JOVENS INDÍGENAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO GRANDE DO SUL: movimentos de apropriação e re-existência



Michele Barcelos Doebber

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Tramandaí, RS, Brasil


Maria Aparecida Bergamaschi

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Porto Alegre, RS, Brasil


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i13.40865



RESUMO

O crescente acesso de indígenas ao ensino superior, motivados pela busca de apropriação de ferramentas das sociedades não indígenas para a defesa de seus direitos, territórios e organização social, provocou, na última década, a consolidação de políticas de ingresso nas universidades públicas brasileiras por meiode cotas e/ou de outros programas específicos de acesso. Neste trabalho, apresentamos reflexões decorrentes de pesquisa de doutorado, a qual, através de uma metodologia colaborativa de inspiração etnográfica, cartografou movimentos do estar indígena na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bem como as repercussões dessa presença na instituição. Observamos que, ao chegarem à universidade, os jovens indígenas re-criam esse espaço, apropriando-se do universo acadêmico, dos conhecimentos ocidentais e, ao mesmo tempo, re-existem através de uma presença disruptiva que se expressa na linguagem, nas diferentes temporalidades, na lógica comunal, no compromisso com a comunidade e na re-existência epistêmica. Desse modo, o estar sendo indígena universitário dá-se na fronteira entre dois universos opostos e complementares. Nesse lugar, habita a potência do pensar indígena que, atuando entre dois sistemas de pensamento (da ciência ocidental e o próprio), pode causar rupturas na episteme hegemônica.

Palavras-chave: Indígenas acadêmicos. Modos de re-existência. Universidade. Interculturalidade.



YOUNG INDIGENOUS IN FEDERAL UNIVERSITY OF RIO GRANDE DO SUL: movements of seizing and re-existing



ABSTRACT

The increasing access of indigenous people to higher education, motivated by the search for seize tools from non-indigenous societies to be used in the defense of their rights, territories, and social organization, led in the last decade to the consolidation of admission policies in public universities through quotas and/or other specific access programs. Here we present reflections resulting from a doctoral research, which, through a collaborative methodology of ethnographic inspiration, mapped movements of indigenous living at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS), Brazil, as well as the repercussions of this presence in the institution. We note that, upon arriving to the university, young indigenous people re-create this space, seizing the academic universe of Western knowledge and, at the same time, re-exist through a disruptive presence that is expressed in language, in different temporalities, in communal logic, in commitment to the community, and in epistemic re-existence. Thus far, living, being an indigenous university student, takes place at the border between two opposite and complementary universes. In this place lives the indigenous power of thinking, acting between two systems of thought (of western science and itself), can cause ruptures in the hegemonic episteme.

Keywords: Indigenous students. Modes of re-existence. University. Interculturality.


JÓVENES INDÍGENAS EN LA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL: movimientos de apropiación y reexistencia


RESUMEN

El creciente acceso de indígenas a la enseñanza superior, motivados por la búsqueda de apropiación de herramientas de las sociedades no-indígenas para la defensa de sus derechos, territorios y organización social, ha provocado, en la última década, la consolidación de políticas de ingreso en las universidades públicas brasileñas a través de cupos y/o de otros programas específicos de acceso. En este trabajo presentamos reflexiones resultantes de investigación doctoral, la cual, a través de una metodología colaborativa de inspiración etnográfica, cartografió movimientos del estar indígena en la Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil, así como las repercusiones de esa presencia en la institución. Observamos que, cuando llegan a la universidad, los jóvenes indígenas recrean ese espacio apropiándose del universo académico, de los conocimientos occidentales y, al mismo tiempo, re-existen a través de una presencia disruptiva que se expresa en el lenguaje, en las diferentes temporalidades, en la lógica comunal, en el compromiso con la comunidad y en la re-existencia epistémica. De ese modo, el estar siendo indígena universitario se lleva a cabo en la frontera entre dos universos opuestos y complementarios. En ese lugar habita la potencia del pensar indígena que, actuando entre dos sistemas de pensamiento (el de la ciencia occidental y el propio), puede causar rupturas en la episteme hegemónica.

Palabras-clave: Estudiantes indígenas. Modos de re-existencia. Universidad. Interculturalidad.



Primeiras palavras

Ao ocupar o espaço da universidade, estamos também nos reafirmando, e lutando para que estes espaços também possam compreender, dialogar e respeitar nosso movimento, além de pautarmos em sala de aula a questão indígena e dialogar com os conhecimentos de cada área do conhecimento com o jukre/pensamento Kaingang. Muitas vezes pensei e até mesmo hoje ouço alguns parentes dizendo: “tenho o desejo de adquirir conhecimento aqui e depois voltar para minha aldeia e aplicar este conhecimento na minha comunidade”. Ou até mesmo: “tenho o desejo de ser alguém na vida”. Quando na verdade é uma via dupla de estratégias, pois os conhecimentos tradicionais são tão importantes, ou até mais quanto estes que a universidade nos transmite. Na verdade, nos apropriamos destes conhecimentos na defesa de nosso povo, e como ser alguém na vida? Se você já é, enquanto Kaingang, com toda uma trajetória e história de resistência. Passei a refletir tudo isso no decorrer desta caminhada (DOMINGOS, 2016, p. 49-50).


A potência da fala de Angélica Domingos, kaingang assistente social diplomada pela UFRGS, convoca-nos a refletir sobre o significado da presença indígena nas universidades brasileiras hoje, tanto na vida desses coletivos como das próprias instituições universitárias. Em 2009, havia cerca de 8 mil indígenas em cursos de ensino superior no Brasil. Apenas 7anos depois, com o incremento das políticas de ações afirmativas edo advento da lei de cotas, esse número cresceu 6vezes chegando a 49 mil estudantes, segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça com base no Censo da Educação Superior1.

Nesse sentido, a presente pesquisa observou que, ao chegarem àuniversidade, jovens indígenas (re)criam esse espaço, apropriando-se do universo acadêmico, dos conhecimentos ocidentais e, ao mesmo tempo, re-existem por meio de uma presença disruptiva.

Vale lembrar que a noção de re-existência (ALBÁN, 2012) torna-se central neste estudo, posto que serve para compreender as formas com que os indígenas universitários recriam as suas existências em condições adversas, tentando superá-las ao se apropriarem do espaço acadêmico pela sua presença potente, de formas criativas de ser e estar, ancorada em relações de solidariedade com o coletivo.

No decorrer da pesquisa, identificamos que a presença indígena na universidade revela o predomínio do “estar” que se encontra e se choca com a perspectiva do “ser alguém” (KUSCH, 1999) na cidade e no ambiente universitário. Esses estudantes se deparam com um mundo ainda pouco conhecido, com uma rotina que exige um tempo-espaço objetivo e compartimentado e com uma linguagem culta que se expressa na língua do colonizador e é centrada na escrita.

Assim, inserem-se em uma sociedade marcada pelo afastamento da natureza, pela ordenação e pela limpeza, um lugar onde muito se fala e pouco se escuta, onde o conhecimento se expressa pela via do intelecto e da racionalidade, em que se incentiva a competição e o fazer constante, restringindo espaços vazios e tempos livres. Nas universidades, há uma busca incessante por alguma coisa que ninguém sabe ao certo o que é2.

Oposta a essa nova realidade há os territórios indígenas, nos quais o tempo é circular e respeita os ciclos e as pulsações da vida. Neles há espaço para o mero estar, a contemplação e a interação com/na natureza é vital. Os conhecimentos são produzidos e transmitidos pela oralidade, com predomínio da escuta, do fazer e do fazer junto, agregando ao pensamento racional a emoção e o aprender com todo o corpo.

É no jogo entre essas diferentes racionalidades e emocionalidades que os modos de estar indígena vão se apropriando dos modos de ser acadêmico. Essa conexão entre o estar e o ser conjuga as raízes culturais, cosmológicas, epistêmicas e afetivas do universo kaingang e guarani (povos majoritários na UFRGS) com a lógica cartesiana, livresca e erudita da universidade e, coexistindo, conformam o estar sendo indígena desses discentes.

Por meio desta pesquisa, foi possível identificar algumas dimensões do estar sendo indígena que tensionam a universidade. Os indígenas universitários experimentam o (des)encontro com as lógicas de ser e estar nesse espaço e a ambiguidade na relação de aproximação e de afastamento, na qual a conexão com a vida é que define sobre permanecer (ou não) na academia.


  1. Caminhos percorridos: contornos da pesquisa

Aqui na cidade tudo se pesquisa. Nós não viemos na cidade para pesquisar e sim para conviver. Quando você pesquisa, se confunde. Quando você convive, erra, mas também acerta. Dialogar e vivenciar é diferente de pesquisar. Se você vai para pesquisar, é um pesquisador. Se vai para conviver, é da família. Para mim, guarani, a pesquisa não é a coisa correta. Se você fica um pouco, eu vou te responder as questões da pesquisa. Se vem para ficar uma semana, eu vou brincar, levar na casa de reza, fumar junto. Você vai conviver. Se você faz pesquisa, acha que aprendeu, mas não aprendeu (VHERÁ POTY, 09.04.2014).


É para conviver que Vherá Poty, intelectual e líder mbyá guarani, convida a todos. Essa fala foi inspiradora para os caminhos metodológicos que tomamos na pesquisa. Ela foi proferida durante um encontro de formação para o corpo técnico, docente e discente da universidade, além de ter contado com a participação de professores da educação básica de escolas de Porto Alegre. A proposta era vivenciar um dia junto dos indígenas na Tekoá Pindó Mirim (ITAPUÃ/VIAMÃO).

Tratava-se, portanto, do estar junto: conviver, contemplar, aceitar o que é, acompanhar os movimentos e escutar aquela realidade.

Desse modo, a pesquisa que ora apresentamos se assenta na convivência com indígenas universitários a partir do lugar que ocupamos: pesquisadoras e servidoras, técnica e docente, da UFRGS implicadas com os processos vividos pelos estudantes nesse espaço e nas suas comunidades de origem. Trata-se de uma pesquisa multissituada, ou seja, realizada em diferentes espaços, tanto dentro da instituição em diversos momentos de convívio, quanto em saídas de campo em terras indígenas. Além disso, buscou-se desenhar uma cartografia dos movimentos da presença indígena na relação com a universidade.

Nesse sentido, nossa disposição metodológica é a de compreender os movimentos dessa presença a partir de uma postura sensível, de escuta e de acompanhamento, que se manifesta no estar-junto implicado com os processos vividos pelos estudantes. Para acompanhar e registrar o ir se fazendo da política afirmativa, buscamos inspiração metodológica na cartografia, na etnografia e na pesquisa colaborativa, caminhos que permitiram uma compreensão ativa, a qual interpreta e atua na realidade em coprotagonismo e interaprendizagem com os indígenas universitários.

Segundo Rolnik (2014), “a cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (p. 23). A pesquisa cartográfica, enquanto registra a processualidade por meio de um pensamento de acompanhamento, busca uma compreensão ativa que participa, interpreta e modifica a realidade. “Se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros” (ROLNIK, 2014, p. 23).

Nesse sentido, o pesquisador cartógrafo não segue um protocolo normalizado, mas se utiliza de procedimentos que devem ser inventados em função daquilo que pede o contexto em que se encontra. Assim, a cartografia nos permitiu utilizar as mais variadas fontes: oralidade, conversas, imagens, vídeos, intuições, sensações. Da mesma forma, a teoria não está dada a priori, mas “se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele [o pesquisador] acompanha” (ROLNIK, 2014, p. 65), apropriando-se de diversas fontes e campos do saber, conforme o dado da realidade exige e a sensibilidade do pesquisador permite.

O pesquisador cartógrafo não quer explicar nem revelar algo, pois não há nada escondido, camuflado. Nesse sentido, o seu ofício é dar vazão às “intensidades buscando expressão” (Idem, p. 66), às vozes que pedem passagem. Assim, ele se lambuza na convivência, deixa-se afetar no encontro com o outro, mergulha na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventa pontes de linguagem para fazer a travessia entre os mundos.

Inspiradas no método cartográfico, nós buscamos registrar o ir se fazendo da política de ingresso indígena na UFRGS, acompanhando os sujeitos que a vivenciam dentro e fora da universidade. A processualidade, característica da cartografia, permitiu desenhar uma trajetória de mudanças e de permanências e, ao mesmo tempo, intervir na tentativa de mudar as realidades. Permitiu-nos, ainda, acompanhar os movimentos, acolhendo o que se apresentava como parte da complexidade da pesquisa como as contradições, as ambiguidades e os conflitos.

A pesquisa etnográfica em educação requer um trabalho intensivo e participativo, no qual a interação criada pode fazer com que o pesquisador se transforme, em alguns momentos, em um membro do grupo (BERGAMASCHI; SOUZA, 2016). Ela permite flexibilidade para que os percursos investigativos possam ser revistos no decorrer do trabalho. Essa é uma metodologia adequada aos interesses microscópicos, posto que permite olhar de perto o fenômeno e mergulhar nas profundezas do tema investigado.

Desse modo, a inspiração etnográfica expressou-se no registro de observações, desde um lugar mais afastado dos acontecimentos até o estar-junto na universidade e em algumas terras indígenas. Visitar a terra indígena permitiu observar como as comunidades se mobilizam para enviar os seus membros ao ensino superior e se esforçam para compreender essa etapa do ensino.

Buscamos aportes também na metodologia colaborativa (RAPPAPORT, PACHO, 2005; PODESTÁ, 2012), assentada na conversação interétnica e no diálogo dos saberes. Uma postura que visa à interaprendizagem entre os indígenas e os não indígenas e a construção de pontes e de compreensões conjuntas por meio do exercício de coprotagonismo (PODESTÁ, 2012).

Desse modo, dispomo-nos a um pensar com, construindo a pesquisa a partir de reflexões compartilhadas com indígenas da UFRGS. Nesse movimento, destacamos as saídas de campo para algumas terras indígenas, nas quais contamos com a colaboração ativa de estudantes que atuaram como mediadores entre nós e a comunidade, produzindo conjuntamente os caminhos. Eles indicavam as pessoas com as quais poderíamos conversar, acompanharam-nos e assumiram uma postura de pesquisadores, já que conduziram muitos dos processos.

Por meio dessas experiências, percebemos o quanto a busca por uma metodologia colaborativa pode contribuir para um trabalho investigativo que reconhece os sujeitos da pesquisa como produtores de conhecimento através de uma perspectiva de colaboração intercultural e de uma nova disposição ética e política.

A construção da pesquisa demandou a articulação de diferentes procedimentos metodológicos do registro do estar-junto na universidade e em algumas comunidades de origem: a) as conversas-entrevista e as rodas de conversa com dezesseis interlocutores; b) o Diário de Campo; c) a pesquisa documental. Igualmente, buscamos, desde a própria tessitura do texto, uma construção intercultural, dispondo blocos grandes de falas de indígenas acadêmicos, dando lugar de destaque às suas autorias e às suas vozes. De nossa parte, concordamos que

o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Para isso é preciso, num certo nível, se deixar levar por esse campo coletivo de forças (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 57).


Na sequência, apresentamos os dados referentes ao ingresso e à permanência, movimento que permite o estar indígena estudante na universidade. Quem são e de onde vêm esses jovens que hoje circulam pelos espaços acadêmicos e, ainda de forma tímida, modificam a paisagem universitária monolítica que predominava anteriormente à política afirmativa?


  1. O estar indígena na universidade: o ingresso e a permanência

Me chamo Leocir Muller Ribeiro Vãn Fej, indígena da etnia Kaingang e natural da Terra Indígena Guarita. Minha trajetória na universidade começou no ano de 2011, quando soube da aprovação em duas universidades (UNIPAMPA e UFRGS). Conversando com meus pais resolvi começar uma nova vida rumo a Porto Alegre, deixando meu sonho de ser um jogador de futebol profissional para encarar a dura vida de estudante, que é pior do que a rotina de treinos físicos. Assim, comecei na UFRGS minha vida de universitário, um caminho longo, mas que vai acrescentar muitas coisas boas para minha vida e para meu povo. Associo como uma caminhada longa no meio de uma floresta escura cheia de animais perigosos, mas que com uma superação de Tupẽ e dos espíritos dos meus antepassados eu vou conseguir chegar lá. Nesse lugar desconhecido antes por mim, vou abrindo caminhos onde nunca pensei em estar, como mostrar a origem do meu povo e que eu posso e consigo passar por tantas barreiras como o preconceito, a dor, a angústia. E sei que no final tudo dará certo e vou poder ajudar meu povo de muitas maneiras.3


Eu sou a Araci, Mbyá Guarani da aldeia Estiva. Curso Enfermagem na UFRGS. Escolhi ir para a universidade, pois crianças estavam morrendo e queria saber o porquê, e também porque meu pai nos incentivava muito a estudar. Ele queria que aprendêssemos a cultura juruá [do homem branco] até para nos defender do preconceito. Ele sempre dizia: “Estude, estude para ajudar o nosso povo, não fique aí de braços cruzados vendo nosso povo morrer de doenças”. Mas a mais importante frase que ele dizia era: “Vai para a cidade, se misture, se camufle no meio deles [dos juruá], mas sempre, sempre saiba o seu caminho de volta, tu tens que saber o caminho de volta para o seu povo”4.


O acesso indígena à UFRGS já era uma pauta antiga que foi sendo construída especialmente pela mobilização das lideranças do estado do Rio Grande do Sul. Em 2004, a professora kaingang Andila Nivygsãnh Inácio, em evento realizado na universidade, questionava: “Afinal, quando a UFRGS abrirá suas portas para nosso povo?” (SILVEIRA, 2009).

Esse e tantos outros tensionamentos fizeram com que em 2008 fosse efetivado o primeiro ingresso de estudantes indígenas - kaingang e guarani -, vindos de diferentes regiões do Rio Grande do Sul. Com isso, a UFRGS tornou-se a primeira universidade pública federal do estado a instituir uma política de acesso indígena, reconhecendo a luta desses setores da sociedade que desejavam também desfrutar do espaço acadêmico, terem reconhecido seu direito à educação superior e com isso seus conhecimentos. As falas de Leocir e Araci, apresentadas na abertura dessa seção, são bons exemplos dessa luta.

Vale destacar que, ao mesmo tempo em que a UFRGS aprovava uma legislação interna para o ingresso indígena, também se efetivava o Programa de Ações Afirmativas mais amplo, incluindo a reserva de 30% das vagas para pessoas negras provenientes de escolas públicas5.

Dessa forma, a política afirmativa se efetivou como uma conquista histórica relevante, tendo em vista que, até aquele momento, não havia registro de ingresso de nenhuma pessoa indígena em oitenta anos de instituição. A política afirmativa, com mais de uma década de existência, materializa-se por meio da criação de dez novas vagas anuais em cursos escolhidos pelos coletivos indígenas em acordo com a universidade. Tal formato e os apoios materiais para apoiar a permanência dos estudantes foram definidos através de diálogo com as lideranças.

Para o ingresso, é lançado edital oferecendo as vagas definidas em conjunto – 1 em cada curso – e informando sobre o processo seletivo específico para indígena, composto por uma prova de português e redação abordando temas relacionados à vida indígena. Se aprovado, o candidato precisa apresentar os seguintes documentos para assumir a vaga: autodeclaração de pertencimento étnico, declaração das lideranças de pertencimento à comunidade indígena com anuência da FUNAI, comprovante de ter feito o ensino médio em escola pública e de não ter cursado outro curso superior anteriormente.

Em relação à política de permanência, desde as primeiras discussões, as lideranças já pautavam a necessidade de apoio material e de práticas da universidade que proporcionassem o acolhimento e as condições adequadas para a manutenção da vida acadêmica dos estudantes.

Desse modo, foi estabelecida, em um primeiro momento, uma série de ações diferenciadas, de natureza compensatória, por meio da concessão de benefícios e de ações de apoio à permanência. Ao longo do tempo, com a experiência que a universidade foi adquirindo, bem como pelo aumento do quantitativo de estudantes e a das suas participações nesse processo, os benefícios foram aprimorados e ampliados.

Atualmente, a política de permanência da UFRGS para indígenas consiste em: garantia de vaga na Casa do Estudante Universitário sem a necessidade de avaliação socioeconômica; o recebimento da Bolsa Permanência MEC6 sem contrapartida laboral; isenção das refeições no Restaurante Universitário. Além desses, somam-se os demais benefícios da assistência estudantil como os auxílios material de ensino, transporte e creche (quando com filho até seis anos).

No âmbito pedagógico, destacamos: a atuação de um professor-orientador do curso e de um colega monitor para acompanhar o discente nas questões ligadas ao acolhimento e ao desempenho nas disciplinas7; os encontros formativos com professores-orientadores, monitores e servidores de Comissões de Graduação dos cursos; a designação de sala de informática específica na Casa do Estudante, propiciando um espaço para o estudo e o encontro; o acolhimento dos ingressantes e o seu acompanhamento pedagógico feitos tanto pelas coordenações de curso quanto pela Coordenadoria de Ações Afirmativas (CAF)8. Vale lembrar que há ainda outras iniciativas das coordenações dos cursos, por meio de projetos de extensão por exemplo, visando a apoiar esses estudantes.

A presente pesquisa apresenta também o balanço de uma década da política (2008-2017) por meio da análise de dados que dão visibilidade ao perfil (por curso, por área, por etnia, por idade, por gênero e por terra indígena de origem) de quem procura a UFRGS como uma oportunidade de acesso ao ensino superior e daqueles que logram ingressar. Destacamos alguns dos achados da análise que consideramos relevantes para o contexto deste artigo.

O primeiro destaque diz respeito aos cursos escolhidos. No período de dez anos, foram ao todo vinte e nove9: dez cursos escolhidos a cada ano, porém alguns se repetem em anos seguidos. A concentração das escolhas está em graduações da área da saúde como Medicina, Enfermagem e Odontologia, escolhidos praticamente todos os anos. Esses cursos também são os que predominam na escolha dos demais candidatos, sendo de interesse de 62% de todos que se inscreveram no período.

Nesse caminho, quando analisamos a opção dos candidatos por área, observamos que a UFRGS segue uma tendência nacional, a saber, os indígenas escolhem os cursos que possuem relação direta com as necessidades das suas comunidades, posto que hoje as vagas nas aldeias são ocupadas por profissionais não indígenas. Além da área da saúde, temos ainda as licenciaturas (sendo Pedagogia, História e Educação Física as mais procuradas), os cursos ligados às ciências da natureza e agrárias (entre eles Agronomia, Biologia e Medicina Veterinária) e outros como Direito e Administração, de interesse indígena diante de relações por vezes conflituosas com o mundo não indígena.

Apesar de a escolha dos cursos ser feita por consenso entre as lideranças e com a participação ativa dos estudantes, vemos que nem sempre se dá de forma harmoniosa, havendo disputas, diferentes pontos de vista e interesses que são conjugados.

De modo geral, temos observado que as opções obedecem a lógicas ligadas às áreas com maior carência nas comunidades, a possibilidades de empregabilidade dos formados, do perfil dos cursos universitários em relação aos valores fundamentais dos coletivos (que, muitas vezes, se mostram incompatíveis), pela receptividade dos cursos às cosmovisões indígenas e, ainda, ao grau de acolhimento dessas graduações.

O segundo destaque diz respeito à procura pelo Processo Seletivo Específico Indígena (PSI). Observamos que, ao longo de 10 anos, 742 indígenas se inscreveram para concorrer a uma das cem vagas oferecidas no período. Desse modo, vemos que a concorrência no PSI pode ser comparada à concorrência no vestibular de muitos cursos da UFRGS no ingresso regular, chegando a 08 candidatos por vaga, em média, e até 29 candidatos por uma vaga em cursos mais concorridos, como Medicina no ano de 2016.

Com tamanha procura pelo PSI, compreendemos a legitimidade da reivindicação pela ampliação de vagas para o ingresso indígena na UFRGS. Observa-se, em um cômputo geral, que somente 13% desses estudantes inscritos está sendo admitido, o que mostra a insuficiência do número de vagas destinadas. Como diz João Padilha, importante liderança kaingang:

A cota não dá mais conta da nossa demanda. No último ano, tinham 80 candidatos para as dez vagas. O ingresso tem que ser universal, para todos os indígenas que quiserem, como previsto na Constituição (UFRGS, 2015).


Jaime Alves, outra liderança kaingang, diz que a luta foi importante em 2008 e complementa afirmando que “Agora vemos que precisamos de mais vagas. No futuro, queremos caminhar com nossos pés. Precisamos de mais formados” (Idem). Ele ainda adverte sobre a necessidade de ampliar, ou melhor, de indianizar as equipes de saúde com profissionais indígenas de diferentes especialidades.

Em relação aos grupos étnicos, vemos que a procura pela UFRGS tem sido preponderante entre os kaingang e guarani, principais povos indígenas que habitam o RS, tendo sido nesses 10anos 89% dos inscritos kaingang e 5% guarani10. Pessoas provenientes de outros povos também têm nessa universidade oportunidade de ingresso, representando cerca de 4% do total de inscritos.

Essa participação tem sido significativa em alguns anos, como em 2016, quando houve treze candidatos pertencentes a outros grupos étnicos de diferentes estados brasileiros11. Importante destacar que as pessoas que vêm de outros estados e também de outros povos indígenas que não os da região sul buscam, quase que exclusivamente, as vagas nos cursos de Medicina e de Odontologia. Entre os indígenas que efetivamente ingressaram, temos o seguinte perfil étnico: dos 95 ingressantes, entre 2008 e 2017, 85% são kaingang, 12% guarani e 3% de outros coletivos.

Em relação à faixa etária, observamos que, no decorrer dos anos, há um aumento expressivo de candidatos mais jovens e diminuição na inscrição de pessoas com idade mais avançada. Tal fenômeno parece denotar o acolhimento, nos primeiros anos da política afirmativa, de uma demanda reprimida de sujeitos mais velhos que já possuíam Ensino Médio, mas que não haviam tido oportunidades anteriores. Outro motivo é que o Edital de 2010 vetou que pessoas que já tivessem iniciado ou concluído qualquer curso de nível superior viessem a ocupar uma vaga na UFRGS. Isso fez com que muitos indígenas que já haviam iniciado sua formação universitária em outra instituição com apoio da Funai ou de alguma organização não pudessem ver na UFRGS uma possibilidade de concluir a faculdade.

Passado o primeiro momento em que esses estudantes ingressam, tanto na UFRGS, quanto em outras universidades, os mais jovens, tendo os mais velhos como inspiração, seguem o caminho que os anteriores foram abrindo. Vale ressaltar que muitos dos antigos discentes são pais, irmãos, sobrinhos ou primos dos ingressantes.

Ao analisar o mesmo tema, Brito (2016) observa que, até o ingresso de 2016, havia 35 estudantes que já possuíam algum familiar estudando na UFRGS. Corroboramos com a hipótese de que esse “pode ser um dos fatores que auxiliam na permanência na universidade e na superação da evasão por motivo de distância da família. Também mostra uma possível forma de divulgação e encorajamento para outros jovens” (Idem, p. 64).

Entre os aprovados, vemos que, no primeiro ano, houve uma distribuição equilibrada das vagas entre as diferentes faixas etárias. Nos anos seguintes,há um predomínio na aprovação de pessoas cada vez mais jovens, totalizando 77% dos ingressantes com até 25 anos de idade.

A análise dos dados vai ao encontro do que Carneiro (2013) já apontava em sua pesquisa a respeito do perfil dos ingressantes na instituição, destacando que parte significativa dos primeiros indígenas universitários, sobretudo os que ingressaram nos dois primeiros anos da política, “consistiam em lideranças, mais velhos, ou pessoas com mais articulação nas lutas por políticas indígenas” (p. 50). A diminuição da faixa etária dos ingressantes no passar dos anos implica novos desafios a serem enfrentados tanto pelos indígenas e seus coletivos, quanto pela instituição.

Outro aspecto marcante observado nos dados diz respeito à distribuição por gênero. Vemos ocorrer um aumento expressivo da presença feminina ao longo dos 10 anos analisados. Se, nos primeiros anos da política, observava-se um número maior de candidatos homens (em 2008, foram 14 mulheres e 29 homens inscritos), nos anos posteriores, essa proporção fica cada vez mais próxima até ser superada em 2012, quando se inscreveram 48 mulheres e 31 homens. Essa proporção se iguala em 2013 e, de 2014 em diante, segue com predomínio feminino. Entre as pessoas aprovadas, observamos o mesmo movimento. Vemos então que, com o tempo, as mulheres indígenas passaram a vislumbrar a formação em nível superior como algo possível e começaram a ocupar efetivamente esse espaço, sendo atualmente o grupo de estudantes indígenas da UFRGS composto predominantemente por mulheres12.

O fenômeno da maternidade acompanha significativamente as mulheres indígenas que ingressam na universidade: das 30 estudantes que haviam ingressado até 2015, 20 delas eram mães de um ou mais filhos (BRITO, 2016). O excerto do Trabalho de Conclusão do Curso em Serviço Social de Angélica Domingos evidencia o lugar que a maternidade ocupa e a relação dessa nova condição com a universidade.

Um dos mais lindos acontecimentos que permeou minha vida na luta dentro da universidade foi a gravidez e nascimento de minha filha Nayane Ga kre. Este momento anunciava mais uma vida Kaingang enquanto resistência de um povo, mas também a dura luta dentro da universidade, para que a mesma compreendesse que este não era um momento em que estava vulnerável socialmente, mas que me fortaleceria mais ainda na luta pelo reconhecimento dos modos de vida Kaingang. Pois ali evidenciava minha vida enquanto Kaingang, mulher, estudante e agora mãe. Ali se contrapunha a lógica em que a sociedade capitalista e competitiva nos impõe de que primeiro temos que estudar, trabalhar, ter uma carreira para depois pensarmos na possibilidade de ser mãe, quando para nós este é um processo natural, e tão mais que isto, nos ressignifica, enquanto família Kaingang, enquanto mulher que luta por direitos não só de uma categoria, mas de um povo. (DOMINGOS, 2016, p. 50-51)


Tal fenômeno torna-se relevante, visto que essas mulheres buscam ser protagonistas na criação de seus filhos e enfrentam o desafio de conciliar os dois papéis, de estudante universitária e de mãe, o que repercute na permanência no espaço acadêmico.

Analisando a localidade de origem, vemos que os estudantes que prestam o Processo Seletivo Específico provêm predominantemente das terras indígenas onde residem e, em alguns casos, de áreas urbanas. Como exemplo, no ano de 2015, dos 85 inscritos no PSI, 50 provinham de terras localizadas no interior do estado. Os demais candidatos eram de áreas localizadas na região metropolitana de Porto Alegre. Ainda se apresentaram 16 candidatos de fora do estado. O pertencimento territorial dos indígenas que ingressam na UFRGS segue essa mesma tendência. Do total de ingressantes, 54 provêm de áreas no interior do estado (52 kaingang e 02 guarani); 38 de Porto Alegre ou região metropolitana (28 kaingang e 10 guarani); 02 de outros estados brasileiros, Pernambuco e Pará, e 1 do Peru.

Boa parte dos estudantes provém de terras que ficam distantes cerca de 300 a 400 quilômetros de Porto Alegre, impossibilitando o retorno frequente às suas comunidades, o que se torna um problema em relação à permanência na UFRGS por conta da saudade que sentem de seus familiares e o costume com a vida comunitária, como eles mesmos declaram frequentemente.

Você vir estudar numa cidade grande onde tem muita diferença cultural é um baque muito grande e muitos não conseguem aguentar o choque cultural que existe (...). O povo Kaingang tem um laço muito forte entre as famílias. Têm alguns estudantes indígenas, inclusive, que vieram estudar aqui na UFRGS e por dificuldade ou saudade da família eles pegaram e voltaram para as aldeias, desistiram dos cursos. Alguns têm filhos, outros tinham trabalho também, e preferiram voltar pra lá (MAURO VERGUEIRO, estudante de Medicina, 14.05.2014).


Desses territórios, espaços coletivos em que se tece a vida e onde coexistem diferentes realidades, os indígenas acadêmicos se deslocam até a universidade. Em sua bagagem, eles carregam sonhos, histórias, memórias, medos, expectativas, conhecimentos.

É sobre os des(encontros) entre as vivências trazidas por indígenas acadêmicos, o modo de funcionamento da universidade e os processos de re-existência que são criados para estar nesse espaço que trataremos nas páginas seguintes.

  1. Movimentos de apropriação e re-existência

Na escuta aos indígenas acadêmicos, compreendemos que a linguagem trazida para a universidade enquanto movimento, oralidade, riso, canto, gestos, silêncio, corpo, encontra uma muralha que distancia, contém, imobiliza, desenraiza, concentra-se no intelecto. Ao chegar a esse espaço, é como se tivessem que se despir de seus modos de expressão para se adequar à linguagem acadêmica, às técnicas da escrita, à leitura excessiva, ao estudo rotineiro, além de tudo envolvido nos aprendizados de ser um estudante universitário como os modos de se comportar, de se vestir, de se movimentar.

Um dos importantes conflitos enfrentados pelos estudantes é a falta de familiaridade com os discursos da academia. Como apontam os/as estudantes, a linguagem acadêmica parece ser um idioma próprio, muito ligado à linguagem científica. Ela se manifesta através de um forte comportamento grafocêntrico, ou seja, centrado na escrita, específico de nossa sociedade letrada. Ela envolve a indumentária, as condutas, os valores, as normas e os princípios de vida. Além dessas dificuldades, há ainda a língua urbana, dita culta, muitas vezes incompreendida pelos recém-chegados, especialmente quando vindos de grupos sociais que têm na oralidade o cerne de expressão, o que gera mais desconforto e problemas.

Nesse sentido, os estudantes, ao chegarem à universidade, são introduzidos nessa nova linguagem, passando por um processo de letramento acadêmico. Assim,

ser academicamente letrado envolve muito mais do que saber decodificar ou redigir textos reconhecidos como legítimos no meio acadêmico: envolve assumir papéis culturalmente associados a essas práticas, dentro desse meio (MORELO; DILLI, 2013, p. 64).


Nesse sentido, envolve deixar de lado algumas práticas para se apropriar de outras, mais bem reconhecidas nesse espaço. Dessa forma, é possível compreender que os conflitos que emergem na relação indígenas e universidade, no que diz respeito à linguagem, não se restringem apenas às técnicas de escritura, às habilidades de redação ou de fala, à gramática, mas também aos aspectos relacionados com a identidade, a epistemologia e o poder (ZAVALA; CÓRDOVA, 2010).

Com isso, vemos a colonialidade do poder atuando no interior da universidade, naturalizando a dominação também no âmbito linguístico, na medida em que exige que a linguagem assuma um caráter impessoal, separada da sua territorialidade, desarraigada, expressão de uma voz que não é a própria.

Larrosa (2013) diz que, assim como uma língua é um dispositivo de acolhida e pertencimento, também é de rechaço e de exclusão. Dialogando com o autor, ousamos dizer que igualmente pode ser de re-existência, como nos mostram indígenas quando ocupam a universidade, encontrando frestas para a sua língua originária. Afinal, quando eles estão juntos e fazem piadas e brincadeiras seguidas de risadas, conectam-se por meio da língua do coração ou quando eles falam de suas coisas entre si, sabendo que os demais não os compreenderão. Eventualmente, as suas línguas originárias também são usadas, especialmente pelos/as estudantes guarani, nas poucas ocasiões em que se encontram em sala de aula ou em atividades acadêmicas, retomando o seu idioma como uma forma de re-existência.

Outro aspecto bastante evidente no (des)encontro dos coletivos indígenas com a universidade diz respeito às temporalidades. As narrativas dos estudantes expressam o desejo por maior flexibilidade, ou seja, de que eles sejam compreendidos nas formas com que experimentam e se relacionam com os tempos e as rotinas acadêmicas, podendo ser quem se é e, mesmo assim, estar naquele espaço. Falam de formas outras de viver o tempo, convocando uma ecologia das temporalidades que, nas palavras de Santos (2007), compreende que cada sociabilidade tem a sua própria temporalidade sem reduzir tudo a um único tempo.

No encontro entre as diferentes temporalidades, vemos que o tempo da universidade, marcado pela linearidade, pelo o enquadramento, pela a medição e fragmentação, por uma organização por meio de cronogramas, de prazos, de horários bem delimitados, que pretende controlar a tudo e a todos, sobrepõe-se à temporalidade vivida pelos coletivos indígenas. À maneira como as horas da academia são vivenciadas, conectada a uma concepção ocidental de mundo, caracteriza-se pela velocidade, pela a obsessão à novidade que lança o olhar para frente, no que deve ser, sempre, jogada para o futuro, em uma ideia de progresso contínuo.

A monocultura do tempo linear, assim caracterizada por Santos (2007), justamente por ser a produção de apenas uma cultura pautada por rígidos parâmetros temporais, não acolhe outras manifestações de temporalidade e, com isso, desperdiça o momento presente, o espaço do estar, da pausa, da experiência. Ela opera na lógica do tempo colonial, o tempo computável, do relógio, da fábrica, da tecnologia, do rendimento (KUSCH, 2012). É preciso ter em vista que essa lógica é uma entre tantas outras existentes no mundo e que, apesar de hegemônica, não é a mais praticada tendo em vista a multiplicidade de manifestações existentes em diferentes povos.

Sobre isso, Dorvalino Cardoso, intelectual kaingang, um dos primeiros graduados pela UFRGS, expressa sua compreensão de tempo da seguinte forma: “Para nós o passado também é presente, e o futuro também. Mas a gente sabe que esse futuro, esse tempo do futuro não é nosso, na verdade é de Deus, mas o passado pra nós é o presente também” (VHERÁ POTY,.2015)13.

Assim, ao evidenciar a centralidade no presente, no qual todos os tempos se fundem no aqui e agora, também coloca no futuro a dimensão do imponderável. Assim, os indígenas universitários mostram que o tempo ameríndio está relacionado com outros critérios ligados aos sonhos, à intuição, ao clima, ao resguardo da saúde e, acima de tudo, à própria vontade. Ao trazerem os seus corpos insurgentes para a universidade, mesmo que em um contexto opressor que os engole em muitas situações, também lutam por manter as suas temporalidades, criando estratégias de manutenção de seus modos de existência como expressão de re-existência.

Outra forma que expressa o estar indígena na universidade diz respeito à re-existência epistêmica. No contato com o mundo acadêmico, os indígenas estudantes, mesmo que raramente dentro dos currículos ou em aulas regulares, criam espaços para expressar os seus conhecimentos desde a apropriação da universidade, configurando formas de re-existência epistêmica: no envolvimento em grupos de pesquisa, na elaboração dos trabalhos de conclusão de curso, na criação de espaços outros como os Encontros Nacionais de Estudantes Indígenas.

Apesar de a universidade estar somente engatinhando no sentido de exercer uma prática intercultural, os coletivos indígenas, ao se apropriarem da linguagem e dos conhecimentos acadêmicos, fazem com que estes dialoguem com os seus, construindo, assim, os conhecimentos fronteiriços. Tais formas de pensar e de criar conhecimento se expressam como saber de re-existência.

Nesse sentido, o estar indígena na universidade se expressa pela compreensão do compromisso com o saber construído nesse lugar, longe das terras de origem, e o retorno desse conhecimento aos coletivos. Aí reside o saber de compromisso com o coletivo, ou seja, mais uma das dimensões de re-existência no estar-sendo indígena universitário.

Com isso, as narrativas dos estudantes evidenciam que a dimensão do comunitário vivida por eles como práticas de solidariedade se contrapõe ao forte individualismo e à competitividade presente nos ambientes universitários.

Rememoramos a voz de Rodrigo Mariano, guarani universitário, quando

nos contava que um dos principais motivos de ter retornado para a aldeia e abandonado os estudos na UFRGS foi o individualismo dos colegas não indígenas e até entre os próprios colegas indígenas, já que, estando na cidade e na correria da vida acadêmica, percebia que cada um acabava focando-se nas suas coisas e quase não havia tempo para conviver uns com os outros. Em contrapartida, na universidade para onde se transferiu, encontrou maior acolhimento, especialmente pela organização da casa do estudante, onde indígenas moram todos no mesmo andar e é possível que os filhos pequenos estejam junto deles, o que na UFRGS era uma questão em conflito constante.

Na fala enunciada pelos indígenas acadêmicos acompanhados durante o estudo e em nossa atuação na universidade, vimos o despreparo de muitos profissionais de ensino, o forte racismo enraizado nas práticas institucionais e as incompreensões dos modos de vida, todos fatores alimentados pela falta de conhecimento sobre a realidade desses povos. Muitas pessoas sequer sabem das ameaças e dos perigos a que estão submetidos alguns desses estudantes tão somente por serem lideranças em suas comunidades e por lutarem pela aplicação dos direitos indígenas.

Vemos que, nas diferentes práticas institucionais, do mesmo modo como analisa Simmonds (2010) em relação à Universidad del Cauca, é praticamente nula a capacidade de a universidade compreender e articular a perspectiva coletiva pautada pelos indígenas estudantes às suas dinâmicas. Desse modo, a estrutura universitária,

apesar de que en su proyecto educativo institucional se hable de ‘una comunidad universitaria’, funciona y se operativiza en términos individuales; el estudiante, aparentemente, no requiere una estructura colectiva como condición de êxito (SIMMONDS, 2010, p. 47).


Assentadas na pesquisa e na vivência próxima aos estudantes, podemos afirmar que uma das principais estratégias encontradas por eles para re-existir na universidade é estarem juntos, no coletivo, mantendo essa tática como um valor fundamental para ser conservada no contexto da academia. “Eles chegam em bando!” é uma expressão bastante utilizada na instituição para descrever os movimentos dos acadêmicos pelos espaços, onde andam em pares, em grupos, carregando suas crianças consigo. Fenômeno que perturba, incomoda, porém, povoa com humanidades outras esse espaço tão calcado pela competição, pelo ranqueamento, pelo produtivismo, pelo consumo acadêmico, por relações utilitaristas de cada um por si.


Considerações finais

No processo de construção da pesquisa, foi possível compreender que o encontro dos indígenas acadêmicos com a universidade irrompe como um acontecimento, tanto na vida deles próprios, das suas famílias e dos seus coletivos, quanto para a instituição que se vê desconfortável diante de tais presenças.

A relação estabelecida entre esses diferentes atores ainda não se expressa de forma simétrica e horizontal, configurando-se muito mais como uma política fundada em uma visão de interculturalidade funcional (WALSH, 2012), que quer normalizar, diluir e incorporar o outro ao mesmo, colaborando com os desenhos globais de poder, capital e mercado, do que a uma perspectiva crítica de interculturalidade, calcada em um projeto político de descolonização, de transformação e de criação de um modelo de sociedade alternativo.

No encontro com esses coletivos, a universidade se depara com outros modos de estar, de se movimentar, de conhecer. Outras cores, cheiros e jeitos que passam a habitar esse espaço e instauram desordem com suas presenças disruptivas. Uma desordem que, conforme Balandier (1997), torna-se criadora. Nessa mesma ideia, Kusch afirma que “las crisis dan siempre que pensar. Son en el fondo fecundas porque siempre vislumbran un nuevo modo de concebir lo que nos pasa. Irrumpe una nueva, o mejor, una muy antigua verdad” (2012, p. 7).

Esses movimentos, que trazem consigo imprevisibilidade e desordem, têm gerado frestas que se fazem no encontro com os rígidos padrões de ser da universidade. Tais fissuras, espaços de re-existência, permitem a emergência do novo desde a re-conexão com o originário, parindo formas antigas de conviver, aprender, compartilhar, estar e ser pessoa e coletivo, formas que ensejam práticas pedagógicas outras na universidade.


Referências

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SOBRE AS AUTORAS



MICHELE BARCELOS DOEBBER é doutora e Mestre em Educação e Técnica em Assuntos Educacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Grupo de Pesquisa PEABIRU: Educação Ameríndia e Interculturalidade, registrado no CNPq. Coordena o projeto de extensão Indígenas no Ensino Superior: caminhos da interculturalidade.

E-mail: michele.doebber@ufrgs.br


MARIA APARECIDA BERGAMASCHI é doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do rio Grande do Sul (UFRGS), líder do grupo de pesquisa (CNPq) Peabiru: educação ameríndia e interculturalidade. Integra o Conselho Editorial da Revista Espaço Ameríndio, participa da coordenação da Rede Saberes Indígenas na Escola - Núcleo UFRGS. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Estadual de Campinas (Unicampi).

E-mail: cida.bergamaschi@gmail.com




Recebido em: 02.03.2020

Aceito em: 16.07.2020


1 Dado extraído do site: https://www.justica.gov.br/news/estudantes-indigenas-ganham-as-universidades. Acesso em 21/02/2020.

2 Faz-se necessário destacar que, no caminho da pesquisa, percebemos que os indígenas que chegam à UFRGS compõem um grupo multiforme. Ao lado de diversas características comuns, eles apresentam uma heterogeneidade de trajetórias de escolarização, de localidades de origem, de histórias de vida, as quais provocam o desfazer do rótulo genérico que comumente empregamos, homogeneizando-os em “estudantes indígenas” para, como que utilizando uma lente de aumento, aproximar-nos e vislumbrar os pertencimentos de cada um dos sujeitos. Da mesma forma, esses novos estudantes vivem a universidade cada um a seu modo, mas também evidenciam especificidades comuns, enraizadas no modo de viver com os seus coletivos.

3 Leocir ingressou na UFRGS no curso de Fisioterapia. Filho de professor Kaingang e mãe não indígena. É natural da terra indígena Guarita na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul. Fez intercâmbio acadêmico no Centro de Investigaciones y Estudio en Antropología Social (CIESAS), México, onde teve a experiência de um terremoto de grande proporção no qual ajudou muitas pessoas feridas a serem retiradas de escombros. Atualmente, transferiu-se para o curso de Medicina, relatando que a experiência no México foi decisiva para a mudança de rumo na escolha profissional.

4 Araci cursa o 4º semestre de Enfermagem. Possui quatro irmãos, dois deles cursando outras graduações na UFRGS. É filha de Dona Talcira, parteira, conhecedora das ervas e líder feminina importante para os Guarani.

5 A Decisão nº 134/2007, que instituiu o Programa de Ações Afirmativas na UFRGS, tinha como objetivos: I – ampliar o acesso em todos os cursos de graduação e cursos técnicos oferecidos pela UFRGS para candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio e para candidatos autodeclarados negros egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, mediante habilitação no Concurso Vestibular e nos processos seletivos dos cursos técnicos; II – promover a diversidade étnico-racial e social no ambiente universitário; III – apoiar estudantes, docentes e técnico-administrativos para que promovam, nos diferentes âmbitos da vida universitária, a educação das relações étnico-raciais; IV – desenvolver ações visando a apoiar a permanência, na Universidade […] mediante condições de manutenção e de orientação para o adequado desenvolvimento e aprimoramento acadêmico-pedagógico. Mais tarde, por força da Lei federal nº 12.711/2012, a UFRGS altera seu programa ampliando a reserva de vagas para 50%, incluindo no público atendido pessoas com deficiência, bem como recorte de renda.


6 O Programa de Bolsa Permanência MEC, criado em 2013 pelo governo federal, instituiu um apoio financeiro de valor diferenciado para indígenas e quilombolas em “decorrência das especificidades desses estudantes com relação à organização social de suas comunidades, condição geográfica, costumes, línguas, crenças e tradições, amparadas pela Constituição Federal” (BRASIL, 2013).

7 Esse monitor tem direito à Bolsa Monitoria da Pró-Reitoria de Graduação e também é orientado pelo professor orientador do estudante indígena.

8 A CAF é um órgão criado em 2012, ligado à Reitoria, para fazer a gestão do Programa de Ações Afirmativas da Universidade.

9 Odontologia, Enfermagem, Medicina, História, Agronomia, Direito, Letras, Pedagogia, Jornalismo, Matemática, Nutrição, Ciências Sociais, Ciências Biológicas, Educação Física, Serviço Social, Farmácia, Psicologia, Medicina Veterinária, Engenharia Mecânica, Fisioterapia, Geografia, Políticas Públicas, Artes Visuais, Saúde Coletiva, Engenharia Ambiental, Administração, Administração Pública e Música.

10 A maior procura pela universidade pelos kaingang pode ser compreendida por alguns fatores: por ser o grupo étnico com maior quantidade de pessoas no estado, por ser o grupo que tem escolarização instituída e contínua há mais tempo, por ser o grupo que possui maior percentual de comunidades com escola dentro de suas terras e por serem as pessoas indígenas do estado com maior índice de escolaridade.

11 As demais etnias representadas nos processos seletivos são: Bororo, Quechua (Peru), Atikum, Krenak, Pankará, Terena, Xokleng, Baré, Yawalapiti, Matipu, Xavante, Suya, Macuxi, Pitaguary, Guarani Kaiowá, Juruna, Nukini, Kambeba, Fulniô, Kuikuro, Piratapuya, que nos dez anos somou 35 pessoas.

12 Através dos dados de pesquisa, não conseguimos alcançar hipóteses para explicar os fatores que levaram ao aumento expressivo da procura de mulheres indígenas pela UFRGS. Em uma análise mais geral, parece-nos que o fenômeno do empoderamento feminino tem chegado com muita força às comunidades indígenas, o que fica evidente no destaque que lideranças femininas têm tido em âmbito nacional, tais como Sônia Guajajara, Joênia Wapichana, Célia Xakriabá, bem como o aumento de mulheres assumindo a liderança também nas comunidades. Vemos que o fenômeno de ocupação das mulheres indígenas do espaço universitário é também uma tendência nacional. Os dados do Censo da Educação Superior mostram que o número de mulheres indígenas no ensino superior cresceu 620% quando comparados os anos de 2009 e 2018. Já o crescimento entre os homens foi de 439% no mesmo período. Fonte: https://www.fundacred.org.br/site/2019/12/20/ingresso-de-mulheres-indigenas-nas-universidades-cresce-620-desde-2009/. Acesso em 16/04/2020).

13 Diário de Campo de 4 de novembro de 2015.

Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.13, p. 243-269, maio/ago. 2020.