EDITORIAL



Domingos Nobre

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Angra dos Reis, RJ, Brasil


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i13.43960


[...] la agencia indígena subalterna puede generar prácticas educativas contrahegemónicas que transformen el poder Estado-céntrico e in- volucren a profesores indígenas no sólo independientes y autónomos, sino oficiales, así como a colaboradores no indígenas?

María Bertely Busquets (2015)



RESUMO

O texto apresenta dados atualizados do quadro de escolarização indígena no Brasil, questionando as desigualdades e as distorções no seu processo de implantação. Ele mostra que a precariedade de boa parte das escolas indígenas no país é inegável. Há, entretanto, alguns processos educativos em curso no âmbito de algumas experiências comunitárias indígenas. Dentre eles, cita o movimento indígena contemporâneo que continua mostrando sua vitalidade, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e todas as organizações indígenas que a compõe, responsáveis por trazer as questões dos direitos indígenas para a pauta nacional. O presente artigo também enumera três categorias de análise que podem sustentar as condições para as escolas indígenas se constituírem em um espaço de resistência/autonomia ou de subordinação/dominação: a) Ter um projeto de sociedade pensado e construído coletivamente; b) O modelo de interculturalismo adotado para suas relações e c) A política linguística adotada pela comunidade e pela escola. Por fim, alerta para o avanço do ultraliberalismo e do fascismo nas políticas que atacam os povos tradicionais e aponta também iniciativas contra-hegemônicas em curso.

Palavras-chave: Educação e Povos Indígenas. Disputas Étnico Políticas. Processo Educativos Indígenas.



EDUCATIONAL PROCESSES AND INDIGENOUSPEOPLES:

meanings, practices and ethnopolitical disputes in the contemporary context



ABSTRACT

The text presents updated data from the indigenous schooling framework in Brazil, questioning the inequalities and distortions in its implementation process. He shows that the precariousness of most indigenous schools in the country is undeniable. There are, however, some educational processes underway in the context of some indigenous community experiences. Among them, it cites the contemporary indigenous movement that continues to show its vitality, such as the Articulation of Indigenous Peoples of Brazil (APIB) and all the indigenous organizations that compose it, responsible for bringing indigenous rights issues to the national agenda. This article also lists three categories of analysis that can sustain the conditions for indigenous schools to constitute a space of resistance/autonomy or subordination/domination: a) Having a society project thought and constructed collectively; b) The model of interculturalism adopted for their relations and c) The linguistic policy adopted by the community and the school. Finally, it warns of the advance of ultraliberalism and fascism in policies that attack traditional peoples and also points to ongoing counter-hegemonic initiatives.

Keywords: Education and Indigenous Peoples. Ethnic Political Disputes. Indigenous Educational Process.



PROCESOS EDUCATIVOS Y PUEBLOS INDÍGENAS:

significados, prácticas y disputas etnopolíticas en el contexto contemporáneo


RESUMEN

En el texto se presentan datos actualizados sobre la escolarización de los indígenas en el Brasil, cuestionando las desigualdades y distorsiones en su proceso de aplicación. Esto demuestra que la precariedad de buena parte de las escuelas indígenas del país es innegable. Sin embargo, hay algunos procesos educativos en curso en el contexto de algunas experiencias de comunidades indígenas. Entre ellos, cita el movimiento indígena contemporáneo que sigue mostrando su vitalidad, como la Articulación de los Pueblos Indígenas del Brasil (APIB) y todas las organizaciones indígenas que la componen, responsables de llevar las cuestiones de los derechos indígenas a la agenda nacional. En este artículo también se enumeran tres categorías de análisis que pueden sostener las condiciones de las escuelas indígenas constituyen un espacio de resistencia/autonomía o subordinación/dominio: a) Tener un proyecto de sociedad pensado y construido colectivamente; b) El modelo de interculturalidad adoptado para sus relaciones y c) La política lingüística adoptada por la comunidad y la escuela. Por último, alerta sobre el avance del ultraliberalismo y el fascismo en las políticas que atacan a los pueblos tradicionales y también señala las iniciativas contra-hegemónicas en curso.

Palabras clave: Educación y pueblos indígenas. Disputas políticas étnicas. Proceso educativo indígena.


Processos educativos ou escolarização?

Os povos indígenas no Brasil compõem uma rica diversidade étnica, linguística e cultural que engloba hoje 580.991 indígenas aldeados com 379.654 falantes de 160 línguas diferentes (D’ANGELIS, 2012)1. Do ponto de vista das políticas educacionais existentes até agora, houve a criação de 3.345 escolas indígenas, com 255.888 matrículas de estudantes e com 22.590 professores (MEC, 2018). Isso significa um universo considerável de atendimento em escolarização. Se levarmos em conta que em 1999, quando foi realizado um primeiro censo específico da Educação Escolar Indígena, foram identificadas apenas 1.392 escolas, o crescimento nesses 19 anos foi de 41%!

De acordo com os dados, o processo de escolarização das comunidades indígenas cresce avassaladoramente no país. No entanto, em muitos casos, a sua qualidade é duvidosa, o que indica uma busca incessante de universalização do ensino fundamental por parte das políticas públicas implementadas, mas que também revela enormes desequilíbrios e desigualdades nessa oferta.

Segundo o MEC (2018), 1.029 escolas indígenas, ou seja 30% delas, não funcionam sequer em prédios escolares e 1.027 não estão ainda regularizadas por seus sistemas de ensino (estaduais e municipais).

Além disso, 1.970 escolas, ou seja, 58% delas, não possuem nem água filtrada. 32% não têm energia elétrica e 48% não contam sequer com sistema de esgoto sanitário. Além disso, 3.077 unidades (91%) estão sem biblioteca, 92%, sem banda larga e 46% não utilizam material didático específico.

Das 255.888 matrículas registradas nas escolas indígenas do país, 12% são na Educação Infantil, 68%, no Ensino Fundamental e apenas 10% no Médio. Há apenas 8% na EJA (MEC, 2018), o que aponta os limites do alcance desse processo, centrado prioritariamente no nível fundamental.

Os desequilíbrios não param por aí. O funcionamento de unidades em prédios escolares chega somente a 2.316 (69%). As regiões Norte e Nordeste apresentam a menor porcentagem de escolas funcionando em prédios escolares – respectivamente, 65% e 69%. Por outro lado, a região Sudeste apresenta a maior taxa, a saber, 94% (MEC, 2018).

As desigualdades se acentuam regionalmente. As escolas indígenas das regiões Sul e Sudeste, por exemplo, possuem 100% de acesso à energia elétrica, enquanto a região Norte apenas 54%. Quanto ao esgoto sanitário, as escolas das regiões Sul e Sudeste possuem, respectivamente, 98% e 90% de acesso, enquanto a região Norte apenas 39% (MEC, 2018).

A precariedade de boa parte das escolas indígenas no país é inegável, pois as estruturas físicas de suporte ao aprendizado das Ciências, da Informática e das Linguagens praticamente inexistem. Por exemplo, somente 6% das escolas indígenas possuem laboratórios de informática, 0,5% contam com laboratórios de Ciências, 8% têm bibliotecas e 14%, acesso à internet (MEC, 2018).

No contexto atual de globalização e de crise da saúde pública imposta pela pandemia, essa diversidade e essa precariedade produzem diferentes significados que se contrastam nesse período, explicitando e escancarando as enormes desigualdades sociais produzidas historicamente no nosso país, as quais excluem e marginalizam os povos indígenas, assim como os demais povos tradicionais como os quilombolas, os caiçaras, os ribeirinhos etc.

Entretanto, há alguns processos educativos em curso em algumas comunidades indígenas, envolvendo sábios mais velhos, mulheres guerreiras, jovens engajados, rezadores e rezadoras, os quais resistem e, assim como o movimento indígena contemporâneo, continuam mostrando a sua vitalidade.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é responsável por congregar as organizações indígenas regionais tais como: Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); Conselho do Povo Terena, Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE); Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL); Grande Assembleia do povo Guarani (ATY GUASU); Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB); e Comissão  Guarani Yvyrupa. Recentemente, a APIB tem demonstrado a sua capacidade de luta, de mobilização e de organização do movimento nacionalmente, trazendo a pauta dos direitos indígenas para a cena no país. Um exemplo disso é a vitória obtida junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em decisão individual, foi concedida uma liminar em uma ação, apresentada pela APIB com mais seis partidos políticos, que determinou, em julho de 2020, a adoção pelo governo federal de medidas para proteger as comunidades indígenas e evitar a alta mortalidade pela Covid-19.

Muitos significados

Como é que, ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência? Ailton Krenak (2019)


Muitos são os significados em disputa na sociedade sob diferentes projetos de futuro do qual a escola indígena faz parte. Entretanto, ela pode ser um instrumento coletivo de resistência, de autonomia e de criatividade ou um aparato de subordinação pra soluções individuais em uma perspectiva capitalista e individualista.

Em outro texto, enumerei três categorias de análise que podem sustentar as condições para as escolas indígenas se constituírem em um espaço de resistência/autonomia ou de subordinação/dominação, a saber:

a) Ter um Projeto de Sociedade pensado e construído coletivamente.

Qual o papel da escola na construção desse projeto? Qual o papel da escola enquanto espaço de reflexão para lideranças e comunidade? A escola pode ser um instrumento coletivo de busca de alternativas coletivas de sobrevivência com mais dignidade, ou apenas se constituir numa saída individual de percurso formativo para alguns (NOBRE, 2020, p. 11).


Vale lembrar que, para se constituir em autênticos processos educativos libertadores e não apenas em meros dados quantitativos de aumento de escolarização, como os já citados anteriormente, a escola indígena precisa estar inserida em projetos de sociedade e de futuro emancipatórios e criativos, pois será necessário subverter as amarras impostas pelo poder do estado burocrático.

b) Qual o modelo de interculturalismo adotado para suas relações? As relações entre comunidade indígena, incluindo a escola, e a não indígena são marcadas por um interculturalismo funcional ou por um interculturalismo crítico?

Vale ressaltar que, no interculturalismo funcional, substitui-se o discurso sobre a pobreza pelo sobre a cultura, ignorando a importância que tem – para compreender as relações interculturais – a injustiça distributiva, as desigualdades econômicas, as relações de poder e os desníveis culturais internos (NOBRE, 2020).

Já no interculturalismo crítico (TUBINO, 2004; BUSQUETS, 2015; WALSCH, 2010), busca-se uma teoria crítica do reconhecimento de uma política cultural da diferença aliada a uma política social de igualdade. Enquanto o interculturalismo neoliberal busca promover o diálogo sem tocar nas causas da assimetria cultural, o crítico busca suprimi-las. A escola tem um papel fundamental na construção dessas relações interculturais, por ser naturalmente um espaço de fronteiras (TASSINARI, 2001) e de conflitos (NOBRE, 2020).

c) Qual a política linguística adotada pela comunidade e pela escola? A comunidade quer adotar o bilinguismo de transição ou o de resistência (D’ANGELIS, 2001)? Quais as consequências dessa escolha? Qual o papel da escola nessa opção? Nobre (2020) afirma que:

Quanto mais a escola estiver inserida num projeto de sociedade e de futuro do povo, construído coletivamente, quanto mais as relações entre a escola e o entorno não indígena forem regidas por um interculturalismo crítico, quanto mais o bilinguismo de resistência, adotado pela escola e nas relações comunitárias, expressar uma opção consciente de política linguística, mais a escola terá chances de ser autônoma (NOBRE, 2020, p. 11).


Portanto, autonomia é um processo de construção sócio-histórica que não está dada por um decreto de lei. Pelo contrário, a escola foi construída pra reproduzir a estrutura da sociedade. E essa sociedade ocidental é branca, racista, cristã, machista, europeia e burguesa, pois está dividida em classes sociais, as quais se apropriam da escola para o bem, quando luta ao lado das classes trabalhadoras e oprimidas, ou para o mal, quando impõe os interesses das classes dominantes, por meio da exploração, da dominação ou como aparelho ideológico do estado, em um viés de alienação ou de cooptação, através do consentimento ativo dos governados (GRAMSCI, 2002, p. 331).

A escola indígena não pode se justificar por si própria, como quando se pergunta: para que fazer o Ensino Fundamental? A resposta é: - Para poder ir para o Ensino Médio. E para que estudar no Ensino Médio? – Para ir para faculdade. E para que ir para faculdade? Para arrumar um emprego... Ela precisa significar bem mais que isso. Ela deve contribuir para manter os jovens nas suas aldeias com perspectivas de futuro autônomo e autossustentável, fortalecendo os laços de identidades com sua cultura, sua língua, seu território e com a natureza. Por isso, a luta por demarcação das terras indígenas (TI) é hoje fundante, posto que não há vida sem território.

Significa, também, que temos diferentes cosmovisões, que pensamos o mundo e o fim dele de formas diferentes, como afirmou Krenak (2019) sobre o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami:

O livro tem a potência de mostrar para a gente, que está nessa espécie de fim dos mundos, como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda seja capaz de habitar uma cosmovisão, habitar um lugar neste planeta que compartilhamos de uma maneira tão especial, em que tudo ganha um sentido. As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta (Krenak, 2019, p. 13).


Em seus processos educativos próprios, os povos indígenas nos mostram que não precisamos todos achar que esse “progresso”, movido pela ganância do lucro e pelos desígnios do mercado imposto ao planeta Terra, é inexorável e incompatível com a preservação da natureza e da vida.


Práticas em construção

Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes?

Ailton Krenak (2019)


Vimos presenciando práticas fascistas de genocídio aos povos indígenas por parte do Governo Federal como a Emenda Constitucional do teto dos gastos públicos que congelou por 20 anos os orçamentos na saúde e na educação e os recentes vetos do Presidente ao plano emergencial para enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas2. Tudo isso indica um projeto intencional de ataques e de destruição da nossa diversidade étnica e da vida dos povos tradicionais.

Práticas fascistas como a do recente “marco temporal”, proposto por um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), que estabelece que esses povos só têm direito à demarcação de suas terras tradicionais caso comprovem que as ocupavam ou as reivindicavam na Justiça Federal na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, 5 de outubro, o que é um retrocesso histórico e uma inconstitucionalidade.3

São práticas de Mal Viver, contagiando os povos indígenas mais do que nunca, como afirma Busquets (2015) em total concordância com Krenak e com muitas importantes lideranças do movimento indígena do Brasil hoje:

[...] más que Occidente versus formas de vida indígenas, pugnas entre el primer y el tercer mundo, o relaciones de dominación y diferencias entre el norte colonizador y el sur colonizado, debiésemos hablar del Mal Vivir que se derivó de la noción de desarrollo que colonizó a todo el mundo a partir de la modernidad y el proyecto económico, político, civilizatorio y depredador que, efectivamente, surgió de Occidente. En el presente, el Mal Vivir es global y se expresa en el proyecto neocolonizador que no visibiliza, despersonaliza y neutraliza las fuentes de poder en todo el mundo (BUSQUETS, 2015, p. 78).


O contexto contemporâneo de crise, com o capitalismo financeiro desenfreado e os ataques predatórios dos grupos conglomerados do agronegócio, das mineradoras e das petroleiras aos nossos biomas: Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Pampas, Caatinga e ao Pantanal. No mais, tudo isso produz o aumento do aquecimento global e a expulsão das comunidades tradicionais de seus territórios ancestrais, demonstrando o fracasso do modelo de desenvolvimento adotado. Trata-se, portanto, de um modelo excludente, predatório, concentrador e potencializador das desigualdades sociais.

A negação dos processos demarcatórios e até a tentativa de anulação de terras já demarcadas por parte de grileiros, dos fazendeiros latifundiários, das madeireiros e das mineradoras é um enfrentamento permanente para a sobrevivência dessas populações, pois, sem terra saudável, não há vida, não há cultura, não há processos educativos.

Segundo estudo do IBGE (Caderno Temático: Populações Indígenas), baseado no Censo de 2010, 37% dos indígenas a partir dos cinco anos falam uma língua indígena, mas esse número aumenta, consideravelmente, chegando a 57%, quando o recorte é apenas quanto àqueles que vivem dentro de terras indígenas. Com relação ao conhecimento da língua portuguesa, 17% do número total de indígenas do país afirmavam não saber falar português. Esse percentual chega a 28% quando se trata de sujeitos que vivem em terras indígenas (RODRIGUES, 2018, p. 15). Há, por conseguinte, uma relação direta entre a preservação das línguas indígenas e, portanto, de suas culturas, e a demarcação de seus territórios tradicionais, assim como a preservação ambiental.

Entretanto, contraditoriamente, há também muitas práticas coletivas se produzindo, como redes de solidariedade aos povos indígenas, que, nesse período de pandemia, ampliaram-se e se fortaleceram, demonstrando o apoio da sociedade em geral a essas causas. Exemplo disso são as campanhas de alimentação através da entrega de cestas básicas em todo o país às comunidades com maior vulnerabilidade social, o que tem minimizado o impacto do isolamento causado pelo vírus. Em muitos casos, isso garante um mínimo de segurança alimentar e nutricional às aldeias.

Há também práticas pedagógicas inovadoras na educação escolar indígena, como os programas e os projetos de revitalização linguística protagonizados pelos próprios indígenas4. Nesse mesmo caminho, há as licenciaturas interculturais indígenas com propostas curriculares inovadoras e as práticas metodológicas alternativas e participativas de construção curricular, tais como: a pedagogia de projetos com temas geradores (de base freireana) em redes temáticas5 discutindo os conteúdos e os conhecimentos do currículo em uma perspectiva intercultural crítica. No mais, vale lembrar das metodologias alternativas interculturais como aquelas desenvolvidas pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), nos Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas (Marez), em Chiapas, no México, como o chamado Método Indutivo Intercultural (MII), de Gasché (2008; 2008a) e colaboradores, os quais inspiram, há alguns anos, experiências de formação de professores indígenas no Brasil, na UFRR e UFMG, por exemplo, e na América Latina em geral.


Disputas etnopolíticas

Nesse contexto contemporâneo de ascensão do ultraliberalismo e do fascismo, há disputas etnopolíticas em curso na nossa sociedade. Elas encurralam os indígenas e os mantêm em situação, muitas vezes, precárias de sobrevivência, do ponto de vista do acesso à terra, à saúde e à educação, ou seja, aos direitos básicos universais. No entanto, os indígenas resistem há 520 anos. Agora, especialmente após o golpe de 2016, eles estão re-existindo apesar dos ataques sofridos.

Assim, a garantia de condições de autonomia socioeconômica dos povos indígenas nunca esteve tão ameaçada. Quanto a isso, Nobre (2020a) afirma que:

O que temos visto é o abandono em relação a oferta de políticas públicas estruturantes de geração de trabalho e renda nas aldeias com programas de auto sustentação, ampliação da agricultura familiar baseada em agroecologia e agrofloresta, apoio ao turismo de base comunitária, estímulo à produção e comercialização de artesanato indígena, enfim, programas voltados pras necessidades de autonomia econômica das comunidades indígenas, dentro de diretrizes estabelecidas pelo Estado (NOBRE, 2020a, p. 9)

Dessa forma, os conflitos têm aumentado, evidenciando as disputas etnopolíticas em várias dimensões: disputas em torno de seus territórios, onde alguns querem expropriar as suas terras para ampliar as fronteiras agropecuárias e explorar os minerais ou inundá-las; disputas em torno do currículo de suas escolas, no qual alguns querem a obediência acrítica à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em um currículo padronizado; disputa por acesso e atendimento à saúde, posto que alguns querem excluí-los do sistema público em processo explícito de genocídio autorizado; disputas em torno das instituições públicas de defesa dos povos indígenas, nas quais muitos implementam um sucateamento programático do órgão indigenista oficial.

Por outro lado, há muita resistência frente a esses ataques: investimos em uma escola em que há autonomia pedagógica dos professores indígenas na construção de currículos integrados, diferenciados, bilíngues e interculturais; lutamos para que todos sejam tratados com equidade no SUS e na Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena); buscamos o fortalecimento das instituições públicas federais, como a Funai. Todas essas frentes de resistência visam ao bem-estar desses povos tradicionais, posto que as disputas etnopolíticas afetam diretamente a vida e o futuro deles.

Essas disputas se dão de forma acirrada no campo político com muitas proposições anti-indígenas na Câmara e no Senado, majoritariamente composto por parlamentares de centro, de direita e extrema direita. Além disso, o cenário político conta com a presença da chamada bancada bbb (da bala, do boi e da bíblia), composta por várias frentes parlamentares que agem em bloco contra os direitos dos povos indígenas: Frente Parlamentar da Agricultura, com 207 deputados; bancada da mineração, com 23; bancada da bala, com 35; bancada evangélica, com 197; bancada empresarial, com 208 e a bancada das empreiteiras e construtoras, com 226 deputados (CIMI. 2018).

Essa composição do Legislativo atua com várias intenções: algumas buscam a alteração nos processos de demarcações de terras indígenas; outras buscam sustar portarias declaratórias já emitidas; umas, ainda, insistem em transferir ao Congresso Nacional a competência de aprovar e de gerir as demarcações das terras; algumas querem autorizar arrendamento em TIs, impedir a sua desapropriação para demarcações e  estabelecer indenização para invasores que as ocuparam.

É uma árdua a tarefa para o campo progressista em relação aos processos educativos com os povos indígenas e ao direito à uma educação escolar indígena de qualidade, inclusiva e diferenciada. Tudo isso se inserem nesse campo de disputas que nos exigem união e solidariedade, em especial, nestes tempos de pandemia.

Como afirma Busquets, "as tensões e os desafios que os professores indígenas enfrentam, ao estar situados e controlados pelo poder estatal, demonstram que a interculturalidade em educação não é idílio, mas, inerentemente conflitiva" (2015, p. 98). Por isso, lutamos juntos pelo Bem Viver, com justiça, terra e paz para os povos indígenas!


Referências

BUSQUETS, María Bertely. Enfoques postcoloniales y movimiento político y pedagógico intercultural en y desde Chiapas, México. In: Enfoques Postcoloniales. Relaciones, n. 141, invierno, p. 75-102, 2015.


CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Congresso Anti-Indígena. Os Parlamentares Que Mais Atuaram Contra os Direitos Indígenas, 2018. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2018/09/congresso-anti-indigena.pdf


D’ANGELIS. Wilmar. A Situação Atual das Línguas Indígenas Brasileiras (Mesa Redonda). In: IX ELESI – Encontro Sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas, 2010.


D’ANGELIS. Wilmar. Relatório Curso de Formação de Educadores Kaingang. Aldeia de Votouro: CGAEI/MEC. Mimeo, 2001


GASCHÉ, Jorge. Las Motivaciones Políticas de la Educación Intercultural Indígena. ¿Hasta Dónde Abarca la Interculturalidad? In: GASCHÉ, Jorge; BERTELY BUSQUETS, Maria; MODESTA, Rosana. (coords.). Educando en la Diversidade: Investigaciones y Experiências Educativas Interculturales y Bilingües. Quito, Ecuador: Abya-Yala, CIESAS, IIAP, 2008.


GASCHÉ, Jorge. Niños, Maestros, Comuneros y Escritos Antropológicos Como Fuentes de Contenidos Indígenas Escolares y la Actividad Como Punto de Partida de los Procesos Pedagógicos Interculturales: Un Modelo Sintáctico de Cultura. In: GASCHÉ, Jorge; BERTELY BUSQUETS, Maria.; MODESTA, Rosa (coords.). Educando en la Diversidade: Investigaciones y Experiências Educativas Interculturales y Bilingües. Quito: AbyaYala, CIESAS, IIAP, 2008a.


GRAMSCI, Antonio. Cardernos do Cárcere. Vol. 3 Maquiavel. Notas Sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.


KRENAK, Ailton. Idéias Para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras. São Paulo, 2019.


NOBRE, Domingos. Resistência e Subordinação nas Armadilhas da Escola Indígena: Autonomia é Possível? In: Coletânea “Educação e Territorialidade”. Programa de Mestrado Interdisciplinar Educação e Territorialidade - PPGET – FAIND – UFGD - Dourados – MS. 2020


NOBRE, Domingos. Os Deveres do Estado no Fortalecimento de Línguas Indígenas. In: D’ANGELIS, Wilmar; NOBRE, Domingos (orgs.). Experiências Brasileiras em Revitalização de Línguas Indígenas. Campinas: Ed. Curt Nimuendaju. 2020a. (no prelo).


RODRIGUES, Fernanda Castelano. A Noção de Direitos Linguísticos e Sua Garantia no Brasil: Entre a Democracia e o Fascismo. Língua e Instrumentos Linguísticos, n. 42, Jul., Campinas, 2018


TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. Escola Indígena: Novos Horizontes Teóricos, Novas Fronteiras de Educação. In: SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (orgs.). Antropologia, História e Educação. A Questão Indígena e a Escola. São Paulo: Global, p. 44-70, 2001.


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WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. In: VIAÑA, Jorge; TAPIA, Luis; WALSH, Catherine. Construyendo interculturalidad crítica. La Paz: Convenio Andrés Bello, p. 75-96, 2010. Disponível em: http://www.uchile.cl/documentos/interculturalidad-critica-y-educacion intercultural_150569_4_1923.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.



SOBRE O AUTOR


DOMINGOS BARROS NOBRE é doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense, professor associado do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (IEAR/UFF), coordenador do Grupo de Pesquisa Espaços Educativos e Diversidades Culturais e coordenador pedagógico do Curso de Magistério Indígena, através de Acordo de Cooperação Técnica entre UFF e SEEDUC-RJ. Possui pós-doutorado em Educação e Cultura Indígena no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP) e pós-doutorado em Linguística sobre Ensino de Língua Guarani na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

E-mail: donobre@gmail.com





Recebido em: 17.07.2020

Aceito em: 17.07.2020

1 Em exposição na mesa-redonda, “A Situação Atual das Línguas Indígenas Brasileiras”, no IX ELESI – Encontro Sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas (Porto Seguro, BA, 22 a 26 de outubro de 2012), baseado em fontes como Funasa, Funai, ISA, Unesco e CIMI (2010-2012).

2 O PL nº 1142 dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas. Ele cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e às comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19. Além disso, altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas situações emergenciais e de calamidade pública. (CIMI, 2020)

3 No dia 7/05/2020, em decisão liminar, o STF suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU) que estabeleceu o marco temporal como diretriz para os processos administrativos de demarcação de terras no âmbito do Poder Executivo e o seu plenário julgará ainda definitivamente a questão.


4 São projetos de revitalização linguística com apoio da FUNAI no Brasil com as seguintes línguas: Paumari e Apurinã; Nhandewa do Litoral Paulista; Kaingang de S.P.; Krenak em S.P.; Munduruku do Kwatá Laranjal; Guató; Krahô-Kanela; Tenetehára/Guajajara; Hãtxa Kuin; Kanela do Araguaia; Terena de S.P.; Karajá de Xambioá; Nambikwara; Hupd’äh e Yuhupdeh; Karajá de Aruanã; Patxohã e Apiaká. (cf. Ramos & Gobbi, FUNAI).

5 Que utilizamos no Programa “Escolas do Território”, no IEAR/UFF no Rio de Janeiro, desde 2015 com professores indígenas, caiçaras e quilombolas na região da Costa Verde, no Sul Fluminense. A esse respeito, ver: https://educadiversidade.wixsite.com/educadiversidade



Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.13, p. 1-13, maio/ago. 2020