neopentecostais nos espaços de sociabilidade e cultura populares, incluindo a Galeria Alaska,

37Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_acymailing&ctrl=archive&task=view&listid=10-

36Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0,43,432220,432360,432345,431550,430690,430930&cat=52,55,-17,
-18,128&ind=4704

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em Copacabana, que até então era um lugar de encontro e diversão voltada ao público

LGBTQIAP+.
Figura 1 – Exibindo fé e orações

Fonte: Tribuna Bis. In: Tribuna da Imprensa, 07 de fevereiro de 1988, ano XXXVIII, n. 11821, p. 1

O lugar de adoração e da fé se confunde com o palco do espetáculo. Com “Jesus em

Cartaz”, as igrejas evangélicas invadem cinemas, teatros, circos e até trios elétricos,

produzindo Shows Bíblicos em diferentes espaços, incluindo “inferninhos” da cidade, e a

coabitação, no mesmo espaço, de filmes pornôs e de cultos. Com o argumento já definido, a

luta contra o demônio, a redenção dos pecados mundanos e a teologia da prosperidade

garantem novos lugares sociais através dos bens de consumo. A fábrica de igrejas avança de

um território que compreendia os subúrbios e os bairros da zona sul carioca, prometendo

garantir a normalização e o controle moral desses espaços, e chega às favelas e aos bairros

da Baixada Fluminense, nos quais prospera fortemente, graças à ausência de equipamentos

culturais formais e de outras políticas de bem-estar social.

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DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO BRASIL EM TEMPOS DE

CRISTÃOCRACIA

Figura 2 – Religião X Erotismo

Fonte: Jornal do Brasil, 30 de março, ano XCVII, n. 553, p. 2

Pregando o ataque a vários símbolos da herança religiosa africana para uma

população especialmente vulnerável, às igrejas eletrônicas só progrediram. Por exemplo,

contando com os cinemas de bairro e com uma gráfica no bairro da Abolição, a Igreja

Universal do Reino de Deus (IURD) investiu em programas de rádio e em faixas de horário na

televisão, como o programa Despertar da fé, na Bandeirantes, chegando a comprar uma

emissora própria: a Rede Record de televisão. O poderio midiático e econômico garantiu

também o poder político, a “cristãocracia”38. Nos anos oitenta, no Estado do Rio de Janeiro,

esse movimento elegeu, como deputado constituinte, Roberto Lopes, da frágil legenda, à

época, o PTB. O então deputado sem experiência partidária, tinha em seu currículo o

passado de jogador de futebol em times do Rio de Janeiro e a atuação como pastor da IURD.

Dos idos de 1980 e 1990, o poder político acumulado pelas igrejas se sustentou pela forte

bancada evangélica, com a qual, atualmente, diferentes ocupantes do executivo mantêm

uma relação de dependência.

Como educadoras, nos cabe ressaltar que a aliança entre Estado e igrejas

evangélicas também usa os mecanismos e espaços educativos. Muitas das escolas de

38 “Cristãocracia” termo utilizado por Sidnei Nogueira (2020).

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educação básica têm a equipe diretiva composta por evangélicos indicados pelo chefe do

executivo local.

O êxito da evangelização midiática se explica por meio da sujeição social e da

servidão maquínica, uma vez que a máquina técnica nunca opera sozinha. Ela é parte de

maquinário social, cujo engendramento é produzido por conexões, enunciados e desejos.

Como afirma Lazzarato:
A servidão não age nem por repressão, nem por ideologia. Ela procede por
técnicas de modelização e modulação, que se conectam às “energias
mesmas da vida e da atividade humana”. Ela se apodera dos seres humanos
“por dentro” e “por fora” ao equipá-los com certos modos de percepção e
de sensibilidade, bem como de representações inconscientes. A formatação
exercida pela servidão maquínica intervém no “funcionamento de base dos
comportamentos perceptivos, sensitivos, afetivos, cognitivos, linguísticos”
(2010, p. 3).

A igreja eletrônica, como foi chamada pelo Jornal do Brasil nas décadas de 1980 e

1990, recorre a expedientes tecnológicos para, a partir da excitação dos sentidos, produzir as

sensações necessárias para a adesão da população à crença.

A partir dessa rede, geralmente, se estabelece uma mediação simbólica. Nem o

futebol escapou. Basta ver que a proibição de adoração a qualquer ídolo também atingiu

atletas consagrados, como o "rei Pelé”. Os cultos no Maracanã resultaram não só em grandes

somas em dinheiro arrecadadas, mas na prática política de interdição a toda a referência fora

do universo evangélico.

Figura 3 – Evangélicos informam: Sai Pelé o rei do futebol. Entra Jesus, o rei dos reis

Fonte: Jornal do Brasil, 18 de abril de 1887, ano: XCVII, n.10, p. 5

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DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO BRASIL EM TEMPOS DE

CRISTÃOCRACIA

A metodologia da “cristãocracia” funciona como uma máquina de subjetivação que

captura a massa através dos meios de comunicação tradicionais e digitais. Assim, o ocorrido

se encontra mais no campo de uma “guerra total” dissimulada pelo jogo ou encenação

midiática.

Huizinga (2007), ao estabelecer as relações entre a guerra e o jogo, afirma que só é

lícito falar da função cultural da guerra quando os antagonistas lutam ou jogam em igualdade

de condições e reconhecimento de legitimidade. Fora das circunstâncias dos direitos, não há

combate, mas uma investida na direção da pilharem e da eliminação total do outro, sob os

argumentos conhecidos “bárbaros, diabos, pagãos, hereges, “raças inferiores destituídas de

leis” (HUIZINGA, 2007, p. 102).

Podemos afirmar que a “cristãocracia’, pelos meios de comunicação analógicos e

posteriormente através dos meios digitais e nas redes sociais, serve como instrumento da

busca violentar a população negra, num exercício brutal e embrutecedor do poder

(MBEMBE, 2019).

A narrativa espetacular da “guerra santa” encobre a violência generalizada que tem

o corpo negro, físico e simbólico, como alvo de um extermínio normalizado como forma de

gestão apenas sem vinculação da esfera do Direito. Essa condição alimenta a perpetuação de

privilégios que sustenta o nosso inconsciente colonial. Uma “máquina coletiva de

enfrentamento” para arar o material sedimentado em nosso presente assombrado pelos

fantasmas e fantasias escravocratas, uma outra relação ética-estética que não a do super

estímulo e entorpecente.

Nossa pesquisa/intervenção enfrenta os elementos pertencentes ao dispositivo da

“cristãocracia”. Buscamos, com os estudantes, desemaranhar os fios das relações de fé e de

redenção; da pobreza e da falta de oportunidade que seriam vencidas pela teologia da

prosperidade e pelo rígido controle da figura do feminino através da vida para a família.

Reconfigurar nossa rede cultural, estética, lúdica através da formação é suturar

nosso trabalho de enfrentamento desse processo de aniquilação e da tentativa de retomada

de si através da diversidade de fontes para a produção da experiência estética e da tentativa

da produção do espectador emancipado acontece na cidade de Duque de Caxias.

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Castro e Alves

Nosso lócus de intervenção se situa em Duque de Caxias, cidade da Baixada

Fluminense, conta com uma população autodeclarada negra (preta e parda) de 542.300,

sendo 72% evangélica e católica e menos de 1% (5.172) declarada de religiões de matrizes

afro-brasileiras, segundo o censo do IBGE, 2010.

Encontramos resistência a partir de uma leitura de mundo alimentada pelas

imagens produzidas pela “Cristãocracia”. Verificamos, não só, a reprodução cotidiana da

intolerância e racismo religioso contra qualquer referência vinda das Comunidades

Tradicionais de Terreiro (CTTTro) como Nogueira (2020), como também, a pretensão de

tutelar ou funcionar como referência a todas as formações de sentido dos sujeitos.

Essa situação só se agravou no governo Bolsonaro, uma vez que o representante da

nação legitima tais ações, como noticia o site g1, no dia 30 de junho de 2019, na cobertura

da Marcha para Jesus, em São Paulo.

Figura 4 - Marcha para Jesus 2019, São Paulo

Fonte:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/06/20/27a-edicao-da-marcha-para-jesus-em-sao-paulo-fotos.

ghtml

Assim, quando discutimos as infâncias, os femininos, o sentido social da escola, as

relações com arte, natureza e cultura e objetos técnicos nos confrontamos com os discursos

e ordenações vindas das igrejas. Atualmente, nas periferias urbanas, encontramos a tarefa

educativa de enfrentar os discursos oriundos desse projeto de conformação da sociedade

brasileira através da conformação das famílias através do imaginário nutrido pela fábula

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CRISTÃOCRACIA

neopentecostal. Nosso trabalho se inscreve na tarefa de criar imaginários a serviço da

emancipação e com a capacidade de interromper a cadeia de produção da normaliza a

violência e a brutalidade (MBEMBE, 2019).

Interpelar a fábula neopentescostal requer entre outras ações: enfrentar a

demonização das comunidades tradicionais de terreiro como violência simbólica. Isso nos

ajuda a desmontar um dispositivo negativo das políticas de inimizade (MBEMBE, 2019), que,

no lugar de evidenciar as desigualdades e injustiças sociais, se restringem a formular

culpados pelos infortúnios e fracassos resultantes das políticas socioeconômicas.

Novos personagens de uma trama “requentada”, os povos pretos como animais

desalmados, a mulher a serviço dos interesses (ora de exploração do corpo:

hipersexualizado, ora com o corpo a serviço da família) e o perigo vermelho, as mínimas

políticas de proteção social tomadas como doutrina comunista. Esses são fios de um tecido

social escravocrata, misógino e subserviente, como exemplo disso, temos “Marcha da família

com deus pela liberdade” que surgiu como contraponto ao comício de João Goulart, em 13

de março, pelas Reformas de Base.

A população feminina, que antes era representada apenas através de sua utilidade

sexual, reprodutiva e como força de trabalho, é capturada, após a sua redenção, pela

reconversão espiritual de cunho político. Essas mulheres são chamadas a participar como

instrumentos úteis ao exibir com orgulho a obediência e o ardor diante do soberano homem,

aqui deus soberano se equivale a um totem sexual (BEAUVOIR, 2016, p. 410). A mulher servil

e conservadora está sempre disposta a ajoelhar e a deitar-se aos pés do senhor humano ou

divino, sendo o homem o seu único meio e razão de viver. A figura feminina é representada

como pilar ou viga para a conservação dos costumes e da moral. Em diferentes momentos do

patriarcado, as mulheres são chamadas a lutarem contra o mal, como afirma Beauvoir:

Ela é sempre alguém ou alguma coisa, entre os antidreyfusistas, as
mulheres eram mais encarniçadas ainda do que os homens; elas nem
sempre sabem onde reside o princípio maligno, mas o que esperam de um
bom governo é que ele o expulse como se expulsa a poeira da casa. Para as
gaullistas fervorosas. De Gaulle se apresenta como o rei dos varredores; de
espanadores e trapos nas mãos, elas o imaginam limpando e fazendo
brilhar uma França “limpa” (BEAUVOIR, 2016 p. 427).

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Uma trama se completa: o perigo das teorias de gênero, do feminismo e dos

comunistas; o combate contra o demônio: os orixás e a limpeza da sociedade pela eliminação

da corrupção. As servas do senhor são recrutadas e recebem papel principal numa trama de

adoração e destaque dos homens representantes de deus na Terra. O uso das mulheres e o

domínio dos espaços são signos da disputa pelo poder de recriação de um corpo político do

território. A ascensão evangélica e o bolsonarismo andam juntos constituindo uma grande

ameaça às Comunidades Tradicionais de Terreiro, segundo Prandi (2021)39, em entrevista ao

Jornal Folha de São Paulo, como demonstração de força da Bancada Evangélica, vivemos a

destruição das políticas públicas de proteção aos cultos e a constante intimidação que visa

recriar a condição anterior à Constituição Cidadã de 1988. Tal conjuntura é evidenciada na

presença do presidente em pronunciamentos de pastores/políticos.

Figura 5 - Jair Bolsonaro (Presidente da República), Pastor Everaldo (preso por corrupção na Saúde do Estado do
Rio de Janeiro e Eduardo Cunha (preso por corrupção pela Operação Lava Jato)

Fonte:https://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/08/a-igreja-de-eduardo-cunha-vai-devolver-os-dizimos-q
ue-ele-depositou.html

Os slogans, tais como “Esta cidade pertence ao Senhor Jesus”, presentes até nas

placas oficiais da cidade, funcionam como instrumentos de normatização de espaços e de

corpos, sendo empregados na conversão em massa e ocupando o lugar como símbolos dos

poderes paralelos (LEEDS, 2006). Criado entre os anos de 2019 e 2020, o Complexo de Israel

tem como demarcação os símbolos do povo judeu, como a bandeira do país e a Estrela de

39 Folha de São Paulo, 23 de janeiro de 2021.

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Davi. Frases de advertência, como “Jesus é dono desse lugar”, são escritas nos muros, nos

espaços em que as tradições das comunidades de terreiro são proibidas e seus praticantes

agredidos e expulsos. Aliado ao proselitismo eleitoral, temos o proselitismo do crime que

afirma seu poder territorial pelo controle da fé.

Figura 6 - Terreiro de candomblé com mais de 50 anos é destruído no bairro Parque Paulista, em Duque de
Caxias, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro

Fonte:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/07/12/terreiro-de-candomble-e-destruido-em-duque-de-c

axias-na-baixada-fluminense.ghtml

A tríade rei, lei e fé afirma-se na rasura e na negação dos outros. No processo de

violência dos signos, os índices de território são tomados e combatidos tornando-se símbolo

do domínio do outro e são disseminados como ícones de uma superioridade fabricada. Esse

jogo/encenação esconde ou visa esconder um uso abusivo e violento do poder. A guerra

contra “orixás e pretos velhos” foi oficialmente permitida pela sociedade brasileira, que dela

se serviu como instrumento de racismo religioso, visando a manutenção de privilégios pela

via simbólica, como concentração de renda e poder político eleitoral.

Figura 7 – Guerra santa fabricada

Fonte: Jornal do Brasil, 3 de novembro de 1987, ano: XCVII, n. 209, p. 1

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Não tardou para que os poderes paralelos, como o tráfico e as milícias, utilizassem o

mesmo expediente narrativo, como noticia o site g1, no dia 24 de julho de 2020.

Figura 8 – O Complexo de Israel

Fonte:https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/24/traficantes-usam-pandemia-para-criar-novo-c
omplexo-de-favelas-no-rio-deixam-rastro-de-desaparecidos-e-tentam-impor-religiao.ghtml

Representando um traço de sofisticação desse processo de dominação religiosa,

cultural e política, é possível destacar a assimilação de vários elementos representativos da

africanidade no Brasil, alguns deles tombados como patrimônio nacional, antes proibidos

pelos pentecostais. Enquanto, nas instituições, os estudos de História e das Literaturas

Africanas ainda é repelido como “coisa do demônio”; nas ruas, a capoeira ancestral e funk

carioca são “revestidos” pelo título e pelo léxico do gospel, sendo aceitos por essas

comunidades.

Ainda sobre o funk é interessante perceber que, embora manifeste um discurso

moralizador sobre a sexualidade, preservam os movimentos da dança do “funk putaria” e a

glorificação ao luxo, ao poder e ao dinheiro do “funk ostentação”40. Como na letra da do hit

“Nóis tem montão”, do antigo integrante do bonde d’Os Havaianos, Tonzão:

Nóis tem montão, nóis tem montão
Deus deu muito pra nóis
Pra nóis dividir com os irmãos
[...]
O nosso carro não é luxo, é necessidade
Tem que ser 4x4 pra entrar na comunidade

40 Ver dissertação defendida de Ingrid Fernanda dos Santos Carvalho: Pode funk? O corpo cênico em ação: um
ensaio sobre a dança na escola
. UNESP, 2020.

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CRISTÃOCRACIA

Sobe morro, desce morro, entre becos e vielas
Tem que ser uma moto zica, pra pregar lá na favela
[...]
Ter um monte de mulher, isso aí é pra covarde
Quero ver ter uma só e renunciar a própria carne
(TONZÃO, 2014).

Já o acarajé, uma das mais famosas iguarias da culinária baiana, a comida votiva de

Iansã, passa a “bolinho de Jesus”:
A conversão de baianas do acarajé às igrejas neopentecostais tentou afastar
do famoso bolinho de feijão fradinho os traços afro-religiosos, eliminando
os rituais que antecediam sua venda, retirando os símbolos que enfeitavam
o tabuleiro e as próprias baianas, mudando o nome africano. Para conter
esse movimento foi necessária a intervenção de uma lei, mas o estrago é
profundo, pois não se trata apenas de refutar os elementos específicos de
uma cultura. Estamos falando de dominação, de uma posse indevida que
visa exploração e lucro (D`GIYAN, 2017).

Figura 9 - Baianas de Acarajé

Fonte: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/58

O repertório religioso afro-brasileiro foi transformado em verdadeiro espetáculo de

afirmação e de conversão em massa. Tudo transmitido “pelas antenas de TV”, mudando

sentidos, cortando raízes, esvaziando símbolos de luta e resistência. Como diz a letra da

música Alagados, da banda Paralamas do Sucesso: “A arte de viver da fé, só não se sabe fé

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em quê”. A reconversão simbólica visou ajustar os modos de vida populares, da relação

visceral com o Exú, boca que tudo come e a todos alimenta, para a teologia da prosperidade,

para a adoração ao Deus que garante o acúmulo e consumo de bens de capital. A paulatina

substituição da fé na palavra dita, “Exú da meia-noite/ Exú da encruzilhada/ O povo da

umbanda/ Sem Exú não consegue nada” pela crença expressa na palavra grafada em

folhetos, propagandas e adesivos automotivos, “Foi Deus que me deu.”

Essa passagem da tradição, de um modo de vida, de uma cosmovisão milenar em

mero truque midiático, em um produto de consumo, teve como efeitos o enfraquecimento

ainda mais agudo das subjetividades, o aprofundamento de preconceitos e a promoção do

ódio a tudo aquilo que teima em revelar que somos a maior população negra fora da África.

Os meios de comunicação e as mídias sociais, que inoculam venenos, também

servem como antídoto. Essa mesma disseminação de auto ódio ou da negação de si mesmo,

como afirma Lucas Motta Veiga, em Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia

Preta, também é combatida por movimentos de aceitação e de afirmação estética, de

valorização dos artefatos culturais e da beleza dos corpos pretos e periféricos. Ainda que

muitos desses movimentos, ao se tornarem fenômenos das redes, acabem perdendo, por

vezes, um pouco da força como luta e resistência, se transformando em objeto de desejo e

de consumo das classes médias e altas.

Em um post publicado no portal Mundo Negro, sobre a apropriação do chamado

“loiro pivete”, Alexandre Santana afirma que antes “fazer a cabeça” de grandes

influenciadores brancos, de artistas e profissionais da moda, o cabelo loiro descolorido era

extremamente marginalizado:
O debate sobre apropriação e como membros de uma cultura dominante
incorporam elementos de grupos oprimidos é antigo e extenso. No nosso
caso a premissa continua sendo a mesma: O que é criado na favela é objeto
de desprezo até ser incorporado, virar moda e tendência em rostos, corpos
e espaços brancos. Amam a cultura preta mas odeiam gente preta
(SANTANA, 2020).

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Figura 10 – Loiro pivete

Fonte:https://mundonegro.inf.br/o-loiro-pivete-amam-a-cultura-preta-mas-odeiam-gente-preta/

Outro movimento que modificou a cabeça dos jovens da Baixada e que virou moda

nacional foi o de aceitação dos cachos. Impulsionada pelo surgimento de produtos e salões

de cabeleireiros especializados, como a rede Beleza Natural, localizada em Duque de Caxias,

a onda das cacheadas virou tsunami e alcançou notoriedade. Os cachos se tornaram pauta

de programas de massa e são usados orgulhosamente por atrizes, por apresentadoras e por

influenciadoras famosas, que, há décadas, alisavam seus cabelos ou usavam perucas,

apliques e outros artifícios do tipo. Fenômeno observável no interior dos muros do colégio,

no qual alunas e professoras não escondem os seus cabelos.

3. Emancipação, representatividade e valorização cultural

Ao enunciar a situação política vivida em termos de sujeição maquínica e
dessubjetivação, apostamos no que Guattari (1981) chamou de inconsciente maquínico,
que prioriza as aberturas e passagens de fluxos, sendo de natureza heterogênea, nele se
articulam todos os sistemas de potência que nos articulam e as formações de poder que
nos cercam. Dentro dessa perspectiva, a atuação no campo social dispara, ou pode
disparar, trajetos de desassujeitamento e retomada de potência sempre em disputa e
tensão com o sistema capitalista. Assim, a atuação nas escolas é de importante veículo

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para compor um agenciamento coletivo que enuncie e produza novas formas de ver e
viver as questões de gênero, raça, classe e território, entre outras formas de
micropolíticas e microfísica dos poderes.

Discutir representatividade e valorização da cultural são também atividades do

cotidiano docente como via política e epistemológica de enfrentamento com as classes

populares. Na feira literária da escola, a obra escolhida foi Negrinha, de Monteiro Lobato. Os

estudantes aproveitaram a encenação do texto para discutir temas como o racismo, a

objetificação dos corpos negros, a solidão da mulher negra. A menina que descobre sua

humanidade ao ver uma boneca pela primeira vez foi o ponto de partida para série de

perguntas feitas para uma plateia majoritariamente negra. Meninas e mulheres são

bonecas? Quem já sofreu discriminação pela cor da pele? Quem já foi preterido por ter a

pele escura e o cabelo crespo? Quem dita o que é beleza? Quem condiciona os seus afetos?

Quem ganha com a domesticação e a docilidade dos corpos?

Em um trabalho extensionista, propomos uma roda de conversa sobre a importância

da leitura de textos de autores africanos em sala de aula com alunos do curso de Pedagogia,

da FEBEF. As questões levantadas pelo conto A menina Vitória, de Arnaldo Santos, nos

levaram a (re)pensar nossas práticas docentes. Analisar o comportamento da professora

mestiça que, por entender que ascendeu socialmente, recrimina, ridiculariza e discrimina os

alunos de pele mais escura e valoriza os alunos com “cabelos alourados e sedosos”, mostra

como essa situação não pode ser admitida, não é possível admitir que docentes reproduzam

o racismo estrutural.

Em nosso fazer compartilhado, incluindo as produções monográficas, encontramos

possibilidades de tecer memórias de luta e potência em torno do vivido, como o trabalho de

Letícia Pedro com as suas lembranças e personagens intergeracionais. A aluna, que se

constitui como autora, escreve as memórias de Manoelinas, lugar narrativo criado a partir de

sua avó Manoelina, poetisa oral e narradora de histórias no município de Magé, na Baixada

Fluminense. Apesar de muitas histórias terem se perdido pela dispersão da vida de seus

familiares que se dividiram pelo trabalho na fábrica de tecidos e nas casas de família, Letícia

elabora uma trama ao pluralizar o nome Manoelina e incorporar a ele diferentes gerações de

mulheres de sua família. O que revelou a complexidade de um tecido social de

solidariedades e perdas, numa luta pelo viver que é intergeracional e parcial, como afirma

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Mbembe: “A memória coletiva dos povos colonizados procura maneiras de mostrar e viver

aquilo que não sobreviveu ao incêndio (p. 20, 2019). Na vida feito música, Letícia nos diz:
Mais que abrir os olhos, me emprestaram suas lentes para que eu pudesse
enxergar a vida em novas e melhores perspectivas. A vida é como música
na maioria das vezes. Feito uma dança, acontece através dos movimentos e
não foi justamente o que vocês fizeram? Enquanto a melodia tocava,
independente do ritmo que lhes era proposto, vocês se movimentavam,
seguiam os passos, em seu próprio tempo e mesmo cansadas não paravam
se reinventavam a cada compasso. Vida, feito música, que ecoa,
ultrapassando o tempo, as estações e atinge as gerações. É assim que vejo
vocês, com uma música cantada, que não foi só ouvida no passado, mas que
até hoje está presente em cada um de nós, fazendo com que pessoas como
eu, se encham de coragem para continuar dançando e cantando, falando e
lutando e jamais se calando. Sabendo que ainda há muito a se fazer,
influenciada e inspiradas por vocês, me comprometo a dar continuidade a
toda luta e esforço de vocês (PEDRO, 2020, p. 58).

Defendemos como tarefa político-epistêmica da docência, nos diferentes níveis de

ensino, como destramar ou desmontar desse dispositivo de destruição e desqualificação de

nossas heranças ancestrais. Defendemos invenções de novas cenas ou a emancipação do

espectador como criação de performances de resistência e cura contra as violências de

diversas ordens. As produções narrativas e discursivas com as mulheres das periferias ao

interpelarem os lugares sociais a nós destinados criam dentro das instituições acadêmicas

percursos de emancipação em vias éticas e estéticas.

Nossa pesquisa entrecorta artefatos literários, histórias de vida, e argumentos

oriundos de diferentes correntes de pensamento que promova o deslocar, um movimento

ambulatório de mergulho coletivamente nesse lugar estético, do pensado e do não pensado,

do lembrado e do imemorial, possamos criar outras vias de representação e fortalecer as

formas de significação que rivalizam com a condição colonial e afastam os seus fantasmas.

Não se trata de uma análise coletiva ou substituição da função médica, mas sim de lidar com

as feridas através da compreensão social e política e criar outros dizíveis e visíveis, tornar

plural e alterada a ordem representativa.

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Castro e Alves

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Data do envio: 31 /05 /2022.
Data do aceite: 23 /08 /2022

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 86 - 107 ISSN 1807-6211
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CAPA: EXPERIÊNCIAS INSTITUINTES

Início da descrição da imagem: Folha azul claro com a logomarca da Revista Aleph sob a
forma de marca d'água. A marca d'água é uma imagem sombreada que, apesar da
transparência, torna possível visibilizar a sua presença sem impedir a visão da imagem
ou escrita que fica sobreposta a essa imagem. O logo da Revista é o grafema da letra
Aleph que é a primeira letra do alfabeto grego. Centralizado na página está a frase em
letras cursivas no mesmo tom de azul das margens: Experiências Instituintes.

Revista Aleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro. 2022 - nº 39

ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

WELCOMING STUDENTS IN PEDAGOGY COURSE: REFLECTIONS AND
STRATEGIES FOR A DIALOGICAL AND INCLUSIVE EXPERIENCE

Mariana Sá Alcantara Gomes41

Cláudia Helena Martins Frias42

Resumo
A ideia desse artigo surgiu a partir da observação de aulas, onde há estudantes oriundos de
uma classe social sem privilégios, que estão ingressando na faculdade de Pedagogia. Foi
percebido um distanciamento entre a bagagem cultural dos alunos com o capital cultural que
muitas vezes é a expectativa do corpo docente. Diante desse cenário, o objetivo deste
trabalho é refletir sobre a questão da inclusão social e cultural e a relação do professor com
o estudante. O artigo apresenta um relato de experiência pautado num levantamento
diagnóstico dos alunos, a partir do qual, propomos uma linha de ação baseada em nossas
observações e uma pesquisa de campo com os alunos. Esse trabalho resultou num
reconhecimento social e cultural que trouxe um sentimento de pertencimento para os
indivíduos do grupo.

Palavra-chave: Educação. Inclusão. Diversidade.

Abstract
The idea for this article came up from our observation in classes, where we receive students
from a social class without privileges - students that are entering in the Pedagogy University.
We realized that there is a gap between the cultural background of students and the cultural
capital that is often expected by university teachers. Given this scenario, the objective of this
paper is to reflect on the issue of social and cultural inclusion, trying to bring the teacher
closer to the student. The article presents an experience report based on a diagnostic survey
of the students, from which we propose a line of action based on our observations and a
field research with the students. This work resulted in a social and cultural recognition that
brought a sense of belonging to the individuals of the group.

Keywords: Education. Inclusion. Diversity.

42 Professora Auxiliar da Faculdade Cesgranrio (FACESG); e-mail: claudiafrias@bol.com.br Tel: 21-98750-2848.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0333-4722

41 Professora Adjunta da Faculdade Cesgranrio (FACESG). e-mail: mariana.cesgranrio@gmail.com Tel:
21-981511594. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4848-7711

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109

Gomes e Frias

Introdução

Este artigo propõe a reflexão sobre as experiências de docentes e discentes

recém-admitidos no curso de Pedagogia e as diversas realidades que se apresentam no

cotidiano acadêmico, especialmente nos dois primeiros semestres do curso.

A construção das expectativas docentes acerca do aluno que ingressa em cursos

superiores se dá a partir das suas próprias vivências, enquanto estudantes e professores

dentro de seus contextos socioculturais e temporais. Essas expectativas se confrontam com

as realidades desveladas no cotidiano, desconstruindo estereótipos e exigindo uma

constante atualização nos modos de ensinar e de aprender, buscando estar cada vez mais

próximo da realidade desse estudante que se transformará no futuro educador. Como

pontua Freire, ( 1979, p. 84) “A educação não transforma o mundo. A educação transforma

as pessoas”. Para o professor, além do desenvolvimento de um olhar para o outro que vise ao

acolhimento e à aceitação, ao reconhecimento e à valorização dos saberes não acadêmicos,

são elementos fundamentais para a compreensão teórica, assim como para o

desenvolvimento do pensamento crítico e para a construção de uma práxis emancipatória de

futuros educadores.

A motivação para esta reflexão surge não apenas a partir da constatação da

necessidade de suprir a defasagem dos alunos ingressos, mas, principalmente, da dificuldade

dos docentes em aceitar, acolher e estimular estudantes que, muitas vezes, não

compartilham do mesmo ambiente cultural e que apresentam evidente defasagem em

leitura, interpretação e, consequentemente, capacidade de expressão escrita e/ou oral.

Essa reflexão, portanto, se volta para a questão do nivelamento dos estudantes por

si só, como uma ação isolada, que pode ser compreendida como solução para um problema

bem mais complexo do que a avaliação do rendimento acadêmico. O que se propõe é

pensarmos sobre as representações dos docentes acerca do choque entre suas próprias

expectativas e as realidades cotidianas, com suas frustrações, questionamentos e buscas por

uma atuação que seja capaz de alcançar um corpo discente o qual, aparentemente, muitas

vezes, pode não corresponder ao que dele se espera no cotidiano acadêmico.

É comum ouvirmos, entre os docentes, a repetição de frases como “os alunos

chegam cada vez piores”, “não lêem e quando leem, não entendem”, “não querem pensar”,

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

“escrevem muito mal”, “copiam tudo da Internet”, entre outras falas que traduzem um

distanciamento entre docente, discente e conteúdo.

Entendendo que o curso de Pedagogia deve preparar profissionais capazes de

estabelecer relações dialógicas para, a partir delas, construir conhecimentos e que esses

conhecimentos precisam ser e fazer sentido para quem os constrói, é imprescindível que este

labor se dê no próprio espaço de formação. Este processo dialógico que permite uma

aprendizagem significativa e contextualizada, se não foi iniciado na educação básica, precisa

ser iniciado no ensino superior. Ignorar as necessidades reais dos alunos e dos professores,

que compartilham a experiência de aprender e ensinar, implica renunciar à educação.

Educação como meio de emancipação e de libertação daqueles que não podem, por si só,

escapar da dominação a qual estão submetidos, uma vez que, “ninguém se educa sozinho”

(FREIRE, 1987, p. 39) e que “ninguém se liberta sozinho” (FREIRE, 1987, p. 30).

Compreender a educação, numa perspectiva freiriana, como projeto revolucionário,

isto é, como meio de transformar a sociedade, leva-nos a entender o curso de Pedagogia

como um projeto coletivo, do qual participam os docentes, os discentes e toda a

comunidade, dentro e fora das instituições de ensino e, também, que os conteúdos

precisam, necessariamente, estar conectados às realidades diversas que possam ser

compartilhadas pelos envolvidos. Dizemos realidades diversas, porque entendemos que,

embora vivamos todos numa mesma realidade global, cada sujeito provém de uma

comunidade e traz consigo especificidades culturais, materiais e morais que, muitas vezes,

são estranhas a indivíduos de outros grupos.

Muitos dos alunos admitidos no curso de Pedagogia, assim como em outros cursos

superiores, tiveram acesso a uma educação básica deficiente ou passaram anos longe dos

estudos. Assim, ao ingressarem na universidade, são lançados em um novo mundo que não

apenas vai exigir o compromisso formal de frequência e notas, mas que deve, idealmente,

proporcionar a construção de uma práxis, no sentido freireano do termo, de ação e reflexão.

Como conduzir o processo de transformação desse estudante que nos surpreende

com sua “inabilidade acadêmica”? Que não compreende a razão dos conteúdos, além da

obtenção de um título? Um estudante que, muitas vezes, ingressa no curso superior com

uma postura burocrática, sem interesse real pelo conhecimento, encarando a faculdade

como um obstáculo para atingir uma meta?

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 109 - 127 ISSN 1807-6211
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Gomes e Frias

Muitos docentes, às vezes, pelas próprias condições de trabalho, baixos salários e

pelas frustrações de não serem compreendidos, respeitados e valorizados pelos estudantes,

coordenadores, instituições e sociedade, acabam também burocratizando sua atividade,

restringindo-se a cumprir programas e aplicar avaliações. Desse modo, a cena se configura:

professores fingem que ensinam e alunos, que aprendem. O resultado disso é a evasão de

alunos nos primeiros períodos, a formação de profissionais mecanizados - treinados em

cumprir protocolos e atingir metas - e uma massa de pedagogos sem criticidade, sem

autonomia, seguidores de manuais e receituários. O ciclo se repete indefinidamente, e o

tempo passa sem que a educação aconteça de fato, pelas mãos de quem está nela: alunos e

professores. Vencido o “obstáculo” da formação acadêmica, munido de um diploma, o jovem

profissional poderá finalmente aprender no mercado de trabalho, o que não pôde aprender

nos bancos da faculdade.

Nesse processo mecanizado e burocratizado, no qual cada sujeito comparece para

cumprir sua obrigação, não há espaço para o afeto, não há oportunidade de troca, não há

amor. E, como afirma Paulo Freire (1979, p. 15), sem amor, não há educação:

Ama-se na medida em que se busca comunicação, integração a partir da
comunicação com os demais. Não há educação sem amor. O amor implica
luta contra o egoísmo. Quem não é capaz de amar os seres inacabados não
pode educar. Não há educação imposta como não há amor imposto. Quem
não ama não compreende o próximo, não o respeita. Não há educação do
medo. Nada se pode temer da educação quando se ama.

Amar seres inacabados (e reconhecer-se como tal), compreender, respeitar, integrar,

estar junto com humildade e disponibilidade são habilidades do educador, do ser humano

que deseja compartilhar o mundo com outros seres humanos.

Entendemos que o curso de Pedagogia seja um espaço natural para o afloramento

de relações de afeto, de troca, de compreensão e de busca por sentidos. É a partir dessa

perspectiva que pretendemos abordar a questão da aceitação e do acolhimento dos alunos

“despreparados academicamente” e refletir sobre modos de atuação que nos permitam uma

aproximação e um caminho para compreender suas necessidades e viabilizar, junto a eles e,

de maneira efetiva, seus percursos até a conclusão do curso e, além dela, como educadores e

como pessoas.

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

Conhecer os alunos, suas realidades e suas trajetórias até a universidade pode ser

um dos caminhos possíveis, talvez o único, para promover uma relação dialógica efetiva e, a

partir daí, fazer com que seus saberes e suas vivências sejam compreendidos como uma base

sólida e real para novas construções. Para transformar a realidade, é preciso primeiro

conhecê-la.

Ensino superior: o que esperar dos ingressos?

Para falarmos sobre as expectativas dos docentes acerca dos alunos que ingressam

no curso superior e, especificamente, no curso de Pedagogia, precisamos, antes de tudo,

esclarecer que essas expectativas são construções subjetivas, individuais e coletivas,

formadas a partir das experiências pessoais e profissionais de cada docente. Isso quer dizer

que cada sujeito elabora suas expectativas de acordo com suas próprias vivências dentro de

seus ambientes familiares e comunitários e com suas experiências acadêmicas. Destacamos

que esta reflexão não parte, portanto, de uma generalização aleatória, mas do entendimento

de que professores universitários, no contexto de nossa sociedade, são majoritariamente

oriundos das classes médias e altas, herdeiros de um capital cultural que lhes permitiu o

acesso à educação e à cultura, considerada oficial pelas classes dominantes e legitimada

pelos meios de comunicação e demais instituições sociais, inclusive, a escola e a

universidade.

O capital cultural, como explica Bourdieu, não é um dom natural, mas transferido

involuntariamente por meio das próprias relações interpessoais no ambiente familiar. A

instituição escolar chancela esse capital, legitimando as desigualdades sociais:

Conferindo uma sanção que se pretende neutra, e que é altamente
reconhecida como tal, as aptidões socialmente condicionadas que trata
como desigualdades de “dons” ou de mérito, ela transforma as
desigualdades de fato em desigualdades de direito, as diferenças
econômicas e sociais em “distinção de qualidade”, e legitima a transmissão
da herança cultural. Por isso, ela exerce uma função mistificadora. Além de
permitir à elite se justificar de ser o que é, a “ideologia do dom”, chave do
sistema escolar e do sistema social, contribui para encerrar os membros das
classes desfavorecidas no destino que a sociedade lhes assinala, levando-os
a perceberem como inaptidões naturais o que não é senão efeito de uma
condição inferior, e persuadindo-os de que eles devem o seu destino social

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Gomes e Frias

(cada vez mais estreitamente ligado ao seu destino escolar, à medida que a
sociedade se racionaliza) - à sua natureza individual e à sua falta de dons
(BOURDIEU, 1998, p. 59).

Os professores, por sua vez, também foram e são submetidos aos mesmos critérios

ao longo de sua formação. Mas, a partir do momento que integram o corpo docente de uma

instituição de ensino, independentemente de suas origens, passam, de um modo geral,

também a atuar no sentido da conservação social, por meio da perpetuação das

desigualdades a partir da valorização de um capital cultural que nada mais é do que a cultura

aristocrática das elites.

Como dissemos anteriormente, as expectativas são construções individuais e

coletivas que se dão a partir das experiências de pessoas e grupos e que são atravessadas

por representações sociais. Individualmente, a expectativa pode surgir a partir da memória,

antes de se apresentar verbalmente. Coletivamente, a expectativa representa uma memória

social que é acolhida consensualmente pelo grupo e/ou registrada em documentação

histórica. Em vista disso, podemos tomar a expectativa como uma construção que parte das

experiências e da comunicação (CAGLIARI, 2016, p. 392).

Expectativas são elos entre os indivíduos de um determinado grupo. Seja do ponto

de vista político, religioso, moral, elas integram as pessoas por meio de certas ideias, desejos,

interpretações do mundo. Cagliari aponta como exemplo dessas ideias, a ideologia nazista e

a festividade em torno do carnaval brasileiro. São imagens compartilhadas, que passam a ser

encaradas como realidades ou como “verdades”. Verdades que serão defendidas

vigorosamente, conforme Bourdieu (1998, p. 54) indica:

Produtos de um sistema voltado para a transmissão de uma cultura
aristocrática em seu conteúdo e espírito, os educadores inclinam-se a
desposar os seus valores, com mais ardor talvez porque lhe devem o
sucesso universitário e social. Além do mais, como não integrariam, mesmo
e sobretudo sem que disso tenham consciência, os valores de seu meio de
origem ou de pertencimento às suas maneiras de julgar e de ensinar?
Assim, no ensino superior, os estudantes originários das classes populares e
médias serão julgados segundo a escala de valores das classes privilegiadas,
que numerosos educadores devem à sua origem social e que assumem de
bom grado, sobretudo se o seu pertencimento à elite datar de sua ascensão
ao magistério.

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

Então, se entendemos que o docente, independentemente de sua origem social, é

submetido aos valores da cultura entendida como “correta” e/ou “superior”, dentro do

ambiente escolar, como estudante e, posteriormente, no ambiente acadêmico, como

docente, entendemos que ele irá reproduzir, em seus modos de ensinar e avaliar, as mesmas

estratégias de manutenção do status quo, valorizando aqueles que possuem o capital

cultural e “excluindo” os que não o possuem.

Portanto podemos supor que há uma expectativa comum, compartilhada pelos

docentes, acerca do que se espera dos estudantes que ingressam no ensino superior.

Expectativa criada a partir de uma cultura dominante que valoriza um determinado saber em

detrimento de outros saberes.

Podemos pensar nessa expectativa a partir de duas vertentes e suas contrariedades.

Por um lado, há uma expectativa que diz respeito ao que se espera de um estudante de nível

superior, de um modo geral. Por outro lado, uma que é referente, especificamente, à

imagem do ingressante no curso de Pedagogia.

Os perfis dos estudantes recém-admitidos nos cursos superiores são muito diversos,

variando de acordo, não apenas com o curso em questão, como também com o tipo de

instituição (pública, privada, central ou periférica), o meio de admissão (Enem, vestibular,

Sisu, Prouni etc), entre outros fatores.

Dessa forma, as expectativas docentes no curso de Medicina são, obviamente,

diferentes daquelas compartilhadas por docentes no curso de Pedagogia. Embora sejam

atravessadas por elementos em comum, uma vez que, em ambos os casos, são expectativas

docentes sobre estudantes ingressantes em cursos superiores.

Vasconcelos et al (2019, p. 17) destaca que o ensino de nível superior tem se

empenhado muito mais na formação técnica e profissional voltada para o mercado de

trabalho do que no desenvolvimento humano. O pensamento crítico e reflexivo não pode ser

desenvolvido em um ambiente que não favoreça a livre expressão, que não valorize a

diversidade cultural e que não permita a manifestação de “outros entendimentos” senão

aquele já estabelecido como “oficial” e “correto”. Essas práticas que colocam o professor em

uma posição de “detentor” de uma verdade absoluta e o estudante como um mero

“receptor” dessa verdade configuram uma situação de violência que, como explica Bourdieu,

reproduz o modelo social que mantém exploradores e explorados nas mesmas posições.

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Gomes e Frias

O estudante recém-ingresso no ensino superior, de um modo geral, também traz

essas práticas da educação básica. Apático diante das provocações, receoso em se

posicionar, opinar, discordar, apresenta-se passivo, disposto a “cumprir ordens” e “seguir as

regras” para que consiga se formar sem “problemas”.

É papel das instituições de ensino superior (IES) promover uma educação que, além

da formação profissional, busque, por meio da ação dialógica, o desenvolvimento de

habilidades como a criticidade, a liberdade de expressão, a capacidade de convivência com

as diferenças e de reconhecimento e combate das desigualdades.

O aluno ingresso no curso de pedagogia

O perfil dos estudantes que ingressam no ensino superior no Brasil vem se

modificando ao longo das últimas décadas em razão de diversos fatores.

A partir de 1999, com a criação do FIES, sucedido por outras políticas dos governos

que se seguiram, como o Prouni, por exemplo, o acesso ao ensino superior tornou- se menos

restrito. A partir da ampliação do número de vagas e das políticas de financiamento

estudantil, estudantes de renda inferior, oriundos de famílias desprovidas de capital cultural,

começam a acessar as universidades, como afirmam Marques e Cepêda (2012, p. 179-180):

“Podemos apontar como fator de aumento e/ou estabilização dessa oferta a criação do

financiamento Prouni que facilitou o acesso do estudante de menor renda ao ensino

superior fora das instituições públicas’’.

Mais um dado que deve ser considerado é a popularização das novas tecnologias de

informação e comunicação (NTICs) que transformaram o modo de lidar com a informação e a

comunicação das gerações mais jovens, operando no campo das relações sociais e nas

dinâmicas dos processos de aprendizagem.

Devemos, portanto, considerar que o perfil do aluno ingresso é resultado de uma

série de fatores econômicos, sociais e culturais e que se difere do perfil de estudantes das

décadas anteriores. Marques e Cepêda consideram que:

A entrada deste novo perfil de aluno na universidade tem, por outro lado,
gerado inúmeros desdobramentos na dinâmica acadêmica, estrutura

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

funcional e percepção da finalidade da ação institucional (e sua relação com
o meio social) (MARQUES e CEPÊDA, 2012, p. 188).

Diante desse novo contexto, as dinâmicas das relações discentes e docentes se

alteram, exigindo uma transformação mais profunda nessas relações, uma vez que um

grande contingente de ingressos não compartilha do capital cultural, produzido e

resguardado pelas elites e legitimado e reforçado pelas instituições de ensino. Nesse sentido,

impõe-se a necessidade, não apenas de novas práticas pedagógicas, mas também de novas

dinâmicas nas relações entre docentes e discentes. Isto implica em um outro olhar para o

ensino superior, onde há maior diversidade social e, apesar de uma evidente defasagem,

originada no ensino básico, há também uma gama de conhecimentos e vivências, que, em

um passado recente, não estavam presentes nesse espaço. Marques e Cepêda (2012, p. 189)

retratam esse novo cenário e seus efeitos:

A estética e a composição social atual dos campi universitários já se
alteraram com a presença de alunos originários de segmentos sociais
distintos no cotidiano das aulas, pesquisa, extensão e convivência, gerando
uma polifonia bastante perturbadora para concepções monológicas. O
efeito desta tensão em termos metodológicos estamos começando a
presenciar: docentes, pesquisadores e o conjunto dos discentes precisam
inovar em suas relações diante da diferença e da dificuldade. O que ainda
não enxergamos com clareza é o resultado cognitivo e epistemológico dessa
interação.

Além das considerações a respeito das políticas públicas que ampliaram o acesso ao

ensino superior e das NTICs que transformam as relações entre as pessoas, o conhecimento

e os modos de produção e consumo de informações, é necessário também destacar as

especificidades do perfil do recém-ingresso ao curso de pedagogia. Ferreira (2014, p. 24-25)

observa que:
O que se percebe pelas leituras relacionadas à história do curso de
Pedagogia é que, desde sua concepção ele vive uma crise de identidade
caracterizada por uma disputa de interesses acerca do tipo de formação que
deve ser conferida ao profissional dessa área. [...] Algumas das
consequências dessa crise são percebidas de maneira perversa nos cursos
de Pedagogia no que se refere à qualidade, em geral, ruim dos candidatos
que se apresentam para o curso.

De acordo com Ferreira (2014), essa indefinição identitária do curso de Pedagogia é

um dos fatores que acaba se refletindo em um corpo discente, em parte, “acidental”. Isto é,

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estudantes que não escolheram a Pedagogia, mas “caíram” nela pelo baixo desempenho nos

processos seletivos ou por considerarem um curso mais fácil.

Há ainda as questões relacionadas à atratividade da carreira, as quais, no caso do

Brasil, não são realmente favoráveis, tanto no que se refere às condições de trabalho, quanto

à realidade salarial.

Por outro lado, há também aqueles estudantes que optam por esta carreira por

desejo próprio, por já atuarem, de alguma forma, em atividades ligadas a escolas ou à

educação informal, por se sentirem vocacionados e pela vontade de transformar a sociedade

por meio da educação.

Muitos desses estudantes são os primeiros indivíduos, em seus meios familiares, a

terem uma formação de ensino superior. Essa realidade, apesar de representar um avanço na

luta contra as desigualdades, traz, em um nível individual, uma enorme responsabilidade,

que muitas vezes se revela em tensões e crises de identidade que podem levar ao abandono

do curso.

Nesse novo cenário, deparamo-nos com pessoas oriundas de poucas oportunidades

de formação integral, pois temos uma minoria de escolas de ensino fundamental e médio na

rede pública que proporcionam vivências tecnológicas e culturais que visem a uma reflexão

crítica, permitindo o diálogo a seus alunos que, na maioria dos casos, também não têm

oportunidades no âmbito familiar, como acesso à leitura, passeios culturais ou debates.

Trazem consigo, no entanto, uma vasta experiência cultural que muitas vezes não é

aproveitada e valorizada no espaço acadêmico. Paulo Freire (2010, p. 117) reflete e orienta

sobre essa inclusão social e cultural:

Como ensinar, como formar sem estar aberto ao contorno geográfico,
social, dos educandos? [...]. Preciso agora abrir-me à realidade desses
alunos com quem partilho a minha atividade pedagógica. Preciso tornar-me
não absolutamente íntimo de sua forma de estar sendo, no mínimo, menos
estranha e distante dela.

Pensando na formação desses futuros professores e suas histórias de vida,

refletimos sobre o papel que eles irão desempenhar em suas futuras práticas. Entretanto,

não podemos desconsiderar, nessa reflexão, a força da imagem construída socialmente

acerca do professor, principalmente do ensino fundamental. Por vezes, ela é associada à do

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
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“herói” que irá combater todas as questões que perpassam no ambiente escolar, como falta

de recursos, turmas lotadas, baixos salários dentre outras mazelas e “salvar” seus alunos de

um “destino miserável”. E, outras vezes, é associada à imagem do vilão, responsável pelo

fracasso escolar, cada vez mais agravante, dentro do cenário educacional, com turmas

lotadas, alunos com deficiências de aprendizagem que são promovidos à série seguinte

automaticamente, sem nenhum acompanhamento, material didático inadequado às

realidades daqueles estudantes e muitos outros problemas que estão além do campo de

atuação desse profissional.

É um grande desafio para esses alunos ingressos, futuros profissionais da educação,

ressignificarem suas trajetórias como estudantes, a fim de atuar como educadores que terão

nas mãos a difícil missão de buscar a transformação social através da educação. Para isso, é

necessário que sua formação o fortaleça, que seu pensamento crítico e questionador se

desenvolva, de forma que possa atuar de modo democrático com seus alunos, valorizando e

observando as habilidades e desenvolvendo as competências dos estudantes. Nesse sentido,

pensamos como Freire (2010, p. 94):

Me movo como educador porque, primeiro, me movo como gente. Posso
saber pedagogia, biologia como astronomia, posso cuidar da terra como
posso navegar. Sou gente. Sei que ignoro e sei que sei. Por isso, tanto posso
saber o que ainda não sei como posso saber melhor o que já sei. E saberei
tão melhor e mais autenticamente quanto mais eficazmente construa
minha autonomia em respeito à dos outros.

Estratégias docentes para acolhimento de alunos nos dois primeiros períodos

Num processo formativo, os alunos não compreendem apenas a cultura, os

conhecimentos escolares e científicos ou os conteúdos e as práticas pedagógicas abordadas

ao longo do curso, visto que, de acordo com Bakhtin (2003, p. 271), “toda compreensão é

prenhe de resposta”. Portanto, o que se espera desse processo é “uma atitude responsiva

ativa”43, ou seja, que o indivíduo, ao longo de sua formação, tenha a oportunidade de

43 Resposta ativa ou responsividade é a compreensão plena e verdadeira de um enunciado, e é o momento em
que o interlocutor transforma, recria, completa, de alguma forma, um enunciado (BAKHTIN, 2003, p. 271).

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dialogar, transformar e adaptar o que lhe foi proposto. Cabe ao professor perceber quem é o

interlocutor que irá interagir com as suas propostas.

Pensando nos alunos que chegam ao ensino superior sem a prática de leitura e o

hábito da escrita autoral, temos um grande desafio pela frente. A leitura e a escrita estão

relacionadas diretamente à compreensão de como nossa língua está estruturada e quais os

usos sociais que fazemos dela. Afinal, “a língua escrita é muito mais que um conjunto de

formas gráficas. É um modo de a língua existir, é um objeto social, é parte de nosso

patrimônio cultural” (FERREIRO, 1995, p. 103).

Essas reflexões sobre o distanciamento sociocultural que existe entre o professor e o

aluno que ingressa na faculdade foram observados por nós, professoras dos primeiros

períodos do curso de Pedagogia da Faculdade Cesgranrio a qual iniciou o curso de graduação

em 2018. A proposta do curso busca uma formação diferenciada dos futuros professores,

trazendo análise crítica e autoria às produções. Nessa perspectiva, pensamos em traçar

algumas considerações para possíveis estratégias de resgate para que essa “lacuna”, na

medida do possível, seja amenizada. Os estudantes chegam com poucas práticas de leitura

reflexiva e questionadora, uma vez que, na sua formação na educação básica, suas práticas

foram, na maioria das vezes, reprodutoras do sistema e com pouco espaço para a escrita

criativa, pensamos em algumas possibilidades de proporcionar uma nova perspectiva ao

longo da graduação em Pedagogia.

Considerando que cada indivíduo vem com a sua história de vida, proporcionamos

possibilidades para que o aluno possa assumir o protagonismo em seu processo de

formação. Nessa perspectiva, a valorização do registro escrito das experiências e reflexões se

apresenta como uma estratégia necessária para que ele tenha a oportunidade de

estabelecer o resgate do seu universo cultural, compartilhando suas memórias e iniciando,

assim, sua trajetória acadêmica. Nessa estratégia, o desafio está na construção de uma

prática dialógica, na qual a responsabilidade exigida pelas palavras possa proporcionar

escritas e experiências vividas, resultando em um convite à autoria em que a valorização do

registro escrito dessas experiências e reflexões possa promover um diálogo de aproximação

entre as diferentes realidades de docentes e discentes.

No nosso entendimento, algumas das estratégias de aceitação e acolhimento dos

estudantes nos períodos iniciais do curso superior são:

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
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● Aproximar os conteúdos curriculares às realidades dos próprios alunos, a fim

de “dar sentido” ao que se estuda, de dar concretude às teorias, que, muitas

vezes, são apresentadas de modo desconectado da realidade, o que dificulta o

entendimento e provoca desinteresse;

● Oferecer oportunidades para a discussão sobre os assuntos propostos pelos

estudantes e, a partir desse diálogo, apresentar os conteúdos,

contextualizados de acordo com as realidades que são trazidas à sala de aula;

● Propor variadas formas de expressão, sem renunciar à produção escrita e às

apresentações orais, essenciais à formação acadêmica, explorando os recursos

com os quais os alunos já estão familiarizados e dando espaço para a

criatividade na produção de trabalhos que tratem dos conteúdos estudados, a

partir da perspectiva dos próprios alunos e de suas realidades;

● Estimular a autonomia;

● Valorizar e integrar as diferentes culturas no cotidiano acadêmico;

Diante desse cenário de transformação das dinâmicas nas relações entre docentes e

discentes, reiteramos que a educação, voltada para a emancipação, do ponto de vista

freiriano, se dá justamente a partir de relações dialógicas e do desvelamento e recriação de

realidades, no que implica o engajamento de todos os envolvidos. Nas palavras de Freire

(1987, p. 31-32):

Educadores e educandos (lideranças e massa), cointencionados à realidade,
se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de
desvelá-la e, assim, criticamente, conhecê-la, mas também no de recriar
este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este
saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes.
Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que
pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento.

Também Vasconcelos et al (2019) destaca a necessidade da prática da educação

dialógica no ensino superior, uma vez que é por meio dela que “alicerça-se o direito à crítica,

à aceitação ou à recusa a valores e interesses, à construção de representações culturais”. O

espaço de formação deve ser então, um espaço de afirmação de identidades e de troca de

experiências. Dessa forma, o ambiente educativo passa a ser lugar de ampliação de

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vivências, de problematização e de criticidade, sem, entretanto, abandonar “os rigores

técnicos do preparo profissional” (VASCONCELOS et al, 2019, p. 505).

Uma parcela significativa dos alunos de primeiro período apresenta, em um

primeiro momento, trabalhos que refletem um modelo de educação mecanizada e

burocrática, o qual visa ao cumprimento de requisitos e reprodução de informações, sem

imprimir sentido aos conteúdos e, menos ainda, à sua própria existência na relação com o

que é estudado. Quando são solicitados a emitir suas opiniões e a relacionar os conteúdos às

suas realidades, os estudantes, apesar da apreensão inicial, se colocam de maneira ativa,

participando das discussões, refletindo, questionando e, até mesmo, propondo atividades

para a turma.

Metodologia

A partir de uma exploração diagnóstica que evidenciou a dificuldade dos alunos em

exercerem autonomia e expressarem suas opiniões, desenvolvemos o planejamento das

aulas, procurando resgatar as trajetórias individuais de cada estudante, com o objetivo de

motivar o posicionamento dos alunos para que pudessem se reconhecer dentro do espaço

acadêmico. Foi realizada uma pesquisa de campo através de um levantamento de perguntas

sobre as aulas e atividade, no final do curso, para podermos nos certificar se estávamos

tendo êxito em nossa abordagem de trabalho.

A partir da discussão sobre a abordagem utilizada pelas professoras da disciplina

Projeto Integrador II, oferecida no segundo semestre de 2020, aos alunos de 1º e 2º

períodos, foi realizada uma pesquisa quali-quantitativa, de caráter exploratório. O

instrumento de coleta de dados foi um questionário semiaberto, aplicado de maneira

remota, com o objetivo de conhecer as opiniões do corpo discente acerca das metodologias

e desenvolvimento das atividades naquela disciplina.

O objetivo desse questionário era saber se os alunos se sentiram acolhidos e se

reconheceram o curso como um espaço para a livre expressão e, especialmente, verificar se

houve diálogo entre os conteúdos e as vivências individuais e coletivas e, ainda, se a troca de

experiências de vida contribuiu para a compreensão dos conteúdos propostos e para a

apropriação do processo formativo da turma.

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

A sala de aula, compreendida como um espaço democrático, se constitui numa

comunidade na qual todos os indivíduos participam, trazendo, cada um, suas próprias

perspectivas e compartilhando diferentes olhares sobre o mundo, a partir das múltiplas

possibilidades de interpretação e abordagens sobre os conteúdos. bell hooks (2020, p. 56)

fala sobre “a necessidade de examinar criticamente o modo como nós, professores,

conceituamos como deve ser o espaço de aprendizado”.

A partir do reconhecimento da necessidade de inclusão cultural, em vista das

políticas públicas que possibilitaram a ampliação do acesso ao ensino superior e,

consequentemente, da constituição de um corpo discente pluricultural, emerge também a

necessidade de se repensar a sala de aula. Porém, não é apenas a renovação do corpo

discente nas universidades que impulsionam essa necessidade de transformação. A crise do

pensamento ocidental, resultado de fatores tanto teóricos quanto sociais, vem, nas últimas

décadas, abrindo espaços para “novas” perspectivas epistemológicas que começam a ocupar

importantes lugares, onde antes reinava apenas o pensamento eurocêntrico (SANTOS,

2000).

A aceitação da descentralização global do Ocidente, as adoções do
multiculturalismo obrigam os educadores a centrar sua atenção na questão
da voz. Quem fala? Quem ouve? E por quê? Cuidar para que todos os alunos
cumpram sua responsabilidade de contribuir para o aprendizado na sala de
aula não é uma abordagem comum no sistema que Freire chamou de
“educação bancária”, onde os alunos são encarados como meros
consumidores passivos” (HOOKS, 2020, p. 57).

Para Hooks, é importante o reconhecimento do valor da voz de cada um para que se

possa construir uma comunidade democrática no espaço educativo, uma vez que é por meio

dessa escuta, do ouvir a voz do outro, que se dá a possibilidade do reconhecimento.

Resultados

As respostas confirmam que os estudantes sentiram que suas experiências foram

valorizadas no contexto do curso e que a troca de experiências entre discentes e docentes

contribuíram para a compreensão dos conteúdos. Também se verificou que os alunos se

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 109 - 127 ISSN 1807-6211
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Gomes e Frias

sentiram protagonistas de seus processos de aprendizagem a partir de suas próprias

experiências e das experiências dos colegas e que, além disso, perceberam que é possível

relacionar os conteúdos curriculares com suas próprias realidades.

Todos os alunos inscritos na disciplina participaram da pesquisa e 100% (cem por

cento) das respostas indicaram satisfação com a metodologia de trabalho adotada pelas

professoras. Quando os estudantes se sentiram ouvidos e com voz para emitir opiniões sobre

os assuntos abordados, a aprendizagem foi mais significativa, uma vez que se fez impregnada

de sentidos na vida de cada um.

Ouvir o outro também permitiu aos estudantes, não apenas vislumbrar realidades

diversas às suas, mas também perceber outros modos de entendimento acerca da sua

própria experiência.

Os estudantes afirmaram que se sentiam totalmente à vontade para se expressarem

livremente e que as professoras foram receptivas para sugestões de materiais como músicas,

filmes e livros trazidos por eles como recursos para ampliação das discussões dos conteúdos.

Também consideraram positivamente o esforço das professoras em apresentarem textos

mais próximos das realidades dos alunos. Entre as falas dos estudantes destacamos:

“Foi um momento único e enriquecedor. Esse semestre foi bem
exaustivo, mas os momentos de escuta e trocas foram essenciais para
superar cada desafio e a professora Cláudia sempre esteve em busca
de materiais que contextualizassem com o que trazíamos de nossa
prática. A proximidade e a flexibilidade são essenciais e dão mais
qualidade a todo o trabalho produzido”. C. O. Estudante do 2º
período de Pedagogia.

Observo que todo o trabalho realizado foi com base nas minhas
experiências, devido à liberdade que as professoras possibilitaram,
deixando os conteúdos mais leves e claros”. M. A. F. Estudante do 1º
período

“Me sinto confortável em me expressar, pois sinto que não tem
discriminação, rotulação, e sou ouvida”. L. S. Estudante do 2º período.

“As professoras sempre [foram] muito flexíveis, possibilitando a
abertura no debate e na construção de trabalhos, de modo a trazer a
identidade do aluno” M. A. F. Estudante do 1º período.

“Senti muito sincronismo entre as professoras e o modo como as
atividades foram propostas, trazendo uma pegada mais atual e

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

abrindo espaço para utilização de ferramentas como podcast e vídeo
na entrega de atividades. Amei fazer o planejamento e a liberdade de
criação que vocês me deram” M. A. F. Estudante do 1º período.

Na prática das docentes que atuaram em parceria nessa disciplina, a participação

dos alunos não é valorizada apenas pela “comprovação” da leitura dos textos propostos, a

frequência nas aulas ou realização de tarefas, mas, principalmente, pelas falas (ou não falas)

e pela escuta do outro. Por esta razão, há um esforço no sentido de construir estratégias que

estimulem essa participação efetiva. Esse olhar para o todo e a busca da expressão do aluno

é parte do que hooks chama de “educação progressiva e holística" ou “pedagogia engajada”,

que “dá ênfase ao bem-estar” (HOOKS, 2020, p. 28). Daí a necessidade do docente se dedicar

a sua autoatualização, ou seja, a sua capacidade de ensinar ao aprender e aprender ao

ensinar, uma vez que assim será também capaz de promover “seu próprio bem-estar”, e que,

assim como um terapeuta, que deve antes cuidar de si para depois cuidar do outro, o

professor precisa estar plenamente capacitado para a interação social. hooks diferencia o

“conhecimento livresco” e “o papel de membro da academia” da prática de um professor.

Não surpreende que os professores menos preocupados com o bem-estar
interior sejam os que mais se sentem ameaçados pela exigência estudantil
de uma educação libertadora, de processos pedagógicos que ajudem os
alunos em sua luta pela autoatualização (HOOKS, 2020, p. 29).

Nessa prática, o desejo de dominar, comum no modelo de educação bancária,

precisa dar espaço ao desejo de partilhar. Para isso, faz-se necessária a construção de um

ambiente democrático, de relações horizontais, onde todos se sintam acolhidos e

verdadeiramente respeitados, inclusive o docente, que precisa estar disposto a partilhar suas

narrativas confessionais e, assim, colocar-se “em risco” junto com seus alunos nesse

processo de autoatualização. É nesse espaço holístico de aprendizado que o professor

também cresce e se fortalece.

Considerações finais

Do curso de Pedagogia saem os futuros professores da Educação. Para que eles

possam ingressar nas salas de aula como profissionais que buscam uma transformação social

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 109 - 127 ISSN 1807-6211
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Gomes e Frias

através do pensamento crítico, com autoria em suas práticas, refletimos sobre a necessidade

de que cada aluno tenha a oportunidade de vivenciar, ao longo de sua trajetória acadêmica,

atividades que busquem desenvolver o pensamento e a reflexão sobre os assuntos

abordados. Partindo do pressuposto que cada estudante traz consigo um saber próprio,

construído ao longo de sua trajetória, e uma bagagem cultural preciosa, acreditamos que

essas interações devem ser estimuladas para que cada indivíduo tenha a oportunidade de

desenvolver uma caminhada profissional a partir da apropriação de sua própria história. O

saber e a bagagem cultural do estudante devem ser devidamente valorizados, visto que:

O saber alicerçante da travessia na busca da diminuição da distância entre
mim e a perversa realidade dos explorados é o saber fundado na ética de
que nada legitima a exploração dos homens e das mulheres pelos homens
mesmos ou pelas mulheres. Mas este saber não basta. Em primeiro lugar, é
preciso que ele seja permanentemente tocado e empurrado por uma
calorosa paixão que o faz quase um saber arrebatado (FREIRE, 1996, p. 156).

Dessa forma, acreditamos que, se os professores procurarem suprir as eventuais

lacunas de aprendizagens trazidas pelos alunos, ao longo de sua formação escolar, por meio

da própria dinâmica colaborativa, a vivência, no curso de Pedagogia, terá mais relevância na

vida dos discentes, porque será experienciada de maneira dialógica.

É nessa práxis que buscamos uma transformação que, no primeiro momento, se dá

no interior dos sujeitos que trilham o caminho do autoconhecimento e do desvelamento das

realidades que os cercam, e, posteriormente, se estende para fora dos sujeitos, em forma de

ação e reflexão, transformando suas relações e modos de estar no mundo. Uma vez que a

experiência dialógica está no cerne das transformações humanas: “Se a educação sozinha

não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 1979, p. 84).

Acreditamos que essas vivências autorais contribuem para a atividade docente e

que, futuramente, os estudantes poderão exercer também, dentro das salas de aula, como

professores, práticas significativas para seus alunos. Dessa forma alimentamos a esperança

de uma formação de qualidade dentro das escolas, onde as próximas gerações terão a

oportunidade de escrever novas histórias.

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ACOLHIMENTO DE ALUNOS NO CURSO DE PEDAGOGIA: REFLEXÕES E
ESTRATÉGIAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DIALÓGICA E INCLUSIVA

Referências
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CAGLIARI, L. C. Sobre uma teoria da expectativa. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 20, n. 38, p. 382-408, 1º
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FERREIRA, M. F. O curso de Pedagogia: perfil de ingresso, inserção profissional e promoção social.
2014. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2014.
FREIRE, P. Educação e Mudança. 12ª Edição. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1979.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010
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FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995.
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2ª ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2017.
MARQUES, A. C. H.; CEPÊDA, V. A. Um perfil sobre a expansão do ensino superior recente no Brasil:
aspectos demográficos e inclusivos. Perspectivas, São Paulo, v. 42, p. 161-192, jul./dez. 2012.
SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 2ª ed. São Paulo:
Cortez, 2000.
VASCONCELOS, I. C. O.; LIRA, A.; SOARES, I. P. Jovens universitários em silêncio no mundo das
informações: casos de liberação. Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação / Fundação
Cesgranrio. v. 27, n 104, p. 499- 520, jul. / set, 2019.

Data do envio: 01/06/2022.
Data do aceite: 24/08/2022.

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 109 - 127 ISSN 1807-6211
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DO SILÊNCIO DOÍDO A UMA ESCRITA DE MUITOS FIOS: PARTILHAS, DESAFIOS
E AFETAÇÕES NAS PRÁTICAS DE PESQUISA ACADÊMICA

FROM THE SORE SILENCE TO A WRITING OF MANY THREADS: SHARING,
CHALLENGES AND AFFECTS IN ACADEMIC RESEARCH PRACTICES

Wallace Araujo de Oliveira44

Angela Maria Carneiro Silva45

Bruna Tibolla Mohr46

Daniel Vitor Gomes de Sousa47

Hebert Silva dos Santos48

Isadora Gonçalves Duque Mendes49

Loíse Lorena do Nascimento Santos50

Otávio Vendramin dos Santos51

Priscila Sá da Silveira52

Rafaella Nóbrega Esch de Andrade53

53 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. E-mail: rafaella.esch@gmail.com . Telefone: (24) 99258-5836. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7245-8094

52 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: priscilasadasilveira@gmail.com . Telefone: (21) 96982-7078. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2339-7237

51 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. E-mail: otaviopampa@protonmail.com . Telefone: (51) 992296783. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8762-6150

50 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: loise.lorena@gmail.com . Telefone: (21) 99789-1353. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-6544-9736

49 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. E-mail: isadoragduque.m@gmail.com . Telefone: (22) 99268-3344. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7011-7093

48 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: heberthss@gmail.com . Telefone: (21) 97033-5066. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-3221-552X

47 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: dvgsousa@unesc.br . Telefone: (27) 99649 6746. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-4498-8853

46 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. E-mail: bruna.tmohr@gmail.com . Telefone: (49) 98890-8778. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7757-3796

45 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. E-mail: angela.carneiro@gmail.com . Telefone: (21) 988402249. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0085-5864

44 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: wallacearaujo1982@hotmail.com . Telefone: (21) 98751-6938. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-6437-383X

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 128 - 147 ISSN 1807-6211
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Oliveira, Silva, Mohr, Sousa, Santos, Mends, Santos, Santos, Silveira e
Andrade

Resumo
Apresentamos aqui reflexões propostas ao longo da Oficina de construção de textos para
artigos
no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (PPGPS-UERJ), ministrada em 2020. Os modos, interesses e impactos de
pesquisa que reverberaram entre os pós-graduandos são trazidos e discutidos em temas e
investigações variados dentro de um contexto de crise pandêmica. Este estudo se justifica
pela incerteza sobre como começar, desenvolver ou concluir uma escrita científica, questão
presente em nossa trajetória acadêmica. Entre formulações teóricas e métodos inovadores,
aquilo que nos afeta em muitos sentidos numa pandemia foi considerado enquanto processo
de produção de uma escrita desafiadoramente encarnada, a que a Psicologia, a Educação e
as práticas em pesquisa vinculam-se em um tempo que parece nos furtar sonhos e
conquistas diante de perdas, anseios, confinamentos e ansiedades.

Palavras-chave: Escrita acadêmica. Desafios. Pandemia. Psicologia Social. Práticas em
pesquisa.

Abstract
We present here reflections proposed through the text-writing for scientific articles
Workshop
offered in 2020 by the Graduate Program in Social Psychology of the State
University of Rio de Janeiro (PPGPS-UERJ). The modes, interests and impacts of research that
reverberated among graduate students are brought and discussed in varied themes and
investigations within a context of pandemic crisis. This study is justified by the uncertainty
about how to start, develop or conclude a scientific writing, an issue present in our academic
trajectory. Between theoretical formulations and innovative methods, what affects us in
many senses in a pandemic was considered as a process of production of a defiantly
incarnated writing, in which Psychology, Education and practices in research are linked in a
time that seems to steal dreams and conquests while we face losses, anxieties, and
confinements.

Keywords: Academic writing. Challenges. Pandemic. Social psychology. Practices in research.

Introdução

Não sabia como começar esta escrita e acho que ainda não sei muito bem.
A pandemia me afetou em muitos sentidos em meu ingresso no mestrado.
Minha proposta de mestrado era acompanhar a dança afro no morro da
Providência e ver os impactos dos encontros de rememorar ancestral
daquela população negra. Eu atualmente vivo o luto desse projeto não
poder acontecer. Planejei mas não tive nem a oportunidade de tentar.

Hebert Silva (autor)

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DO SILÊNCIO DOÍDO A UMA ESCRITA DE MUITOS FIOS: PARTILHAS, DESAFIOS
E AFETAÇÕES NAS PRÁTICAS DE PESQUISA ACADÊMICA

Tempo. O ano começa, aparentemente, como outro ano qualquer. Novos sonhos,

conquistas, perdas, anseios, novidades, ansiedades. Um tempo aparentemente sem muitas

diferenças dos anteriores. Ainda rápido, tempo correndo, carnaval acontecendo... corpos

ritmados no acelerar da nossa vida cotidiana. Estude, trabalhe, se divirta, saia, seja

interessante, seja feliz e produza. Produza! Não dá para parar. Em março de 2020 esse ritmo

foi interrompido pela Covid19. Respire! O tempo muda, precisamos pausar, pessoas estão

morrendo com um vírus contagioso. O corpo construído para a produção precisa parar.

Respire! Vamos parar um pouco, com a expectativa de volta. Um mês? Talvez dois? Isso vai

passar e o tempo voltará ao normal. Voltará?

Os meses se passam e o que parecia ter um prazo começa a se impor. O tempo se

impõe. Respire. Os planos precisam mudar, nossos corpos precisam assimilar esse novo

modo de vida que se impôs e mudou o tempo e as relações. Começamos a ver a morte ao

nosso lado, de nossos queridos, que são além de números, além de uma estatística.

Precisamos viver um luto generalizado. Um luto de pessoas reais e de planos. O tempo nos

diz: respire. Mas temos medo de não respirar, de ficar sem ar. Ao passo que ansiamos em

viver o luto, o mundo ainda nos impõe mudar de planos, mudar de sonhos. Não deixamos a

lógica de produção, transformamos essa lógica e a levamos a outro lugar. Respire? O corpo

para e os mesmos ideais permanecem. Como viver o luto, respeitar o tempo, e seguir para

um novo lugar? Como, enquanto pesquisadores, num programa de pós-graduação,

atravessar esse momento?

Este artigo apresenta reflexões propostas ao longo da Oficina de construção de

textos para artigos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro (PPGPS-UERJ), ministrada no período de 2020/1. O que reverberou

entre os pós-graduandos é aqui trazido e discutido quanto aos modos, interesses e impactos

de pesquisa.

Em temas e investigações variados, dentro de um contexto de crise pandêmica, este

estudo se justifica por eventualmente não sabermos como começar, desenvolver ou concluir

uma escrita científica, questão presente em nossa trajetória acadêmica. Assim, entre

formulações teóricas e métodos inovadores, o que nos afetou em muitos sentidos numa

pandemia foi considerado enquanto processo de produção de uma escrita desafiadoramente

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 128 - 147 ISSN 1807-6211
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Oliveira, Silva, Mohr, Sousa, Santos, Mends, Santos, Santos, Silveira e
Andrade

encarnada, às quais a Psicologia e as práticas em pesquisa vinculam-se no que tange à

temática e à relevância de nossas elucubrações no presente livro.

Em um tempo que parece nos furtar sonhos e conquistas diante de perdas,

distanciamentos, anseios, confinamentos e ansiedades; nos muitos enfrentamentos, como

produzir com um corpo tão atravessado por essas questões? Partimos então desse tempo

que se impõe, da necessidade de mudar planos, desse corpo que precisa assimilar um novo

modo de vida enquanto começamos a ver morte ao nosso lado, indo além de números, além

de uma estatística no luto generalizado. Um luto de pessoas reais e de planos. Ao passo que

as interrupções se dão, o corpo para; os mesmos ideais permanecem. Como viver o luto,

respeitar o tempo, e seguir para um novo lugar? Como, enquanto pesquisadores, atravessar

esse momento num programa de pós-graduação?

Contextualização

Eram essas as questões que interferiam nos meus primeiros anos de
doutorado, especialmente entre 2017 e 2019. A opção por manter o
emprego na cidade em que trabalho, Vila Velha-ES, em vez de me mudar
para o Rio de Janeiro, onde se localiza a Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), acrescentou uma variável muito desafiadora: as viagens
semanais para a realização das disciplinas. Na entrada de 2020 tinha a
sensação de que havia chegado ao limite. O desafio de realizar o doutorado
a distância aparentemente exigiria um esforço maior para sua finalização
além das possíveis viagens. Paralelamente a isso começamos a vivenciar de
maneira global o aparecimento de uma nova doença desconhecida que
causava pânico e temor. Em março de 2020 os efeitos dessa doença, já
caracterizada por uma pandemia, começaram a ser sentidos no Brasil
através da confirmação dos primeiros casos e do isolamento social. A
sensação então quanto ao doutorado pareceu ser a mais pessimista e
catastrófica possível: “não vai dar para continuar” (Daniel Souza, autor).

É fato que grandes desafios cercam a realização de um Mestrado ou Doutorado no

Brasil, como limitações financeiras, pressão, negligência, vulnerabilidade e um grande

sentimento de inadequação. Estudos recentes apontam níveis preocupantes de sofrimento

psíquico como ansiedade e transtornos depressivos entre estudantes de pós-graduação

stricto sensu (COSTA E NEBEL, 2018; LOUZADA E FILHO, 2005). E como se tais enfrentamentos

não bastassem, uma pandemia nos desassossega e reconfigura entre as práticas formativas e

de vida.

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DO SILÊNCIO DOÍDO A UMA ESCRITA DE MUITOS FIOS: PARTILHAS, DESAFIOS
E AFETAÇÕES NAS PRÁTICAS DE PESQUISA ACADÊMICA

Em se tratando da estrutura universitária também afetada por esse acontecimento,

o PPGPS-UERJ, enredado por uma trama de relações, pesquisas e implicações, adaptou-se

aos encontros online como alternativa de continuidade de processos formativos e científicos.

Dada a travessia de grandes mudanças, no período de 6 de agosto a 1º de outubro do ano de

2020 a disciplina Oficina de Construção de Textos para Artigos foi ofertada quinzenalmente

pela plataforma virtual Zoom Meetings e mediada por Anna Uziel, Claudia Cunha, Laura

Quadros, Ronald Arendt, Angela Carneiro e Mário Felipe Carvalho.

Com o objetivo de escrever artigos em conjunto, entre pesquisadores

pós-graduandos de diferentes orientações e áreas, nos reunimos pela temática, metodologia,

afinidade teórica ou interesses aproximados de pesquisa. Partindo da apresentação da

proposta da disciplina, houve uma divisão dos inscritos em grupos, nos quais, para além da

construção de textos, a leitura e a discussão eram parte das atividades de complementação

pedagógica.

Daqueles grupos originou-se a articulação das dez autorias que aqui compartilham o

que foi pensado e experienciado no eixo intitulado Corpo, Arte, Coletivo e Instituição. Havia

debate e orientação durante o processo de escrita, ocorrido em meio a uma pandemia e a

um luto em curso. Das questões que emergiam, nos perguntávamos: o que furou a tela entre

nós na perspectiva de afetação? Nas conversas que se cruzaram em cada encontro virtual,

procuramos elos no tensionamento do que era real e impactava no grupo, que se constituía

e cuja escrita tornou-se uma estratégia de atravessamento, um exercício coletivo com uma

produção em diferentes linhas de pensamento e conhecimento.

A pandemia nos desalojou de nossos hábitos e certezas; colocou nossos modos de

existência em questão. Vida, morte, criação e despedida vêm construindo narrativas do

inesperado, de supostas linhas de frente que se borram à medida que grupos de risco se

ampliam. Viver é um risco, um rabisco que conflita narrativas cada vez mais insustentáveis.

Mas, qual a experiência radical que o vírus nos causou? O que ele potencializou? Talvez, mais

do que voltar, precisemos seguir; mas seguir olhando o que nos trouxe até aqui. Afinal, nossa

humanidade está em perigo e estamos entregando-a voluntariamente à manutenção de um

sistema que consome e oblitera tudo do que se apropria.

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Oliveira, Silva, Mohr, Sousa, Santos, Mends, Santos, Santos, Silveira e
Andrade

Sonho com uma balada e de repente me pego aflita, sem máscara, aflita
com o distanciamento, o gel e um grande sentimento de inadequação. A
realidade está pouca para tanta intensidade, é preciso transbordar no sonho
(Isadora Duque, autora).

Precisamos nos lembrar de que somos pessoas, e não robôs cumpridores de tarefas;

de que as mortes que vemos todos os dias são vidas, redes de afeto, que se perdem e

desfazem, e não números. É preciso fazer tempo. O que era estabelecido, acordado e

garantido perdeu o chão. O vírus micro, invisível, deu visibilidade às engrenagens que

sustentam o mundo em que vivemos. O mundo não pode parar. Mas para quem? E a custo

de quem e de quê? Ao mesmo tempo, o mundo teve que parar. Parar para pensar, sentir,

existir. Por um tempo. Mas, rapidamente uma tensão se estabeleceu e o mundo voltou a não

parar, e para isso é preciso que uma parcela imensa da sociedade seja convencida disso, atue

e sustente a engrenagem de usufruto de poucos. Muito poucos.

Experienciando a pandemia e seus efeitos, Latour (2020) aponta a luta por um

tempo que está em disputa. Durante esse tempo, o capitalismo já se reinventou: se

desmontando e se remontando, rapidamente se refazendo e capturando todos os novos

movimentos. O “novo normal”, eles dizem. É sabido que nós, brasileiros, que vivemos ainda

sob as marcas da colonização, estamos enfrentando dois tipos de vírus: a Covid-19 e, com

uma força pandêmica muito mais destruidora que a primeira, o fascismo (MIZOGUCHI E

PASSOS, 2020). A Covid-19 é o vírus de uma economia desenfreada, mortífera, regida pela

lógica do lucro, descomprometida com a ética da vida. E o que quer a ética da vida?

Expansão, multiplicidade, fluxo, vida e morte.

A situação é excepcional e expõe ainda mais feridas já existentes: o sucateamento

do sistema de saúde, a vulnerabilidade das minorias, a falta de investimento público em

instituições voltadas para saúde mental, a dificuldade de acesso a bens essenciais pela

população mais pobre.

Como diz Santos (2020), a pandemia veio apenas agravar uma situação de crise que

a população mundial já experienciava. Em meio à crise encontra-se a resistência. O luto

ainda existe e o corpo é afetado por ele. Não existem certezas, mas experimentos, para

buscar superar o trauma sem apagar a realidade que estamos vivendo. Buscamos produzir

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E AFETAÇÕES NAS PRÁTICAS DE PESQUISA ACADÊMICA

uma ciência humana que não almeja resolver a dor causada pelas consequências do vírus,

mas que faça refletir sobre as mazelas da nossa sociedade que foram escancaradas.

Enquanto a pandemia avançava, seguiu-se uma vivência intensa de novas tentativas

de contato social. Muito criticada inicialmente, o ensino remoto por intermédio de

plataformas digitais começou a ser implantado nas instituições de ensino superior. Muitas

dúvidas cercam a eficácia dessa modalidade, mas à medida que a pandemia provocava a

extensão do isolamento social, o relacionamento virtual também provocava impacto afetivo

nas pessoas.

Experimentar esta escrita num corpo quarentenado implica o cultivo da inteireza.

Afinal, não somos os únicos quarentenados. Os encontros já não nos tocavam mais

fisicamente, mas não deixamos de nesse mesmo corpo sentir e resistir a tantos processos

desestabilizadores e propulsores de afetações. Esse corpo desempenhado em desafios agora

escreve em coletivo para então tentar se aproximar e cada vez mais (ou menos) não se sentir

sozinho. Poros e palavras tentam arejar para reconstruir vínculos e marcas. Nos restauramos,

ou pelo menos tentamos, nesse corpo em luto e em luta para atravessar esses tempos e

espaços que aqui dialogam.

A partir desse encontro, com as palavras, estamos criando um corpo que resiste.

Mas o que seria existir ou resistir, afinal? Cada vez mais tentamos construir tal resposta nas

relações em que estamos implicados. Relacionar-se com o outro e consigo é, em considerável

medida, lidar com o corpo múltiplo que temos e somos — conforme Annemarie Mol

(MARTIN et al., 2018). Em suas palavras, “é possível prestar atenção ao que acontece na

prática, por imaginar o que cada elemento num cenário indica sobre a realidade (problemas

e preocupações) em jogo na prática, perguntando para as pessoas para aprender como elas

lidam com as coisas e interpretando o que elas falam” (MARTIN et al., 2018, p. 296).

Discussão

De repente começo a experimentar com a pandemia uma aproximação dos
colegas que nunca vivi na graduação, que nunca vivi na academia. Apesar
do contato online, algo está passando entre nós que é inédito na minha
experiência e que de repente me faz pensar na academia que queremos
(Rafaella Esch, autora).

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Oliveira, Silva, Mohr, Sousa, Santos, Mends, Santos, Santos, Silveira e
Andrade

Na academia sente-se o corpo afetado, mas em busca por resistir, escrevendo.

Fomos mobilizados a registrar algumas reações/afetações frente à leitura do texto “Imaginar

gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”, de Bruno Latour (2020). A partir de tal

proposta, fomos suscitados pelo texto de diferentes formas, peculiaridades/singularidades,

mas também por muitas consonâncias que a própria condição de pesquisadores, coabitantes

dessa realidade que tem se apresentado, fez emergir.
Na verdade, a leitura de “Imaginar gestos que barrem o retorno da
produção pré-crise” me forçou a pensar na minha pesquisa, não mais
aquela que eu tinha como proposta, aprovada no processo seletivo do
mestrado, mas uma modulação que forçosamente ocupou seu espaço...
Passei a rastrear alguns coletivos de luta antimanicomial e o modo como
eles vêm se organizando e pensando, enquanto potência do coletivo, a
atualidade imposta pela presença do vírus (Bruna T. Mohr, autora).

Seguir com esta escrita, com este movimento, não é superar tudo que temos vivido

e dizer que está tudo bem, mas é trazer as histórias das marcas que estão sendo tatuadas em

nosso viver. É permitir que a escrita performe com as marcas que estão presentes em nós,

afinal, elas também nos compõem como pesquisadores. É apostar na escrita como

laboratório, onde experimentaremos este novo tempo com tudo o que temos vivido, para

transbordar os efeitos de maneira a promover outros alcances, como nesta leitura.

Aflita se vou conseguir contribuir. Sou de um referencial em que o
quantitativo é muito forte. No entanto, tudo o que vem sendo falado no
grupo faz o maior sentido (Priscila Silveira, coautora).

Qual é o nome do que estou vivendo? Como encontro aqui nas diferenças
um conforto e um território de diálogo? (Daniel Sousa, coautor).

Esse projeto vai ter que sair, não sei por onde, mas tem que seguir (Loíse
Lorena, autora).

Bondía (2002, p. 21-22), ao pensar a experiência e o saber de experiência, diz que

"as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes

mecanismos de subjetivação". É apostando nas palavras que está escrita acontece, com

trocas de experiências pessoais, relatos de impacto da pandemia e muito incentivo a

potencializar as vivências no papel. Trata-se quase de reconstruir motivações, interesses e...

afetos.

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Os encontros reacenderam a motivação para a realização do doutorado ou do

mestrado. As exigências, os prazos e as cobranças sumiram? Não! Mas tudo foi amenizado

pelo acolhimento afetivo do grupo. Fica visível o que afirma Siegel (2018), que a integração

pessoal (afeto manifesto pelas relações sociais) provoca integração neuronal, que consiste na

base para a autorregulação saudável. O resultado disso é um processo visível de resgate e

reconstrução dos nossos corpos enquanto alunos do PPGPS-UERJ através da motivação para

a escrita, para a continuidade e para a conclusão desse processo.

Esta aposta, uma escrita de corpo inteiro, está para além do coletivo entre

humanos, ela também se faz na escrita com as palavras. É percorrer por uma via de mão

dupla também com os não-humanos. E diante do desafio e difícil desempenho de estar e ser

corpo, como seguir?

Em agosto recebi a notícia de que as aulas do doutorado na UERJ voltarão
através da modalidade remota. Depois de tantas dificuldades vivenciadas
típicas de um doutorando, dos percalços das viagens desgastantes, de uma
pandemia devastadora, restaria forças para dar sequência? Não custava
tentar, e foi o que fiz. Inscrevi-me nas disciplinas remotas com a expectativa
de vivenciar o “outro lado da moeda”, de não dar a aula remota, mas de
assisti-la. Uma das disciplinas em que me inscrevi foi “Oficina de Construção
de Textos para Artigos”. Nas primeiras aulas verifico que são mais de 60
alunos! Algo me chama muito a atenção nas discussões iniciais: a questão
da “escrita com alegria” (Daniel Sousa, autor).

Como Bondía (2002, p. 21), acreditamos que "fazemos coisas com as palavras e,

também, que as palavras fazem coisas conosco". À medida que escrevemos, que colocamos

em palavras nossa experiência, damos sentido ao que nos acontece. E dar sentido tem tudo

a ver com as palavras. São elas quem nos dizem o que faz sentido e o que não faz. Assim

como também são elas que nos ajudam a inventar o que é sentido no corpo.

[...] fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas
conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos
com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma
suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E
pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como
nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que
somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que
tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o
modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e
diante do mundo em que vivemos (BONDÍA, 2002, p. 21).

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Acreditamos, como Monteiro (2016), que as palavras conferem ao corpo um medo

de estagnação e, nesse ponto, ele deve buscar dançar com mais e mais palavras e se manter

em movimento, obtendo desse modo a transformação pelo outro, bem como do outro.

Monteiro (2011), ao pensar a relação da escrita com o corpo, diz que “não se trata apenas de

dominar as técnicas da escrita, como não se trata apenas de dominar as técnicas do corpo.

As afecções se encontram sempre num limiar […] há, para além da técnica, um encontro

(…) particular” (p. 192), encontro esse, sentido e experienciado por esse corpo.

Hoje, a fala, assim como a escrita, tem se restringido ao descritivo: a busca da

clareza e da compreensão é fixada naquilo que é dado, isto é, no dito e no escrito, em vez de

se considerar a construção conjunta do dizer e do fazer. O processo do pensamento e da

escrita necessita do corpo, pois aquilo que não passa por ele não é digerido, muito menos

incorporado.

O corpo nada mais é do que a junção de tudo que acontece ao nosso redor; sendo

assim, a construção do corpo se dá a partir dos pedaços que o compõem e a partir de como

esse corpo construído se relaciona com outros corpos construídos. Nossos corpos estão em

constante processo de desmembrar e remembrar. O corpo é sensível e atuante, não é pronto

ou dado, mas metamorfoseado, e são as relações que lhe dão sentido e movimento.

Para um corpo surgir, ele precisa se remembrar, assim como se desmembrar e

permanecer no tempo, nesse processo, que ocorre de maneira tal que não sabemos em que

momento inicia nem temos os seus caminhos tão bem definidos. Os caminhos são de várias

formas e tamanhos e se cruzam. Dessa maneira, são as experiências, os encontros e as

marcas que montam e remontam o nosso corpo, pois, aquilo que nos afeta, é o que o

produz.
Precisamos uns dos outros, da presença do poético. O encontro realizado no
dia 27/08 ousou e fez encontrar tantas raízes diferentes. Aproximou
diferenças na tentativa de fazer da academia um espaço de criação,
produção de conhecimento, mas sintonizada com a vida. E a marca é bela.
Que haja um espaço que nos permita florescer sem o imperativo fabril da
produção! (Otávio Santos, autor).

Estamos convocando uma escrita com o corpo para acompanhar as marcas que as

mudanças estão escrevendo no nosso corpo, no corpo da cidade, no corpo da academia, de

nossas pesquisas, no corpo do mundo em nossas vidas e como seguir. Com fins acadêmicos,

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mas também na confluência de múltiplas experiências e possibilidades, encarnadas em cada

um dos participantes.

O isolamento social nos coloca a remembrar esse corpo e a desmembrar o corpo

que estávamos habituados a ter. Somos agora atravessados por componentes não humanos

como telas, internet e o ambiente de casa. Um corpo remembrado permite que os

sentimentos e afetos circulem por ele e sejam transferidos para outros corpos. Esse processo

é custoso ao corpo, pois, para o novo remembrar surgir, precisamos viver o luto do corpo

antigo. O desmembrar nos descaracteriza e nos coloca num novo lugar de construção de

corpo. O processo de remembramento é lento e precisa de novas repetições que cobram

desse corpo que se reestruture. E, a partir do reestruturar, passamos a ter a possibilidade de

efetivar um remembrar fluido impulsionado pelos acontecimentos.

Uma consequência disso é a alteração das formas de expressão das emoções,

considerando elementos afetivos individuais, como a percepção das próprias emoções, e de

interação social, como a identificação de emoções de outras pessoas e processos de

construção/manutenção/reconstrução de vinculação afetiva.

Debruço-me sobre a perspectiva de Hebert para analisar os membros desse
meu/nosso corpo. Passeio por mim e me lembro de tantos outros que são e
estão comigo. Embora tenham ido e somado aos índices de atual
mortalidade pelo coronavírus, sou guiado pelas memórias desse corpo e do
que escapa ou transborda dele. 30 de abril de 2020, 6h45min da manhã: dia
e horário em que minha avó Ruth tem seu coração parando em meus
braços. Perda e despedida se misturam com o engasgo do desespero que
carrega toda uma história de muitas conexões. Embora não tenha sido por
COVID-19, no desserviço de um hospital tudo passa a ser, sobretudo quando
para o sepultamento, você se depara com a sua avó nua dentro de um saco
preto. Não era apenas o corpo de minha avó, era o meu, o de minha família,
o de toda uma história pautada no campo dos afetos (Wallace Araujo,
autor).

Há sempre a tentativa de deixar fluir, de permitir que os encontros e afetos sejam

profícuos e permitam que, muito mais do que uma troca, haja conexões. Como aponta

Pelbart (2019), a vida pode ser vivida como um navio ou uma jangada. No primeiro, a água

oceânica que o circula é inimiga: caso entre, o navio afunda. Ele precisa dela apenas para que

não aderne. Mas a água é um mero detalhe, uma contingência da estrutura metálica e rígida

da embarcação. Na jangada, entretanto, a água não é apenas uma matéria sob a qual o

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veículo se movimenta, mas condição fundamental de sua existência. Ela deve passar entre as

madeiras, ela compõe a existência da jangada.

Assim, muitas vezes a existência das pessoas tem forma de navio, isto é, sem

permitir afetar-se com o mundo, apenas deixando que a existência toque no indispensável.

Já outros têm a ventura de viverem tal qual jangadas, sendo afetados pelos acontecimentos

da vida, permitindo que as coisas fluam e que durem o quanto tiverem que durar. Esta é a

mesma distinção entre o turista e o Flâneur. Enquanto o turista vem com sua vida, seu Eu e

sua epistemologia, e busca fotografar e conhecer o que julgar como “exótico, estranho ou

diferente”, o Flâneur permite que tudo que o é diferente possa vir a fazer parte de quem ele

é, e não apenas ocupe parte de sua coletânea de fotos para Instagram ou seja elemento de

suas anedotas para amigos.

Dessa forma, os encontros ou são uma obrigação (seja de maneira alegre, como no

caso do turista, ou insípida, como no navio) ou são um convite à experiência (jangada ou

flâneur). Encontrar-se, em uma perspectiva de abertura, é um convite a não ser quem se foi

até então; é uma possibilidade de afetar-se e com isso compor novas formas de existir no

mundo.

Uma aula é um encontro com fins acadêmicos, mas também é a confluência de

múltiplas experiências e possibilidades encarnadas em cada um dos participantes. A vida, os

trejeitos e os convites que emergem de cada um dos que se reúnem, de maneira fortuita ou

pré-definida, são potências em semente esperando apenas um encontro fecundo ou um

despertar para que se atualizem. Tais potências não têm, originalmente, qualquer teleologia

ou definição prévia. São, da mesma forma que o fogo queima ou aquece, um convite à uma

miríade de possibilidades tão grande quanto incerta. O que surge de uma semente sem um

destino traçado por sua filogênese é algo tão vasto como achar significados em uma foto da

fumaça: se esvai enquanto se cria; e a forma que sustenta a potência é a mesma que a

modifica. O ser humano, ou melhor, o ser vivo é pura potência seminal. É um eterno vir-a-ser,

um refazer-se constante que se cria no encontro, na confluência de energias e matéria.

Entretanto, exatamente como a jangada precisa da água e o Flâneur da caminhada,

as potências precisam do encontro. Agora, sem a presença física que poderia materializar os

encontros, isto, como se dá? Como a potência se atualiza entre bits e conexões oscilantes?

Como atravessar o vidro trincado que virtualiza os encontros atuais?

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A ficha acaba, assim como a vida, dando lugar a outras jogadas com as quais
aprendemos a aceitar e lidar com a escassez. É nesse momento que a voz de
Elis Regina me chega: “Vivendo e aprendendo a jogar / Vivendo e
aprendendo a jogar / Nem sempre ganhando / Nem sempre perdendo /
Mas, aprendendo a jogar” (Wallace Araujo, autor).

Seria possível furar as telas que nos separam e corporificar os encontros? O que faz

um corpo? Se como aponta Latour “ter um corpo é aprender a ser afectado, ou seja,

«efectuado», movido, posto em movimento por outras entidades, humanas ou

não-humanas. Quem não se envolve nesta aprendizagem fica insensível, mudo, morto”

(2008, p. 39), questionamos: que corpo temos hoje? Temos um corpo? Nos deixamos afetar

ou, pelo contrário, nos insensibilizamos, pois sustentar o afeto em tempos de luto é por

demais pesado?

Arriscamos dizer que os encontros se corporificam através dos afetos. Afetos

cruzados, compartilhados, estranhados. Afetos que afetam os outros. Afetos que

descobrimos em nós. Fazemo-nos corpo a cada encontro, corpo esse que não nasce pronto,

nem dado, e sim, emergente da ação de habitar o mundo e de ser habitado por ele. São as

afetações constantes entre o dentro e o fora e o que se dá naquele instante e em momentos

antes que constroem esse corpo (GREINER, 2005).
Desmembrar ou remembrar? Eis a questão desse corpo que transita em
muitas direções, ainda que do seu lugar de confinamento, com suas
respectivas tensões e perturbações. Não sei se o meu cultivo está
sustentando ou superando o desafio de estar e ser corpo. Perto e longe,
telas e horizontes me colocam nos lugares e com pessoas com quem
gostaria de estar, mas não estou. Sou vizinho de Loíse, que aqui escreve
comigo, mas com quem não posso estar nessas distâncias, nesses cuidados
e nessas necessidades que cada vez mais se fazem outros. Nesse ponto, a
saudade me contempla e reforça a importância dos laços (Wallace Araujo,
autor).

Vozes, dados, notícias e outros corpos se acompanham à medida que pertencem a

uma sociedade, o que nos traz múltiplas implicações. Escrevemos nos reinventando, nos

antenando para a tentativa de capturar com o nosso corpo o todo que nos faz no mundo e

com o mundo, cuja porosidade reconhecida nos compõe em atravessamentos tanto de vida

quanto de morte.

Existem muitas perdas pelo meio do caminho, próximas, distantes, escondidas nas

estatísticas. Não será possível seguir sem falar delas. Inclusive para abrir espaços para as

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mudanças que virão com elas. Seguir, mas com muito cuidado para não nos esquecermos do

que estamos vivendo, do que deve permanecer.

A escuta do mundo nos coloca diante da multiplicidade do mundo. Por isso, mapear

a pandemia é mapear as diferenças, diversidades e modos de diferentes e injustos de

tratamento. São muitas histórias para recolhermos. Pensemos de onde cada um vê: de seu

campo de pesquisa. Até porque será do miúdo de suas experiências que também

aprenderemos sobre como as pessoas, os grupos e movimentos estão encontrando saídas,

metodologias, produzindo conhecimento que faz diferença. Em estado de devir.

Um corpo em cultivo. Pensar e sentir no modo como nos cultivamos nos faz

perceber o corpo em desalinho. Não há retidão, tampouco certezas com as quais possamos

apostar nossas fichas. Se a vida, pensada como um jogo, traz sua dinâmica de labirinto, de

que forma nos recriamos? Da pandemia, quais seriam os sentidos? Há um risque e rabisque

nesses escritos nos quais nos envolvemos com a perspectiva do outro, com o barulho do

outro, entre muitas apostas e fichas que se acabam em cada jogada. Eis que Boaventura de

Souza Santos (2020) alerta para a noção de que “a quarentena provocada pela pandemia é

afinal uma quarentena dentro de outra quarentena (p. 32).

A prática de estar no corpo e ser corpo situa um cultivo no qual nos

interdependemos dentro dos cenários. A fala, os efeitos das situações, os modos de

exposição e a variedade de questões nesse cenário pandêmico, de alguma forma nos

aglomera. Ainda que por meio de telas, nos encontramos para a composição desta escrita

para que, existindo e resistindo, nos atentemos para os muitos processos desse mesmo

espaço-tempo. Lidamos com as muitas versões de pandemia, compartilhamos as afetações

e, nesta aposta de escrevermos juntos, assinalamos nossos diferentes modos de atuação

nesse cenário.

Pensamo-nos como pessoas, lugares, impossibilidades... entendemo-nos em rede

na materialidade dessas reflexões e afetações que tanto nos formam como informam. Nesta

aposta de ultrapassar as telas e nos constituir nesse encontro fluido, seguir no cultivo dos

contrastes nos convence da importância desse instrumento. As formas são diferentes e ainda

mais convidativas à escuta e ao acolhimento do outro que nos constitui, visto que, ainda em

Mol (MARTIN et al., 2018), “o ponto é que não há uma versão só da realidade, mas a

realidade é múltipla”.

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Nos aproximamos de diferentes tempos, de esperas de corpos ainda não criados e,

portanto, acompanhar os processos nos quais estamos e somos. Nessa realidade de muitas

versões, nos interessamos em brechas pelas quais nos ampliamos. Nesse sentido, nos

comprometemos com o que emerge, sustentando nesta escrita as formas e significados

anunciados pelas forças de atuação neste cenário. Entendemos que o exercício de compor

juntos poderia talvez promover encontros com novas noções de presença, uma vez que

entender os apoios e os auxílios pode, de alguma forma, nos aliviar entre muitas partilhas. O

exercício das escutas, os mistérios dos silêncios, as dúvidas e as angústias… tudo nos foi

adubo para cultivar e cuidar dos corpos e suas respectivas afetações.

Imagem 1: Corpo em cultivo. Foto artística (Wallace Araujo).
Audiodescrição: fotografia vertical e colorida, com um homem seminu de pele parda se entrelaçando nos

galhos de uma planta, com a cabeça baixa, cabelos curtos, os braços envolvendo os talos e folhas de um verde
escuro intenso.

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Conclusão
Acabei não falando sobre minha experiência com a dança pelas telas. Eu me
sinto não visto, com dificuldades de construir corpo na dança. Aqui, minha
construção acontece com a tela, com minha cachorrinha, com os resquícios
de aulas ainda presentes no meu ambiente, com atendimentos dos meus
pacientes, com minhas questões de casa, meus afazeres de casa. Está tudo
dentro nessa construção desse novo corpo. Tudo isso passa pela dança,
tudo atravessa os ambientes e atua na construção desse novo corpo, dessas
telas e de seus avessos. Fazemos das telas atores nos quais performamos o
movimento do encontro que, para além de ser um limite, iluminamos com
potência e aproximação (Hebert Silva, autor).

O que aprendemos com essa escrita? É a pergunta que nos traz até aqui. Um

caminho que começa com uma série de incertezas e inseguranças. Será que vamos conseguir

produzir um texto, em tão pouco tempo, entre colegas desconhecidos, de linhas de pesquisa

diferentes, atravessados por uma pandemia que nos deixa sem chão, em que o possível

próximo é a janela virtual? Como isso será feito? E se não acontecer?

Cheios de dúvidas, iniciamos a experiência de um trabalho de escrita no risco e na

aposta. Um trabalho com o caráter experimental e que começa a partir de um não saber. E

isso já é uma questão interessante. Debruçar sobre o que não se sabe. Quem se arrisca? Não

é tão simples como parece. Nossa experiência nos mostrou o quanto de ansiedade gerou

esse início indefinido e não tão claro num momento em que tudo está fora do lugar. Por

onde começar?

Foi a escuta de onde cada um veio, com bagagens e impasses, que começamos a

fazer caminhos. O silêncio foi a porta de entrada. Como achar as palavras em um momento

em que as palavras são poucas e frágeis para expressar o que se está vivendo? Foi o corpo

em sua multiplicidade e intensidade de afetos que com suas marcas recentes se ofereceu ao

silêncio. O corpo marcado por perdas, frustrações e medos fez emergir um comum.

Do silêncio às marcas do corpo, as palavras começaram a borbulhar. E fomos

percebendo que um coletivo entre nós começou a emergir. Ou seja, o fato de sermos um

grupo não garantia um comum. Ele não estava dado, ele foi nascendo. Como? No aguardo ao

tempo diferente de cada um, de cada uma, na disponibilidade em se abrir ao que não se

conhece, na construção de um vocabulário que nos aproximasse, na respiração para

expandir e sustentar as pausas necessárias, numa escuta flutuante e atenta. Aos poucos as

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diferenças que a princípio respondiam pela impossibilidade do encontro foram criando um

espaço de partilha.

Cada corpo presente na construção deste artigo percorreu seus diferentes trajetos e

questões para lidar com todos os efeitos da reconstrução desses novos corpos produzidos

frente às telas. E nos mantemos neste diálogo, acompanhando os caminhos percorridos por

cada um. O “com versar” se estabeleceu.

A pandemia, o isolamento, o semestre remoto e tudo o que aconteceu e vem

acontecendo não nos tirou o corpo, mas o transformou. Nossa existência está sendo

remembrada, e dar palavras a isto é fazer uso da escrita como laboratório. Nesse laboratório

importam não apenas os cientistas e os elementos químicos, mas também os corpos dos

cientistas e as afetações que esses corpos carregam.

Entrar numa sintonia com o tempo que não atendesse a uma lógica produtivista de

reduzir esse desafio de produção de um texto a uma tarefa nos levou a outro deslocamento.

Diante do momento que pede ousadia e imaginação, um espaço de trocas foi transformando

os nossos encontros num jogo de composição de ideias. O componente risco foi se

transformando, e uma outra lógica teve lugar, a lógica do lúdico, da alegria e do prazer.

Entendeu-se, assim, uma estratégia na qual nos aproximávamos e criávamos as

margens de sustentação desse jogo de fala-escuta-escrita nada premeditado e sem regras.

Um jogo livre em que cada corpo chegava para compor um novo corpo que aqui se

apresenta, de acordo com a arte de utilizar variados caminhos de experimentação, cujas

sensibilidades fizeram criar possíveis. Sobretudo, a travessia desse difícil tempo pandêmico

com tantos efeitos.

Jogar ideias, compor parágrafos, inverter frases, se apropriar de vocábulos, colorir o

texto, misturar escritas, cortar, reescrever, usar outras linguagens como a fotografia, trazer

poesia, distribuição espacial, não como ilustração, mas como formas de pensamento. Os

eventos foram de tal ordem que alargaram as margens que, esticadas, transbordaram e

fizeram no corpo a escrita. A escrita viva no laboratório de um grupo de pesquisadores. O

espaço se estendeu. E se estendeu porque as palavras vieram de corpos marcados, que,

afetados nos encontros, se reinventaram no corpo da escrita.

Essa criação coletiva nos leva a pensar numa produção de conhecimento que

privilegia a poética do encontro, do vocábulo singular de uma vida, de uma cultura, com seu

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sotaque e que se revela expressão de um coletivo que passa a falar em cada uma, em cada

um. Uma poética que coloca em questão a neutralidade do pesquisador e propõe a

experiência de uma objetividade que se implica no local, no situado de uma produção de

conhecimento sempre parcial. Experiência que foi uma novidade para alguns participantes e

que ficou como uma questão interessante a ser levada para seus campos de pesquisa54.

Com a articulação de corpos fisicamente distanciados, a escrita ganhou seu corpo.

Entre cores e camadas que se formaram na virtualidade, o espaço cultivado nos encontros

permitiu emergir este coletivo de acordo com as afetações e as convocações de cuidado por

meio dos encontros nos quais acolhemos diferentes vivências frente ao coronavírus.

Essa escrita nos trouxe um texto possível a partir dos autores e autoras, nesse

momento, numa universidade, localizada no Rio de Janeiro, atravessada por uma pandemia.

Uma universidade que sabe o que é atravessar crises e resiste. Resiste na força de um

comum que emerge em meio a tantas diferenças, conflitos, desafios, mas que segue. E que

insiste que a academia seja um território de produção de conhecimento, de partilha, de

inclusão. Em que cada vez mais se afirme a academia como um lugar de circulação das ideias,

de reflexão crítica, um respiradouro de transformação da sociedade.

Fora do espaço físico Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entendemo-nos

enquanto instituição na qual o exercício da resistência faz parte de nosso treino. Fazer

ciência, produzir conhecimento, partir de um não saber ou uma previsibilidade de tema ou

escrita fez desse exercício um risco e um rabisco comprometido com a disponibilidade.

Somos também formados em resistir e defender uma existência que se cria a partir do que

nos afeta e fez com que fizéssemos tudo isso juntos; que caminha para além de uma

epistemologia, mas para um posicionamento estético-político. Um modo de se posicionar

perante a pesquisa que questiona esse lugar produtivista e cria a partir de nosso modo de

fazer ciência um caminho outrem de se expressar através da escrita sensível.

Chegamos ao grupo como expatriados. Saímos pertencentes e acolhidos num

território de possibilidades, não mais os mesmos, mas reinventados, pois “escreve-se sempre

para dar a vida, para libertar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga”

(DELEUZE, 2013, p. 180). As mudanças e transformações não são um movimento recente em

nós. Como dito anteriormente, o vírus da economia, já existente, vem nos transformando há

54 Para um aprofundamento dessa questão ver Haraway (1995).

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DO SILÊNCIO DOÍDO A UMA ESCRITA DE MUITOS FIOS: PARTILHAS, DESAFIOS
E AFETAÇÕES NAS PRÁTICAS DE PESQUISA ACADÊMICA

tempos. E essa escrita também representa o nosso rearranjo diante das situações que estes

vírus nos colocam.

Nestas letras apenas materializamos esses corpos em transformações em busca de

um normal que não se pareça com o que nos ensinaram que era normal. Corpos tão afetados

pelo luto, pelo isolamento, pelas telas, mas que resistem e se mantêm transformando a

ciência e sendo transformados por ela a partir dos múltiplos encontros, ainda que virtuais,

mas intensos em presença, que a academia também nos proporciona.

Referências

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Data do envio: 08/06/2022.
Data do aceite: 27/07/2022.

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FERRAMENTA DE ALCANCE E ATENDIMENTO A ALUNOS COM

COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

OVERCOMING VIRTUAL BORDERS: HUMAN INTERACTION AS A TOOL FOR
REACHING AND ATTENDING GIFTED CHILDREN DURING SOCIAL ISOLATION

Ailana de Sousa Bezerra55

Sonia Regina Alves Nogueira56

Alice Akemi Yamasaki57

Fernanda Serpa Cardoso58

Resumo
As transformações do mundo causadas pela pandemia da Covid-19 trouxeram impactos
significativos às relações humanas. O isolamento social acarretou a necessidade de recursos
tecnológicos para a realização de diversas atividades, em especial, dos processos
pedagógicos, prejudicando ainda mais a compreensão humana, o desenvolvimento das
inteligências e o diálogo entre educadores e educandos. Este trabalho apresenta o caminho

58 Doutora em Ciências e Biotecnologia pela Universidade Federal Fluminense. Atua nas seguintes áreas de
pesquisa: Altas Habilidades ou Superdotação; Interdisciplinaridade; Ensino de Ciências/Biologia; Divulgação
Científica; e, Educação em Direitos Humanos nas Ciências da Natureza. É professora da Educação Básica.
Professora Adjunta do Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense, no Departamento de Biologia
Celular e Molecular. Docente do Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão da UFF. Membro do Comitê
Científico do ConBrASD. Coordenadora da Escola de Inclusão da UFF. Vice coordenadora do Grupo de Pesquisa e
Extensão DIECI UFF - Desenvolvimento e Inovação no Ensino de Ciências. E-mail:
fernandalabiomol@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3806-1725

57 Doutora em Educação (Universidade de São Paulo). Atua nas seguintes áreas de pesquisa: Altas Habilidades
ou Superdotação; Educação em Direitos Humanos nas Ciências da Natureza; Educação Problematizadora;
Educação Popular; Violências na Escola; e, Cinema e Educação. É Professora Associada no Departamento
Sociedade, Educação e Conhecimento (SSE) da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
Coordenadora institucional e de gestão de projetos do PIBID UFF (2011-2018). Docente-colaboradora do
Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão DIECI UFF -
Desenvolvimento e Inovação no Ensino de Ciências. Pesquisadora do OIIIIPE - UFF (Observatório Internacional
de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica). E-mail: aayamasaki@id.uff.br ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6449-5132

56 Doutora em Física (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas). Atua nas seguintes áreas de pesquisa: Altas
Habilidades ou Superdotação; Interdisciplinaridade; Ensino de Ciências/Química, Física e Biologia; Divulgação
Científica; Educação em Direitos Humanos nas Ciências da Natureza; e Educação Problematizadora. É Professora
Associada no Departamento de Físico-Química (GFQ) do Instituto de Química da Universidade Federal
Fluminense. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão DIECI UFF - Desenvolvimento e Inovação no
Ensino de Ciências. Coordenadora do PRAACS! – Programa de Apoio a Alunos com Comportamento
Superdotado. Membro da AIIIIPE - UFF (Associação Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação
Pedagógica). E-mail: sranogueiradesa@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9381-6548.

55 Graduada em Licenciatura em Física pela Universidade Federal Fluminense. Exerce atividade empresarial na
empresa ASAS - Atendimento Suplementar a Alunos Superdotados. Colaboradora do Grupo de Pesquisa e
Extensão DIECI UFF - Desenvolvimento e Inovação em Ensino de Ciências. Email: ailanadsbezerra@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0416-2942.

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percorrido por um grupo de pesquisa, o qual, no período de isolamento social, como forma
de resistência e preocupados com a comunicação intra e interpessoal de alunos com
comportamento superdotado, atendidos anualmente no Curso de Férias organizado pelo
grupo, adaptou e realizou o evento, fomentando a intersubjetividade e o diálogo, também no
formato online.

Palavras-chave: Educação Inclusiva. Altas Habilidades/Superdotação. Intersubjetividade.

Abstract
The transformations in the world caused by the Covid-19 pandemic have had significant
impacts on human relationships. Social isolation resulted in the need on technological
resources to conduct various activities, in particular, pedagogical processes; further harming
human understanding, the development of intelligence and dialogue between educators and
students. This work presents the path taken by a research group, which, in the period of
social isolation, as a form of resistance and concerned with the intra and interpersonal
communication of Gifted children, attended annually in the vacation class organized by the
group, adapted, and held the event, fostering intersubjectivity and dialogue, also in an online
format.

Keywords: Inclusive Education. High-Abilities or Giftedness. Intersubjectivity.

Introdução

Ao longo dos séculos, a concepção do humano limitou-se a uma visão biofísica,

afastando-se do princípio psico-sociocultural e desenvolvendo, por consequência, uma

epistemologia mecanicista. Um exemplo a ser observado, que se refere aos primeiros

pensadores a respeito da inteligência, é o de Descartes que, seguindo a teoria filosófica

racionalista, compreendia o conhecimento como idéias inatas ao próprio indivíduo, sem

influência alguma da experiência. Já para os empiristas como Locke, a mente humana era

considerada como uma tábula rasa, sendo a experiência sensorial e reflexiva a responsável

pelo conhecimento. Em contrapartida, Kant descrevia que a percepção do mundo partia de

categorias inerentes ao indivíduo e que o conhecimento é gerado a partir da interação entre

a razão e a experiência, esta última também criada pela mente humana (VIRGOLIM, 2014).

Conforme alerta Morin (2000), pensar a inteligência de forma compartimentada e

reducionista traz ao indivíduo a incapacidade de enxergar os problemas do mundo que têm

caráter multidimensional. Além disso, quanto “mais os problemas se tornam planetários,

mais eles se tornam impensáveis. Incapaz de considerar o contexto e o complexo planetário,

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COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

a inteligência cega torna-se inconsciente e irresponsável” (MORIN, 2000, p. 43). Sendo assim,

além do caráter biofísico, a própria habilidade de compreender o mundo e tudo o que o

caracteriza, parte do reconhecimento de que, além da nossa condição terrestre e cósmica, o

que nos diferencia dos demais seres biológicos é a condição humana, que ultrapassa a ideia

da simples racionalidade e configura a humanidade (Ibid.). E, através da humanidade, nos

encontramos na constante e dinâmica transformação e na intensa busca da autorrealização,

que é reflexo da vocação ontológica e histórica do indivíduo, que se reconhece como

inconcluso em uma realidade histórica também inacabada. Tal busca, no entanto, não se

realiza a partir do isolamento ou no individualismo, pois o homem não está só na natureza,

ele se faz com e no mundo (FREIRE, 1987). Através da interação entre indivíduos, que são

produtos da espécie humana, é construída a sociedade que também age no indivíduo pela

cultura que é um quefazer humano. Assim, não se pode conceber o indivíduo à parte do

mundo, dispondo-o como fim absoluto. A cultura se perpetua através das interações

humanas bem como a sociedade se auto-organiza. Porém, a própria autorrealização do

homem perpassa pela cultura e sociedade. A relação rica e complexa entre indivíduo e

sociedade, inseridas na tríade que se sustentam junto à espécie, é favorecida por um sistema

também complexo, rico em pluralidade e antagonismos, e que possui característica dialógica:

a democracia (MORIN, 2000). Assim,
A complexidade humana não poderia ser compreendida dissociada dos
elementos que a constituem: todo desenvolvimento verdadeiramente
humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais,
das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie
humana (MORIN, 2000, p. 55).

Dessa forma, observando a evolução histórica da sociedade, de modo geral, o olhar

sobre a concepção humana foi sendo modificado, influenciando em vários aspectos o

conhecimento científico, incluindo o surgimento de outras vertentes para compreender e

mensurar a inteligência humana; em especial, a fim de determinar características do

comportamento daqueles que se destacavam, chamados hoje no Brasil de alto habilidosos

ou superdotados. Atualmente, em nosso país, os termos Altas Habilidades ou Superdotação

são utilizados como sinônimos, podendo ser substituídos pela sigla AH/SD, e o perfil dos

indivíduos que possuem AH/SD é caracterizado na legislação como “apresentam potencial

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elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento humano, isoladas ou

combinadas: intelectual, liderança, psicomotora, artes e criatividade” (BRASIL, 2009).

Por outro lado, como resultado dessa evolução histórica, a inteligência humana ora

foi colocada como condição única da hereditariedade e, portanto, simplificada a um sistema

unitário, ora foi analisada levando em consideração a complexidade humana, reconhecendo

seu caráter polifacetado, enxergando-a como um conjunto de fatores biopsicológicos

(GARDNER, 2001). Por consequência, encontramos na literatura inúmeras formas de

conceber o fenômeno da superdotação, tanto por abordagens genotípicas quanto

fenotípicas. Entre as inúmeras teorias existentes, a maioria reconhece a importância dos

agentes externos, como a cultura, o ambiente, as oportunidades etc., para o

desenvolvimento das potencialidades do indivíduo superdotado (RENZULLI, 2014) e para o

fortalecimento da inteligência que, quanto melhor for, melhor proporcionará a faculdade de

tratar problemas essenciais (MORIN, 2000).

Tal faculdade pode ser descrita pela criatividade, um fenômeno multifacetado do

sujeito que, através da coragem, é capaz de traçar correlações e buscar novas alternativas

diante das adversidades (LANDAU, 2002). A criatividade é caminho para a concretização da

vocação ontológica, a autorrealização do homem na busca do ser mais exposto por Freire

(1987). Porém, conforme traz Landau (2002), a autorrealização somente será alcançada caso

a interação com aqueles agentes externos seja realizada em meio à promoção da segurança

e liberdade. Segurança ao saber que é aceito e estimado e liberdade de ser quem é,

exercendo suas habilidades e desenvolvendo suas potencialidades e talentos. Ainda segunda

a autora,
Quem, criança ou adulto, não se atreve a manifestar os talentos, não é
suficientemente livre para comunicar-se com seu mundo interior de
vivências, tampouco seguro para contatar o mundo externo. A realização do
talento é comunicação: intra e interpessoal. Se não pudermos nos
relacionar com o que acontece ao redor, questionando-o, se não tivermos
intimidade com nossas reações internas, ignorando os argumentos das
vozes interiores, então não teremos nenhuma criatividade, muito menos
auto-realização (LANDAU, 2002, p. 31).

É através das relações intra e interpessoais que podemos compreender e conhecer a

complexidade humana. Tal compreensão é construída pela comunicação que não se

caracteriza por realizar comunicados e muito menos apenas transmitir uma informação. A

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COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

informação, por si só, gera inteligibilidade, não bastante à compreensão que deve ser feita

pelo diálogo e ter natureza intersubjetiva “como condição e garantia da solidariedade

intelectual e moral da humanidade” (MORIN, 2000, p. 93). Salientamos aqui, o considerável

papel da educação como instrumento para a compreensão e que, através de um processo

pedagógico dialógico, assume lugar fundamental na aprendizagem democrática. Ao criar um

espaço no qual se desenvolve a argumentação, a escuta, a consciência das necessidades em

relação ao outro, e do respeito mútuo diante das diferenças. Expandindo os horizontes,

estimulando a inteligência por meio do livre exercício da criatividade e das relações humanas

e garantindo a segurança e liberdade necessárias para que o sujeito, em especial o

superdotado, se auto realize e se torne capital social capaz de pensar e resolver os

problemas essenciais do mundo (RENZULLI, 2002).

Foi nesse sentido que o psicólogo norte americano Joseph Renzulli (1998) propôs a

terminologia comportamento superdotado, utilizando a palavra “superdotado” como

adjetivo para qualificar o comportamento manifestado pela criança ou adolescente em

determinado ambiente, portanto dependendo da interação com o meio, e não como

substantivo, que caracteriza algo que sempre se manifestará; evidenciando a necessidade de

transformar os potenciais em desempenhos. Em seu “Modelo Três Anéis”, o autor aponta

que existem dois tipos de superdotação: a escolar ou acadêmica e à produtivo-criativa; para

que ambas sejam potencializadas há a necessidade da interação do indivíduo com os

diversos componentes do meio em que vive: família, escola e pares, cujo estudo e análise se

incluem no contexto de sua teoria denominada “Operação Houndstooth” (RENZULLI, 2018).

No entanto, é necessária a reflexão quanto ao equívoco em que, por vezes,

associamos a intensa rede de informação e tecnologia disponível nos dias atuais e que

facilitam a conexão global, com a comunicação que gera a compreensão humana. É fato que,

no mundo contemporâneo, o uso de ferramentas tecnológicas promove extensos benefícios

como, por exemplo, na contribuição da disseminação do conhecimento científico, encurta a

distância entre indivíduos, torna-se fonte de novos relacionamentos, viabiliza o contato com

outras culturas etc. Além disso, diante da realidade vivida em escala mundial, na qual

milhões de pessoas foram obrigadas a buscar o isolamento como proteção à vida devido à

pandemia da Covid-19, esse recurso se converteu em principal instrumento de aproximação

de sujeitos, modificou estilos de vida, as relações com o mercado de trabalho e,

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principalmente, tornou-se artifício para que professores e escolas permanecessem

vinculadas aos seus alunos, promovendo o acesso à educação. Porém, se a prática

pedagógica, sendo presencial, já encontra inúmeros obstáculos, como a falta de formação

adequada de professores, más condições de trabalho e estrutura precária das escolas, dentre

outros, no modelo remoto os problemas foram intensificados, principalmente, perante a

ideia geral de que a simples conexão por tela conseguiria suprir as relações humanas. E se,

na forma convencional, o diálogo é meio essencial para que, formando sujeitos conscientes,

a compreensão seja alcançada, no modelo online, frente ao distanciamento físico, pensar

práticas dialógicas, humanas e de extremo acolhimento é indispensável.

Nesse contexto, o presente trabalho relata a experiência de membros de um grupo

de pesquisa ao se confrontarem com a necessidade de se reinventarem diante do isolamento

social, buscando enfrentar os limites de uma interação por meio digital e, ao mesmo tempo,

fortalecer as relações humanas entre seus integrantes. Daremos ênfase a adaptação para o

formato online das ações do projeto de apoio e atendimento a crianças e jovens com

comportamento superdotado, em especial à que garantiu a manutenção do espaço de

acolhimento e de inclusão oferecido a esses jovens no ambiente universitário, voltado ao

estímulo da comunicação interpessoal, fundamental para a formação de cidadãos críticos,

conscientes e que, por meio do desenvolvimento de sua dignidade humana, tivessem sua

criatividade e habilidades potencializadas.

Interação interdisciplinar online: criação de caminhos possíveis para autotransformação
em equipe

Ao longo dos anos, o grupo de pesquisa vem acolhendo não apenas estudantes de

graduação da área das ciências da natureza como também das linguagens, filosofia e,

inclusive, cinema; buscando sempre formar professores visando a Educação em Direitos

Humanos a partir da problematização freiriana (FREIRE, 1987) e adotando, entre outros,

referenciais como Arendt (1961), Morin (2000), Soares (2004) e Candau (2012). A

participação é especialmente desafiadora àqueles que ainda consideram a organização das

ciências pela perspectiva do paradigma científico dominante, o qual sustenta a visão

compartimentada e reducionista do mundo (SANTOS, 2010). Nesse sentido, as reuniões de

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COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

estudo, apoiadas nesses referenciais teóricos, proporcionam abertura para a desconstrução à

medida que há o incentivo à reflexão sobre o paradigma científico e educacional emergente,

a complexidade, a inclusão e vários outros aspectos que contribuem para uma educação

mais humanizada, incluindo a formação voltada para o atendimento a alunos com

comportamento superdotado. No entanto, um fator fundamental que corrobora com a

experiência desafiadora encontra-se no caráter interdisciplinar do grupo que, pela sua

própria natureza, tem como essência a intersubjetividade (FAZENDA, 2002). Dessa forma, é

por meio do desenvolvimento da inteligência interpessoal (GARDNER, 2001) e da capacidade

em lidar com as diferenças que o amadurecimento do indivíduo é proporcionado. Para que

assim, ele esteja apto a construir e realizar estratégias pedagógicas que contribuam para a

formação de sujeitos criativos e conscientes. Porém, tal interação não se limita ao círculo de

pessoas da mesma área de formação. A riqueza da experiência se dá exatamente pela

possibilidade de ampliar horizontes em conjunto, exercitar o diálogo, debater assuntos

incomuns a sua realidade, conhecer um mundo antes nunca visto/pensado, refletir e

apreender conhecimentos científicos desconhecidos ou, até mesmo, aprimorar o já

conhecido. Mas, especialmente, aperfeiçoar sua observação para que, atentos a nuances do

comportamento de seus colegas, se torne cada vez mais sensível e humano, compreendendo

melhor os sinais dos alunos em suas futuras salas de aula. A interação é um exercício diário

que direciona à máxima troca de compreensão de mundo e de conhecimentos, fortalecendo

um espaço democrático de diálogo. Através de uma tessitura que permite a construção do

complexo (MORIN, 2000), do conversar com o outro que para Anastasiou e Alves (2003)

significa abertura para mudar junto, é que são desenvolvidos os trabalhos pelo grupo. No

entanto, se quando feita presencialmente já encontra inúmeras dificuldades e obstáculos,

em situação de distanciamento físico, os problemas são ainda mais intensificados.

A nova rotina ocasionada pela pandemia da Covid-19 trouxe reflexões e

reformulações em vários âmbitos da vida humana, bem como no trabalho formativo e

extensionista do grupo de pesquisa. Preocupados em continuar proporcionando a relação

humana, a formação adequada e de qualidade, além de conservar vivas as ações nos

diferentes projetos desenvolvidos, foi preciso se movimentar, enquanto grupo, à auto

reinvenção. A primeira questão estava relacionada ao engajamento dos próprios integrantes

da equipe que eram afetados pela ausência da interação. Dessa forma, buscou-se promover

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Bezerra, Nogueira, Yamasaki e Cardoso

reuniões remotas de estudo semanais, com aprendizagem das ferramentas disponíveis e

necessárias para interação digital, além de criar espaços de socialização e conversas livres a

fim de dar oportunidade para expor angústias e compartilhar com os demais as dificuldades

enfrentadas durante o tempo vivido [problemas financeiros, enfrentamento à contaminação

com aqueles que tiveram parentes adoecidos, cuidados sanitários domésticos - dentro e fora

de casa etc.]. Pois, é pela troca que nos fortalecemos tanto quanto humanos, como quanto

educadores, nesse contínuo estar sendo em um mundo que muda a todo instante (FREIRE,

1987) e, para o desenvolvimento das atividades, era necessário que a equipe se

reencontrasse e permanecesse existindo como um grupo coeso frente às adversidades.

Somente após esse aprendizado sobre a necessidade e a importância do reencontro e, nesse

contexto tão adverso, tornando a nos humanizar e compreender nossa própria

complexidade, é que foi possível pensar em construir estratégias para alcançar os demais.

Um dos projetos reestruturados para adequar-se à nova rotina, via ação

extensionista, foi o Curso de Férias para Alunos com Comportamento Superdotado. O

evento, na forma convencional, é organizado e promovido anualmente durante as férias

escolares ao longo de cinco dias nos quais os alunos superdotados e seus respectivos

responsáveis participam de diversas atividades no espaço físico da universidade pública. Aos

alunos, são oferecidas Oficinas Interativas (OI) (NOGUEIRA; CARDOSO; YAMASAKI; BASTOS,

2020) e Workshops com diversas temáticas que tenham como perspectiva educativa o

desenvolvimento científico do ponto de vista problematizador e dialógico. A programação

conta com outras atividades como o Corredor Pedagógico, no qual são expostos materiais

didáticos, jogos etc. e, também, há a livre interação entre os alunos. Os responsáveis

participam de minicursos e palestras com psicólogas e especialistas na área para (in)formar e

auxiliá-los nas demandas cotidianas relacionadas ao comportamento superdotado,

promovidas em forma de Roda de Conversa. Também, através da observação em sala de aula

e acompanhamento do desempenho dos alunos ao longo das atividades e edições do Curso,

os pais recebem devolutivas por parte da equipe pedagógica referente às evoluções dos seus

filhos.

Todo o evento é considerado importante enquanto ambiente de interação e

aprendizado, de forma que os alunos atendidos possam conviver com seus pares,

desenvolver habilidades e potencializar a busca de soluções de problemas de forma

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COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

colaborativa, valorizando e estimulando a escuta e a espera do outro, sem incentivo à

competição ou à concorrência. Ambiente que, para a maioria, é único, tendo em vista a falta

de atendimento especializado tanto no espaço escolar quanto fora desse e que reforça a

solidão e a invisibilidade dos alunos superdotados. Além disso, os pais, durante o evento,

têm a oportunidade de compartilhar experiências e dúvidas. Dessa forma, considerando o

isolamento social que todos enfrentavam somados aos altos índices de problemas

emocionais devido à escassez das relações humanas e de atividades estimulantes, a

adaptação ao formato online seria ainda mais desafiadora e relevante para esse público,

necessitando a construção de um ambiente de rica interação e o desenvolvimento das

diversas inteligências propostas por Gardner (2001).

Para alcançar tal intento, diversos questionamentos surgiram, sendo o primeiro:

como reestruturar para o formato online um evento cuja relação humana é essencial? A

resposta levava ao primeiro passo: a formação de toda a equipe aos recursos tecnológicos

disponíveis. Somente assim, estaríamos aptos a pensar na estruturação das OI a serem

desenvolvidas, pois, o simples conhecimento de determinadas ferramentas não se mostrava

suficiente para a transposição da prática pedagógica. Nesse sentido, toda a equipe passou

por uma formação através da participação em dois Workshops que possibilitaram o estudo

de diversas ferramentas vinculadas à plataforma Google como Classroom, My Maps,

Jamboard, Google Sites, Forms, dentre outros. Além disso, a partir da sugestão de alguns

integrantes em relação ao aplicativo Discord, este foi explorado e, após diversas reuniões, a

equipe decidiu utilizá-lo como plataforma oficial da edição de 2021 do Curso de Verão, em

razão de grande parte dos alunos inscritos terem familiaridade com o aplicativo e a facilidade

de sua utilização tanto em computador quanto em celular.

Estudadas as ferramentas, outras preocupações consistiram em como tecer diálogo

estando distantes um do outro e por meio da fria tela de um computador ou telefone

celular? Como disponibilizar o conhecimento científico de forma dialógica ou, ainda, como

desenvolver a inteligência interpessoal dos alunos, em especial, daqueles que

experienciariam o evento pela primeira vez e desconheciam os demais colegas e a dinâmica

interativa proposta nas atividades do Curso? A diferença entre as edições no modelo

presencial para o online estava além da distância física. No presencial, parte da equipe

carregava a bagagem de experiências das edições passadas e se encontrava acostumada à

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rotina, a organização, ao contato com e entre os participantes, que ia de abraços a olhares;

de modo singular, durante o Curso o encontro se dava pelo esforço e empenho de sujeitos:

educadores e educandos em cooperação mútua, tecendo e pronunciando o mundo,

descobrindo e compreendendo a si mesmo e ao outro. Sempre logrando sucesso em gerar

esperança, que somente é alcançada quando há compromisso de ambas as partes na ação

de ouvir e ser ouvido (FREIRE, 1987). Já o modelo remoto era novo, não apenas para os

recém-chegados à equipe, mas, em particular, para os antigos e experientes, acostumados

com o processo formativo presencial. Todos, portanto, estavam suscetíveis aos medos,

angústias e incertezas. Apesar dos questionamentos que surgiam aparentarem objeções,

colocando-nos cada vez mais distantes da possibilidade de desenvolver o evento, serviram

como fontes de incentivo e desafio diante do novo para que mantivéssemos a qualidade e

essência do trabalho desenvolvido pelo grupo, como mostraremos adiante.

Interação interdisciplinar online: caminhos para conhecer, transformar e atender

Toda e qualquer atividade desenvolvida para alunos com comportamento

superdotado necessita ter, em sua natureza, o desafio como estímulo. E, de acordo com os

próprios objetivos das Oficinas Interativas, deve proporcionar a participação ativa de todos

para que, assim, superem a curiosidade ingênua, alcançando a curiosidade epistemológica

(NOGUEIRA; CARDOSO; YAMASAKI; BASTOS, 2020). Além disso, o diálogo e o trabalho

coletivo favorecem o desenvolvimento das relações humanas que, especialmente no que

concerne a esses estudantes, por vezes são prejudicadas devido ao convívio com ambientes

competitivos, que não corroboram com o aprimoramento da capacidade de analisar,

interpretar e entender os desejos e posições dos outros, ou seja, da chamada inteligência

interpessoal (GARDNER, 2001).

No caso do diálogo, esse já se inicia durante o processo de aproximação dos

acadêmicos ao universo do público-alvo. Para isso, devido à chegada de novos graduandos

ao grupo e a falta de experiência dos mesmos em realizar atividades para e com os alunos

superdotados, foi necessária uma qualificação marcada por discussões, durante as reuniões

de estudo, com base em textos como Renzulli (2002, 2018), Fleith (2007), Virgolim (2007),

Gardner (2001) etc.; aproximando os licenciandos às características, demandas e

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COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

peculiaridades da superdotação. Além disso, toda a equipe foi orientada a buscar

informações sobre os alunos inscritos, analisando laudos, idades, classes sociais,

escolaridades e observando em quais tipos de inteligências eles poderiam ter potenciais

acima da média. Ressaltamos que responder “para quem?” se desenvolve uma estratégia ou

projeto pedagógico é essencial na construção de qualquer atividade cujo diálogo seja meio

para a disponibilização do conhecimento. Entendemos que o processo educativo se faz

através do ato de aprender e ensinar e que pertencem a ambas as partes na relação

educador-educando (FREIRE, 1987).

Seguindo a metodologia construtiva de uma OI, a escolha da temática a ser

abordada durante a problematização (“por quê?”) tem como principal objetivo, desenvolver

o conhecimento científico de forma contextualizada. A partir de problemas de mundo

comuns, que fazem parte da realidade vivida pelos alunos superdotados, a temática

escolhida proporciona não só o estudo específico dos conteúdos científicos relacionados (“o

que?”), como também o diálogo entre as diversas disciplinas envolvidas, no caso do grupo, as

das Ciências da Natureza e Matemática na promoção de uma Educação em Direitos

Humanos. Apesar de alguns dos integrantes terem familiaridade com a construção de uma

OI, devido à experiência adquirida no grupo, a dificuldade em transpor para um ambiente

virtual persistia justamente na manutenção das características e objetivos que a descrevem.

Além de priorizar um caráter problematizador e interdisciplinar, fazia-se necessário preservar

a estrutura desafiadora e dialógica. No entanto, essas, estavam associadas a várias questões

que se originavam na distância que oferecia como “única saída” o uso de recursos

tecnológicos. Analisado esse ponto, foi necessário pensar em possíveis dificuldades e limites

como: a falta de contato visual que poderia afetar a observação e compreensão do

comportamento dos alunos, por parte dos ministrantes, a fim de identificar se estes estariam

desinteressados ou tendo dificuldades para acompanhar as atividades, ou quando seu

aparente desligamento da ação na verdade significaria o pensar e concluir mais rápido, ainda

que pelo convívio anterior aguardasse os demais chegarem às conclusões; o risco de

distração dos alunos com fatores externos como outras pessoas no ambiente doméstico;

acesso sofrível à internet para outros afazeres, no computador ou celular, durante a atividade

etc. Além dessas questões, era preciso atenção e o cuidado com a falsa interação, pois, a

verdadeira e intensa conexão entre todos que estariam participando, seja equipe ou aluno,

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ultrapassaria o simples sinal “conectado à internet”. Conexão é ligação, união. É enlace na

definição do abraçar, de se estender, aceitar e compreender. E, perante o isolamento de

mundos, cujos seres são complexos e inconclusos (MORIN, 2000), sentir-se humano e ser

visto como tal era o que todos, sem exceção, necessitariam.

Assim, para minimizar os mencionados possíveis transtornos, buscou-se estruturar

as OI de forma que trouxessem uma participação verdadeiramente ativa dos alunos. Ao todo,

foram desenvolvidas quatro Oficinas Interativas para os alunos com comportamento

superdotado: duas com duração de duas horas cada, e duas estruturadas no formato de

Workshop, sendo uma com total de quatro horas de duração, e outra com oito horas

divididas ao longo de quatro dias. De modo geral, as atividades propostas foram organizadas

de forma que, optando-se pela dinâmica de pequenos grupos, os alunos seriam incentivados

à pesquisa, a solucionar problemas, confeccionar produtos a partir de materiais de baixo

custo, como um teodolito, a planejar e desenhar projetos de design de objetos inovadores, a

construir, de forma colaborativa, produtos artísticos como música, colagem, poema ou

cartazes, bem como a socializar todos os resultados alcançados em qualquer das atividades

desenvolvidas. Landau (2002) afirma que alunos com comportamento superdotado são

capazes de criar produtos fascinantes utilizando a tecnologia, mas que é importante

auxiliá-los para que não se “percam” no fascínio pela máquina esquecendo-se de si e do

resto do mundo. Neste sentido, enfatiza-se que todas as atividades buscaram sempre o

diálogo entre os pares e o intercâmbio de saberes, bem como o uso de materiais como,

instrumentos musicais, papel, plástico, régua, transferidor, cola etc. minimizando sempre que

possível o uso do computador.

Diferente dos anos anteriores, essa edição também contou com uma novidade: em

um dos Workshops, desenvolvido a partir de uma proposta de jogo, do tipo Role-Playing

Game (RPG) de mesa, criada por um ex-participante do Curso e denominado de “Your Reality

Role-Playing Game” (YRRPG), os grupos de alunos, em salas separadas, seriam incentivados a

discutir questões sociais em uma sociedade hipotética a qual reconhecia valores morais e

éticos invertidos, com relação aos nossos, e de acordo com as narrativas propostas,

assumiriam personagens fictícios em busca de solucionar problemas. As histórias

desenvolvidas abordariam temáticas como: preconceitos, discriminação racial, orientação

sexual, regimes totalitários, democracia e movimentos sociais; e, os personagens só

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conseguiriam efetivamente resolver as situações se atuassem de forma colaborativa. Além

de intensificar a interação, a atividade promoveria reflexões sobre alguns problemas do

mundo que, em função das bolhas sociais, por vezes são ignorados ou distorcidos; cada

estudante seria incentivado a se colocar no lugar do outro, refletindo sobre as condições de

vida alheia e desenvolvendo a empatia para que, ao transpor para a sua realidade e romper

com a cultura do silêncio, fosse capaz de buscar meios para interferir e, por fim, modificar a

realidade, fator essencial para o “educar para o nunca mais” (CANDAU, 2012).

Vale destacar que, conforme constatado nas edições presenciais, a formação de

pequenos grupos estimula os alunos de forma equitativa, oferecendo ao ministrante da

oficina e ao monitor a oportunidade de observar e fomentar melhor o desempenho

individual, bem como trabalhar a inteligência interpessoal de cada participante; ajudando-o

a se tornar mais paciente com o tempo de seus colegas, a contribuir de forma coletiva e,

também, gerar ou aperfeiçoar o espírito de liderança. A busca por tais relações vai ao

encontro de Landau (2002) ao enfatizar a importância de o indivíduo entrelaçar as relações

com o meio externo a partir de suas próprias reflexões com o intuito de fomentar não só as

inteligências intra e interpessoal, como também sua criatividade e autorrealização. A opção

por recorrer e enfatizar ainda mais tal organização em todas as OI no modelo remoto, além

dessas vantagens, facilitaria a aproximação com os alunos, de modo a diminuir o risco de

distração, demais preocupações e proporcionaria maior acolhimento àqueles que

participassem do curso pela primeira vez.

No entanto, para que a observação e o incentivo sejam feitos adequadamente, toda

a equipe se prepara para realizar simulações pedagógicas de cada OI a ser aplicada durante o

curso. Permitindo, assim, maior proximidade e amadurecimento das possibilidades

oferecidas pelos recursos utilizados. Além disso, durante as simulações, os ministrantes e

monitores analisam e avaliam a apropriação do conteúdo e do próprio andamento

pedagógico proposto, sua postura e a de seus colegas, especialmente em relação à

abordagem e estímulo aos alunos; e, inclusive, avaliar a necessidade de modificação e

organização da proposta da OI. As simulações pedagógicas para a edição online foram

realizadas durante dois meses usando a plataforma Discord, proporcionando maior

familiaridade da equipe com as ferramentas disponíveis, contribuindo tanto para o

aprimoramento da práxis, indicando a necessidade de vários ajustes e adaptações impostos

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aos andamentos pedagógicos, quanto da própria estrutura e número de canais do aplicativo

para cada OI, garantindo que chegassem aos estudantes em formato mais adequado,

dinâmico e interativo.

Oficinas Interativas e relações humanas no formato virtual: um ato de resistência

O perfil dos alunos com comportamento superdotado inscritos no Curso de Férias

pode ser considerado bastante heterogêneo. A faixa etária corresponde a crianças

matriculadas desde o primeiro ano do Ensino Fundamental até adolescentes no último ano

do Ensino Médio. Alguns residem em cidades vizinhas e outros em municípios ou estados, a

quilômetros de distância do campus sede da Universidade em que ocorre o evento. Além

disso, a diversidade em questão mostra-se ainda mais evidente ao analisarmos o perfil

socioeconômico, observam-se alunos oriundos de famílias com médio/alto poder aquisitivo,

mas também outros que se encontram em vulnerabilidade socioeconômica; no entanto,

considerando a ótica de que todos são recebidos de forma equitativa, essas diferenças

tornam-se, por vezes, indiferentes, não impedindo sua plena participação no Curso. O maior

obstáculo desses alunos é a dificuldade de seus responsáveis em relação ao deslocamento

até o ambiente da Universidade, devido à distância e ao tempo dispendido, significativo

àqueles que necessitam ir ao trabalho. Mas, ainda assim, os efeitos dessa dificuldade

mostram-se em casos pontuais e esporádicos, graças à intensa dedicação dos responsáveis

ao compromisso, esforçando-se para a permanência de seus filhos no Curso.

No modelo online, entretanto, as diferenças se sobressaíram. Um dos principais

problemas observados na adaptação ao ensino remoto por todo o país durante a pandemia,

não passou despercebido nessa edição do Curso. A causa originada na imensa desigualdade

social vivida por milhares de brasileiros refletiu-se, especialmente, na falta de recursos

tecnológicos adequados, como computadores com baixo desempenho ou, até, a inexistência

do aparelho, conexão com a internet instável, dispositivos de áudio ou vídeo precários,

dentre outros. Condições que evidenciam ainda mais a ausência de estruturas mínimas do

sistema educacional brasileiro para possibilitar a transposição de atividades essenciais para o

modelo remoto, de modo a enfrentar as adversidades sem pôr em risco a aprendizagem dos

alunos da educação básica. Desses problemas, a acessibilidade digital afetou não somente os

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COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

que se encontram em condições de vulnerabilidade, ainda que nesses casos tenha sido

contundente, mas também aqueles em condição econômica privilegiada, os quais, durante o

curso, relataram dificuldade devido à instabilidade na conexão, mesmo utilizando provedores

considerados superiores.

Por outro lado, se os problemas técnicos comprometeram o desempenho de alguns

alunos nas atividades, também expuseram a persistência e dedicação de outros. A parede de

tijolos revelada através da imagem pixelizada contrastava em meio a outras com a mais alta

definição. Aos despercebidos, era a resolução. Resolução na forma fria do cálculo que

determina a qualidade de uma imagem. Mas aos olhares mais atentos, era a resolução de

firme decisão: propósito de mergulhar em cada oportunidade de conhecer e tecer o mundo.

Ou ainda, da coragem de mostrar-se para além do simples. Naquele instante, o fundo da

imagem pouco importava. O que os nossos olhos contemplaram foi o sonho e o ímpeto de

um menino de 11 anos que, com o único aparelho celular da família, sentado do lado de fora

da casa, recostado na parede, no lugar do terreno em que conseguia acesso à rede,

conectou-se. E os desafios apresentados durante as atividades, assim como a interação

promovida (LANDAU, 2002) foram fundamentais para que o aluno e a equipe superassem

todas as limitações que o mundo virtual apresentava naquele momento.

Sem dúvida, as estruturas tecnológicas adequadas e o mínimo conforto do lar são

fatores que, de modo geral, influenciam positivamente no desempenho das crianças, tanto

no ensino remoto quanto no presencial e se encaixam nas condições que favorecem o

ambiente seguro proposto por Landau (2002). Porém, destacamos aqui que o esforço

contínuo da equipe para abraçar, compreender e promover a verdadeira conexão entre

todos, apresentando ou não problemas técnicos, é o que essencialmente fortaleceu o

ambiente de segurança e liberdade. Dessa forma, considerando a inteligência como um fator

biopsicológico (GARDNER, 2001), observamos que o acolhimento e a atenção são fatores

externos indispensáveis que estimulam o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo,

evidenciando que a simples garantia de recursos materiais não é suficiente para a promoção

da criatividade.

Ademais, os problemas técnicos apontados durante o evento não foram suficientes

para apagar a ânsia dos alunos em se comunicar e interagir. Todas as propostas de OI

mencionadas anteriormente foram aplicadas e recebidas com muito sucesso pelos alunos. A

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abordagem ampla, sem enfoque em apenas um dos tipos de inteligência, não foi motivo de

desestímulo dos alunos nos casos de interesse restrito, principalmente pelo seu

conhecimento da dinâmica de trabalho realizada pelo grupo. Muitos, inclusive, em seus

questionários de avaliação do evento, mostraram-se surpresos quanto à manutenção da

interatividade e do diálogo até mesmo no formato online, considerando as OI bastante

criativas, envolventes e bem elaboradas. A necessidade das relações entre sujeitos, pares ou

não, mostrou-se tão intensa a ponto de termos que organizar, no último dia, um tempo de

interação livre sem atividades em que os alunos tiveram liberdade de explorar e acessar as

salas do canal no aplicativo, em que estavam os grupos dos quais não haviam participado, e

interagir com todos seus colegas para conversar e trocar ideias. Tal dinâmica logrou tanto

sucesso que, na última edição, em 2022, que usufruiu de toda a experiência e conquistas do

ano anterior, foi estabelecido um dia inteiro de atividade livre voltada para fomentar o

diálogo e a intersubjetividade.

Considerações Finais

Desde os meses finais de 2019, o mundo inteiro acompanhou de perto a

disseminação da Covid-19. Os números alarmantes de óbitos causados pela doença geraram

pânico e desespero entre todos aqueles que buscavam saídas a fim de evitar infecção e

contágio. O uso de máscaras não bastou e milhares de pessoas tiveram que se isolar em suas

casas como medida de proteção. Escritórios e escolas fechados, opções de entretenimentos

cancelados, as universidades públicas lutando para dar sequência a projetos de pesquisas,

ensino e extensão etc. As rotinas se transformaram e, no meio desse caos, o grupo de

pesquisa não encontrou alternativa a não ser se reinventar para superar esse contexto. O

afastamento social que todos vivenciávamos trazia consideráveis consequências emocionais

e, apesar das relações já existentes no mundo contemporâneo através das telas, o que

percebemos nas parcas interações virtuais eram olhares que exprimiam angústias, dores,

lutos e a sede por um abraço. Porém, não nos limitamos a olhar apenas para nós mesmos.

Nossos pensamentos iam ao encontro daquelas crianças com quem criamos laços e a todas

as outras ainda desconhecidas. O grupo precisou permanecer atuando não apenas por nós,

mas especialmente por elas.

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COMPORTAMENTO SUPERDOTADO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

No caso particular dos alunos com comportamento superdotado atendidos pelo

grupo de pesquisa, a ação promovida foi oportunidade única de encontro, visibilidade,

segurança e liberdade, apesar de ter parecido improvável devido ao ambiente conturbado

gerado pela pandemia e os recursos limitados. Mas, assim como para inúmeros profissionais

da educação e de outras áreas, o processo de adaptação do Curso de Férias tornou-se para o

grupo de pesquisa um ato de resistência perante a crise. Especialmente ao pensarmos no

estado emocional debilitado daquelas crianças que necessitam, por suas peculiaridades, de

maior interação e motivação e que, por conta da diminuição drástica desses fatores,

encontravam-se ansiosas e angustiadas. Era fundamental que em um mundo de

transformações, houvesse a permanência de valores fundamentais para uma educação

democrática.

O olhar humanizado, antes de tudo, para a própria equipe foi essencial para a

continuidade do trabalho do grupo e a preparação da edição online do Curso de Férias. Foi

necessário reconhecermo-nos como humanos complexos e também fragilizados. O cuidado,

apesar de todas as imperfeições, foi essencial para a restauração da força, da coragem e,

mesmo distantes, da união de grupo. E, ainda que as angústias e os medos não houvessem

cessado por completo, coube a nós o esforço e a responsabilidade de levar educação de

qualidade aos alunos, oferecendo um atendimento que sabíamos ser único para a maioria

das crianças com comportamento superdotado que recebemos em nosso projeto. Desse

modo, a realização do Curso de Verão online se tornou, também para eles, um caminho de

resistência e superação.

Construir um ambiente novo, em todos os sentidos, que fortaleceu as relações

humanas e promoveu o desenvolvimento da criatividade e das inteligências das crianças e

adolescentes foi desafiador. Sem dúvida nossa proposta, e porque não dizer ousadia,

sustentou-se em percorrer todos os sentidos da palavra “interação”. Seja entre os membros

da equipe, através do apoio mútuo que não deixou ninguém desanimar durante o longo

processo do isolamento social, ou com e entre os alunos atendidos, fazendo-os adentrarem

em um ambiente no qual puderam aprender para além dos conteúdos científicos e, em

especial, a se reconhecerem nos demais. Consideramos que todo o processo de adaptação

do evento evidenciou também o desenvolvimento da criatividade dos integrantes do grupo,

os quais, diante da adversidade, buscaram alternativas e coragem para a inovação, não

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somente a fim de desenvolver as potencialidades dos alunos, como, também, as suas

próprias, promovendo as transformações necessárias, assim como a permanência de valores

essenciais para a educação, como os diálogos.

Vale destacar que metade dos graduandos que integravam o grupo havia iniciado o

curso superior no primeiro semestre de 2020, não tendo convivido presencialmente na

universidade até o início de 2022. Para eles, todas as atividades realizadas em grupo, as de

estudos, planejamento, simulações, representaram chances de se sentirem pertencentes ao

espaço-tempo da universidade pelo qual também ansiavam. Seu convívio com os colegas

mais antigos proporcionou ajuda na superação de várias incertezas quanto ao ambiente

acadêmico e de abordagem de suas próprias aulas e organização de estudos. Por sua vez, os

veteranos da equipe, mostraram-se receptivos e o acolhimento aos colegas foi também

estímulo para o compartilhamento de suas ansiedades e pedidos de ajuda. No primeiro

encontro presencial geral da equipe, a sensação era de que muitos outros haviam ocorrido

antes.

Nas várias ações, a ênfase no processo dialógico corroborou com a aprendizagem

democrática, seja nas atividades de formação da equipe, seja nas realizadas com os

estudantes da educação básica, pois, através da sensibilização, graduandos e alunos foram

incentivados ao desenvolvimento do respeito às diferenças individuais, das diversidades de

opiniões, ideias e vivências. Todos experienciaram a Educação em Direitos Humanos por

meio de diversos contextos vividos pela sociedade atual, refletindo sobre a garantia à vida

digna de toda população.

Dessa forma, as transformações vivenciadas por cada um dos envolvidos,

estudantes, graduandos e professores formadores, resultaram da compreensão humana e do

reconhecimento de que somente pela atuação coletiva, mesmo que diante das

limitações,podemos ser mais. Evidenciando o quanto somos capazes de evoluir diante das

dificuldades, ajudando uns aos outros e consolidando a consciência e a responsabilidade

social que temos perante a dinamicidade de um mundo que está em constante movimento.

Por fim, nunca será demasiado lembrar que essas transformações só foram possíveis à luz do

Paradigma Educacional e Científico Emergente.

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Data do envio: 07/06/2022
Data do aceite: 14/09/2022.

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CAPA: PULSAÇÕES E QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS

Início da descrição da imagem: Folha branca com margem azul escuro com a logomarca da
Revista Aleph sob a forma de marca d'água. A marca d'água é uma imagem sombreada que,
apesar da transparência, torna possível visibilizar a sua presença sem impedir a visão da
imagem ou escrita que fica sobreposta a essa imagem. O logo da Revista é o grafema da
letra Aleph que é a primeira letra do alfabeto grego. Centralizado na página está a frase em
letras cursivas no mesmo tom de azul das margens: Pulsações e Questões Contemporâneas.

Revista Aleph - ISSN 1807-6211 - Dezembro. 2022 - nº 39

DA GULA ALIMENTAR À TECNOLÓGICA: REFLEXÕES REDUTORAS DE DANOS
DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

FROM FOOD GLUTTONY TO TECHONOGICAL GLUTTONY: HARM REDUCTION
AND THE CONSUMPTION SOCIETY

Francisco José Figueiredo Coelho59

Georgianna Silva dos Santos60

Maria de Lourdes da Silva61

Resumo
Uma característica da juventude atual é a frequente aquisição de novas tecnologias para
informação e comunicação para diversas finalidades. Essa nova relação com as tecnologias
digitais e com as mídias podem ocorrer dentro de relações estáveis ou produzirem cenários
de desequilíbrio e alienação. Partindo do conceito histórico e social do termo gula, trazemos
um novo conceito, o de gula tecnológica. Nesse caminho, a partir desse constructo, são
discriminadas relações com a sociedade do consumo e suas relações com o desejo cada vez
mais intenso de possuir novas tecnologias. A partir desta ótica, o artigo sublima aportes
teóricos e conceituais que oferecem um cenário de reflexão sobre uma educação para as
tecnologias que considere a gula tecnológica como fenômeno real e preciso na sociedade
contemporânea. Nessa lógica, brotam argumentos para se pensar uma educação para a gula
tecnológica, pautada no enfoque pedagógico da Redução de danos.

Palavras-chave: Educação para as tecnologias. Gula tecnológica. Redução de danos.
Sociedade do consumo.

61 Professora Adjunta da Faculdade de Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro na cadeira de
História da Educação. Realizou Pós-Doutorado em História da Educação no Programa de Pós-Graduação em
Educação - PROPEd/UERJ, na modalidade PNPD/FAPERJ; Doutora em História Política na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Interesses: História das Drogas; Educação para as drogas; materiais educativos(didáticos,
paradidáticos); Métodos: Análise de discurso, análise histórico-crítica. E-mail:lullua2@yahoo.com.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1188-9469

60 Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA. Mestrado e Doutorado
em Ciências pelo Programa de Pós-graduação em Ensino em Biociências e Saúde - EBS/FIOCRUZ/RJ. Atualmente
sou professora substituta da Universidade Federal do Piauí (DMTE/CCE-UFPI). Integrante do Grupo de Pesquisa
Educação e Drogas (GPED) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)(CNPq) e Colaboradora do
Programa de Pós-Graduação Lato Sensu. E-mail: georgiannas@gmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-2259-7859

59 Licenciado em Ciências Biológicas (FFP/UERJ/2003). Especialista em Planejamento, Implementação e Gestão
da EaD (LANTE/UFF) e em Educação de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão Social (NUEC/UFF). Mestre em
Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde (NUTES/UFRJ/2006). E-mail: ensinodeciencias.ead@gmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1522-2995

Revista Aleph, Niterói, V. 3, Dezembro. 2022, nº 39, p. 169 - 185 ISSN 1807-6211
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Coelho, Santos e Silva

Abstract
A characteristic of today's youth is the frequent acquisition of new technologies for
information and communication for different purposes. This new relationship with
communicative digital technologies and the media can occur within stable relationships or
produce scenarios of imbalance and alienation that are independent of the context. Starting
from the historical and social concept of the term gluttony, we bring a new concept, that of
technological gluttony. In this way, from this construct, relationships with the consumer
society and their relationships with the increasingly intense desire to have new technologies
are discriminated. From this perspective, the article sublimates theoretical and conceptual
contributions that offer a scenario for reflection on an education for technologies that
considers technological gluttony as a real and precise phenomenon in contemporary society.
In this logic, arguments arise to think about an education for technological gluttony, based on
the pedagogical approach of Harm Reduction.

Keywords: Education. Teaching practice. Socialization. Corporeity.

Eh, ôô, vida de gado. Povo marcado, eh
Povo Feliz

(Zé Ramalho, 1979).

Introdução

Comer é uma ação fundamental para a sobrevivência humana. Os modos como o

cheiro, o sabor, a cor e a textura do que comemos mobilizam vários órgãos do sentido se

misturam à oferta ou escassez do alimento, às modalidades de preparo e consumo, ao

cultivo do gosto como expressão, a um só tempo, da diversidade e da desigualdade etc. dão

mostras do essencial entrelaçamento do biológico/fisiológico com o sociocultural nas

atividades humanas e do econômico (CARNEIRO, 2003).

Para Fleck e Dillmann (2021), os diferentes significados já atribuídos à gula foram e

devem ser considerados em função do tempo, do espaço e das experiências culturais das

sociedades a que se referem. E, mesmo no interior de determinada sociedade, a gula

assumiu diferentes conotações, que se aproximam e se distanciam, se considerarmos os

discursos médicos e religiosos.

Mesmo sendo atividade vinculada à eterna relação do ser humano com as

necessidades de subsistência, não apenas o ato de comer, mas todo processo que recobre

desde a extensão da seleção do alimento na natureza, da introdução na dieta, do cultivo, do

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DA GULA ALIMENTAR À TECNOLÓGICA: REFLEXÕES REDUTORAS DE DANOS
DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

preparo e compartilhamento das refeições foi angariando ao longo do processo civilizatório

uma miríade de significados. O esbaldar-se com comida se torna um verdadeiro deleite,

como referenciado em plurais passagens bíblicas. Seja na parábola do filho pródigo ou nas

profecias de Isaías sobre o fim do mundo, abater um cabrito ou um novilho mencionam o

comer como fruto de uma vitória, referendando o banquete como um ato de celebração.

Para além dessas representações religiosas, o banquete é uma utopia universal, pois

ele materializa o momento em que o ser humano, nutrido e saciado da fome, abstrai,

graceja. O simpósio da Antiguidade Clássica (momento subsequente ao banquete, quando as

pessoas conversam à mesa) se caracteriza pela “ligação entre a palavra e o banquete”

(BAKHTIN, M, 1987, p. 248), uma alegoria à ação criativa e à arte, à interação social que dá a

ver aquilo que anima os espíritos desses seres em momento de relaxamento do corpo e

expansão do pensamento.

Na defesa dessa utopia universal, a abundância toma sentido de projeção de um

futuro desejável. Liberto momentaneamente do labor, o ser humano investe na conversação,

símbolo da interação social, da produção de cultura, convertendo o banquete no fenômeno

da consagração da abundância e, ao mesmo tempo, do prazer. Em vários cenários de

diferentes épocas é possível vislumbrar essa representação do banquete.

A linha tênue entre o excessivo e o prazeroso transforma o ato biológico de comer

em acontecimento social. Ele é coletivo, gregário, festivo, libertador. A capacidade de sonhar

e ter esperança são potencializados na ausência da fome, na subjugação da natureza, na

superação da morte culminada no ato de devorar o mundo conquistado e vencido. Esses

significados profanos da comensalidade abundante também fizeram parte do universo da

Igreja medieval, que considerava sagrado o direito à recreação e ao banquete. Essa imagem

universal da partilha comunitária do resultado do trabalho realizado em conjunto foi, na Era

Moderna, transposta à vida privada e aos indivíduos, onde a abundância se consubstanciou

em exagero, usurpação e egoísmo.

Entre o comer e o esbaldar-se há uma linha tênue. O esbaldar-se está ancorado no

excesso, qualidade permanente da gula. Esta, foi bem descrita no livro Origens sagradas de

coisas profundas, escrito pelo monge grego Evagrius Ponticus (345-399), adepto do

ascetismo, doutrina filosófica marcada pela abstinência aos prazeres mundanos a fim de

disciplinar o corpo e a mente. Nessa obra, a gula, bem como a avareza, a ira e outras ações

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humanas, são vistas como ações pecaminosas que, no ano de 590, passaram a ser

reconhecidas pelo Papa Gregório (540-604) como pecados capitais (do latim caput – parte

superior, chefe, cabeça, líder).

Na tradição cristã, a gula teria sido o primeiro pecado capital. A partir dela, o

homem se alimentou do fruto proibido, culminando em oposição ao que foi ordenado por

Deus. Se num primeiro momento, a ação de comer estava atrelada ao prazer e a necessidade

de sobrevivência, o “esbaldar-se em comida” – enquanto ação excessiva, individual e

princípio de diferenciação e excludência – adquiriu um contorno pecaminoso e passível de

punição. A partir dessa relação com o excesso, surge a imagem do glutão, aquele que cultua

a gula.

Orientado pelo princípio da acumulação como fator de distinção, mas uma distinção

ociosa e parasitária, a glutonaria abandona a aura do triunfo coletivo pelo individual,

centrado no prazer em comer em excesso, desacompanhado do simpósio entre os comensais

– não que o banquete desapareça, ele apenas é sobrepujado pelas forças do individualismo

da sociedade do consumo. Nesse caso, o prazer não está no ato de comer em si, mas no

deleite do consumo, que aumenta à medida que o indivíduo se esbalda (Figura 1).

Figura 1 – Pecado da gula, retratado por Hieronymus Bosch (1450 – 1516 d.c)

Fonte: https://cidmarcus.blogspot.com/2020/01/dos-pecados-gula.html

A chegada das especiarias à Europa maximizou o prazer à mesa. A popularização da

pimenta-do-reino, cravo-da-Índia e do açúcar, por exemplo, realçando sabores e aromas,

agregou valores ao alimento, nutrindo “corpo e alma”. Com o tempo, o ato de comer e se

alimentar em excesso começaram a ser contestados. Especificamente no século XVII, a ideia

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DA GULA ALIMENTAR À TECNOLÓGICA: REFLEXÕES REDUTORAS DE DANOS
DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

da gula passou a ser vista como algo desnecessário. Em outras palavras, o ato de comer

passou a ser visto de forma mais equilibrada, com “bons modos” e regras. Boa parte dos

manuais pedagógicos da época tratavam da educação à mesa – mesma época da

popularização dos utensílios individuais, sobretudo o garfo, nas cortes europeias.

Fleck e Dillmann (2021) sinalizam que, nos séculos XVII e XVIII, a gula era tida como

um pecado capital pela Igreja e como uma prática que corrompia a saúde dos indivíduos

pelos médicos, razão pela qual era preocupação regular e constante nos livros religiosos e

médicos, apesar de ocupar pouco espaço nos impressos publicados em Portugal à época, se

comparada com outros temas. Para os pesquisadores, à gula foram atribuídos diferentes

significados em um universo social coletivamente marcado pela força da crença católica e

pelas concepções médicas hipocrático-galênicas, concluindo que as compreensões a respeito

do comer desordenado apontavam para interesses médicos na reafirmação de seus saberes

sobre saúde e doenças e interesses religiosos na revigoração de uma fé capaz de indicar

prejuízos aos caminhos da salvação (FLECK; DILLMANN, 2021).

Esse comportamento moderado à mesa passa a ser visto como algo mais refinado e

– embora esta mudança não implique necessariamente em alterações no corpo – a gordura é

sinal de fartura, se convertendo em status de poder, como retratado nas pinturas de Sandro

Botticelli, que retratavam figuras gordas com corpo abundante. Ou seja, o corpo gordo era

visto como sinônimo de “fartura” e “riqueza financeira”. Mais tarde, no século XIX, a

concentração populacional nas cidades, aliada às novas formas de lutas por direitos entre as

classes mais pobres, assim como o esvaziamento do campo trouxeram a urgência de

repensar formas de distribuição dos alimentos, entre outras questões.

Nessa lógica, estabelece-se a indústria dos alimentos com suas conservas e

enlatados – uma nova etapa nas estratégias de aproveitamento da produção agrícola,

prolongamento da vida útil dos alimentos com diminuição do desperdício. Também o refino

dos grãos – espécie de assepsia que os tornavam livres das cascas e outras impurezas –

levava às classes abastadas alimentos mais “limpos e puros” (aspas nossos). A conservação

de alimentos em recipientes hermeticamente fechados, junto com a pasteurização e a

refrigeração aumentaram a vida útil dos alimentos, acabaram com a escassez e permitiram,

entre outras coisas, o surgimento das grandes cidades (MATTOS, 2006). É possível dizer que a

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Coelho, Santos e Silva

proliferação da nossa espécie nesse planeta se deve em boa medida ao fato de termos

dominado algumas técnicas de produção e distribuição de alimentos.

Foi apenas no decorrer do século XX que se percebeu os perigos das técnicas de

refino e conserva. Somente a partir de meados do século XX, a preocupação deixou de ser

apenas comer e passou a ser “comer bem”, isto é, com qualidade e numa medida adequada.

Isso nos forneceu subsídios para compreender como a gordura passou a se tornar um quadro

indesejado e, por vezes, associado a processos de adoecimento e sintomas de doenças. O

corpo magro, esbelto, esculpido pela ginástica (malhação) passou, portanto, a ser padrão de

vitalidade, beleza e autocontrole, perdurando até os dias atuais.

Dado o caráter introdutório que assumimos nessa primeira seção (1) - ao definirmos

histórica e socialmente o fenômeno da gula, na seção que segue (2) apresentaremos

pontuais considerações acerca do que chamaremos de gula tecnológica e suas relações com

a sociedade do consumo e, a partir de tais argumentos, ofereceremos aportes pedagógicos

(3) para se pensar uma educação para a gula tecnológica, pautada no enfoque pedagógica da

Redução de danos.

A SOCIEDADE DO CONSUMO E A GULA TECNOLÓGICA

Esse brevíssimo (e arriscado) histórico acerca da alimentação e da gula nos subsidia a

pensar em como o ato de comer e a ingestão excessiva de alimentos tiveram significados

distintos ao longo da história. Hoje, além de pecado capital, simboliza desregramento, falta

de controle, incapacidade, fraqueza moral, em que pese o fato de o alimento ter se

transformado em mercadoria e a indústria da alimentação se lançado à propaganda dos

alimentos, tomado como outro ramo qualquer da indústria. As massivas propagandas pela

televisão, pelos aplicativos de celular, em nossas caixas de e-mail e nos outdoors das

avenidas não deixam dúvidas de que somos bombardeados a cada instante com

propagandas que nos fazem acreditar que temos necessidade de consumir. Em outras

palavras, o ato de consumir em demasia e de forma acelerada – aprendido socialmente, cabe

ressaltar – se configura enquanto prática motivada pela indústria cultural soberana

(ADORNO, 2021), estimulada sistematicamente pelo uso cotidiano das ferramentas

tecnológicas. Haja vista que os suculentos hambúrgueres e pizzas das propagandas de

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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

televisão ou dos anúncios do YouTube perturbam nosso cérebro a ponto de ficarmos com

água na boca. É um não real (imagético) que nos permite sensações de prazer que cobiçam o

ato de se apropriar daquilo que nos atrai. Nessa ocasião, toda energia é canalizada para a

aspiração do consumo e o prazer congela-se no enfado (ADORNO, 2021). Em outras

palavras, “o espectador não deve trabalhar com a própria cabeça; o produto prescreve toda

e qualquer reação (...)” (ADORNO, 2021, p. 28).

A lógica perversa da indústria cultural busca neutralizar todo alento intelectual e

desprover o indivíduo de toda conexão lógica, promovendo – inclusive - repentinas

mudanças de humor e comportamento, fazendo-o crer na necessidade que tem de consumir

imediatamente o produto. Note na figura seguinte (Figura 2), uma propaganda visual da

internet, a relação afetiva que o marketing digital propõe, filiando a ideia de sabor com a

possibilidade da vida se tornar mais aprazível, reavivando as tradições do banquete e da

comensalidade agora deturpada pela lógica individualista e segregadora capitalista, onde a

gula adquire novos sentidos. Essa figura, uma das diversas propagandas disseminadas pelas

redes sociais e publicidades do Youtube, representa o teor capitalista e perverso da indústria

cultural midiática, por vezes sequer sentida pela sociedade.

Figura 2 – Apelo midiático para a gula, visto com frequência nas páginas da internet

Fonte: https://www.montarumnegocio.com/frases-para-vender-pizza/

Amparado nas artimanhas e interfaces da indústria cultural, não é nenhuma novidade

que basta consultar um aplicativo de fast-food para, tempos depois, começarmos a receber

propagandas de uma compra não realizada. E isso não acontece apenas com comidas, mas

com todos os produtos dos sites ou aplicativos de compras. Somos mapeados, monitorados e

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Coelho, Santos e Silva

temos, em certas ocasiões, a nossa privacidade surrupiada por um mercado empenhado em

vender e estimular o consumo.

Não se pode negar o poder psíquico do apelo da indústria midiática que estimula o

excesso e corrobora para que tomemos como necessidade uma plêiade de sentimentos e

valores. A cultura, o entretenimento e a diversão dividem o mesmo espaço, justificando a

hegemonia da indústria cultural sinalizada por Adorno (2021). Para o autor, as ideias de

dominação, difusão e velocidade na circulação de informações estão imbricadas, sendo

oferecidas pelo cardápio capitalista (ADORNO, 2021). Um bom exemplo disto está nas

propagandas de tecnologias digitais. Concomitante à obsolescência programada,

vivenciamos a prematura perecibilidade das coisas estimulada pelo permanente apelo às

trocas (consumo sucessivo) em função da superação tecnológica dos novos modelos dos

bens de consumo. Atendendo a pecha das novas tendências, somos motivados a trocar o

celular, o fone de ouvido, o relógio digital, a televisão, o carro etc. Vivemos em uma

sociedade de consumo que estimula o pensamento da perecibilidade tecnológica, nos

motivando a substituir uma tecnologia adquirida por outra mais recente. Chamaremos aqui

de gula tecnológica a esse permanente estado de considerar efêmero e transitório os

artefatos implicados no modus vivendis do mundo que nos cerca. Embora este estado tenha

conotações mais profundas e deletérias à vida contemporânea, nos limitaremos aqui a tratar

daquele aspecto.

Essa gula pelo consumo tecnológico configura um mundo de aparências, do poder da

imagem e das mídias em modular a forma como pensamos e agimos. Essas formas excessivas

de consumir denotam esse fenômeno de gula coletiva para além do alimentar, realçado pelo

alcance da fartura de opções na internet 24 horas por dia, todos os dias da semana, em

diferentes regiões do planeta. Além das lojas físicas, as vendas on-line, por meio de suas

ferramentas de marketing, impactam na forma como as pessoas enxergam suas

necessidades. Em outras palavras, é a indústria que desenha e planeja seus produtos para

atender a “massa populacional”. Mas, será que temos consciência de que somos impactados

por essa indústria que nos monitora e tenta nos fazer reféns dessa gula tecnológica?

Essa persuasão ostensiva tem maior impacto entre as gerações mais jovens, cada vez

mais precocemente alvo dos investimentos da indústria cultural, cada vez mais suscetíveis

aos apelos de consumo que articulam modos de vida, valores e crenças como condicionantes

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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

de aceitação e pertencimento sociais. Para compreender a necessidade geracional de

substituir com brevidade seus aparatos tecnológicos, reforçando a ideia da gula tecnológica,

cabe lembrar o entendimento do historiador francês Roger Chartier (2002), ao considerar

dois apontamentos importantes: o primeiro deles é que os discursos são produzidos e

difundidos em um espaço social específico que tem seus lugares, suas hierarquias e seus

objetivos próprios. O segundo, não menos importante, é que tais discursos são

constituidoras de significados e de sentidos para determinadas práticas partilhadas por um

mesmo segmento grupal. Quer dizer, na lógica Chartieriana todas as formas de pensar e agir

e a essência dos discursos que veiculam resultam de uma relação social com o mundo que

implica em considerar as variações entre o texto e as realidades sociais, o texto e as

significações e apropriações plurais, o texto e as diversas formas de transmissão e recepção

(CHARTIER, 2002).

Ainda partindo de Chartier (2002), é possível aferir o locus desses discursos como um

espaço de disputas e negociações culturais, em que uma delas apresenta configuração

hegemônica. Isso significa, em nosso entendimento, que toda a indústria cultural, bem

explícita na obra de Adorno (2021), reproduz um cenário perverso desenhado e atingido pela

indústria cultural midiática, fortalecendo o discurso de que a necessidade de possuir

tecnologias mais inovadoras promova bem-estar, sucesso pessoal e profissional. Em outras

palavras, veiculam a falsa ideia de que tecnologias mais recentes abrem espaço para uma

maior conexão com o mundo e com as pessoas, o que fortalece o discurso da necessidade de

explorar mais e mais recursos tecnológicos, conferindo significados à gula tecnológica e

alastrando sentidos múltiplos ao ato de consumir para se manter atualizado (e porque não

dizer aceito e reconhecido) no bojo de uma sociedade marcada pela aquisição de produtos

tecnológicos e – em certo ponto – de perda da privacidade. Em ambos os casos, revelam e

justificam os discursos, as práticas de pensar e agir das novas gerações (CHARTIER, 2002).

Alinhada com tais pressupostos, cabe considerar que toda esta gama geracional para

se manter atualizada pelas novas tecnologias - sobretudo pelo hábito afoito que justifica o

conceito de gula tecnológica – tende a ignorar o emaranhado infodêmico que circula nos

discursos midiáticos, amparados por uma sociedade consumista centrada na aquisição do

novo. Isso, a nosso ver, carrega um problema: as redes sociais se tornam cada vez mais

uniformizadas, buscando condicionar o usuário a ter satisfação e prazer com o acesso virtual.

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Esta sociedade uniforme, tende a padronizar os comportamentos e ações digitais,

consolidando uma falta de precisão e alteridade que culmina numa aparente agradabilidade.

Quer dizer, uma real sociedade do me agrada, como pontua Byung-Chul Han (2020). Nesse

caminho, entendemos que gestos mecânicos e ausentes de racionalidade fazem parte dessa

agradabilidade aparente. O autor traz um exemplo intrigante ao reconhecer o desinteresse

do Facebook em introduzir um emotion de dislike (o equivalente a não curtir ao invés de

gostar de uma postagem). Nesse circuito, essa uniformização das formas de agir no mundo

virtual evita a despadronização e amplia a velocidade na troca e disseminação de

informações (HAN, 2020). Indo além, diríamos que evita a compreensão da complexidade do

mundo onde se vive e desmobiliza os suportes cognitivos envolvidos na elaboração da

argumentação, na construção do manancial cultural simbólico que arregimenta o novo de

cada geração.

Outro ponto trazido por Han (2020) é acerca da necessidade de exposição das

pessoas/mercadorias nas redes sociais. Circunscrevendo uma sociedade onde o expor é

peculiar e cultural, se uma mercadoria não é exposta, perde – aos poucos ou imediatamente

– o seu valor expositivo. Logo, se o que não é exposto não é visto, não carrega visibilidade e

sucumbe no mundo virtual (HAN, 2020). Partindo de uma sociedade consumista,

compreende-se a emergência do marketing digital em disseminar rapidamente novos

recursos tecnológicos. A partir desse refluxo midiático, a necessidade de adquirir o novo, de

possuí-lo, conquista. A gula pela tecnologia se acentua e o indivíduo se sente inferior por não

estar atualizado. Se sente como um alienígena em plena era digital. Tendo extirpado o seu

direito de pensar sobre a aquisição, as desculpas mais esdrúxulas são assumidas para

justificar uma nova apropriação. O valor expositivo do produto supera a real necessidade do

consumo.

Instaura-se, então, uma paixão pelo novo artefato até que outro mais novo o torne

obsoleto. Uma imensidão de aplicativos acaba deixando o celular mais lento e o usuário

questiona sua tecnologia. Obter o aparelho novo seduz, encanta. E o pior de tudo, é a

situação dolorosa e exclusiva que as pessoas enfrentam quando lhes é imputada essa

pseudonecessidade de possuir as tecnologias mais recentes, uniformizando um padrão social

(HAN, 2020) que consome, sem racionalizar e que passa a aceitar, sem questionar. A

indústria de telefonia, dos canais de streaming e dos aplicativos digitais nos apresentam

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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

múltiplos serviços e produtos equiparados a conforto e bem-estar que, por vezes, sequer

indagamos se damos conta de utilizar “confortavelmente” todas essas ferramentas. Olha a

gula tecnológica ganhando terreno novamente! Quase uma paixão inconsciente (ou

consciente, por que não?) pelo digital.

O que tangemos acerca da gula pelos recursos tecnológicos invade tanto o campo dos

produtos quanto o dos serviços. Isso vai desde o desejo de ter um celular novo como a

necessidade de possuir um novo eletrodoméstico. Extrapola, de alguma forma, apenas a

dimensão da aquisição do produto. Ela aliena para o uso frequente e rotineiro que, mediante

o prazer causado ou a justificativa da necessidade de comunicação, aos poucos enclausura o

indivíduo em seu auto-isolamento (Figura 3).

Figura 3 – O poder sedutor da tecnologia

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/215328425921996647/

Isso pode ser notado com facilidade quando parte das jornadas diárias são dedicadas

ao uso das mídias sociais, revelando a coexistência da presencialidade em disputa com o

mundo paralelo da virtualidade (MARTINS, COELHO, 2020).

Toda essa “gula” para/pelo consumo tem suas motivações, das internas –

principalmente pelo prazer e atuação no sistema de recompensa cerebral – às externas –

influenciados pela aprendizagem social, via cultura. Para o mercado industrializado

altamente evoluído, o homem é atraído pela indústria do marketing que o seduz para o

eterno prazer do consumo. Para satisfazer seus prazeres e necessidades, ele está sujeito “a

fraudes e mentiras enganosas” (COELHO, M. L, 2002, p. 22).

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Coelho, Santos e Silva

APORTES PEDAGÓGICOS PARA UMA EDUCAÇÃO REDUTORA DOS DANOS DA GULA
TECNOLÓGICA

Dado o cenário de hegemonia da indústria cultural previamente estabelecido,

convém reconhecer - em princípio – duas condições: (1) a constatação de que toda a

comunicação digital evolui e se expande como parte da cultura humana; e (2) a

potencialidade do uso tecnológico como fomentadora de novas interfaces educativas,

estabelecendo novos caminhos informativos e comunicativos na sociedade vigente.

Acerca da primeira condição, cabe lembrar as palavras de Stuart Hall (2003), ao

considerar que a cultura se dá por meio do seu contexto, da realidade de vida dos seres que

interagem. Quer dizer, a cultura é uma produção social, tendo sua matéria-prima, seus

recursos e seu trabalho produtivo. Portanto, se pensarmos na cultura digital e nos usos

comunicativos por meio das diferentes tecnologias, avançamos no entendimento de que

nossas identidades culturais são mutantes, em constante movimento de formação cultural

(HALL, 2003).

Estabelecida essa primeira condição, cabe reconhecer a dimensão educativa da

suposta segunda condição. Nesse âmbito explorar as tecnologias se converte como caminho

informativo e, ao mesmo tempo, comunicativo. Isso, a nosso ver, oferece suporte e

dissemina a dinâmica cultural-digital vigente. Em outras palavras, da mesma forma que ousar

lidar com as tecnologias aprimora/estimuladora novas interfaces comunicativas dentro ou

fora da escola, uma atenção especial deve ser dada às práticas abusivas de tais recursos.

Exatamente nesse sentido, retomamos a importância do enfoque pedagógico da Redução de

Danos (RD) em diferentes situações do cotidiano.

Obras paradidáticas como o Sol na cabeça (MARTINS, 2018) e Disfarces do medo

(COELHO, 2021) têm exatamente tal intuito: permitir ao leitor a simulação de situações

cotidianas que perpassam episódios de prazer, violência e práticas abusivas de drogas do

universo juvenil. Fogem das típicas narrativas de adestramento e pedagogia da proibição, se

convertendo em canais informativos, mas não enclausurados na alienação proibicionista de

pensar o prazer e o bem-estar como receitas de bolo. Especificamente no livro Disfarces do

medo, há um certo destaque para as relações da juventude com os aparelhos tecnológicos e

com as mídias digitais, caminhando rumo ao entendimento de que não são as práticas do

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DA GULA ALIMENTAR À TECNOLÓGICA: REFLEXÕES REDUTORAS DE DANOS
DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

uso tecnológico que pode afetar o bem-estar, mas sim as relações de abuso que se instauram

ao longo do processo.

Nessa ótica, embora reconheçamos toda a interface das novas relações via mídias

digitais e seu abarcamento enquanto cultura digital, cabe a preocupação sobre como tais

demandas influenciam as relações intrínsecas e interpessoais entre os seres humanos

(COELHO, 2021). Quer dizer, ao mesmo tempo em que estamos fadados ao isolamento

(medidas tecnofóbicas), caso recusemos amplamente o porte das inovações tecnológicas,

também nos inclinamos a uma possível ausência da presencialidade, por vezes marcada pela

perda real da sensibilidade. Por isso, brota a urgência das práticas educativas escolares

debaterem e sensibilizarem para o uso das tecnologias e das mídias digitais, não

exclusivamente educando para as tecnologias, mas, sobretudo, para as práticas redutoras de

danos.

Ou seja, da mesma forma que a tecnofobia e a recusa às tecnologias podem ser

alienadoras, também sua apropriação irracional e abusiva pode fomentar situações

deletérias que impactam no próprio exercício de interação e construção dos elos de

pertencimento ao mundo, a cidadania. Legitima-se, assim pensamos, uma educação

antialienadora, que estimule a considerar as mensagens subliminares e os pretensos

conteúdos de fachada divulgados pelas mídias digitais. Trata-se não apenas de uma educação

crítica como uma educação para/com as tecnologias (MARTINS; COELHO, 2020), mas para a

racionalidade e contra as artimanhas implantadas pela gulosa (e por vezes alienadoras!)

indústria cultural das tecnologias. Nesse sentido, cabe explorar e compreender a nuance

dada ao termo gula tecnológica, não descrevendo o porte da tecnologia em si, mas as

relações desenfreadas (e por vezes obsessivas) de filiação a um mercado de aquisição e

consumo extremamente lesivos (ADORNO, 2021).

Sinalizando um cuidado para o uso das mídias digitais e suas implicações no âmbito

educativo e nos ideais democráticos da convivência social, Josh Stumpenhorst em seu livro A

nova revolução do professor: práticas pedagógicas para uma nova geração de alunos (2020),

reconhece o desafio de educar frente ao cenário do século XXI. Se por um lado a tecnologia

favorece estarmos informados sobre o mundo, sua apropriação inadequada pode alienar,

pensamento compartilhado por Martins e Coelho (2020). Nesse caminho, acerca do uso das

tecnologias no âmbito escolar, Stumpernhorst declara que:

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(...) Não podemos simplesmente presumir que isso irá de alguma forma
aprimorar o ensino e o aprendizado em nossas aulas. Como professores,
devemos ser cautelosos com relação a esses objetos brilhantes e às modas
(grifo nosso), que podem servir como distrações (STUMPENHORST, 2020, p.
109).

Nessa ótica, o autor entende parte das tecnologias atuais oferecida aos jovens e à

sociedade como um todo como objetos potencialmente distrativos. Quer dizer, se apoia nas

Tecnologias da Informação e Comunicação (TICS) como objetos de brilho e luminosos que

competem com as ferramentas tradicionais que a escola oferece. Para o autor, essas

apropriações frenéticas de novos aparatos tecnológicos – o que aqui no artigo denominamos

de gula tecnológica – se aproxima muito das oscilações e da perecibilidade do mundo da

moda.

Comungando com as ideias de Stumpenhorst (2020), Martins e Coelho (2020),

entendem que a escola atual vivencia muitos desafios de ordem teórica e prática. Não existe

uma preparação da escola e dos seus profissionais para se pensar sobre os desafios que a

escola deve enfrentar para se posicionar e realizar um trabalho consciente de

questionamento de ideologias que impregnam os veículos midiáticos. Do contrário, há um

certo mito de achar que tudo o que é tecnológico é bom e moderno, sobretudo as redes

sociais. Mas, em que momento as mídias, as notícias, as FakeNews e as propagandas

televisivas são trabalhadas de forma crítica e estimuladora de uma educação emancipatória?

Nesse viés, os autores percebem um cenário atual da naturalização da invisibilidade da

pluralidade sociocultural, que subalterniza, inferioriza e desumaniza segmentos

representativos da sociedade brasileira. Nessa perspectiva, uma Educação para/com as

tecnologias digitais pode ser pensada sob ótica redutora de danos, evocando a possibilidade

de usos não problemáticos com as tecnologias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do manuscrito, nossa intenção foi problematizar algumas situações acerca

da gula em seus diferentes aspectos, do alimentar ao tecnológico. Não questionamos o livre

mercado, mas sim o consumo tecnológico excessivo que, pode tornar- se tornar agressivo e

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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

abusivo. Não se trata de recusar a cultura digital ou manter-se abstêmio a tal, mas de

repensar o uso da tecnologia de forma reflexiva e ponderada, considerando seus riscos em

potencial e estratégias de minimizar os danos de práticas abusivas.

Autores como Han (2020), Stumpernhorst (2020) e Martins e Coelho (2020)

questionam exatamente o caminho do excesso para o próprio uso da tecnologia que

caminha rumo à uma sociedade da uniformização menos preocupada com a diversidade e

com a democracia. Diante disso, a reflexão, a compreensão das implicações dos contextos

culturais (CHARTIER, 2002) e a ponderação para o uso das tecnologias são questões

relevantes em nosso cenário educativo atual para serem pensadas nas atividades escolares e

no âmbito da formação inicial e continuada de professores, dado o reconhecimento da

cultura digital, das classes mais abastadas às de menor status social.

Dadas as interlocuções realizadas nesse artigo, não se pode desconsiderar os aportes

pedagógicos acerca da apropriação tecnológica vigente e toda a complexidade cultural que

ela carrega. Não se trata apenas do uso mecânico da tecnologia, mas de todo o impacto

biopsicossocial e relacional com o uso das mídias. De forma invasiva, a mídia e os discursos

da gula tecnológica são geracionais e pontuais. Inclinam-se à alienação e à uniformização de

comportamentos e padrões receitados pela interface nas mídias sociais, como bem

pontuado por Han (2020).

Se nos ampararmos nos pressupostos de teóricos como Chartier (2002) e Adorno

(2021), nas experiências pedagógicas de autores como Coelho (2020;2021) e Stumpenhorst

(2020), estamos convencidos de que a Redução de Danos, enquanto enfoque pedagógico,

reconhece e tange um caminho de equilíbrio para a exploração, manipulação e

entendimento das relações cotidianas para e com as tecnologias, sobretudo do celular e dos

aplicativos digitais.

No caminho que consideramos acima cabe salientar iniciativas recentes como as do

Programa de Formação Continuada para Professores da Fundação CECIERJ, RJ, Brasil, que –

dentre seus cursos no campo de Educação e Drogas – oferece desde 2021 o curso Educação

sobre Drogas: do alimentar ao digital, com a proposta de permitir aos professores e demais

profissionais de ensino momentos de refletirem acerca dos usos e abusos das tecnologias,

mídias e das manipulações da indústria cultural pouco visíveis aos olhos dos educadores das

escolas públicas.

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Coelho, Santos e Silva

Seríamos nós usuários de carteirinha em face dessa agressiva indução velada de

“boas opções” para o consumo? Será que a indústria midiática não seria um lobo em pele de

cordeiro? Essas são boas questões para levarmos para as escolas, sensibilizando cada vez

mais os jovens. Que tal? Somos realmente capazes de refletir, ponderar e avaliar - com

prudência - se precisamos daquilo de forma imediata? Podemos recusar ou – pelo menos -

adiar o consumo? Ou nos resta a única possibilidade de consumir? Conhecer nossas reais

necessidades e pensar duas vezes antes de ser fisgado pela propaganda pode ser um bom

caminho educativo.

A educação tem compromisso com a formação dos indivíduos para a vida em

sociedade, sendo parte constitutiva de seu trabalho mostrar como os problemas sociais se

constituem, por um lado, e como é possível enfrentá-los de modo coletivo e organizado para

construir a superação das iniquidades e injustiças no caminho da transformação não apenas

individual, mas social, por outro lado. As prescrições individuais de resistência ganham outra

proposição e terminalidade quando consorciadas aos movimentos e mobilizações coletivas

para superação do atual modelo de sociedade.

O fato é que não existem soluções, tampouco receitas para lidar com os ataques

perversos e sistemáticos da mídia. Contudo, inclinar-se à abstinência da indústria cultural

pode ser um caminho também alienador e, quiçá, doloroso para os imersos na sociedade da

gula tecnológica. Por isso nos parece mais eficiente o exercício de compreender de forma

clara as intenções das mídias e suas micro e macro influências sobre nós mesmos. Analisar

cautelosamente as propagandas e questionar as reais necessidades de consumo antes da

aquisição são caminhos possíveis e viáveis. Guerrear contra a indústria cultural pode ser um

caminho árduo, embora sucumbir não seja a melhor estratégia. Tudo se pauta no campo do

equilíbrio. Afinal, quem de nós não se nunca consumiu... que atire a primeira pedra!

Agradecimentos

Agradecemos ao Grupo de Pesquisa Educação e Drogas (GPED/UERJ), ao Programa de

Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz

(PPGEBS/IOC/FIOCRUZ) e ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Química

(PEQui/UFRJ).

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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO

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Dissertação (Mestrado em Psicossociologia
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p. 187. 2006.

STUMPENHORST, Josh. A nova revolução do professor: práticas pedagógicas para uma nova geração
de alunos. Rio de Janeiro: Vozes, 2020. 225 p.

Data do envio: 31/05/2022.
Data do aceite: 20/07/2022.

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