NHEMBO’É MBORAÍ: os ensinamentos cosmo-sônicos guarani

na interdisciplina Encontro de Saberes



Vherá Poty Benites da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, RS, Brasil


Rumi Regina Kubo

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, RS, Brasil


Marília Raquel Albornoz Stein

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, RS, Brasil


Ana Lucia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, RS, Brasil



DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i13.40977



RESUMO

A atuação de Vherá Poty na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) como intelectual guarani vem ocorrendo há mais de 10 anos, por meio de cursos de extensão da cultura e língua guarani mbyá, projetos de pesquisa colaborativos em educação, antropologia e etnomusicologia, produção de materiais audiovisuais e exposições fotográficas, entre outros. Este artigo objetiva compartilhar efeitos e sentidos provocados pela participação de Vherá Poty em 2017 na interdisciplina Encontro de Saberes, que, desde 2016, na UFRGS, propõe a docência compartilhada entre os professores da universidade e os mestres dos Saberes Tradicionais e Populares. Planejada originalmente na Universidade de Brasília (UnB) em 2010, a Encontro de Saberes marca o enfrentamento do racismo estrutural na constituição histórica da universidade brasileira, através de experiências interepistêmicas que não separam reflexão e intervenção. Na UFRGS, Vherá Poty desenvolveu atividades no módulo sobre Plantas e Espírito, provocando uma reflexão profunda nos estudantes e nos professores sobre emoções, memórias, parentesco, identidade, saúde e música na perspectiva de uma cosmo-sônica mbyá (STEIN; SILVA, 2014). Assim como nas participações dos demais mestres, as experiências partilhadas remetem aos saberes afro-pindorâmicos definidos pelo intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015) a partir da territorialidade.

Palavras-chave: Encontro de Saberes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Experiências interepistêmicas. Vherá Poty Benites da Silva. Cosmo-sônica.



NHEMBO’É MBORAÍ: Guarani cosmosonic teachings

in the interdiscipline Encontro de Saberes



ABSTRACT

Vherá Poty's work at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS) as a Guarani intellectual has been taking place for over 10 years, through university extension courses of Guarani Mbyá culture and language, collaborative research projects in education, anthropology and ethnomusicology, production of audio-visual materials and photographic exhibitions. This article aims at sharing effects and meanings resulted from Vherá Poty’s presence in 2017 in the interdisciplinary Encontro de Saberes, which since 2016 at UFRGS proposes teaching shared between professors from universities and Masters of Traditional and Popular Knowledge belonging to indigenous and black matrices. Originally planned at the University of Brasília (UnB) in 2010, Encontro de Saberes marks the confrontation of structural racism in the historical constitution of the university through inter-epistemic experiences that do not separate reflection and intervention. At UFRGS Vherá Poty developed activities in the module on Plants and Spirit, causing a deep reflection in students and teachers about emotions, memories, kinship, identity, health and music, in the perspective of a Mbyá cosmosonic (STEIN; SILVA, 2014). As in the participation of the other Masters, the shared experiences refer to the Afropindoramic knowledge defined by the quilombola intellectual Antônio Bispo dos Santos (2015) based on territoriality.

Keywords: Encontro de Saberes. Federal University of Rio Grande do Sul. Vherá Poty Benites da Silva. Interepistemic experiences. Cosmosonic.



NHEMBO'É MBORAÍ: enseñanzas cosmo-sónicas Guaraní

en la interdisciplina Encontro de Saberes


RESUMEN

La actuación de Vherá Poty en la Universidad Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) se ha llevado a cabo durante más de 10 años, a través de cursos de extensión de la cultura y el idioma guaraní mbyá, proyectos de investigación colaborativa en educación, antropología y etnomusicología, producción de material audiovisual y exposiciones, etc. Este artículo tiene como objetivo compartir los efectos y significados provocados por la participación de Vherá Poty en 2017 en la interdisciplina Encontro de Saberes, que desde 2016 en UFRGS propone la enseñanza compartida entre profesores de la universidad y Maestros del Conocimiento Tradicional y Popular. Originalmente planeado en la Universidad de Brasília (UnB), Encontro de Saberes marca la confrontación del racismo estructural en la constitución histórica de la universidad brasileña, a través de experiencias inter-epistémicas que no separan reflexión e intervención. En la UFRGS, Vherá Poty desarrolló actividades en el módulo sobre Plantas y Espíritu, provocando una profunda reflexión en estudiantes y docentes sobre emociones, memorias, parentesco, identidad, salud y música, en la perspectiva de una cosmo-sónica mbyá (STEIN; SILVA, 2014). Las experiencias compartidas se refieren al conocimiento afropindorámico definido por el intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015) con referencia a la territorialidad.

Palabras clave: Encontro de Saberes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vherá Poty Benites da Silva. Experiencias inter-epistémicas. Cosmo-sónica.



Introdução

A relativamente recente implementação de políticas de ações afirmativas nas universidades brasileiras atende a uma demanda histórica por reparação e por combate a desigualdades provenientes dos processos que dificultaram a expressivos segmentos da população o acesso à educação formal e, consequentemente, a profissões e a trabalhos qualificados. Começando em 2002, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a pioneira na formulação de uma política de reserva de vagas para negros e outros grupos (como indígenas, quilombolas, egressos de escola pública), dado que tanto os mecanismos para seleção dos candidatos quanto o poder de absorção do sistema de ensino superior público não atendiam plenamente aos anseios das camadas subalternizadas da sociedade brasileira (GONÇALVES, 2010). Trata-se de segmentos sociais que há muito tempo contestam a construção do Estado nacional homogêneo a partir da negação das diferenças via assimilação e miscigenação de povos e etnias. A contestação passa a atingir também a composição dos currículos escolares e a hierarquização de conhecimentos presente na sociedade.

A esse respeito, o antropólogo José Jorge de Carvalho (2005-2006) explicita o quanto as políticas de cotas evidenciaram o “regime de confinamento racial” acadêmico ao demandar uma revisão epistemológica radical frente aos consensos e aos paradigmas até então supostamente universais e perante à segregação racial que fazia (e ainda faz) da docência e da pesquisa lugares de privilégio branco no Brasil. O mesmo professor em 2010 dá seguimento à problematização do racismo com a proposta da disciplina Encontro de Saberes na Universidade de Brasília (UnB), em que mestres e mestras de Saberes Tradicionais e Populares são os ministrantes. Essa proposta foi gestada em uma conjuntura político-acadêmica ligada a um processo de fomento científico aos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), particularmente o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão (INCTI) e em documentos-base que fundamentam a iniciativa (ENCONTRO DE SABERES, 2014; INCTI, 2015). Os autores entendem que a presença desse saber direto, que agrega o pensar, o sentir e o fazer, por si só, constitui a resistência desses sujeitos e coletivos não só aos duros processos de colonização como à proposta capitalista de homogeneização do mundo, com lógicas e caminhos metodológicos de produção, acumulação e transmissão próprios, finalmente integrados à universidade brasileira.

Motivados por essas movimentações pregressas, este texto apresenta reflexões provocadas a partir das aulas da disciplina Encontro de Saberes ocorridas no primeiro semestre de 2017 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entendendo essa ocorrência como um passo a mais no combate ao racismo epistêmico. Em nossa universidade, a implementação da política de reserva de vagas iniciou em 2008, resultado de intenso debate que envolveu a comunidade acadêmica e os atores sociais como o movimento negro e as comunidades indígenas locais. A política segue em debate não só porque reflete antagonismos da sociedade no entendimento das ações de inclusão - sobretudo no que diz respeito ao enfrentamento do racismo -, mas também porque alterações vêm se fazendo necessárias desde o início de sua aplicação1.

Como em qualquer outra instituição acadêmica, na UFRGS a diversidade do mundo e as suas diferenças são objeto de permanente investigação em que o político e o pedagógico se cruzam na educação das relações étnico-raciais. Enquanto parte do coletivo de professores que participaram da criação da disciplina em 20162 e que nela atuam até o momento, detalharemos ao longo do texto a experiência interdisciplinar e intercultural construída em colaboração com um dos seus mestres, o jovem Vherá Poty Benites da Silva.

A atuação de Vherá Poty como intelectual guarani vem ocorrendo há mais de 10 anos, por meio de cursos de extensão da cultura e língua guarani mbyá, projetos de pesquisa colaborativos em educação, antropologia e etnomusicologia, produção de materiais audiovisuais e exposições fotográficas, cursos de formação de professores e palestras, entre outras atividades. Essa participação pauta-se na autoridade de quem afirma “Sou Vherá Poty, relâmpago florido, os velhos falam, eu escuto” (VHERÁ POTY, 2015). Palavras que mostram que se trata de uma autoridade perante os não indígenas, apresentada com a força e a beleza de um relâmpago, mas chancelada pelo respeito às tradições e às hierarquias de seu povo.

Este artigo resgata parte dessa trajetória de incursão no mundo acadêmico não indígena e descreve um conjunto de atividades desenvolvidas pelo jovem mestre no primeiro semestre de 2017 na intertransdisciplina Encontro de Saberes na UFRGS, ao abordar a temática Guarani Mbyá no módulo sobre Plantas e Espírito, com um grupo de cerca de 60 estudantes e 8 professores de diferentes cursos e unidades acadêmicas3.

Buscamos, no presente texto, evidenciar sua metodologia dialógica, circular e sonoro-performativa, que remete a algumas reflexões sobre as emoções, memórias, práticas, identidade, saúde e música que suas aulas provocaram em alunos e professores. Tudo isso a partir do registro sob a forma de: i) anotações e gravações de áudio e vídeo das situações de aula por parte dos professores; ii) diálogos e troca de impressões com o mestre Vherá Poty; e iii) análise dos trabalhos escritos, performances e outras formas de narrativas como desenhos, bordados e poesias desenvolvidos pelos alunos e pelas alunas participantes. Igualmente, apresentamos algumas reflexões a partir dessa experiência, nas perspectivas afro-pindorâmica e da ecologia de saberes. Antes disso, começamos com mais alguns apontamentos sobre os objetivos da disciplina Encontro de saberes.


1. Mestres polímatos e saberes complexos no Ensino Superior: a interdisciplina Encontro de Saberes


A proposta da interdisciplina Encontro de Saberes baseia-se na docência compartilhada entre os professores das universidades e os mestres dos Saberes Tradicionais e Populares e, conforme indicamos anteriormente, foi concebida na UnB em 2010, na esteira dos debates em torno da inclusão da população afrodescendente e indígena na educação superior e apresentando-se como uma ação de governo para o reconhecimento da importância das culturas populares e tradicionais (INCTI, 2015). No detalhamento da proposta, o antropólogo e professor da UnB José Jorge de Carvalho explica que o projeto extrapola a ideia de uma disciplina, pois

considera que os saberes complexos são multirreferenciais (vinculados a diversas fontes de produção e validação) e multidimensionais (com diferentes níveis de realidade, regidos por diferentes lógicas e condenando ao fracasso qualquer tentativa de se reduzir a realidade a um só nível) (INCTI, 2015, p. 12).


Essa pedagogia intercultural promove o enfrentamento do racismo estrutural na constituição histórica da universidade brasileira, através das experiências interepistêmicas que não separam teoria e metodologia, reflexão e intervenção. Por um lado, é interdisciplinar, por sua “capacidade de cruzar as fronteiras da segmentação moderna, recombinando linguagens, conhecimentos e metodologia” (INCTI, 2015, p. 13); por outro, também se define como transdisciplinar, por investir em “uma perspectiva de reflexão aberta sobre problemas concretos, capaz de reconciliar as Ciências Exatas com as Humanidades, bem como de incluir saberes externos ao paradigma moderno e ao cânone acadêmico” (Ibid.).

Esses saberes podem se constituir em mecanismos que colocam em xeque o modelo eurocêntrico e monocultural das universidades e instituições escolares, trazendo para o seu interior conhecimentos acumulados fora dos sistemas formais de ensino, mantidos por atores de grupos historicamente excluídos. Tais sujeitos são considerados polímatos, uma vez que seus conhecimentos operam em uma lógica de transversalidade que coloca em diálogo áreas que o saber da universidade segmentou (INCTI, 2015, p. 6).

Além dessa intenção descolonizadora implícita, a proposta da atividade de ensino está de acordo com as Leis nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) e nº 11.645/08 (BRASIL, 2008), as quais legislam sobre a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira, africana e indígena nos currículos escolares no Brasil. Ademais, vai ao encontro da meta da Câmara Interministerial de Educação e Cultura, regulamentada pela Portaria Normativa Interministerial nº 1/2007, de incorporar os mestres de ofício e das artes tradicionais nos vários níveis de ensino (BRASIL, 2007).

Na UFRGS, a Encontro de Saberes é oferecida semestralmente desde o segundo semestre letivo de 2016 (2016/2) e já envolveu mais de 300 alunas e alunos, docentes de várias unidades, quais sejam, Institutos de Artes (IA), Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Instituto de Geociências (IG), Instituto de Letras (IL), Faculdades de Agronomia (FAGRO), Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO), Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) e Faculdade de Educação (FACED), além de 25 mestres e mestras. Em cada semestre, normalmente são convidados 3 ou 4 mestres ou mestras, responsáveis por um dos módulos da disciplina, sendo assessorados por um coletivo de professores anfitriões.

Vale lembrar que esses docentes são pesquisadores e extensionistas com uma trajetória de trabalhos com esses mestres e mestras. Nesse sentido, além de intermediar a participação e a preparação dos encontros, eles são responsáveis por abordar e problematizar os aspectos metodológicos, conceituais e políticos dessa proposta. No desenvolvimento das aulas, propõem-se exercícios interdisciplinares de registro, de observação e de análise das situações de escuta, de trabalhos de campo, de práticas, de improvisações e de intervenções. Através dessas múltiplas modalidades de práticas complementadas por pesquisa teórica4, a disciplina ressignifica a proposição elementar de Boaventura de Sousa Santos (1996) de que as experiências sociais produzem conhecimento.

Assim como nas participações dos demais mestres, as experiências partilhadas entre Vherá Poty, estudantes e professores remetem aos saberes afro-pindorâmicos, definidos pelo intelectual e líder quilombola piauiense Antônio Bispo dos Santos (2015) a partir da territorialidade, e ecoam princípios existenciais e performativos na perspectiva de uma cosmo-sônica mbyá (STEIN; SILVA, 2014), como explicaremos a seguir.


2. O mestre Vherá Poty e os saberes afro-pindorâmicos e cosmo-sônicos



Fotografia 1 - Vherá Poty, mestre na interdisciplina Encontro de Saberes da.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), junho de 2017.

Autor: Eráclito Pereira.



2.1. Vherá Poty jeguatá - um pouco de sua trajetória

Diante de uma plateia de estudantes, vemos um jovem, de olhar determinado, semblante sereno, que observa os alunos que chegam atrasados. Cumprimenta-os, provocando nos alunos uma leve reação de constrangimento. Aos olhares de alguém desavisado, sobrevém uma certa estranheza, pela aparente pouca idade do mestre. No entanto, ela gradativamente se desfaz ao percebermos as belas palavras que são evocadas a partir da fala de Vherá Poty. Compreendemos, então, o valor contido no que se busca traduzir por “belas palavras”, das quais o mestre se coloca como agente: “assim como as flores que atraem os pássaros e insetos, possibilitando a formação de frutos e sementes que germinarão novas plantas, as belas palavras dos meus avós encantam meu pensamento: cores harmoniosas, aromas agradáveis e saboroso néctar” (POTY, 2015). Pela delicada potência de sua presença, podemos compreender a sua trajetória de atuação cultural, política, científica e educacional, ancorada em uma ampla rede das comunidades Mbyá e juruá (não indígenas), em especial tendo realizado diversos trabalhos de pesquisa e extensão em parceria com professores da UFRGS que atuam sistematicamente na Encontro de Saberes5.

Seu notório saber acerca de processos culturais e epistêmicos analisados em sua complexidade intergeracional, transterritorial e intercultural vem sendo expresso em atividades pedagógicas e artísticas e em produtos culturais. Vherá Poty atua com frequência como formador tanto em programas para educadores indígenas como em cursos de capacitação para não indígenas. Ele desenvolve as suas múltiplas potências expressivas e intelectuais de diversas formas, desde a orientação de grupos de canto e dança até a apresentação de trabalhos em eventos acadêmicos. Uma dessas criações é o livro-CD Yvy Poty, Yva’á: Flores e Frutos da Terra, lançado em 2009 e reeditado em 2012, realizado em pesquisa colaborativa desenvolvida na área de etnomusicologia da UFRGS6.


Fotografia 2 - Encarte do livro-CD Yvy Poty, Yva’á: Flores e Frutos da Terra

(2009, 2012), organizado por Maria Elizabeth Lucas e Marília Stein (GEM/ UFRGS).



Em colaboração com antropólogos visuais ligados à UFRGS e à Prefeitura de Porto Alegre, através de sua Secretaria de Direitos Humanos, foi produzido em 2010 o filme-documentário premiado7 Seres da mata e sua vida como pessoas.


Fotografia 3 - Encarte do vídeo Os seres da mata e sua vida como pessoas.

Ocuspocus Produções e Imagens Ltda, Porto Alegre, 20108.


Também na fotografia, o jovem mestre ensina como podemos contemplar os espectros da noção de belas palavras, que se convertem em belas imagens. Em parceria com o fotógrafo Danilo Christidis, Vherá Poty publicou o livro de fotografias Os Guarani Mbyá (2015). Resultado da experiência de estar junto no deslocamento por aldeias mbyá do sul do país, constitui-se em um registro da vida e do cotidiano das comunidades pela ótica de um Mbyá, marcando os principais elementos que ordenam sua existência, como as cerimônias na opy (casa de cerimônias), a celebração do milho, o contato com as matas, a neblina e o fogo.

Fotografia 4 - Capa do livro intitulado Os Guarani-Mbyá, de Vherá Poty e Danilo Christidis

Editora Wences Design Criativo, Porto Alegre, 2015.


Na pesquisa colaborativa sobre os cantos e danças mbyá no Rio Grande do Sul, as belas palavras contidas no ato de ouvir, de ver e de falar podem ser conjugadas pela proposição da noção de cosmo-sônica, forma que a pesquisadora e o seu professor Vherá Poty encontraram para sintetizar perspectivas vivenciadas do som na existência. Elas apontam para a centralidade do sonoro e cinético na produção da pessoa e do cosmos para a plenitude nos significados-sentidos-substâncias que promove e para a sua importância relacional, na medida do que representam no cotidiano e nos rituais extraordinários do calendário mbyá os processos de produzir coletivamente e de escutar os sons, as vozes e os cantos (STEIN, 2009).


Fotografia 5 – à esquerda, Ensaio e gravação de cantos e danças para Livro-CD Yvy Poty, Yva’á Tekoá Nhundy (Estiva, Viamão, RS); à direita, processo de edição em estúdio (São Leopoldo, RS, 2008). Acervo Grupo de Estudos Musicais (PPGMUS/UFRGS). Autor: desconhecido.


2.2 A cosmo-sônica como uma categoria existencial performativa Mbyá

Tendo em vista a sua formação polímata, Vherá apresenta, em sua maneira de conduzir os seus trabalhos, a não segmentação entre as práticas sonoro-performáticas e os outros momentos do cotidiano, do estudo, da saúde. Os cantos e as danças guarani - ele explicou nas três aulas da disciplina Encontro de Saberes realizadas por ele em uma sala de aula no segundo andar de um prédio no campus central da universidade no centro de Porto Alegre -, são referências para a condução da vida, na medida em que concentram valores em suas letras em guarani, preconizam a concentração, a solidariedade e o respeito profundos (nhembojeroviá), a ascese e a formação de um corpo atento, leve, forte e resistente.

Além de apresentar ao grupo os mboraí (cantos e danças tradicionais), Vherá propõe, a parte dos estudantes, que dancem o xondaro, uma dança de luta que é realizada no coletivo circulando em uma roda, enfrentando alguns desafios do kyringüé ruvixá. O mestre com um bastão desafia os estudantes a permanecerem de pé ou a se abaixarem para passar sob a clava, ou, ainda, a pularem sobre o obstáculo próximo ao chão que então o bastão representa. No cotidiano das comunidades mbyá, estas - dança e música instrumental - são feitas como concentração antes de uma sessão de rezas, geralmente no pátio antes de entrar na opy (casa de rezas ou fonte da eterna alegria, como descreveu Vherá em palestras anteriores9). Já na situação de aula na universidade, o xondaro é trazido como uma metodologia intercultural através da qual Vherá ensinou sobre mobilidade, atenção, respeito ao círculo e adequação ao imponderável. Cabe lembrar que acompanhar esses movimentos exige muita destreza e preparo físico, o que se constitui um desafio e um ensinamento de como o corpo precisa estar atento às interações com outros agentes e em consonância com o meio.

Algumas reflexões promovidas por Vherá na interdisciplina Encontro de Saberes foram reiteradas em outros momentos de ensino. Uma delas consiste em analisar criticamente a incapacidade da universidade de acolher a diversidade. Ela, pondera Vherá, deveria ser pluriversa, ou seja, promover o desenvolvimento das pessoas de maneira atenta à diferença de suas cosmologias, aos seus valores, às práticas culturais e aos corpos. No entanto, segundo o mestre, em vez disso, constitui-se em uma puniversidade. Ainda que, há mais de 10 anos, a UFRGS tenha regularizado o ingresso de estudantes indígenas através de vestibular específico10, trata-se de um processo muito recente e de transformações sociais e educacionais muito lentas, as quais enfrentam a resistência de setores da universidade que se negam a abrir-se democraticamente às pessoas de trajetória periférica e às epistemologias não ocidentais europeias.

Além de fazer essa contundente crítica ao ensino, o mestre Vherá provocou a lógica da cultura científica estabelecida, cujos representantes se permitem encastelar em uma posição eurocêntrica e/ou tratam os outros como objetos ou mesmo como mercadorias. “Não basta vir pesquisar, tem de conviver”, disse ele, trazendo nessas aulas um princípio importante que vem repetindo em outras situações como palestrante. Critica, assim, pesquisadores que muitas vezes buscam-no e seus familiares e que, depois que aprenderam muitas e valiosas informações e reflexões guarani, afastam-se sem explicação e sem um retorno da pesquisa, nem um gesto de reciprocidade, muito menos se mantendo aliados nas lutas necessárias que os Guarani vêm conduzindo para conseguir manter seu modo de existência ou simplesmente se manter vivos.

Vherá tem trabalhado como um kyringüé ruvixá (mestre das crianças) com meninas e meninos, coordenando grupos de cantos e danças, e gravou dois CDs de cantos e danças tradicionais (2001; 2012[2009]). Tem colaborado também em pesquisas sobre cantos de dormir (mitã mongueá) e de brincar guarani (nheovangá) (STEIN, 2009) e sobre música instrumental (mba’epú), como os xondaro (música dos xondaro’í e xondaria’í - guerreiros e guerreiras) e as mimby − música das flautas femininas − (LIMA RODGERS et al., 2016)11. Na esteira desses projetos, coordenou oficinas de música guarani tradicional para crianças e adultos guarani, em diferentes tekoá (aldeias), e para jovens e adultos juruá (não indígenas).

Nesses contextos musicais, Vherá desenvolvia formas de expressar em palavras e performances o profundo sentido vital dos sons, que percebe quem observa e participa do dia a dia ricamente sonorizado das comunidades guarani. Referindo-se aos mboraí sagrados – tanto aqueles gravados para difusão intercultural e intercomunitária, como aqueles exclusivos do convívio entre familiares guarani, os mboraí evocados nas rezas –, Vherá explicou para os estudantes e os professores que “a música tem tudo dentro dela”, no sentido de que expressa em suas letras e em seus sons instrumentais e vocais, assim como em suas coreografias e em outros de seus elementos marcantes – como o uso do cachimbo ritual (petynguá) e a produção do fogo de chão no centro das atividades - diversas dimensões da vida, do mundo terreno e divino, das relações com outros humanos e extra-humanos. “Ela já diz por que veio”, completava Vherá, afirmando que os sons, com seus textos em guarani e suas coreografias associadas, remetiam às divindades, à ascese, a alegrar-se.

No documentário Nhemonguetá (2017), Vherá é entrevistado sobre o modo de ser e estar guarani mbyá. Ali o já experiente pesquisador de música e da cosmo-sônica guarani aponta a existência nesse povo originário da escolha de abraçar as músicas, os sons e as narrativas como elementos-chave da constituição de relações com humanos e divinos, da produção da pessoa e da construção coletiva do próprio espaço-tempo – “som é vida”.


2.3 Saberes afro-pindorâmicos

Entre os fundamentos da disciplina, está a centralidade dos saberes dos mestres e mestras em presença na efetivação de práticas educativas que são também políticas e criadoras de identificação e de um estar em comum. Experimentamos os significados de que apenas os mestres e mestras, com seus corpos, seus gestos e suas trajetórias, respaldados pelos seus coletivos e por uma memória, podem criar um sentido de comunidade no espaço dessa relação intersubjetiva com os alunos e com os professores da universidade. Espaço de trocas e fluxos que não costuma ser percebido na vida social cotidiana desses discentes, ou seja, possibilidade de friccionar fronteiras raciais e sociais em fazeres e sentires que conduzem a uma cognição diversa da usualmente experimentada nas salas de aula. Em coerência com essa intenção, temos indicado autorias que procedem das matrizes não ocidentais, comprometidas com a justiça cognitiva e com a forma de diálogo nas diferenças e nas trocas.

Um exemplo desses referenciais éticos e estéticos historicamente subalternizados é aquele formulado pelo já citado intelectual Antônio Bispo dos Santos, que atuou como mestre na ocorrência da disciplina Encontro de Saberes na UnB. Seu livro Colonização, quilombos: modos e significações (2015) oferece original interpretação do Brasil com base nas inúmeras rebeliões antirracistas de povos tradicionais em luta por seus territórios e sua sobrevivência desde o período colonial até a contemporaneidade.

As bases civilizatórias negras e indígenas, que nomeia criativamente de afro-pindorâmicas, são observadas por Antônio Bispo dos Santos na concretude do trabalho com a terra e nas suas disputas desde a infância. Atitudes de contracolonização são assumidas por essas sociedades organizadas a partir do paganismo politeísta, ou seja, nos termos do autor, em formas de organização circulares e/ou horizontais e nos pluralismos subjetivos e concretos que usam o modelo orgânico (realidade) no processo de reedição dos recursos naturais pela lógica da biointeração (confluência). Nesses grupos, a predominância de divindades territorializadas presentes nos elementos da natureza (fogo, ar, terra e água) inspiram a força vital e a experiência compartilhada (na festa, no terreiro, na capoeira).

Nas palavras de Antônio Bispo dos Santos, tal modelo contrasta frontalmente com as organizações verticais e/ou lineares do formato patriarcal e homogêneo do monoteísmo judaico-cristão e do capitalismo, tributárias do modelo sintético (aparência) nos processos expropriatórios do desenvolvimento colonizador e do caráter falacioso dos processos de sintetização e de reciclagem do desenvolvimentismo (in)sustentável. Do ponto de vista da organização social, o Deus abstrato e desterritorializado gera relações de posse com a terra e de submissão a um trabalho que oprime o indivíduo, ao qual resta a competição e a negação da comunidade.

Como se nota, a partir da noção fundante de biointeração, seus termos atacam consensos duvidosos empregados em projetos de modernização vigentes, como os que propagam a sustentabilidade a partir da reciclagem da matéria plástica, alertando para os seus limites éticos e para a sua inviabilidade sistêmica. A base para as definições de Bispo dos Santos são as criativas e singulares leituras que realiza de textos e de discursos consagrados pelo saber do Ocidente como a Bíblia, as bulas papais, a carta de Pero Vaz de Caminha, os Estudos de Impacto Ambiental (EIA/RIMAS), os quais ele classifica como elementos de colonização, de recolonização e de expropriação.

As experiências oportunizadas por Vherá Poty nas aulas evidenciaram vários desses elementos afro-pindorâmicos, como na fala seguinte, em que observa a cosmovisão que horizontaliza os sujeitos no encontro com o outro:

Na primeira aula do mestre Vherá Poty, quase todos se colocaram indígenas por descendência, em uma dinâmica que foi essencial, um movimento de apresentação por meio da voz e do olhar que nos colocou em contato, novamente, com nós mesmos e com o outro. Uma das questões mais profundas que o mestre Vherá Poty apresentou, falando sobre o modo de vida mbya guarani, a meu ver, foi sobre o fato de não vivermos mais juntos. Vivemos isolados em apartamentos nas cidades, não vivemos em comunidade. As faces do outro não conhecemos mais, por isso não perdoamos o próximo. Ou melhor, parece que perdemos a capacidade de experiência e alteridade. Essa questão ainda reverbera... Quando foi que separaram a vida das coisas? Foi o que pensei logo após a primeira aula com o mestre Vherá Poty. Para os povos originários, desde a grande invasão, desde o surgimento das cidades desse mundo desconhecido, dessa política da sociedade ocidental (Lygia Stephanni Gomes, aluna da ES, 2017).


Conjugando forma e conteúdo, a aluna Victória Deckmann Santos empregou o bordado para sintetizar nas figuras do indígena Sepé e do lanceiro negro e seus objetos as identidades de povos territorializados. A partir do que escutou de Vherá, marcou a importância do cachimbo (petynguá), usado tanto em rituais quanto no cotidiano, e da fumaça que o protegia na cidade. Sobre o milho, além de mencionar a cerimônia do batismo das crianças e de benção à colheita (Nhemongaraí), fez referência à semente nativa, uma reação ao milho transgênico. A dimensão espiritual e musical é contemplada com o chocalho (mbaraka mirim ou mpa’epu mirim), instrumento majoritariamente masculino, utilizado em práticas de cura, durante a dança de xondaro e para despedida e visita de parentes. Esses elementos configuram os saberes transversais do mestre, os quais articulam na vida a espiritualidade, a ciência, a música.


Fotografia 6 – Detalhe do trabalho apresentado pela aluna Victória Deckmann Santos, que narra na forma de bordados os aprendizados experienciados na disciplina Encontro de Saberes, no segundo semestre letivo de 2017.


3. Os impactos das epistemologias do Sul

No contexto da modernidade, a ciência ocidental, o capitalismo e o paradigma judaico-cristão foram colocados sob um pressuposto de universalidade de que uma série de povos e sociedades não fariam parte. No entanto, têm surgido perspectivas de análise que confrontam esse poderoso constructo teórico e ideológico com a proposição de que existem outras formas de interpretação e de experiência histórica que seguem irredutíveis aos modos os quais o Norte do planeta consolidou como parâmetro. As chamadas epistemologias do Sul não só sustentam que há no mundo uma diversidade epistemológica, ou seja, outros conhecimentos e outros modos de conhecer, como defendem que precisam ser abertos espaços para afirmar essas formas de conhecer. Para isso, igualmente são demandadas interpelações para que se voltem a considerar os contextos sociais e culturais que produziram esses conhecimentos, com a valorização e o reconhecimento dos povos que, tendo sido colonizados e silenciados pelo pensamento único da modernidade ocidental, seguem oferecendo vias alternativas de existência, práticas e intervenções que tornam o mundo um lugar mais rico e complexo.

Boaventura de Sousa Santos (2010) demanda capacidade autorreflexiva para que os consensos do pensamento abissal12 do Norte global, produzidos sobretudo pela ciência e pelo direito nos entornos de proposições monoculturais de verdade e de legalidade, sejam interpelados pela superação da linha que os separa da outra parte do mundo (o Sul), reservado a um pensamento pós-abissal. Tal mudança passa pelo reconhecimento da humanidade desses sujeitos ao Sul e pela efetivação da justiça cognitiva na colocação em posições de igualdade das heterogeneidades trazidas por uma ecologia de saberes provenientes de povos e lugares ao Sul. Uma das mais contundentes contribuições desses agentes está efetivamente na defesa da biodiversidade, alvo preferencial dos projetos neocoloniais de desenvolvimento sustentados pela ciência moderna.

Uma voz expressiva desse pensamento heterogêneo que promove a ecologia de saberes no Brasil tem sido a de Ailton Krenak13. Na maioria dos livros publicados, os escritos resultam de falas e entrevistas em que plateias e leitores de vários lugares do planeta recebem com a reverência merecida a lucidez sobre a catástrofe do presente. Nos recentes Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e O amanhã não está à venda (2020), ele alerta sobre o permanente estado de choque de gentes que, além de predar uns aos outros, expropriam incansavelmente o planeta. Resultado de escolhas erradas, os brancos, em nome da colonização e da razão, destruíram outros povos e sobretudo separaram humanidade e ambiente. Krenak acerta ao apontar o sintoma mais grave deste tempo: especialista em criar ausência, afeta o sentido de viver em sociedade e o próprio sentido da experiência da vida. A seu ver, é isso que gera a intolerância com relação aos povos indígenas, que ainda são capazes de experimentar o prazer de estar vivo, de cantar, de dançar e, com isso, de resistir, algo que a sociedade capitalista se recusa a reconhecer.

Na mesma direção, Davi Kopenawa publica, em parceria com o antropólogo Bruce Albert, o monumental A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015). Partilha o relato de sua trajetória pessoal, que é também uma condenação das recorrentes ações de extermínio sobre seu povo por parte de agentes públicos e grupos religiosos. A obra oferece um espelho que reflete a perturbação da sociedade dos brancos, cuja memória e pensamento lhe parecem obscuros, tomados de ignorância e esquecimento por dependerem do papel em que desenham as palavras. Kopenawacondena a desmedida cobiça, razão das epidemias (poluição, doenças) que podem afastar os espíritos da floresta e impossibilitar os xamãs de segurar o céu, quer dizer, de impedir a destruição do planeta.

Tivemos a oportunidade de experimentar semelhantes percepções dolorosas e agônicas, ao longo das aulas de Vherá, sobre a necessidade de respeitar a vida e de reconhecer a relação entre todos os seres e ainda sua dependência para com o planeta. E também pudemos reconhecer formas de produção e de transmissão de conhecimentos a partir de uma ecologia dos saberes. Em vários relatos de alunos da disciplina Encontro de Saberes de 2017, essa luta epistêmica se fez presente. Na reflexão de Luana Cruz,

Vherá contou que seu avô pedia que tivessem cuidado com a cidade grande, pois ela era como um espelho que podia tirar-lhes a visão do real. A cidade brilha tanto que as coisas parecem ser o que não são. “Na cidade as pessoas não são pessoas, o que as torna pessoas é um papel” (Luana Cruz, aluna da ES, 2017)


Aqui, por conta da experiência sensível da escuta, da roda, da voz e de um ritmo diferente, o mestre realizou uma outra cognição, colocou em crise o modelo da dita “cidade grande” e da escrita, como também colocam Ailton Krenak e Davi Kopenawa em suas proposições sobre a crise planetária, que resulta da falência do modelo predador legado pelo colonialismo e seguido pelo capitalismo. Semelhante entendimento teve Gisela Teixeira de Aguiar:

Um final de tarde, a sala meio na penumbra e o mestre indígena Vherá Poty conversando com a turma. Sem dúvida, isso comprova que a oralidade é um dos elementos balizadores para a construção do conhecimento da cultura. É através deste instrumento que os saberes e fazeres da comunidade indígena (assim como a negra) são repassados de geração em geração, sendo firmados através da experiência e pela celebração da vida (Giselda Teixeira Aguiar, aluna da ES, 2017).


Como vimos, para Davi Kopenawa, a dependência das palavras escritas torna o pensamento confuso e obscurece a memória. A mesma compreensão teve a aluna na observação da forma com que oralmente Vherá Poty transmitiu a sabedoria dos Mbyá, em consonância com a vida na continuidade das gerações e da memória partilhada no coletivo.


Considerações finais

Possivelmente um dos efeitos mais evidentes sobre os discentes que cursam a interdisciplina Encontro de Saberes encontra-se no fato de poderem experimentar de forma concreta como os saberes populares/tradicionais e acadêmicos se interconectam, convergindo para uma formação interepistêmica poucas vezes experimentada nas universidades e nas demais instituições escolares. Os saberes e os fazeres oportunizados pelos mestres e mestras comprometem a experiência pedagógica com as suas territorialidades. Além disso, eles esbanjam criatividade e alegria em espaços afetados pelos danos do produtivismo e da competição desmedida.

O impacto cosmo-sônico foi o cerne da presença do mestre Vherá no semestre em que foi professor na interdisciplina Encontro de Saberes. Quando os estudantes dançaram, cantaram e escutaram suas palavras e as dos outros, eles perceberam ativamente em seus corpos espacialidades e modos de existência. Mediados pelo som e pela performance, alguns projetaram-se nas visões de mundo que acessaram uma ancestralidade indígena: práticas, alimentos e hábitos permitiram o reconhecimento do que, apesar de silenciado, permanecia inscrito no corpo e nos sentidos. Mesmo quando apreciaram as fotografias no referido livro da autoria de Vherá e Danilo Christidis, compartilhando experiências, memórias e dúvidas entre olhares e cuidados, fizeram-no com destaque para os aspectos sonoros (a visão projetando-se nas sonorizações/escutas de mundo).

De fato, essas fotografias são muito sonoras em sua expressividade: o mestre do xondaro com o popyguá soa e faz dançar; a névoa primeva, em uma foto do amanhecer, ressoa corporificada pelo hy'akuá porã (forma antiga de chamar o chocalho ritual, o mbaraká mirim); nas imagens das crianças sorrindo e brincando, ecoam seus risos; o parakau/papagaio alimentado pelo mestre lembra que se trata de um mensageiro portador de voz e guardador da Yvy Marãeï, a Terra Sem Males, que se atinge pelo oguatá/caminhar para a perfeição. Não parece coincidência, portanto, que muitos dos mboraí/cantos e danças remetam ao caminhar. Com a intenção de evocar essa sabedoria milenar, coletivamente entoamos e dançamos “Xondaro ruvixá” (guardião mestre), mboraí criado por Vherá Poty e pelo Grupo da Tekoá Jataitý/Terra Indígena do Cantagalo, Viamão, na performance do Grupo Nhãnderú Pápá Tenõndé no já mencionado CD Yvy Poty, Yva’á / Flores e Frutos da Terra. Os versos dizem:

Xondáro ruvixá jogüerovy’á

xondáro ruvixá nhãnẽmbovy’á

Xondáro ruvixá imbaraeté

xondáro ruvixá ipy’á guaxú


(Com sua eterna sabedoria

O guardião-mestre das danças sagradas

Transmite-nos imensa alegria

Com sua verdadeira força

O guardião-mestre das danças sagradas

Traz no seu coração imensa luz)


Nesse momento, como em tantos outros, não éramos mais separados em alunos, alunas, professores, professoras, mestres e mestras, mas subjetividades conectadas pela força da presença corpórea, horizontal e festiva dos que em círculo praticam a força vital como enfrentamento do que a modernidade e o colonialismo seguem impondo como individualismo, competição, hierarquia e desigualdade. Novamente, não é casual a perfeita tradução da aluna Carolina Santiago sobre os sentidos do “encontro” viabilizado pela disciplina:

Vherá Poty, mestre indígena convidado e responsável por guiar o último módulo, apesar de jovem se mostra muito sábio, e fala também sobre a luta desde muito cedo e de como se tornou uma liderança guarani mbya. Recorda com bom humor alguns dos contrastes no seu contato com a cidade; do cotidiano com seu povo. Tentando nos explicar a relação da sua comunidade com a natureza, com os seres da natureza e o alimento, à medida que falava os olhares de interesse dos alunos se intensificavam, novas perguntas iam surgindo e novos encantamentos nasciam. A disciplina oportuniza verdadeiros encontros, de ser humano com ser humano, é o potencial de suas presenças que nos fala, é o olhar, a voz que brinca com silêncios, que prepara surpresas, se anima e se emociona. [...] Por isso é tão importante repensar o lugar da fala14, e que vozes são essas que não são ouvidas, mas que aos poucos engendram caminhos de autoafirmação e vão reconquistando seus direitos. A presença de Vherá Poty e sua fala representativa são fundamentais para a desconstrução do estereótipo relacionado ao índio como ser exclusivamente vinculado à vida na floresta (Carolina Santiago, aluna da ES, 2017).


Afetados pela escuta do que elaborações como essa trouxeram, fortalecemos, enquanto coletivo de professores e professoras, a convicção da potência no sentir, pensar e fazer acionados pela disciplina, potência essa só atingida porque expande, para além dos muros da universidade e para mundos diversos, o horizonte a conhecer, os encontros a realizar. A criação dessa interdisciplina nos parece uma tentativa de resposta descolonizadora a problemas tanto no nível das sociedades (com a continuidade do racismo) como no planetário (com a continuidade da predação do ambiente e dos seres), cujas soluções, se existirem, provavelmente surgirão de iniciativas interepistêmicas, relacionais e dinâmicas.


Referências

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VHERÁ POTY; CHRISTIDIS, Danilo. Os Guarani Mbyá. Porto Alegre: Wences Design Criativo, 2015.



SOBRE AS AUTORAS


RUMI REGINA KUBO é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Botânica, professora do Departamento de Ciências Econômicas e Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudos em Desenvolvimento Rural Sustentável e Mata Atlântica (Desma), do Núcleo de Antropologia Visual (Navisual) e do Núcleo de Estudos em Segurança Alimentar e Nutricional (Nesan).

E-mail: rumikubo2002@gmail.com


Marília Raquel Albornoz Stein é doutora em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Grupo de Estudos Musicais (GEM/PPGMUS), do coletivo interdisciplinar em Etnomusicologia/Antropologia e do Grupo de Docentes da interdisciplina Encontro de Saberes.

E-mail: mariliastein@ufrgs.br


Ana Lucia Liberato Tettamanzy é doutora e mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora do Instituto de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora do Projeto de Pesquisa Integrado (CNPq) Letras e vozes anticoloniais, do Projeto de Extensão Quem conta um conto – contadores de história, e da Rede Povos originários e diaspóricos: territorialidade e epistemologias, vinculada ao Instituto de Estudos Latino Americanos (ILEA/UFSC), participa, desde a criação, da disciplina Encontro de Saberes (UFRGS).

E-mail: atettamanzy@terra.com.br


VHERÁ POTY BENITES DA SILVA é videasta e fotógrafo, ministra aulas de cultura e língua Guarani, trabalha com música Guarani, no segundo semestre letivo de 2017, foi responsável pelo módulo Plantas e espíritos na transdisciplina Encontro de Saberes (UFRGS), foi kyringüé ruvixá (mestre das crianças) em grupos de canto e dança Guarani-Mbyá no Rio Grande do Sul e no Paraná . Colaborou em diversos projetos sobre o modo de ser/estar Guarani no sul do Brasil: projeto fotográfico registrado no livro Presença Indígena na Cidade: reflexões, ações e políticas (Porto Alegre, SMDH-NPPPI, 2012), projeto etnomusicológico colaborativo registrado no livro-CD Yvý Poty, Yva’á – Flores e Frutos da Terra (Porto Alegre, GEM-PPGMUS-UFRGS/IPHAN, 2009, reimp. 2012), projeto fotográfico Os Guarani Mbyá (livro e exposição itinerante apresentam narrativa fotográfica de Vherá Poty e Danilo Christidis), documentário Os Seres da Mata e Sua Vida Como Pessoas - Nhandé Va’e Kue Meme’ĩ (Porto Alegre, 2010, premiado e co-dirigido por Rafael Devos) e A memória através dos cantos (PRODOCSON, Museu do Índio-FUNAI-UNESCO, Rio de Janeiro, RJ), entre outros.

E-mail: poty5015@gmail.com




Recebido em: 11.03.2020

Aceito em: 18.05.2020


1 Para ter acesso tanto ao histórico da implementação da política na UFRGS, como a análise de seus resultados, indicamos o artigo “Negros e indígenas ocupam o templo branco: ações afirmativas na UFRGS” (2017), de Arabela Campos Oliven e Luciane Bello.

2 A disciplina Encontro de Saberes na UFRGS estabeleceu-se a partir do Instituto de Artes, no Departamento de Música, mas contou, desde seu início, com professores e servidores técnicos de diferentes unidades da universidade atuando na sua concepção e nas suas atividades. Em 2017/1, foram 4 mestres que ministraram as aulas: no Módulo 1, estiveram a mestra Maria Elaine Rodrigues Espíndola e o mestre Paraquedas (Eugênio Silva de Alencar); no Módulo 2, esteve Vherá Poty Benites da Silva; e no Módulo 3, a mestra Griô Sirlei Amaro. Na ocasião, os 9 professores que atuaram compartilhando a docência com os diferentes mestres foram: Carla Meinerz e Eráclito Pereira (Módulo 1); Ana Tettamanzy, José Otávio Catafesto de Souza Marília Stein e Rumi Kubo (Módulo 2); e Maria Andreia Soares, Maria Elizabeth Lucas e Luciana Prass (Módulo 3).

3 Em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, na região Sul do Brasil.

4 Alguns relatos e subsídios teórico metodológicos podem ser acessados em Stein, Kubo, Prass e Tettamanzy (2019); e Nogueira, Barcelos Doebber e Stein (2018). A experiência teve divulgação em programa institucional da TV UFRGS em 2018 (Disponível em: https://bit.ly/2FueG5F) e em matéria no Jornal da Universidade (https://bit.ly/2N3726j).

5 Cabe destacar que a rede de colaboração científico-cultural de Vherá extrapola em muito a UFRGS. Possui parceiros de trabalho em instituições de ensino superior como a Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e em escolas particulares de Educação Básica em Porto Alegre e outras cidades. Além disso, recebe convites de inúmeras instituições de ensino e pesquisa para trabalhos diversos, de palestras a gravação e produção audiovisual.

6 O projeto foi realizado por demanda de lideranças guarani a integrantes do Grupo de Estudos Musicais (GEM/PPGMUS/UFRGS), coordenado por Maria Elizabeth Lucas e com financiamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

7 Recebeu o Prêmio Pierre Verger da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 2012.

8 Direção: Rafael Victorino Devos, com roteiro de Ana Luiza Carvalho da Rocha, Rafael Devos e Vherá Poty. Produção: Núcleo de Políticas Públicas para os Povos Indígenas da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Porto Alegre, 2010. Duração: 27 minutos. Áudio: Mbyá-Guarani e Português. Legenda: Português.

9 Ver, por exemplo, ROSADO, Rosa Maris; FAGUNDES, Luiz Fernando (orgs.). Presença indígena na cidade: reflexões, ações e políticas. Porto Alegre: Gráfica Hartmann, 2013.

10 Ver a resolução nº 137 em UFRGS (2007).

11 Participou como pesquisador indígena de um estudo sobre sonoridades Guarani (2012-2014), do Museu do Índio do Rio de Janeiro/UNESCO.

12 O tema do pensamento abissal é recorrente no desenvolvimento dos escritos de Boaventura de Sousa Santos. De forma geral, está relacionado ao pensamento moderno ocidental, campo conceitual do capitalismo e do colonialismo em sua perspectiva monocultural que mantém parcela dos povos e nações silenciadas e impossibilitadas de validar conhecimentos de mundo e práticas sociais. Nas sociedades metropolitanas, a modernidade se expressa na tensão entre regulação e emancipação; nas sociedades colonizadas, aplica-se o par apropriação e violência. O conhecimento (ciência) e o direito modernos têm sido as manifestações mais acabadas do pensamento abissal. O nome abissal remete à evocação de um sistema de diferenças fundamentais, uma linha divisória, que resulta na não permeabilidade entre os conhecimentos de cima da linha global – os do Norte -, e os de baixo da linha global – os do Sul. O autor aponta a ecologia dos saberes e a co-presença como elementos de um pensamento pós-abissal, radicado na condenação da guerra e da intolerância e na aceitação de outras formas de conhecimento além do científico, de modo que se possam cruzar conhecimentos e ignorâncias.

13 Importante liderança indígena, que teve papel fundamental nos debates da Constituinte em 1987, quando protagonizou a defesa da manutenção no texto do artigo que garantia o reconhecimento do direito à terra e aos modos de vida próprios. Se já ali estava em risco o direito, a sua precária implementação tem sido nos últimos anos atacada por sucessivos projetos de leis e medidas provisórias que visam a flagrantes retrocessos.

14 A expressão “lugar de fala” tem ganhado espaço nas discussões sobre o racismo estrutural, que, no Brasil, impede certos grupos sociais de acessar certos espaços e de ter suas produções e epistemologias reconhecidas. Nos termos da teórica Djamila Ribeiro, “O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas a poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (RIBEIRO, 2019, p. 64).



Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.13, p. 323-351, maio/ago. 2020.