ESTUDANTES INDÍGENAS E INTERCULTURALIDADE(S) NO ENSINO SUPERIOR1



Cecilia Navia Antezana

Universidad Pedagógica Nacional (UPN)

Ciudad de México, México


Gisela Salinas Sánchez

Universidad Pedagógica Nacional (UPN)

Ciudad de México, México


Gabriela Czarny Krischkautzky

Universidad Pedagógica Nacional (UPN)

Ciudad de México, México


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i13.40814





RESUMO

Apresentamos algumas reflexões sobre processos formativos com estudantes de Licenciatura em Educação Indígena da Universidad Pedagógica NacionalUnidad Ajusco da Cidade do México. O objetivo é compreender a construção de formas de interação no interior do curso e fora dele. Parte-se do pressuposto de que estas interações vão mais além do debate sobre interculturalidade, uma vez que se fazem presentes algumas tensões que configuram um campo complexo no qual entram em jogo elementos socioculturais, políticos, históricos e econômicos. A partir de um enfoque qualitativo, realizaram-se grupos de discussão com estudantes. Aplicou-se uma estratégia de análise de conteúdo. Encontrou-se um exercício de reflexividade compartilhada a partir das interações que se estabelecem entre os mesmos estudantes indígenas, com pares não indígenas, assim como com a instituição. Entre as conclusões destaca-se que a interculturalidade parece ser um conceito que não consegue dar conta da complexidade de situações vivenciadas na universidade. Contudo, a partir deste conceito, evocam-se diversas experiências e significados sobre as interações presentes entre os estudantes, bem como sobre a ausência de políticas para a diversidade na universidade.

Palavras-chave: Ensino superior. Estudantes indígenas. Interculturalidade. Interações.





INDIGENOUS STUDENTS AND INTERCULTURALITIES IN HIGHER EDUCATION



ABSTRACT

We present some thoughts that occur in educational processes with students from the Indigenous Education Bachelor by the National Pedagogical University in Mexico City. The objective is to comprehend how different forms of interaction, inside and outside the university, are built. We part from the assumption that interactions goes beyond the intercultural debate, where some tensions arise and configure a complex field where sociocultural, political, historical and economical elements interpose. From a qualitative focus, discussion groups with students were held. A content analysis strategy was applied. A shared reflection exercise was found from the interactions established between the indigenous students, with non-indigenous peers, and with the university. Conclusions feature that interculturality seems to be a concept that doesn't make visible the complexity of situations lived in the university. Although, from this concept, are evoked different experiences and meanings about the present interactions between students and the absence of policies for diversity in the University.

Keywords: Higher education. Indigenous students. Interculturality. Interactions.





ESTUDIANTES INDÍGENAS E INTERCULTURALIDAD(ES) EN EDUCACIÓN SUPERIOR




RESUMEN

Presentamos algunas reflexiones sobre procesos formativos de estudiantes de la Licenciatura en Educación Indígena de la Universidad Pedagógica Nacional - Unidad Ajusco de la Ciudad de México. El objetivo es comprender la construcción de formas de interacción al interior de la licenciatura y fuera de ella. Se parte del supuesto de que estas interacciones van más allá del debate sobre interculturalidad, y ocurren en el marco de tensiones que configuran un campo complejo en el que entran en juego elementos socioculturales, políticos, históricos y económicos. A partir de un enfoque cualitativo, se realizaron grupos de discusión con estudiantes. Se aplicó una estrategia de análisis de contenido. Se encontró un ejercicio de reflexividad compartida a partir de las interacciones que se establecen entre los mismos universitarios indígenas, con pares no indígenas, así como con la institución. Entre las conclusiones destaca que la interculturalidad, parece ser un concepto que no logra dar cuenta de la complejidad de situaciones que se viven en la universidad. No obstante, a partir de este concepto, se evocan diversas experiencias y significados sobre las interacciones presentes entre los estudiantes, y la ausencia de políticas para la diversidad en la universidad.

Palabras Clave: Educación superior. Estudiantes indígenas. Interculturalidad. Interacciones.





Introdução

A partir da investigação sobre processos formativos com estudantes indígenas em um dos programas educacionais mais antigos da região, a Licenciatura en Educación Indígena (LEI) da Universidad Pedagógica Nacional (UPN), Unidad Ajusco da Cidade do México, analisam-se alguns significados sobre a interculturalidade no ensino superior. Na região da América Central e do Sul, vem sendo debatido o tema da educação intercultural voltada para os povos indígenas. Para além do que as políticas educacionais têm proposto para essa população, dentre os mesmos sujeitos destinatários existem percepções distintas sobre a noção de interculturalidade.

Como parte de nosso trabalho docente, que inclui diálogo e acompanhamento de estudantes indígenas, busca-se contribuir com os debates contemporâneos sobre os modos de traçar perspectivas educacionais pertinentes para sociedades multi/pluriculturais e multi/plurilingues. Por esse motivo, neste texto, começamos com uma aproximação sobre a passagem da educação indígena para a chamada educação intercultural direcionada, particularmente, às populações indígenas no México. Continuamos com uma revisão sobre a incorporação da interculturalidade no ensino superior, explicamos a perspectiva metodológica adotada e descrevemos o contexto institucional da universidade e do programa educacional em questão. Por fim, são apresentados alguns resultados da análise realizada através do trabalho em grupos focais e da reflexão compartilhada com os estudantes2 sobre o que o tema da interculturalidade evoca neles, para o qual se referiram a processos de interação com estudantes indígenas e não indígenas. Finalmente, são apresentadas algumas conclusões.


1. A educação denominada indígena e intercultural no México: da educação básica ao ensino superior

Embora na região da América Central e do Sul as políticas educacionais para os povos indígenas tenham sido projetadas como interculturais e bilíngues nos últimos 30 anos, a chamada "questão indígena" tem estado presente como tema de agenda pública a ser resolvida desde a criação dos Estados-nação.

Durante todo o século XX no México, especificamente para a população indígena, foram apresentadas propostas educacionais conhecidas como bilíngues biculturais e, desde a década de 1990, como interculturais bilíngues. Essas propostas foram aplicadas principalmente na educação básica3, promovidas pela Secretaria de Educação Pública (SEP), tendo como eixo central um currículo comum para todos os meninos e meninas do país.

Desde os anos 60 do século XX, no âmbito do indigenismo, através da Direção Geral de Educação Indígena (DGEI) da SEP e, posteriormente, a partir de 2001, através da Coordenação Geral de Educação Intercultural e Bilíngue (CGEIB), foram delineadas políticas para a educação escolar de crianças e jovens indígenas com diretrizes para a educação intercultural bilíngue em áreas indígenas, bem como a criação de universidades interculturais e a educação intercultural para todos os diferentes níveis educacionais. Nessas instâncias, foram promovidas propostas educacionais bilíngues e interculturais, além de materiais didáticos que procuravam abordar a "especificidade" de uma população cultural, étnica e linguisticamente diferenciada, mas também em circunstâncias de precariedade econômica na grande maioria das ocasiões.

Alguns autores apontam que a chamada educação intercultural dos anos 90 do século XX aparece como um discurso próprio em uma fase pós-indigenista de redefinição das relações entre o Estado e os povos indígenas (DIETZ e MATEOS, 2011). Essa “nova” educação intercultural e bilíngue nasceria com o afã de superar as limitações tanto políticas quanto pedagógicas da educação indígena anterior, mas essa perspectiva manteve um forte viés referente ao tratamento preferencial apenas das questões étnico-indígenas.

Atualmente, com base nos dados da Pesquisa Intercensal (INEGI, 2015)4, dos 121 milhões de habitantes do país, 21,5% se autodeclaram indígenas, representando cerca de 25 milhões de pessoas. Do total da população nacional, 7.382.785 habitantes de três anos ou mais falam uma língua indígena, o que representa 6,5%. Segundo o Instituto Nacional de Línguas Indígenas (INALI, 2008), 68 línguas indígenas, consideradas nacionais, são faladas no México, contando com 364 variantes. Em relação à escolaridade, 21,3% dos falantes de língua indígena não têm escolaridade frente a 5% dos não falantes na mesma condição. Apenas um em cada cinco falantes de língua indígena concluiu o nível correspondente ao ensino fundamental II, enquanto entre os que não falam esta correlação é de um em cada três. Existem diferentes brechas entre a educação básica e o ensino superior que afetam a continuidade escolar. Isso inclui notadamente as condições socioeconômicas, a discriminação nos espaços escolares, a falta de habilidades acadêmicas e de perspectivas socioculturais em relação ao gênero para o acesso das mulheres aos maiores níveis escolares (CZARNY; SALINAS, 2018). Nesse cenário, o ensino superior atinge apenas 3% da população que fala uma língua indígena (INEE, 2017).

Sem pretender fazer um balanço do que as políticas interculturais e bilíngues têm procurado promover – gerando avanços e retrocessos –, o certo é que altas taxas de defasagem no fluxo de escolarização ainda se mantêm nas escolas de educação indígena. Nessa perspectiva, o tema que se destaca é a precariedade e a desigualdade econômica das comunidades indígenas. No entanto, no quadro das políticas públicas esse atraso não é explicado por outras condições que afetam a vida e as relações escolares das crianças, por exemplo, o que a literatura antropológica definiu como “conflito cultural”. Essa noção refere-se à distância entre as práticas culturais das comunidades (no caso, as denominadas indígenas) e as que se delinearam como parte do que passou a ser entendido como “cultura escolar” (OGBU, 1978; ROCKWELL, 1995). Essa separação é o que, na percepção das instituições escolares, explicaria o "fracasso" escolar devido às características linguísticas e culturais das crianças indígenas, o que não as ajudaria a serem "integradas" e, em muitos casos, a "aprender" o que a escola tem como meta ensinar. Por esse motivo, a ideia de “adaptar a escola a essas diferenças culturais” às vezes se traduz em “empobrecer” o que se tem de ensinar (ensinar menos) ou resolver a dificuldade por meio de estratégias específicas. Em outras palavras, a ideia de interculturalidade em uma perspectiva funcional (TUBINO, 2007) tomou forma, na prática, como uma proposta estratégica com o fim de compensar o que as crianças indígenas não traziam em seus conhecimentos e práticas culturais e assim poder, na melhor das hipóteses, “se acoplarem" à dinâmica escolar.

Contudo, desde o final dos anos 90 do século XX, as mobilizações realizadas por organizações indígenas e diferentes setores da sociedade incluíram outras dimensões no debate sobre justiça e descolonização, entre elas: as implicações da discriminação e do racismo que acompanharam políticas e programas educacionais. Da mesma forma, e como impacto dessas mobilizações, a visibilização indígena em todo o país tem sido um elemento central na reformulação das políticas interculturais.

Sem dúvida, o progresso na questão dos direitos indígenas, expresso em mudanças normativas nas últimas décadas, como o artigo 2o. da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos (2001) ou a promulgação da Lei de Direitos Linguísticos dos Povos Indígenas (2003), bem como uma série de reformas (ainda não todas implementadas) nas leis educacionais5, abriram novas possibilidades para o que tem sido chamado de sociedades pluriculturais e plurilíngues. Como resultado da pressão internacional pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, as propostas educacionais denominadas interculturais – tanto governamentais quanto alternativas – foram incorporando algumas demandas das organizações, como considerar suas próprias epistemologias e conhecimentos; desenvolver as línguas originárias e a busca de diálogo intercultural ou diálogo de saberes. Ao mesmo tempo, essas perspectivas que deveriam estar presentes no trabalho das escolas indígenas mantêm um viés dos indígenas como o diferente e vulnerável. Ou seja, deixar a concepção educacional intercultural compensatória, mesmo que tenhamos mudanças legislativas para o reconhecimento dos direitos das comunidades indígenas, ainda é um longo caminho a percorrer.


2. Interculturalidade, ensino superior e jovens indígenas

O ensino superior e a visibilização de estudantes indígenas no México começaram a fazer parte de uma agenda educacional no final dos anos 90 do século XX. Embora pareça ter tomado um impulso nos primeiros anos do século XXI na criação de programas e instituições para indígenas e, em menor grau, de indígenas, algumas estimativas indicam que a presença de estudantes indígenas no nível superior é de 3% do total de matrícula (INEE, 2017).

Entretanto, o acesso a esse nível educacional de membros de comunidades indígenas ocorreu de maneira silenciosa e foi negado pelas instituições ao longo de todo o século XX (CZARNY, 2017). Nesse sentido, e como parte de algumas narrativas desses profissionais e estudantes indígenas, nota-se que o fato de ter chegado à universidade não só foi alcançado com o apoio financeiro e emocional das famílias/comunidades e por contar com ferramentas para confrontar a discriminação e o racismo, mas também pela aproximação ao que conhecemos como habitus que permite lançar mão de uma linguagem adequada no sentido amplo, entendida como formas culturais legitimadas pelas instituições (LÓPEZ, 2009; DOMÍNGUEZ, 2013).

A profissionalização no nível superior dos setores indígenas tem entre seus antecedentes o que no indigenismo, desde os anos 60 do século XX, era conhecido e ainda se conhece como a difusão dos “promotores culturais”. A análise do que hoje se denomina formação em ensino superior dirigida a indígenas – que em alguns contextos analíticos é tratado como formação de base étnica (DIDOU e REMEDI, 2011) – começou oficialmente por volta da década de 1970. Pode-se dizer que as áreas de formação em educação, antropologia e linguística foram as principais pelas quais as propostas para os povos indígenas se orientaram. Desde então e até o momento, uma variedade de instituições e/ou programas educacionais foram criados com diferentes objetivos e denominações.

Um setor dessas instituições e programas carrega uma mensagem ambivalente. Pode-se pensar que, a partir do ano 2000, o tema da diversidade étnica aparece na agenda do ensino superior como um campo legítimo através do qual os direitos dos povos indígenas são reconhecidos. Contudo, alguns trabalhos indicam que, na fase pós-indigenista e no auge de um discurso multicultural neoliberal, se abrem espaços no âmbito do Estado para a participação de indígenas em diversas áreas, ao mesmo tempo em que se avança a desapropriação territorial e se reduzem as condições para o exercício da justiça por parte das comunidades (HERNÁNDEZ; SIEDER; SIERRA, 2013).

A maneira pela qual as juventudes indígenas marcadas em sua condição étnica são visibilizadas por parte das políticas no ensino superior tem modalidades específicas de conceituação. Assim, os suportes gerados pelas políticas para o acesso e permanência nesse nível escolar levaram à criação de propostas de ações afirmativas, que têm entre seus principais critérios de identificação: ser falante de uma língua indígena e, em outros casos, além disso, o compromisso de retornar às suas comunidades logo após a conclusão do curso superior. Para atingir os objetivos apontados, foram criadas medidas de assistência, como bolsas e monitorias acadêmicas, outorgadas na presença dos critérios acima mencionados.

Oferecer apoio a essa população é, em muitos casos, acompanhado pela percepção de que esses jovens trariam um “déficit socioeducativo”, algo assim como se eles estivessem em situação de desvantagem ou deficiência, ou de handicap (DIDOU; REMEDI, 2011) para confrontar as exigências que o modelo universitário hegemônico – cada vez mais submetido a vários controles e burocratizações – lhes impõe. Essa premissa nega que a qualidade dos processos de escolarização prévios e suas complexas trajetórias escolares sejam o resultado das condições educacionais que o próprio Estado produziu e que segue mantendo para as comunidades, o que não representariam necessariamente “dificuldades do sujeito” (CORONADO, 2016). Apenas para citar alguns itens que não podem ser imputados como déficit individual, destacamos os processos de aquisição da língua oficial – neste caso o espanhol -, a baixa qualidade dos serviços escolares aos quais tiveram acesso, a ausência de um trabalho contínuo em processos de educação bilíngue, a discriminação ao longo da vida sócio escolar e, com ela, a reprodução de processos de negação de suas afiliações comunitárias e de suas línguas, entre outros aspectos (NAVIA; CZARNY; SALINAS, 2019).

Nesse sentido, algumas pesquisas têm demonstrado que nem todos os jovens querem ser visibilizados por este tipo de programas que têm como parâmetro a identificação étnica nas instituições que assim os promovem. Ao mesmo tempo, consideram que os problemas econômicos e de desenvolvimento de habilidades diversas para o ensino superior são aspectos compartilhados com amplos setores da população juvenil naquele nível escolar (VENTURA, 2012).

Outros estudos que tratam do assunto, mas vinculados a setores minoritários e segregados do ensino superior, como os afro-americanos, afirmam que, para reparar o dano histórico aos sujeitos/comunidades excluídas e situadas às margens sociais, se tornam necessárias ações que vão além da noção de “inclusão”, a qual tem sido invocada também como parte das ações afirmativas no ensino superior (AHMED, 2012). A negação de sujeitos e das comunidades subalternizadas, produto daquilo que no debate decolonial é explicado pela colonialidade do saber, do ser e do poder (WALSH, 2009), tem entre seus efeitos a exclusão e a racialização desses setores. A superação desses processos tão internalizados e estruturantes em nossas sociedades requer perspectivas que ultrapassem o discurso institucional da inclusão e, em alguns casos, se elaboram, assim, propostas de reparação histórica (AHMED, 2012; MBEMBE, 2016). O tema ainda é muito pouco atendido nas universidades e, pelo contrário, mantém a ação afirmativa como remédio paliativo e, ao mesmo tempo, perpetua formas não declaradas que se articulam com práticas discriminatórias e excludentes.

Com a mais recente reforma da Lei Geral de Educação (2019) no México, é apontada a interculturalidade como critério da educação para toda a população e em todos os níveis, para:

promover a convivência harmoniosa entre pessoas e comunidades com base no respeito às suas diferentes concepções, opiniões, tradições, costumes e modos de vida e no reconhecimento de seus direitos dentro de uma estrutura de inclusão social (Art.16, Seção VIII).


Embora essa definição seja direcionada a toda a população e ao sistema educacional nacional como um todo – sendo que a dimensão intercultural nas políticas educacionais anteriores, principalmente no ensino superior, se referia tão somente aos povos indígenas até então – ainda mantém características que entendem o intercultural como "relação harmônica” entre as diversidades. Isso já foi colocado em debate na região, por exemplo, através da diferenciação entre interculturalidade funcional e interculturalidade crítica (TUBINO, 2007), assim como pelas demandas de organizações indígenas que já levantaram outras formas de entender as relações entre as comunidades e o Estado-nação (WALSH, 2009).


3. Metodologia e contexto universitário da pesquisa

Do ponto de vista da pesquisa qualitativa, neste artigo são recuperados os significados e sentidos que estudantes indígenas do ensino superior atribuem ao conceito de interculturalidade em sua passagem pela universidade. Para isso, foram realizados dois grupos focais (YAPU, 2014), nos quais participaram estudantes de duas turmas da LEI, que no momento da coleta de informações estavam cursando o sexto e oitavo semestres. Da mesma forma, foram recuperadas notas e reflexões que as autoras desenvolvem, a partir de preocupações de pesquisa6, sobre os processos de vínculos acadêmicos que se fazem presentes na referida licenciatura.

Os grupos focais foram realizados em maio de 2019, em uma sala da biblioteca da UPN. Compareceram ao primeiro grupo dez estudantes do oitavo semestre e, ao segundo, cinco estudantes do sexto. Ambos os grupos trabalharam cerca de uma hora e meia cada um. Cada grupo focal contou com uma coordenadora e dois observadores. As perguntas foram apresentadas em uma tela, a fim de que os estudantes pudessem, enquanto iam respondendo, avançar na reflexão dos tópicos levantados. A temática enfocou o relacionamento com os pares e integrava as seguintes perguntas: “Como você vê a relação entre os estudantes na LEI? Que coisas você acha positivas e quais negativas?”; “Como é a relação com os estudantes de outros cursos da UPN?”; e “Você acha que na LEI se produzem relações de interculturalidade, junto aos estudantes de outras graduações? Como você as entende ou definiria?”.

As sessões foram transcritas e revisadas mediante análise de conteúdo, buscando recuperar o discurso dos estudantes. Neste artigo, é apresentada a análise das questões referentes às perspectivas que eles têm sobre o que se denomina interculturalidade. O exercício de reflexão gerado no grupo focal também faz parte do que, em algumas perspectivas qualitativas-interpretativas, é sustentado como possibilidade de uma reflexividade compartilhada, no entendimento de que o que é produzido vai se entrelaçando nos e entre os discursos construídos nesse processo de diálogo (AMEIGEIRAS, 2007).

Como mencionamos, os interlocutores deste trabalho são estudantes da Licenciatura em Educação Indígena. Este programa é ministrado de forma presencial na UPN, na Unidade Ajusco, na Cidade do México desde o ano de 1982.

A LEI é um dos primeiros programas na América Latina destinados à formação de profissionais indígenas. No início, o curso era voltado para professores e para quadros diretivos da educação pré-escolar e das séries iniciais de escolas indígenas que já se encontravam trabalhando no subsistema de educação indígena, falantes de uma língua indígena, sem estudos de graduação, contando com uma "bolsa por comissão" por parte das autoridades educacionais estatais, o que autorizava sua concessão pela entidade de origem para poder estudar na Cidade do México com o pagamento regular de seus salários. Com o passar do tempo, e após diferentes reformas educacionais, essas autorizações foram canceladas e o perfil dos estudantes mudou.

Nas últimas 15 turmas, jovens indígenas egressos do ensino médio começaram a se incorporar, nem todos falantes de uma língua originária e com pouca ou nenhuma experiência de ensino. Depois de três planos de estudo (1982, 1990 e 2011), e de acordo com o último em vigor, a LEI visa a formar profissionais da educação indígena em áreas como educação bilíngue, a educação comunitária, a escola e a formação de professores em contextos de diversidade, tanto rurais como urbanos (CZARNY; SALINAS, 2016). Embora este programa carregue o rótulo de "indígena" e para o qual o perfil de ingresso indique, entre seus critérios, pertencer a uma comunidade, falar uma língua originária ou estar disposto a aprendê-la, também em outras graduações da UPN se identifica a presença de estudantes com diversas afiliações étnicas e linguísticas, que não são levadas em consideração.

A composição atual dos estudantes da LEI mostra mudanças em relação à idade e ao gênero: diferentemente das primeiras gerações, compostas principalmente por professores e quadros diretivos, quase todos homens, com idade igual ou superior a 30 anos, agora são estudantes mais jovens, muitos deles recém-formados do ensino médio e, em sua maioria, mulheres.

Com mais de trinta turmas de graduados, a maioria retornou às suas comunidades para trabalhar no campo educacional e em outros projetos, e outros se empregarem em agências como a Direção Geral de Educação Indígena (DGEI), o Instituto Nacional de Línguas Indígenas (INALI), a Coordenação Geral de Educação Intercultural Bilíngue (CGEIB), o Instituto Nacional dos Povos Indígenas (INPI), em instituições de formação de professores e de ensino médio e superior, além de organizações não-governamentais, entre outras.

Ser estudante indígena no ensino superior implica enfrentar, entre outros desafios, diferentes obstáculos econômicos para acessar e permanecer nas instituições. A maioria dos egressos do ensino médio que provêm de povoados e comunidades indígenas fora da Cidade do México e estudam na LEI trabalham em meio período e até em jornadas de período integral a fim de cobrir suas despesas. Alguns poucos contam com o apoio de suas famílias e quase todos procuram conseguir uma bolsa enquanto terminam os estudos.

A denominação de Licenciatura em Educação Indígena tem sido objeto de debate e análise por parte dos docentes e estudantes em diferentes momentos. Para alguns, esse termo ressalta a marcação étnica como um rótulo que fortalece a discriminação estruturante, mas que, ao mesmo tempo, resulta ser também uma maneira de reconhecer – ainda que sob uma categoria como a de "índios" imposta pelo regime colonial – a existência, presença e reivindicação dos povos originários. Em algumas ocasiões, foi questionado o motivo do nome do programa não incluir a palavra intercultural, situação para a qual o argumento central tem sido o atendimento educacional às comunidades e povos indígenas, e não corresponder a uma política que pudesse ser transitória. Embora o tema da educação intercultural bilíngue seja um assunto referido e analisado nas diferentes linhas formativas do curso, os conteúdos e as formas de abordá-lo são diferenciados.


4. Ressonâncias e diferenças frente à interculturalidade

Analisando o que foi expressado nos grupos focais, notamos que, quando introduzimos aos estudantes o tema da interculturalidade, eles evocam uma multiplicidade de situações ou problemas que nem sempre estão relacionados ao que o termo tenta enunciar, pois ao pretender destacar a “relação entre culturas", de uma perspectiva geral sobre o assunto, acreditamos que acaba tendo um viés culturalista. Sustentamos neste trabalho que a noção de interculturalidade, entendida dessa maneira, não nos permite dar conta das complexas interações que ocorrem entre estudantes universitários, indígenas e não indígenas, as quais tentamos aprofundar neste artigo.

 Constatamos que, quando o termo é enunciado, faz-se referência a elementos que dizem respeito não apenas a sua significação, mas também a reflexões sobre problemas vinculados com seus processos formativos e formas de interação com os outros, consigo mesmos e com a instituição, responsáveis ​​por uma diversidade de experiências e situações vividas na universidade. A seguir, apresentamos algumas reflexões geradas a partir do conceito de interculturalidade, referentes às interações presentes entre estudantes indígenas e não indígenas.


4.1. A relação dos estudantes da LEI com estudantes de outros cursos de graduação da UPN

Destacamos que a interculturalidade, enquanto conceito em si, centrado na dimensão da relação entre culturas, fica à margem da possibilidade de explicar processos de tensão e conflito e, em alguns casos, relações de poder, que são postos em jogo entre visões e modos de ser, estar e conhecer na UPN.

Para alguns estudantes, há pouca relação com colegas matriculados em outros cursos, quem, apontam, os olham com desconfiança: "Não tivemos tanto relacionamento porque também acredito que eles nos veem de uma forma, que dizem: ‘– Ah, eles pedem recursos para isso, pedem para aquilo, pedem apoio para isso, para outro tipo de coisas...’” (GF6: 650-653). Pareceria que marcar a identidade dos estudantes indígenas como diferentes, como ocorre com a implementação de políticas de ação afirmativa, afeta a interação com outros estudantes. O fato de ser beneficiários de assistência específica produz essa distância, como ocorre quando se diz que fazem uso dos auxílios de modo inadequado, o que faz parte da reflexão da mesma estudante: “Também parece, assim, que isso (os direitos relacionados às políticas de ação afirmativa) causa choques ou conflitos, e que se constrói um estereótipo de nós [...]” (GF6: 653-654). Nessa perspectiva, a interculturalidade deixa de dar conta dos estereótipos construídos nas instituições a partir dessas ações afirmativas, ao assumir que os estudantes não precisam desses suportes, ou que possam estar simulando requerê-los.

Isso incide no âmbito do direito que os estudantes indígenas têm de permanecer na universidade em condições de igualdade e equidade, o que, como vemos, enfrenta a dificuldade ou resistência daqueles que tentam desconhecê-los. Percebe-se, portanto, que se fortalecem formas de discriminação que enfraquecem não apenas as interações entre os estudantes na universidade, mas também em alguma medida tampouco são reconhecidas as necessidades de estudantes não indígenas, que também podem precisar de programas de apoio para seus estudos.

 Um estudante sustenta que, ao interagir com companheiros de outros cursos da UPN, embora exista, por um lado, algo que se aproxima de uma ideia romântica de interculturalidade, também há discriminação, por outro lado. A esse respeito, ele apontou:

Nos levamos bem entre colegas, certo? Mas, em outras palavras, acho que sim, a discriminação está sempre presente, ainda que não de forma direta, mas indiretamente [...] eles nos criticam muito [...] [eles dizem] que nós indígenas somos os que não tomamos banho [...] (GF8: 576-584).


 Paradoxalmente, através do depoimento acima, percebe-se que a interculturalidade é considerada de modo positivo e negativo. A reflexão que os estudantes realizam sobre o fato da interculturalidade remeter à presença e suposta relação entre as diversidades, sinaliza que existem, ou prevalecem, práticas de discriminação que permeiam a instituição e dificultam as interações dos estudantes de diferentes origens.

 Apesar disso, os estudantes da LEI conseguiram se estabelecer como um grupo estável em comparação com os estudantes de outros programas. No entanto, o fato de se apresentarem diante dos outros como um "grupo unido" gera tensões, já que são questionados por serem "fechados", “valentões”, e inclusive definidos por sua condição social, como pessoas que "são de comunidade”, como “pobres”.

A partir da percepção dos estudantes da graduação, também identificamos que uma visão introjetada prevalece, como uma forma de essencialismo sobre o “verdadeiramente indígena”, o que revela a existência de uma disputa de poder sobre a alteridade. Assim, os estudantes relatam que nos espaços de convívio com outros jovens das diferentes carreiras universitárias, estão presentes diferentes modos de agir y estar com os amigos, de se reunir em casa ou na balada. (GF6, 730-738).

O exposto acima se relaciona a práticas socioculturais de interação que se referem não apenas a comunicar-se, mas também a formas de habitar e de se posicionar consigo mesmos e com outras pessoas na universidade, aspecto que é aprofundado no seguinte relato:

[...] Aqueles de nós que viemos de comunidades fomos criados de uma maneira muito diferente daqueles que vêm daqui, da cidade [...] é que aqueles de nós que viemos de comunidades nos identificamos entre nós e nos reunimos, e nos entendemos, e com os das cidades, não, porque às vezes os espaços de convivência não são os mesmos, os temas de conversação não são os mesmos, os interesses não são os mesmos (GF6: 722-731).


O testemunho refere-se ao fato de que entre os estudantes provenientes de formas de socialização comunitária, existem experiências prévias que, em alguns casos, lhes permitem interagir e compreender um ao outro, em comparação com aqueles que "vêm da cidade", com os quais a interação e a comunicação se tornam mais complexas. Este relato, recorrente entre os estudantes, também remete a um modo internalizado sobre quem é indígena, usando a oposição rural/comunidade versus urbano/cidade, concepção presente e construída também a partir de diferentes políticas públicas e que é possível que os estudantes acabem internalizando-a como própria.


4.2. A relação entre estudantes da LEI

A maioria dos estudantes entrevistados procede de comunidades indígenas de várias regiões do país, o que lhes permitiu durante seus estudos passarem por processos de diálogo e confrontação com respeito às práticas socioculturais de seus contextos de origem. A proximidade do trabalho cotidiano na LEI os convida a interagir e a reconhecer as diferenças, mas esse reconhecimento nem sempre se apresenta como uma interação harmoniosa, pois como alguns participantes dos grupos focais apontaram, pode suscitar “choques (e) confrontos [ ...]” (GF6: 660: 661).

Desde a introdução no debate teórico e acadêmico de posturas mais críticas para reconhecer os processos históricos e sociais das comunidades, como as perspectivas da interculturalidade crítica e o tema da descolonização, os estudantes sinalizam aspectos que não se referem apenas ao relacionamento com pares não indígenas, mas também às relações entre os próprios estudantes indígenas. A esse respeito, eles mencionaram: "é difícil para nós sermos interculturais ou abertos a outros espaços" (GF6: 664-655); isso mostra que é difícil para eles se abrirem para “outros”, mesmo quando esses “outros” também procedem de comunidades indígenas. Outro estudante comentou:

sendo de uma comunidade [...] invejamos o trabalho ou o conhecimento que cada um possui, muitas vezes preferimos fazê-lo sozinhos do que compartilhá-lo com os demais colegas que são de outras, de outros lugares, e que talvez tanto eles desejam saber o que conhecemos quanto nós queremos saber, mas muitas vezes nos fechamos e dizemos não, porque esse conhecimento é meu e não posso lhe dar (GF8: 687-694).


Isso pode revelar formas que convidam os estudantes a manterem seus conhecimentos e práticas para si mesmos, juntamente com uma maneira de resistirem a tornar visível o que é considerado como próprio. Portanto, o diálogo com outros colegas, embora provenientes de povoados diversos, também pode gerar tensões nas interações entre estudantes indígenas.

Ao mesmo tempo, são reconhecidas interações em termos de companheirismo, ou mesmo amizade, e observamos que esses laços se aprofundam quando a troca de conhecimentos é proposta, como no seguinte depoimento:

[...] podemos conversar sobre plantio e todos teremos uma visão diferente de como se faz em cada povoado ou região, inclusive, mas ninguém vai querer sobrepor seus conhecimentos em cima do outro, a gente fala: ‘ah, é interessante!’, e somos fascinados pela narrativa dos outros colegas de turma (GF8: 767-777) [...], nos respeitamos como companheiros e prestamos atenção um no outro, porque precisamos saber descobrir, entender e, sim, é lindo (GF8: 810-814).


Uma possível interpretação das interações em um nível mais conflitivo pode estar relacionada às histórias de discriminação interétnica que também se fizeram presentes nos relatos dos estudantes; ou também às formas de autovalorização de seus próprios conhecimentos, e não os dos outros.

 Da mesma forma, entre os estudantes da graduação, percebe-se a presença de um imaginário vinculado ao que alguns estudantes chamam de “etnocentrismo”, segundo o qual vão se demarcando quem são os “verdadeiros estudantes indígenas” com direito a estar na LEI. Essa postura pode gerar diferenciações que enfatizam tipos ideais de estudantes: assim, fala-se daqueles que: "vêm ou não vêm das comunidades", "vêm de várias lutas (sociais)", "são professores de educação indígena", entre outras maneiras de nomear o pertencimento ao grupo. Por trás dessas percepções, tornam-se visíveis posições que demonstram não apenas o interesse em estudar no programa, mas também em participar de suas decisões e de se vincular de certa forma com seus pares e com a instituição. Os estudantes estão cientes dos problemas que enfrentam ao interagirem uns com os outros e tentam responder de diferentes maneiras, que vão desde exercitar o diálogo em torno às práticas socioculturais em suas comunidades até adotar uma perspectiva crítica sobre as problemáticas com que precisam lidar.

[...] nós nos entendemos um ao outro, entre as diferentes culturas, sim, entendemos como se pede em casamento uma mulher triqui, ou como se faz um velório mazahua7, eu não sei, nós entendemos isso, mas então muitas críticas vêm às vezes de colegas daqui, da cidade, que estão na licenciatura, que não entendem por que gastamos tanto num velório, por que gastamos tanto dinheiro num casamento e eles dizem, ‘não, é que se os do interior não gastassem em tanto [...]’. A gente diz: ‘mas é que isso é dinheiro dos povoados [...]’ (GF6: 775-783).


Observa-se que existem diferenças entre os estudantes da LEI com respeito às práticas socioculturais e econômicas, que se pode explicar parcialmente pelo fato de que nos últimos anos a composição de estudantes no curso tem mudado, à medida que cada vez mais ingressa um maior número de jovens não indígenas. Assim, manifestaram-se tensões que têm a ver com decisões comunitárias, por exemplo, de despesas para festas que, para aqueles que não provém de comunidades, não costumam ser compreendidas.

Outra maneira com a qual os estudantes da licenciatura tentam enfrentar suas diferenças é quando procuram reconhecer as problemáticas vivenciadas no interior das comunidades, assumindo uma postura crítica, tal como aponta um estudante: "[...] ajudamos a acabar com os essencialismos, ao não dizer aos colegas que nos povoados tudo é bonito” (GF6: 768-772). Isto é, os mesmos estudantes reforçam que, no debate entre eles, procuram expor as tensões e discriminações internas persistentes nas comunidades, resultantes da hierarquização e diferenciação social. Ou seja, entre os jovens não se nega que as comunidades também enfrentam situações próprias de conflito, o que se contrapõe ao que eles reconhecem como uma imagem romântica ou harmônica presente em muitos setores universitários sobre a vida nas comunidades.

A crítica das perspectivas ideais de interculturalidade, como relações de respeito e apoio entre os diversos, também se manifesta quando os estudantes questionam a falta de políticas interculturais – nem sequer funcionais – por parte da universidade, o que podemos apreciar na afirmação a seguir:

[…] a interculturalidade que se dá entre nós ajuda-nos a perceber que, mais tarde, possamos dizer à universidade como é que nós, sim, nos respeitamos, embora sejamos de culturas diferentes, e falta que a cultura ocidental nos respeite (GF6: 793-797).


O debate sobre a interculturalidade gerado entre os estudantes não apenas os coloca em uma reflexão mais profunda sobre o conceito, mas também os faz pensar em vínculos com colegas não indígenas, com seus pares indígenas, bem como o que poderia ser debatido como interculturalidade em termos de política universitária.


Considerações finais

A educação intercultural na região da América Central e do Sul permitiu abrir o que foi negado até muito tarde no século XX: a presença, existência e contribuição dos povos indígenas para as nações em que vivem. Ao mesmo tempo, o conceito tem sido tema de diferenciação quando aplicado a partir do Estado ou de organizações e comunidades indígenas (WALSH, 2009). Na primeira versão – quando adotado pelas políticas do Estado –, não tem refletido o sentir das comunidades e, principalmente, o debate sobre injustiças culturais e sociais foi adiado, promovendo uma perspectiva limitada. Embora o postulado de uma educação intercultural para todos também esteja presente em várias agendas educacionais, particularmente no México, ela ainda não conseguiu permear os diferentes níveis e modalidades do sistema nacional.

Encontramos neste trabalho que, na reflexão e produção de sentidos construídos coletivamente nos grupos focais, os estudantes, ao analisarem o tema da interculturalidade, identificam uma diversidade de interações. As posições assumidas tendem a evocar situações ou acontecimentos que mostram as marcas de diferenciação presentes tanto no interior como fora da licenciatura, assim como visibilizar conflitos, em alguns casos intensificados pelas ações afirmativas que fortalecem as representações sobre os indígenas como sujeitos em desvantagem. As abordagens dos jovens não buscam definir se a interculturalidade é "relação entre culturas" ou "rever e fortalecer o que é próprio para depois se abrir para o exterior", mas sim explicar processos multifacetados vinculados às assimetrias, desigualdades e discriminações presentes nos processos escolares e de interação social.

Ao refletir sobre o tema da interculturalidade na UPN, os estudantes se referem a relações de poder, que em um nível remetem a relações e percepções intersubjetivas e, em outro, a um modo de se situar como membros de um coletivo sob a marca do indígena. Nesse sentido, as ações afirmativas parecem fortalecer as diferenças reconhecidas sob o rótulo de indígena em um programa como a LEI.

Ao mesmo tempo, o tema da interculturalidade na universidade convida a indagar sobre as maneiras pelas quais os estudantes se vinculam e podem se vincular a diferentes atores, aspecto que por si só provoca uma constante reflexão e autoposicionamento em contextos de diversidades e desigualdades. Assim, quando a interculturalidade é entendida por meio de uma ideia romantizada do indígena, ou do étnico, ou quando se reduz apenas à esfera cultural e não reconhece outras dimensões, como as sociais, históricas e políticas, favorece uma apropriação mais simplista, sob a ótica do dever ser e produz novas tensões e conflitos, complexificando as interações dos estudantes consigo mesmos, com seus pares e com a instituição.

Diante dos atuais cenários de crise socioambiental, sociopolítica e sociocultural, e a visibilização das discriminações e dos racismos, o tema da interculturalidade exige novas perguntas para reconstruir os tecidos e relações socionaturais nas nações latino-americanas. Nesse sentido, algumas organizações indígenas e coletivos de professores não mais propõem a interculturalidade para visibilizar suas demandas e necessidades como população. No campo educacional, ressurgem, assim, outras conceituações, tais como comunalidade, educação comunitária, educação autônoma, educação própria, entre outras formas que mostram a intenção de construir, a partir das próprias comunidades, novas formas de conceber a educação dos povos indígenas. Entre os desafios, estão o de como pensar o novo cenário da chamada educação indígena e intercultural desde uma perspectiva ética, política e epistêmica, e o de como reconhecer os atores centrais desses processos, neste caso, estudantes indígenas, para uma reconfiguração de programas e instituições de ensino superior.



Referências

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SOBRE AS AUTORAS


CECILIA NAVIA ANTEZANA é coordenadora do curso de Doutorado em educação e diversidade da Universidade Pedagógica Nacional, coordenadora do Seminario Formación de Profesionales de Educación Indígena e membro do Cuerpo Académico Diversidad, ciudadanía y educación.

E-mail: ceeeci@yahoo.com


GISELA SALINAS SÁNCHEZ é coordenadora do Seminario Formación de Profesionales de Educación Indígena e membro do Cuerpo Académico Diversidad, ciudadanía y educación.

E-mail: gsalinas@upn.mx

GABRIELA CZARNY KRISCHKAUTZKY é coordenadora da linha de pesquisa Concepciones, políticas y prácticas en contextos multiculturales do curso de Doutorado em educação e diversidade da Universidade Pedagógica Nacional e do Seminario Formación de Profesionales de Educación Indígena e membro do Cuerpo Académico Diversidad, ciudadanía y educación.

E-mail: gacza_2006@yahoo.com.mx





Recebido em: 27.02.2020

Aceito em: 09.04.2020











1 Agradecemos a Ricardo Sant'Ana Felix dos Santos, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense pela tradução ao português do presente artigo.


2 No texto, buscou-se integrar uma redação inclusiva de gênero. Para facilitar sua fluência, preferimos usar palavras como estudantes, em vez de alunas e alunos, entre outros recursos que facilitam a leitura e inclusão de todas e todos.


3 A educação básica, no México, inclui os níveis pré-escolar, primário e secundário, estes dois últimos coincidem com o ensino fundamental I e II do sistema educacional brasileiro.

4 INEGI: Organismo reconhecido internacionalmente para produção de dados estatísticos da população. Ele faz a compilação de dados para toda a população, a cada 10 anos, embora também colete dados sobre amostras da população em períodos mais curtos, por exemplo a cada cinco anos, pesquisas que chama de intercensais.

5 A reformulação, em 2001, da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, em seu artigo 2º., indica que: “(...) a nação mexicana é única e indivisível, e possui uma composição pluricultural sustentada originalmente por seus povos indígenas, que são aqueles descendentes de populações que habitavam o território atual do país no início da colonização e que conservam suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas (...)”. Com a mudança de governo, em 2019 a Lei Geral de Educação (LGE) foi reformada e o artigo 56 afirma que “o Estado garantirá o exercício dos direitos educacionais, culturais e linguísticos a todos as pessoas, povos e comunidades indígenas ou afro-mexicanas, migrantes e diaristas rurais. Contribuirá para o conhecimento, aprendizagem, reconhecimento, valorização, preservação e desenvolvimento tanto da tradição oral e escrita indígena quanto das línguas indígenas nacionais como meio de comunicação, de ensino, objeto e fonte de conhecimento”.

6 Referimo-nos às preocupações de pesquisa desenvolvidas nos projetos: “Alcances da educação intercultural e bilíngue em práticas docentes e escolares na educação básica, 2019-20”, a cargo de Gabriela Czarny; "Experiências formativas de formadores de profissionais da educação indígena", por Cecilia Navia, e "Formadores de professores e profissionais indígenas. Docência no ensino superior”, do qual participam as três autoras do presente artigo.

7 NDT: Triqui e Mazahua referem-se aos nomes de dois povos indígenas no México.

Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.13, p.610-636, maio/ago. 2020.