RESENHA


O FERMENTO DE GRAMSCI NA NOSSA FILOSOFIA, POLÍTICA E EDUCAÇÃO



Por Larissa Costa Murad

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Rio de Janeiro, RJ, Brasil


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i12.34767



Dados catalográficos da obra LOLE, Ana (Org.). O fermento de Gramsci na nossa filosofia, política e educação. Rio de Janeiro: Mórula, 2018



O livro O fermento de Gramsci na nossa filosofia, política e educação mostra a que veio desde o instigante título. Perante uma realidade tão complexa que chega a se confundir – por vezes, literalmente – com a ficção, o legado de grandes pensadores só pode ser profícuo quando tratado como uma espécie de fermento, por meio do qual cresçam reflexões que se propõem a problematizar o hoje.

Diante de diversas turbulências, como encarar o desafio de recuperar o legado deixado por pensadores originais sem cair na armadilha de reproduzir suas categorias e seus conceitos de maneira infértil, desconsiderando a realidade atual?

Os autores que contribuíram para que o livro em questão ganhasse corpo fizeram duas apostas: a primeira, na realização de um trabalho colaborativo, tendo em vista que a obra surge a partir das reflexões realizadas no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE), sendo um fruto vultuoso da coletivização do pensamento propiciada pelo núcleo. A segunda, na recuperação do pensamento de Antonio Gramsci como elo entre as diversas temáticas que compõem o livro, conformando um claro direcionamento teórico e político.

Não obstante a pertinência da obra, lançada em um momento no qual o "marxismo cultural” gramsciano1  é indicado por segmentos da extrema direita como fundamento de ideologias a serem combatidas, o que de fato surpreende e confere originalidade ao livro em questão é a aposta dos autores nesse exercício de, a partir do vasto léxico gramsciano e da exposição dos nexos que costuram conceitos como hegemonia, consenso, bloco histórico, ideologia, sociedade civil, classes subalternas, dentre outros, apresentar ensaios de leituras de questões e de processos atuais, caminhando, portanto, para além da necessária recuperação da biografia e de categorias de Gramsci, outros sustentáculos que conformam essa publicação. 

Vale destacar que tal exercício nasce de práticas de trabalho intelectual coletivo, mas resguarda, ao mesmo tempo, a trajetória individual de cada um dos autores e seus interesses de pesquisa.

Isso posto, logo na leitura dos primeiros capítulos, percebemos que a divisão entre filosofia, política e educação é somente uma opção metodológica pertinente à organização da obra, ou seja, consonante com o nível de criatividade que a composição desse tipo de publicação, com diversidade de temas e de subtemas, exige.

Além da recuperação direta da biografia de Gramsci, da releitura acerca do sentido de suas categorias2 e de textos que abordam temas e experiências pertinentes à reflexão sobre a educação no Brasil em distintos tempos históricos, o leitor encontrará também exposições que versam sobre diversas questões específicas à realidade brasileira, como a relação entre mídia e hegemonia no Brasil contemporâneo, os protestos ocorridos entre 2013-2015 e a relação entre o movimento estudantil e o uso estratégico das redes sociais.

Contando ainda com um capítulo que propõe o resgate das experiências da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST/ Brasil) e das Universidades populares das Mães da Praça de Maio (na Argentina), o livro impulsiona a necessidade de se refletir sobre as possibilidades e os limites de se estabelecerem movimentos contra- hegemônicos.

Contudo, o que poderia soar para o leitor distraído como adesão acrítica à compartimentalização do saber revela-se o motor que impulsiona a obra. O agrupamento dos capítulos em três partes como opção metodológica funciona no sentido de reforçar o entendimento segundo o qual as categorias forjadas no âmbito do legado do pensamento de Gramsci só podem ser compreendidas considerando sua estreita relação. No decorrer da leitura, notamos a indissociabilidade existente entre filosofia, política e educação, campos inter-relacionados na obra de Gramsci.

Tal opção metodológica se mostrou exitosa tendo em vista o grande ganho do livro como documento que se propõe a apresentar elementos do mosaico através do qual olhamos para a realidade atual, mas não necessariamente a enxergamos. Assim, a mesma realidade que dá provas concretas e constantes de seu esgotamento é obliterada por uma série de subterfúgios que limitam nossa experiência intelectual e afetiva. Por diversas vezes, ao olharmos através desse mosaico, somos tragados por seu encantamento de cores e de cacos, sem vivermos efetivamente a experiência de juntar os pedaços e conferir sentido a eles. Sem, portanto, colá-los.

No entanto, não é parte do escopo do livro oferecer ao término da leitura o mosaico pronto. Isso exige do leitor um esforço de elaboração acerca dos nexos que unificam as diversas reflexões que a obra instiga. Nesse sentido, a obra prefigura a interlocução com todos aqueles interessados em conhecer, aprofundar e estabelecer diálogo com o pensamento de Gramsci.

Recuperar o fermento de Gramsci para pensar o hoje e delegar ao leitor que se pretende gramsciano a elaboração de questões apresentadas no decorrer da leitura foi uma forma inteligente de problematizar a complexificação do real pelo resgate de nexos que podem – guardadas as opções teórico-políticas de quem o lê – conferir algum sentido ao real que, atualmente, mais parece um pesadelo desforme do qual está difícil de acordar.

Os desdobramentos do movimento neoconservador, que no Brasil saiu fortalecido das eleições de 2018 agravando a tendência antipolítica, indicam-nos que chegamos a um ponto em que não há garantia de que os movimentos sociais, populares e espontâneos atuantes sejam capazes de organizar a contra-hegemonia. Em um contexto no qual a esquerda (e seus diferentes segmentos) foi "pega com as calças na mão", perdeu-se de vista a necessária reorganização da moralidade e da intelectualidade apontada por Gramsci como elemento constitutivo da disputa por hegemonia. Ao ter como pressuposto a relação intrínseca entre filosofia, política e educação, o livro recoloca Gramsci como pensador atual, em cujas obras podem-se encontrar pistas para a reconstrução do mosaico despedaçado ao qual se resume a política perante a impotência dos sujeitos.

Cabe considerar ainda os limites de capítulos relativamente curtos, cujo propósito é apresentar ensaios que contribuam para a problematização do real a partir da herança daquele que rompeu com o destino de ser um intelectual relegado aos porões da perseguição política – que, diga-se de passagem, volta a nos assombrar em pleno século XXI.

O tamanho dos ensaios, porém, não embaça sua significância, creditada à recuperação de Gramsci na tentativa de elaborar os nexos que poderiam potencializar os diversos movimentos insurgentes e antissistêmicos. Esses textos não perdem de vista a necessidade de se problematizar também experiências que se conformaram em alternativas potencialmente contra- hegemônicas e acabaram por descambar em espontaneísmos infrutíferos, em uma quadra histórica marcada pelo aprofundamento da crise do capital, pela complexificação da violência e pela substituição – até certo ponto – da interação inspirada no modelo de universidade e nos valores iluministas pelo mergulho resiliente na Matrix. Essa metáfora – Matrix –representa bem o capital na era da perda substantiva dos lastros da acumulação de valor, mimetizada pelas redes sociais e transposta para os afetos, transformando, significativamente, por consequência, as formas de se conhecer o real.

Dessa maneira, o livro nos remete a alguns questionamentos: qual a possibilidade de construção de movimentos contra-hegemônicos dada nossa impotência perante o domínio da abstração capital? Reação ainda é capaz de se transformar em contraponto ao sistema ou representa uma condenação à eterna repetição? Em que sentido, as reflexões de Gramsci possuem interlocução com perspectivas teóricas e pensadores distintos?

A obra de Gramsci deu margem a diversas interpretações e desdobramentos não necessariamente consonantes, já que advêm de um pensador tão complexo. O livro em questão denota clara opção pela leitura do filósofo italiano em relação à educação, sem, no entanto, desconsiderar a vinculação orgânica dessa área com a filosofia e com a política. Cabe aos pesquisadores gramscianos brasileiros estabelecer o diálogo e, por consequência, potencializar o alcance da obra.

Por fim, sendo o livro um esforço coletivo, fica implícita a seguinte questão: o trabalho intelectual na era do assalariamento ainda é capaz de romper com as ideias rasas? O esforço coletivo que propicia as diversas pesquisas apresentadas no livro constitui, ao nosso ver, sua originalidade e, ao mesmo tempo, o limite de aprofundamento dos nexos propostos.

Perante a complexificação do real, os nexos precisam ser construídos a partir da observação das práticas sociais. Nesse sentido, o livro traz pistas inquietantes e nos lega mais indagações do que respostas. Assim, não se trata de uma obra dirigida àqueles que curtem fórmulas prontas e saídas mágicas para a teia do real que nos prende. Afinal, o pensamento em tempos como os nossos só pode crescer sem solar respeitando o tempo de forno.

SOBRE A AUTORA


LARISSA COSTA MURAD é doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista PNPD/ CAPES no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGSS/ CCS/ UERJ) e colaboradora no Programa de Estudos de América Latina e Caribe (PROEALC/ CCS/ UERJ). Professora convidada nas pós-graduações “Serviço Social e o Sistema Sociojurídico” e “Família, Envelhecimento e o Cuidado com Idosos” do Centro Universitário Augusto Motta.

E-mail: larissamuradrj@hotmail.com



Recebido em: 29.08.2019

Aceito em: 06.09.2019


1 Na Proposta de Plano de Governo de Jair Bolsonaro (eleito Presidente da República em outubro de 2018), intitulada O caminho da Prosperidade, há menção explícita a Gramsci quando o então candidato e seus seguidores se referem a derivações do marxismo cultural. Lê-se: “Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira”. Disponível em: http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517/proposta_1534284632231.pdf. Acesso em: 15 jan. 2019.

2 Cabe destacar que o livro não tem a pretensão de esmiuçar o significado das categorias gramscianas, o que torna a consulta a outras fontes e ao próprio autor indispensável. Importante também a interlocução com pesquisadores gramscianos que abordam a obra do pensador sardo por outros vieses.

Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.12, p. 256-261, jan/abr. 2020.