PEDAGOGIA SOCIALISTA, EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO DO CAMPO: Problematizando a escola pública no/do campo


Maria Antônia de Souza

Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)

Ponta Grossa, PR, Brasil


Cecília Maria Ghedini

Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Francisco Beltrão, PR, Brasil


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i12.34775



RESUMO

O objetivo deste texto é problematizar as escolas públicas no/do campo e as possíveis contribuições da Pedagogia Socialista, Educação Popular e da Educação do Campo. Toma-se como referência a concepção da Educação do Campo construída nos movimentos sociais a partir do final da década de 1990 e a realidade das escolas públicas centradas, ainda, na concepção da Educação Rural. O estudo tem natureza bibliográfica e documental, com problematização fundamentada em ações coletivas realizadas em escolas no/do campo de duas regiões do estado do Paraná. Constata-se que a Pedagogia Socialista e Educação Popular, embora fundamentem ação de movimentos e organizações sociais, não estão no horizonte das políticas e práticas educacionais. A Educação do Campo tem sido problematizada em cursos de formação continuada de professores, com o intuito de dar visibilidade ao campo, ao trabalho e à identidade da escola do campo. São concepções que possuem vínculo com a educação da classe trabalhadora e que têm potencial para a organização pedagógica que valoriza trabalho, cultura e experiência. Os obstáculos para que elas exerçam força político-pedagógica nas escolas são de natureza histórico-estrutural, com desdobramentos na gestão da escola e nos processos de formação inicial de professores.

Palavras-chave: Escola pública. Pedagogia socialista. Educação popular. Educação do campo.



SOCIALIST PEDAGOGY, POPULAR EDUCATION AND COUNTRYSIDE EDUCATION: problematizing public school in /of the countryside

 

ABSTRACT

The aim of this text is to problematize public schools in/of the countryside and the possible contributions of Socialist Pedagogy, Popular Education and Countryside Education. The conception of countryside education is taken as reference; this concept was built in social movements from the end of the 1990s and the reality of public schools, which was still centered on the concept of Countryside Education.The study has a bibliographic and documentary nature, with problematization based on collective actions carried out in schools in the countryside in/ of two regions of Paranástate. It can be observed that the Socialist Pedagogy and Popular Education, although based on social movements and organizations, are not on the horizon of educational policies and practices. Countryside Education has been problematized in continuing teachers’formation courses, in order to give visibility to the field, work and identity of the countryside school. They are conceptions that have a link with the education of the working class and that have potential for the pedagogical organization that values work, culture and experience. The obstacles for them to exercise political-pedagogical strength in schools are of a historical-structural nature with unfolding in the management of the school and in the processes of initial teachers’ formation.

Keywords: Public school. Socialist pedagogy. Popular education. Countryside education.



PEDAGOGÍA SOCIALISTA, EDUCACIÓN POPULAR Y EDUCACIÓN EN EL CAMPO: Problematizando las escuelas públicas en/del campo


RESUMEN

El objetivo de este texto es problematizar las escuelas públicas en / del campo y las posibles contribuciones de la pedagogía socialista, la educación popular y la educación rural. La concepción de la educación del campo se toma como referencia; Este concepto se construyó en movimientos sociales a partir de finales de la década de 1990 y en la realidad de las escuelas públicas, que aún se centraba en el concepto de Educación Rural. El estudio tiene una naturaleza bibliográfica y documental, con una problematización basada en acciones colectivas llevadas a cabo en escuelas en el campo en dos regiones del estado de Paraná. Se puede observar que la Pedagogía socialista y la Educación popular, aunque basadas en movimientos y organizaciones sociales, no están en el horizonte de las políticas y prácticas educativas. La educación en el campo ha sido problematizada en los cursos de formación continua de maestros, a fin de dar visibilidad al campo, el trabajo y la identidad de la escuela en el campo. Son concepciones que tienen un vínculo con la educación de la clase trabajadora y que tienen potencial para la organización pedagógica que valora el trabajo, la cultura y la experiencia. Los obstáculos para que ellos ejerzan la fuerza político-pedagógica en las escuelas son de naturaleza histórico-estructural y se desarrollan en la gestión de la escuela y en los procesos de formación inicial de los docentes.

Palabras clave: Escuela pública. Pedagogía socialista. Educación popular. Educación de campo.



Introdução

Este artigo problematiza a escola pública no/do campo a partir da concepção da Educação Rural e da Educação do Campo, amplamente debatidas em outros textos sob nossa organização (SOUZA, 2011, 2016, 2017), (GHEDINI, 2017a, 2017b e 2018) e (SANTOS e GHEDINI, 2017), bem como pensar os obstáculos para que a Pedagogia Socialista e a Educação Popular fundamentem políticas e práticas educacionais. O trabalho é fruto de estudos bibliográficos, análises documentais e registros de trabalhos com professores de escolas públicas na Região Metropolitana de Curitiba e na Região Sudoeste do Paraná, nos últimos 15 anos.

Somos instigadas a pensar a escola pública a partir do acúmulo de experiências e conhecimentos do Movimento de Educação Popular, conforme analisa Paludo (2015) e Ghedini (2017a), do Movimento Nacional de Educação do Campo, em conformidade com estudos de Munarim (2008 e 2011) e Caldart (2008 e 2012) e da Pedagogia Socialista a partir das contribuições presentes em Moisey Pistrak (1888-1937) e Nadezhda Krupskaya (Rússia, 1869-1939). Nesse conjunto de experiências, destacam-se as obras de Paulo Freire e de Carlos Rodrigues Brandão sobre as experiências de Educação Popular.

O que essas experiências têm em comum? Na nossa compreensão é a busca pela construção da consciência política e a luta pela libertação da opressão, desde a perspectiva da classe trabalhadora e dos sujeitos oprimidos lutando por direitos, discutindo experiências comuns, construindo conhecimentos a partir da ação dialógica e dialética. Ideologias são desveladas com o conhecimento como “ato político” e educação como “prática da liberdade”, lembrando ensinamentos de Paulo Freire.

A Pedagogia Socialista, conforme escreve Freitas (2015, p.7),

[...] é um espaço de associação e de teorização de práticas educativas protagonizadas pelos trabalhadores ao redor do mundo e conduzidas (na teoria e na prática), desde seus objetivos de classe, para construção de novas relações sociais de caráter socialista.


Krupskaya em sua obra A construção da Pedagogia Socialista tece críticas à escola burguesa e considerações para a construção da escola socialista, pautada no estudo, na auto-organização, no trabalho coletivo e em conteúdos com vínculos com a vida das crianças, filhas de trabalhadores. A educação é construída coletivamente e pautada pela ciência e pelas condições reais de vida da população.

A concepção de Educação Popular, tal como compreende Paludo (2015), constitui-se como campo de conhecimento e como prática educativa de crítica ao sistema societário vigente. Como afirma a autora, “Construída nos processos de luta e resistência das classes populares, é formulada e vivida, na América Latina, enquanto uma concepção educativa que vincula explicitamente a educação e a política [...]” (p. 220). Para Brandão (2013, p.11) “A Educação Popular, originalmente chamada aqui no Brasil e na América Latina de Educação Libertadora, opunha-se ao que Paulo Freire qualificava como Educação Bancária”, está situada num movimento amplo denominado de Cultura Popular. Como afirma o autor,

a Educação Popular surgiu como uma proposta de uma modalidade de ação transformadora em seu campo, ao agir sobre saberes e valores de pessoas e de suas consciências (p.11).


A concepção de Educação do Campo, em conformidade com as reflexões de Caldart (2008), é pensada a partir da tríade campo-política-pública-educação e desde sua materialidade de origem. Para a autora, “[...] está em questão na Educação do Campo [...] uma política de educação da classe trabalhadora do campo, para a construção de um outro projeto de campo, de país [...]” (p. 72). O movimento da Educação do Campo para Caldart (2008, p. 75) é constituído de três momentos distintos, simultâneos e complementares, a saber: “A Educação do Campo é negatividade” no sentido de luta contra a inferiorização dos trabalhadores do campo, luta contra ausência de escolas no campo e contra o acesso do conhecimento restrito à escola. “A Educação do Campo é positividade”, pois as denúncias são combinadas com propostas e práticas educativas coletivas em relação às políticas públicas, escolas, organização comunitária etc. “A Educação do Campo é superação”, pois está voltada para a construção de outro projeto de sociedade, de campo e cidade, de educação, escola etc. Está voltada para a construção de “transformação social e de emancipação humana”.

Nesse conjunto de concepções, como compreendemos a escola pública? O texto de Sanfelice (2005, p. 104) nos auxilia ao defender que “[...] o rigor conceitual, à luz do pensamento marxista, não nos permite equalizar escola estatal com a escola pública”. A escola para ser pública tem que ter, de fato, a participação popular e o vínculo com as lutas populares, portanto, com a classe trabalhadora. A Educação do Campo como concepção ampla de formação humana tem em suas pautas a luta pela escola pública no/do campo e o seu vínculo com as causas do povo.

Este artigo traz provocações em torno das escolas públicas no/do campo em relação a construção e problematização de conhecimentos, na perspectiva dessas três concepções de educação que se encontram no vínculo com a classe social – trabalhadora – e no propósito maior da transformação social e da emancipação humana.


1. As escolas públicas no/do campo

Um primeiro esclarecimento é necessário. Por que escrevemos escolas no/do campo? As escolas pertencem às redes municipais e estaduais de educação. São escolas no campo que não possuem a identidade do campo, de permanente diálogo com os povos do campo e com as suas lutas. Existem escolas em áreas de assentamentos, acampamentos, comunidades quilombolas, ribeirinhos, territórios de agricultura familiar/camponesa que vêm discutindo a Educação do Campo como movimento de formação humana, de luta por transformação social e emancipação humana. Essas são escolas do campo, pautadas pelos interesses e necessidades da classe trabalhadora. Portanto, o que se deseja, e igualmente a legislação prevê, é que as escolas estejam localizadas no campo, para evitar longas horas de transporte escolar de crianças e jovens, e que sejam expressão das lutas da classe trabalhadora por reforma agrária, por condições de trabalho no campo e por formação escolar.

Compreendemos que a escola pública está em movimento no campo para constituir-se como escola do campo, embora a mera mudança da nomenclatura da ‘escola rural’ para ‘escola do campo’, não garanta essa identidade e nem o vínculo à materialidade de origem da Educação do Campo. A escola pública está envolta em rotinas institucionais que marginalizam experiências e fragmentam conteúdos, haja vista o vínculo ao Estado em sua concepção clientelista e patrimonialista.

Com a consolidação da concepção de Educação do Campo e com as diretrizes nacionais e decreto presidencial (BRASIL, 2002, 2008 e 2010) emergiu uma possibilidade de problematizar a lógica da Educação Rural presente nas políticas e práticas educacionais. Como demonstramos em outro escrito (GHEDINI, 2017a), à medida que as referências históricas dos movimentos sociais populares tomam forma de projeto educativo, a Educação do Campo como sua herdeira, passa a antagonizar com as propostas de Educação Rural, principalmente porque se agregam elementos e qualificações das mediações produzidas, diferenciando-a do projeto educativo da Educação Rural.

Entendemos também que, a melhor síntese das diferenças de lógicas deste projeto educativo é a preposição “dos”, como diz Caldart: “a Educação do Campo não é para nem apenas com, mas sim, dos camponeses, expressão legítima de uma pedagogia do oprimido” (CALDART, 2012, p. 261).

Temos vivenciado tensos e diversos processos na produção da Educação do Campo, alguns mais próximos das lutas sociais dos oprimidos, outros por conta da diversidade da realidade das populações camponesas e outros, ainda, protagonizados por equipes de trabalho do próprio Estado que buscam garantir a legislação conquistada. Foi o que aconteceu no estado do Paraná com o Parecer 1011/2010 que estabeleceu normas e princípios para a implementação da Educação Básica do Campo no Sistema Estadual de Ensino (PARANÁ, 2010a), com a definição da identidade das Escolas do Campo e com a instituição da Educação do Campo como política pública educacional do Paraná, pela Resolução 4783 de 2010 (PARANÁ, 2010b). No ano de 2011, houve mudança nas equipes de governo e, consequentemente, no modo de compreender a Educação do Campo. Embora tivesse sido determinada a mudança de nomenclatura das escolas de ‘rural’ para ‘do campo’ e, ainda que fossem organizados diversos encontros e reuniões com as escolas, a grande parte delas não deu conta de vincular a questão da mudança de nomenclatura com questões específicas dessa concepção educacional. Considera-se que a escola, quando fundada na concepção da Educação do Campo, trabalhará com pedagogias críticas e progressistas, seja com fundamento no ideário de Paulo Freire ou de socialistas como Pistrak, Vigotski, Krupskaya entre outros.

O trabalho com a pedagogia crítica gera “desconforto” entre profissionais que não tiveram formação em Educação do Campo, pois coloca em sob interrogação as verdades construídas e pautadas no Positivismo como concepção filosófica de mundo e de educação. A construção de outras verdades exige esforço, estudo, disposição e trabalho coletivo. Por sua vez, os professores das escolas públicas, em sua maioria, desejam estudar, entretanto estão ‘presos’ às lógicas institucionais de rotinas, horários, disciplinas e permanência em mais de uma escola durante a jornada de trabalho.

Fazendo um paralelo com as obras Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e A construção da Pedagogia Socialista de Krupskaya, podemos pensar a escola pública atrelando-a à concepção bancária e à dialógica de educação, bem como com a concepção burguesa de escola e a concepção socialista. O que queremos dizer é que no campo existem escolas públicas que tratam o educando, os conteúdos, a relação escola-comunidade, o conhecimento como objeto e, portanto, em conformidade com a concepção bancária de educação contestada por Paulo Freire. E, nesse sentido, essa escola atende aos interesses da classe burguesa de manutenção das relações sociais e da divisão entre educação para formação técnica ao trabalho e educação como formação ampla para a gestão da sociedade, mantendo a divisão de classes sociais. Em contrapartida, a educação dialógica terá como ponto de partida as relações concretas do trabalho e da vida, voltada para a construção da consciência política e, portanto, da superação da consciência ingênua. Essa concepção de educação tem relação com os propósitos da pedagogia socialista, com base na auto-organização, no trabalho como princípio educativo e na construção da consciência de classe.

Como afirma Krupskaya (trad. 2017, 119), “As crianças já chegam à escola com conhecidos hábitos de organização. Uma das fontes mais importantes de desenvolvimento desses hábitos é o jogo”, cujas regras são feitas pelas próprias crianças, bem como a intencionalidade do jogo. Como escreve a autora, “a gestão estatal é uma organização hegemônica, resultado da luta entre diferentes classes e seus interesses contraditórios. Na escola a auto-organização é o caminho para organizar o trabalho e o estudo coletivo” (p.116).

Paulo Freire escreve que a Pedagogia do Oprimido é

aquela que tem que ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará (FREIRE, 1987, p. 32).


As práticas sociais e formativo-educativas das quais o MST é protagonista, ao questionar a escola, o currículo, a formação de professores, os conteúdos etc. no final da década de 1980, trouxeram a possibilidade de que outros olhares fossem lançados para as escolas rurais. Destas movimentações foram produzidas condições para a emergência da concepção da Educação do Campo (que não supera a Educação Rural, mas contrapõe-se a ela, ao mesmo tempo em que convive com as práticas que seguem aquela concepção). Começa a ficar evidente, pelas práticas em curso, uma concepção de escola vinculada a um projeto popular de país e outra de escola estatal, regida por relações clientelistas e de poder. São práticas vinculadas a um projeto popular que se insere nos processos de desenvolvimento em disputa nas comunidades, como já tratado em Ghedini (2017a) e que constituem ‘ancoradouros’ para a mudança da concepção educacional. Por exemplo, Setor de Educação do MST, criado no ano de 1987, teve como ponto de partida teórico-prático as contribuições da Educação Popular a partir de Paulo Freire e da Pedagogia Socialista, a partir da obra Fundamentos da Escola do Trabalho, de Pistrak. Fundamentados nessas obras, foram organizados os temas geradores para o trabalho nas escolas dos assentamentos e nos cursos de formação política do movimento social. A constituição de coletivos de estudo seguiu princípios que estão na pedagogia socialista, em especial a disciplina, a auto-organização, o trabalho coletivo, a organização das oficinas e das brigadas de trabalho. A cooperação constituía um dos princípios fundantes da organização político-pedagógica.

As obras de Freire e Pistrak somaram-se na constituição dos fundamentos para a organização da escola necessária aos assentamentos e acampamentos. Assim, foram construídas as experiências de formação político-pedagógicas vinculadas à luta pela reforma agrária e, consequentemente, luta por um projeto popular de país.

Em tempos em que se debate o projeto “Escola sem partido” é importante lembrar a afirmação de Ponce (2005, p. 180-181) de que:

A única finalidade da chamada ‘neutralidade escolar’ é subtrair a criança da verdadeira realidade social: a realidade das lutas de classe e da exploração capitalista [...].


E, Paulo Freire (1986, p. 32), que escreve que

a neutralidade da educação, de que resulta ser ela entendida como um quefazer puro, a serviço da formação de um tipo ideal de ser humano, desencarnado do real, virtuoso e bom, é uma das conotações fundamentais da visão ingênua de educação.


Embora o debate nos coletivos de estudo esteja avançado em relação à educação e emancipação humana, nas escolas há um longo trajeto a percorrer. Os professores, em meio a rotinas e condições de trabalho precarizadas, possuem disposição para o diálogo. Solicitam esclarecimentos sobre a Educação do Campo, as escolas multisseriadas, o vínculo entre educação e trabalho etc. A formação inicial no Brasil ainda deixa a desejar no processo formativo crítico, com poucos estudos sobre a pedagogia socialista e a educação popular. A formação continuada de professores ainda requer investimentos do âmbito das políticas, haja vista que a iniciativa privada é que oferece cursos de especialização, predominantemente, cursos rápidos e voltados ao empreendedorismo.

Mesmo com todas as conquistas e inúmeras práticas que apontam mudanças, ainda, as escolas rurais são tratadas como algo “atrasado”, como se seu desaparecimento fosse uma questão de tempo. Pelas observações das relações em curso percebe-se que os órgãos do governo “aprenderam” que, depois da escola “definhar” e se tornar inviável fica mais fácil fechá-la. Entretanto, os movimentos sociais e organizações do campo com suas lutas, alcançaram conquistas do ponto de vista da legislação, mas “alguém” precisa colocar-se a produzir as ferramentas para esta escola de “novo tipo” e que esteja próxima da cultura dos povos de diferentes lugares que constituem o campo brasileiro.

Para avançar na transformação da escola há que se modificar o conjunto de políticas educacionais, especialmente as municipais, cuja lógica clientelista tem predominado. Destacamos aqui duas iniciativas (Região Metropolitana de Curitiba e Região Sudoeste do Paraná) que se colocam nesta perspectiva de produzir ferramentas voltadas a um processo que promova ações de mudanças na escola, associadas a movimentações da comunidade, no sentido de inserir a escola na comunidade como parte de suas lutas e como política pública a ser disputada pela organização popular.


2. Trabalho coletivo e formação político-pedagógica: mediação necessária

Na Região Metropolitana de Curitiba, desde 2010, são realizados trabalhos nas escolas rurais, com fundamentos na concepção da Educação do Campo. A intenção tem sido problematizar a lógica da Educação Rural presente nos municípios que possuem diversos povos do campo. São 29 municípios que integram a referida região, sendo que 27 deles possuem escolas no campo, totalizando 230 instituições. Nos últimos anos, o Núcleo de Pesquisa em Educação do Campo, Movimentos Sociais e Práticas Pedagógicas (NUPECAMP), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado e Doutorado – da Universidade Tuiuti do Paraná, tem mediado processos de formação continuada nas escolas cujos professores demonstram interesse em discutir o campo, a escola e o trabalho pedagógico. Foram organizados quatro seminários intermunicipais de Educação do Campo, de 2014 a 2017, contando com participação de 400 a 700 pessoas. Os Seminários Intermunicipais da Educação do Campo (SIEdoC) tiveram o objetivo de agregar os municípios em torno da discussão da Educação do Campo, para problematizar a realidade das escolas rurais no que tange ao processo de ensino e aprendizagem e reivindicar políticas públicas que garantam o atendimento às demandas dos professores, dos alunos e das comunidades atendidas.

O ponto de partida foi a realidade local – das escolas e das comunidades do campo – e o ponto de chegada esperado era a tomada de consciência crítica sobre a relação de forças e de disputas político-econômicas presentes no campo brasileiro e, nesse conjunto, a escola como lugar também de disputas.

O I Seminário Intermunicipal da Educação do Campo, foi realizado nos dias 31 de julho e 1 de agosto de 2014, em Tijucas do Sul, no Salão de Festas da Igreja Matriz, reuniu aproximadamente 500 pessoas entre educadores e educadoras, educandos, educandas, pais de alunos, representantes de associações de moradores, movimentos sindicais, conselhos escolares, associação de pais, mestres e funcionários, conselhos municipais de educação, Conselho da alimentação escolar, Conselho da criança e do adolescente, Conselho tutelar, agricultores familiares, escolas, secretarias municipais, universidades entre outros. Foram 10 grupos de trabalho com temas como: processo de Nucleação e Fechamento de Escolas; Currículo e Diversidade; Educação Infantil; Educação Especial; Educação de Jovens e Adultos; Educação Integral; Gestão Democrática; Alfabetização Ecológica; Planejamento e práticas contextualizadas: Relação Teoria e Prática; Relações Humanas na Escola. Após a discussão com as diferentes temáticas abordadas nos grupos de trabalho, foram elencadas em assembleia as proposições e ações transformadas em carta compromisso pelo coletivo.

O II Seminário Intermunicipal da Educação do Campo, foi realizado nos dias 20 e 21 de julho de 2015, no Clube Recreativo Sete de Setembro no Município da Lapa, onde reuniram-se aproximadamente 700 pessoas. Participaram professores e professoras, estudantes; representantes de sindicato dos trabalhadores rurais, dos conselhos escolares, da associação de pais, mestres e funcionários; representantes dos conselhos municipais de Educação, do FUNDEB, da Alimentação Escolar, da Criança e do Adolescente, e Conselho Tutelar; agricultores familiares; escolas; membros das secretarias municipais de Lapa e Tijucas do Sul; representantes das universidades: UNICENTRO, UFPR - Setor Litoral, NUPECAMP, Escola Latino Americano de Agroecologia do Assentamento Contestado; Universidade Aberta do Brasil e Faculdade Educacional da Lapa. Foram dois dias de debates de temas e problemas da Educação do Campo e dos trabalhadores em geral. Foram organizados 10 grupos de trabalhos, a exemplo do que ocorreu no I SIEDOC.

O III Seminário Intermunicipal da Educação do Campo foi realizado nos dias 22 e 23 de setembro de 2016, nas dependências do Salão Paroquial da Igreja Nossa Senhora da Piedade no Município de Campo Largo. Reuniram-se aproximadamente 400 pessoas, com a participação de educadores e educadoras; lideranças, Associação dos Professores do Paraná - METROSUL, conselhos escolares, associação de pais, mestres e funcionários, conselhos municipais de educação, escolas, secretarias municipais de Educação de Campo Largo, Lapa e Tijucas do Sul, NUPECAMP, Foram 2 dias de intenso debate coletivo sobre as questões relacionadas à Educação do Campo. Os grupos de trabalho enfatizaram os limites, potencialidades, proposições e ações buscando melhoria do processo de ensino e aprendizagem nas instituições de ensino e a valorização da identidade e cultura dos povos do campo.

No dia 21 de outubro de 2017 foi realizado o IV Seminário Intermunicipal de Educação do Campo na Região Metropolitana de Curitiba (RMC) - Terra, trabalho e identidade: educação em movimento de resistência, no município de Almirante Tamandaré, com a articulação da Educação Superior e a Educação Básica. Ocorreu no Colégio Estadual Theodoro de Bona, contou com a participação de 233 pessoas, sendo professores da educação básica, Secretários de Educação, pequenos agricultores, representantes de entidades organizativas, alunos e professores do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná e representantes do poder legislativo e executivo dos respectivos municípios da RMC. Os temas debatidos foram campo, política educacional, escolas, aprendizagem, projeto político-pedagógico e concepção de Educação do Campo.

O SIEdoC tem se configurado num espaço de socialização, problematização e estudo sobre a realidade do campo da RMC, contribuindo com reflexões sobre a educação e escola pública nos municípios marcados por ruralidades. E, nesta dimensão as proposições oriundas do IV Encontro provocaram um olhar para a participação político-pedagógica dos sujeitos do campo para a compreensão da realidade e para a sua transformação.

Esses seminários levaram à constituição de coletivos menores de estudos nas escolas no/do campo. Alguns têm trabalhado junto com as comunidades na reestruturação de projetos político-pedagógicos. Outros coletivos têm se dedicado a estudos sobre a agricultura tradicional comparada com a orgânica e com as experiências de agroecologia no estado do Paraná. Outros têm firmado estudos com as comunidades na tentativa de evitar o fechamento de escolas e de organizar grupos e espaços de estudos sobre temas de interesses das comunidades.

Na região sudoeste do Paraná a Educação do Campo inicia ações no ano de 1998, pelo MST e a Associação de Estudos, Assistência e Orientação Rural (ASSESOAR), participando com experiências desde a I CNEC. Em 2001, realiza-se a I Conferência Regional, e se cria a Articulação Sudoeste de Educação do Campo e, nos anos seguintes, realizam-se Seminários e Encontros da Região, acompanhamento às escolas, formação de professores, e cursos técnicos e Pedagogia da Terra, juntamente com instituições de Ensino Superior, como UNIOESTE Campus de Francisco Beltrão e UTFPR Campus de Dois Vizinhos. Atualmente conta com 87 escolas no sistema estadual, distribuídas em três Núcleos Regionais de Educação (NRE), com 5.625 estudantes e 743 professores, sem contar as escolas das redes municipais dos 42 municípios que compõem a região.

Destacamos aqui o trabalho iniciado em 2015, por um Projeto de Extensão da Unioeste – Campus de Francisco Beltrão1, no âmbito do Grupo de Pesquisas em Formação Humana, Educação e Movimentos Sociais Populares (GEFHEMP)2.

Trata-se da produção de uma referência de trabalho preferentemente, com escolas públicas do campo que estão em risco de fechamento, distantes da cidade e a maioria dos professores contratados pelo Processo Seletivo Simplificado (PSS); diretamente com seis Escolas públicas do campo e, indiretamente, no âmbito de NREs da região.

O processo com as escolas se desdobra em duas frentes de trabalho, cada qual com seus objetivos específicos. Uma frente rearticula as Escolas Públicas do Campo na perspectiva de seu fortalecimento pela modalidade da Educação do Campo e objetiva: desenvolver práticas e instrumentais para o planejamento coletivo interdisciplinar, a auto-organização dos estudantes, o inventário da realidade, o coletivo de educação da escola e a inserção da escola nas comunidades e seus entornos; participar das lutas pelo não-fechamento das escolas públicas do campo articuladas a espaços como a Articulação Sudoeste e Estadual de Educação do Campo, articular ações com vínculos entre escola e comunidades desde a cultura e o trabalho; produzir conhecimento e referências em Políticas Públicas de Educação do Campo.

Outra frente se coloca a criar uma rede de formação continuada de professores do campo, por sua vez, busca priorizar ações de formação continuada dos professores e estruturar uma rede de educadores3; produzir referências e favorecer os vínculos de pertencimento dos educadores pelo enraizamento nas escolas públicas do campo e participar de espaços coletivos regionais e estaduais e participar em Grupos de Estudos e eventos. De modo geral, a metodologia de trabalho se dá em três dimensões consideradas fundamentais: a prática concreta de trabalho da escola, a realidade do lugar e das famílias em que está inserida e a formação permanente desde este contexto, a todos os educadores do processo. Parte-se da prática do trabalho pedagógico da escola, busca-se criar vínculos com as famílias e organizações locais e criam-se grupos de estudos. O trabalho conta também com registro das práticas, produzindo parte dos instrumentais e a nomenclatura, registrados num Caderno.

No ano de 2018, organiza-se um evento das escolas públicas do campo: “I Encontro Nacional de Escolas Públicas do Campo” (I ENEPUC), desde o qual constituímos um Grupo de Trabalho (GT) que se propõem recriar uma proposta para estas escolas em risco de fechamento.

A partir do ano de 2019, através da Refocar, a formação de professores passa a contar com uma Plataforma on line. Assim os professores podem propor grupos de estudo presenciais nos seus locais de trabalho ou moradia, inscrever-se de forma on line tendo acesso aos materiais de estudo, controle de presenças e certificação4.


3. Quais contribuições da Pedagogia Socialista e da Educação Popular às escolas públicas?

As escolas públicas têm sido o lugar de vivência da contradição básica da sociedade. As disputas entre os projetos societários que adentram às escolas na forma de determinação para a prática educacional. Exemplo: os cadernos do SEBRAE levados às escolas por equipes pedagógicas, para que os professores trabalhem com as crianças e comunidades. O material do SENAR – Programa Agrinho – levado às escolas por meio de parcerias realizadas com as prefeituras, sem diálogo com os profissionais das escolas. Em localidades em que os movimentos sociais não estão fortalecidos ou vigilantes em relação ao papel do Estado e da instituição escola no processo formativo, a iniciativa privada determina práticas e políticas educacionais. Compreendemos que há necessidade de construção popular do projeto de formação da classe trabalhadora.

Na obra de Krupskaya, A construção da pedagogia socialista, encontramos princípios da educação socialista e da escola do trabalho. O sentido dado à escola do trabalho implica em que “o centro do estudo na escola deve ser a atividade de trabalho da população em seu passado e presente [...]” (p. 111).

A escola do trabalho enfoca todas as questões do programa escolar do ponto de vista do trabalho – matemática, física, química, história e outras – do ponto de vista da produção, do ponto de vista da população trabalhadora. Reduzir a escola do trabalho ao estudo de ‘processos de trabalho’ usuais significa retirar dela seu espírito vivo, seu principal nervo vital (KRUPSKAYA, trad. 2017, p. 111).


Para a autora,

na organização da vida escolar o trabalho produtivo das crianças deve jogar um papel preponderante, dominante. Carregar água, rachar lenha é trabalho; colher plantas medicinais, desenhar cartazes, organizar o museu [...]. Na escolha do trabalho é preciso considerar o interesse da criança [...] (p. 111-112).


Depois, conforme a autora, é importante escolher a forma de trabalho, sendo que o trabalho coletivo tem maior caráter educativo. A abordagem dos estudos é fundamental e a definição de objetivos pelas próprias crianças é necessária. O ponto de partida mais completo de estudo deve ser o da

atividade de trabalho que acontece ante os olhos da criança, próximo dela – aquela atividade da qual ela pode se apropriar e tomar parte direta. O estudo dessa atividade de trabalho concreta, próxima da criança, coloca-se como base do estudo da vida econômica global do país (p. 113-114).


Continua a autora, com a explicitação da escola do trabalho, enfatizando a auto-organização como meio de trabalho “que deve estar o mais perto possível da vida da criança, nascer dos interesses das crianças”, diferenciando-se da auto-organização dos adultos, não pode ser uma cópia desta.

A pedagogia socialista está nos princípios das experiências educativas do MST e pode ser observada nos primeiros estudos sobre a obra Fundamentos da escola do trabalho, de autoria de Pistrak (1888-1940). Para Pistrak (trad. 2011, p. 25), os princípios basilares da escola do trabalho são “1. Relações com a realidade atual; 2. Auto-organização dos alunos”.

Paulo Freire (1987, p. 96) defende na pedagogia dialógica “o esforço de propor aos indivíduos dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilite reconhecer a interação de suas partes”. Para ele, a investigação do tema gerador, se realizada com intencionalidade conscientizadora, “insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo” (p. 97).

Em se tratando das escolas públicas no/do campo, os documentos do Encontro Nacional de Educação na Reforma Agrária (1997) e da Conferência Nacional Por uma Educação do Campo (1998) já expressavam a vinculação com perspectivas humanistas e socialistas de formação. No II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (2015), o manifesto reiterou a vinculação da educação a princípios humanistas e socialistas, registrando os compromissos de luta e construção, dentre os quais:

Seguir na construção de uma escola ligada à vida das pessoas, que tome o trabalho socialmente produtivo, a luta social, a organização coletiva, a cultura, e a história como matrizes organizadoras do ambiente educativo da escola, com participação da comunidade e auto-organização de educação e educandas, e de educadores e educadoras (II ENERA, 2015).


Na Carta-Manifesto 20 anos da Educação do Campo e do PRONERA, foram reiterados os compromissos com o avanço dos princípios da Educação do Campo nas escolas do campo e na formação de educadoras/es. A preocupação com “[...] uma escola ligada à produção e reprodução da vida [...]” (FONEC, 2018).

Na Carta de Criação do Fórum Nacional de Educação do Campo (2010), um dos argumentos para a criação do coletivo nacional foi o acúmulo teórico e pedagógico dos movimentos e organizações sociais parceiras do Movimento Nacional de Educação do Campo. Registra-se na referida Carta:

Outro grande acúmulo teórico e pedagógico precisa ser considerado nas formulações das políticas públicas – especialmente na estrutura e funcionamento das universidades e secretarias estaduais e municipais de educação: aquele consignado nas matrizes históricas da Educação Popular, da Educação Socialista e da Pedagogia dos Movimentos (CARTA, 2010).


Portanto, está evidenciado que o Movimento da Educação do Campo incorpora contribuições de matrizes educacionais vinculadas à luta da classe trabalhadora. Busca-se a construção da educação pública popular, desde a organização dos povos do campo e da cidade. O movimento de transformação é lento, pois está no conjunto das relações contraditórias inerentes ao modo de produção capitalista. Entretanto, manter a organização coletiva forte é essencial à luta de classes e, portanto, disputas político-pedagógicas.

Retomamos a reflexão já feita em outros escritos de que, o texto base da Conferência nacional “Por uma Educação do Campo” (I CNEC) de 1998, quando aponta novos parâmetros da educação dos trabalhadores do campo, promove negações do projeto educativo da Educação Rural e agregações das práticas e concepções da Educação Popular, reafirmando o processo que “se fez” no tempo e no espaço dos Movimentos Sociais Populares. A proposta de educação que se anuncia com a I CNEC, como parte de um projeto de campo em disputa, se propõe a superar a cópia de modelos importados.

A educação e a escola do campo passam, deste modo, a constituir a partir das contradições do projeto hegemônico uma realidade em ‘movimento’, contando com os trabalhadores do campo como sujeitos específicos e propositores de projetos que “se fazem”, cada vez mais, protagonistas de sua história. Parece-nos possível concluir que, se a Educação do Campo se produz desde relações que antagonizam concepções e formas entre uma educação ‘para’, na perspectiva de ‘ajudar o sujeito a’, a uma Educação ‘do’ que agrega ao projeto referenciais e propostas das lutas sociais “dos” camponeses também nas dimensões da educação e da escola, é possível depreender que esses trabalhadores tomam para si a tarefa de direcionar política e pedagogicamente a educação desse segmento, tal como aponta Marx (2012) na crítica que faz ao Programa de Gotha.

Diante do que ele afirma, ao advertir que não deve ser o Estado a educar o povo trabalhador, talvez possamos dizer que o processo produzido na educação dos camponeses em nosso país, parece ter se colocado a intencionalidade de educar o Estado, com todos os percalços que carrega tal afirmação: a I CNEC (1998), a II CNEC (2004), documentos, cartas, declarações, manifestos e moções, sem falar da legislação, pautaram o Estado em relação a qual proposta de Educação e Escola os trabalhadores do campo exigem e se colocam como parceiros para executá-la. Contudo, um desafio no tempo atual é manter um projeto de educação ‘dos’ camponeses, nessa tênue linha da disputa com um projeto ‘para’ os camponeses, não sucumbindo diante da ofensiva do Estado que se alia ao capital nas diversas formas e ‘invade’ o processo em curso.

É importante destacar que se tem novas movimentações nesta perspectiva da relação com políticas públicas, a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed) também começaram a considerar a Educação do Campo em suas agendas políticas, conforme indicam Silva, Morais e Bof (2006, p. 78), porém, quando se trata do financiamento e das parcerias, mesmo em escolas de assentamentos, os municípios é que se entendem “parceiros, coordenadores e financiadores em 100% dos casos” (BOF; SAMPAIO; OLIVEIRA, 2006, p. 202) e, mesmo no caso de escolas de assentamentos, o MST é citado como parceiro em apenas 4% destas escolas. Estes dados, entre outros aspectos, podem significar que a educação nos municípios com escolas públicas convencionais do campo, provavelmente, se mantenha na lógica da Educação Rural. Isso nos desafia a seguir criando movimentações e propondo novas formas para a transformação da escola, uma vez que nos cabe a luta de torná-las populares, assim como continuara disputa pelas políticas públicas.

O que temos aprendido com os movimentos sociais na organização da educação popular e em perspectiva socialista? A maior aprendizagem é política e vincula-se à perspectiva do trabalho coletivo e da valorização das experiências da classe trabalhadora. A luta pelo acesso e produção e reconhecimento de conhecimentos têm sido constantes na história da sociedade brasileira. Ampliar os vínculos entre as comunidades, as instituições da Educação Básica e Superior e os movimentos e organizações sociais é necessário para o fortalecimento das experiências fundadas na Educação Popular, na Pedagogia Socialista e na Educação do Campo, todas voltadas para processos de transformação social. Na conjuntura atual, o estreitamento dessas experiências fica prejudicado do ponto de vista do financiamento de programas de formação continuada dos profissionais da educação.

Em síntese, a construção da escola pública, portanto, de participação efetiva da população, da classe trabalhadora localiza-se no movimento de disputas políticas e de enfrentamento de lutas que têm natureza, em sua essência, de classe. O movimento de superação da condição de oprimido requer a elaboração de estratégias para a superação dos obstáculos produzidos historicamente. A superação dos obstáculos exige trabalho coletivo, consciência crítica e identidade de classe.

Um elemento importante a considerar nesse processo de valorização de princípios da pedagogia socialista e da educação popular reside na mediação realizada por coletivos de pesquisadores e de povos do campo com as escolas públicas. Uma vez que as matrizes pedagógicas dos movimentos sociais possuem marcas populares e socialistas, o diálogo com eles para a construção de projetos e processos educacionais ‘emancipatórios’ é um dos meios para a superação das lógicas tradicionais na escola, na gestão educacional, na formação inicial e continuada de professores.



Considerações finais

Elaboramos este artigo pensando a escola pública no bojo das referências e conhecimentos do campo popular, que se produziu contando com a Educação Popular e as Pedagogias Socialistas, no intuito de identificar o que estas referências e suas diversas práticas e sistematizações têm em comum, e quais nexos podem, na atualidade, somar na produção de uma escola pública do campo que dê conta das necessidades de educação das populações que ali vivem, com acesso ao conhecimento científico e consciência política, desvelando a ideologização do mercado que lhes ofusca a visão de mundo.

Sabedores de que as mudanças históricas que conduzem à transformação são lentas e permeadas de avanços e recuos, está claro que é urgente criar formas para que os sujeitos do campo alcancem tais produções e possam constituir-se em lutadores nesta perspectiva, aprendendo com elas, tomando-lhes a direção, apropriando-se dos conhecimentos necessários para que os processos não esmaeçam à cada percalço encontrado, assumindo seus sentidos a fim de recriá-los no contexto de sua cultura e espaços da vida.

As produções da educação popular e dos movimentos sociais organizados sempre contaram com o povo, ainda que a este faltasse conhecimento e instrumentos para dar conta da tarefa, ou seja, era uma participação que visava educar os próprios educadores pela prática e sua teorização à luz das referências históricas. Foi deste modo que se chegou a um grande número de educadores populares, coletivos e processos que se traduziram em diferentes cursos, escolas e propostas espalhadas no país.


Referências

BOF, Alvana Maria; SAMPAIO, Carlos Eduardo Moreno; OLIVEIRA, Liliane Lucia Nunes de Aranha. Iniciativas de educação para o meio rural nos municípios brasileiros. In: BOF, Alvana Maria (Org.). A educação no Brasil rural. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, p. 193-207, 2006.


BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação Popular antes e agora. Ideação, Revista do Centro de Educação e Letras, v. 15, n. 1, p. 10-24, 1º sem. 2013, UNIOESTE, Foz do Iguaçu/PR. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/ideacao/article/view/8505/6256. Acesso em: 16 jun. 2019.


BRASIL. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 nov. 2010.


BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002. Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 9 abr. 2002.


BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008. Estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 25-26, 29/4/2008.


CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo. In: CALDART, R. S.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G. (Org.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; São Paulo: Expressão Popular, 2012.


CALDART, Roseli Salete. Sobre Educação do Campo. In: SANTOS, Clarice Aparecida (Org.). Por uma Educação do Campo: campo – políticas públicas – educação. Brasília: Incra; MDA, 2008.


CONFERÊNCIA NACIONAL POR UMA EDUCAÇÃO BÁSICA DO CAMPO I. Compromissos e desafios. Luziânia, 27 a 31 de julho de 1998.


CONFERÊNCIA NACIONAL POR UMA EDUCAÇÃO BÁSICA DO CAMPO II. Declaração Final – Por uma política pública de Educação do Campo. Luziânia, 2 a 6 de agosto de 2004.


ENCONTRO NACIONAL DE EDUCADORAS E EDUCADORES DA REFORMA AGRÁRIA - II. Manifesto. Luziânia, 21 a 25 de setembro de 2015.

ENCONTRO NACIONAL DE EDUCADORAS E EDUCADORES DA REFORMA AGRÁRIA - I. Manifesto. Brasília, 28 a 31 de julho de 1997.


FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO – FONEC. Carta de criação do Fórum Nacional de Educação do Campo. Brasília, 17 de agosto de 2010.


FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO – FONEC. III Seminário Nacional. Documento Final. Brasília, 26 a 28 de agosto de 2015.


FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO. Carta-Manifesto 20 anos de Educação do Campo e PRONERA. Brasília, 2018.


FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 15. ed. São Paulo: Cortez Editora; Editora Autores Associados, 1986.


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.


FREITAS, Luiz Carlos. Apresentação da obra Ensaios sobre a escola politécnica. São Paulo: Expressão Popular, 2015.


GHEDINI, Cecília Maria. A Produção da Educação do Campo no Brasil: das Referências históricas à institucionalização. Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2017a.


GHEDINI, Cecília Maria. Educação Popular e Referências Formativas: elos que enraízam o Projeto Educativo da Educação do Campo no Brasil. Contexto & Educação, v.32, p. 52-80, 2017b.


GHEDINI, Cecília Maria et al. Formação de Educadores do Campo: Interface entre a Universidade Estadual do oeste do Paraná e os Movimentos Sociais Populares do Campo In: Ensino Superior e Inclusão: palavras, pesquisas e reflexões entre movimentos internacionais. 1 ed. Curitiba: Editora CRV, v.2, p. 273-295, 2018.


GHEDINI, Cecília Maria; ONCAY, Solange Todero Von Onçay. Educação do Campo e Prática Pedagógica desde um viés freireano: possibilidade de construção da consciência e da realidade. In: Licenciaturas em Educação do Campo e o Ensino de Ciências Naturais: desafios à promoção do Trabalho Docente interdisciplinar, v.1, p. 83-110. Brasília: NEAD, 2014.


KRUPSKAYA, Nadezhda Konstantinovna. A construção da pedagogia socialista. Trad. Luiz Carlos de Freitas e Roseli Salete Caldart (Orgs.). São Paulo: Expressão Popular, 2017.


MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. Seleção, tradução e notas Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012.


MUNARIM, Antônio. Educação do Campo e políticas públicas: controvérsias teóricas e políticas. In: MUNARIM, Antônio et al. (Orgs.). Educação do Campo: políticas públicas e práticas pedagógicas. Florianópolis: Insular, 2011. p. 21-38.


MUNARIM, Antônio. Movimento Nacional de Educação do Campo: uma trajetória em construção. 17fls. 31ª Reunião Anual da ANPED, Caxambu/MG, 2008.

Disponível em: http://www.anped.org.br/sites/default/files/gt03-4244-int.pdf. Acesso em: 30 abr. 2019.


PALUDO, Conceição. Educação Popular como resistência e emancipação humana. Caderno Cedes, Campinas, v. 35, n. 96, p. 219-238, mai./ago. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v35n96/1678-7110-ccedes-35-96-00219.pdf. Acesso em: 2 mai. 2019.


PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Parecer CEE/CEB N.º 1011/10. Institui normas e princípios para a implementação da Educação Básica do Campo no Sistema Estadual de Ensino do Paraná, 2010a. Disponível em:

http://www.cee.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/Pareceres2010/CEB/pa_ceb_1011_10.pdf. Acesso em: 3 mai. 2019.


PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Resolução 4783/ 2010. Institui a Educação do Campo como Política Pública Educacional. 2010b. Disponível em:http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=exibirImpressao&codAto=69377. Acesso em: 18 fev. 2018.


PISTRAK, Moisey Mikhaylovich. 3. ed. Fundamentos da escola do trabalho. Trad. Daniel Aarão Reis Filho. São Paulo: Expressão Popular, 2011.


PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 16. ed. Trad. de José Severo de Camargo Pereira. São Paulo: Cortez, 2005.


SANFELICE. José Luís. Da escola estatal burguesa à escola democrática e popular: considerações historiográficas. In: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval; NASCIMENTO, Maria Isabel Moura (ORG). A escola pública no Brasil: história e historiografia. Campinas, SP: Autores Associados: HISTEDBR, 2005.


SANTOS, Franciele Soares; GHEDINI, Cecília Maria. As lutas pela terra e os movimentos sociais populares do campo: produções e disputas por um projeto educativo do campesinato. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 9, p.163-175, 2017c. Disponível em:

https://portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/16987. Acesso em: 16 jun. 2019.


SILVA, Lourdes Helena da; MORAIS, Teresinha Cristiane de; BOF, Alvana Maria. A educação no meio rural do Brasil: revisão de literatura. In: BOF, Alvana Maria (Org.). A educação no Brasil rural. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, p.69-137, 2006.


SOUZA, Maria Antônia de. A Educação do Campo no Brasil. In: SOUZA, Elizeu Clementino de; CHAVES, Vera Lúcia Jacob. (Orgs.). Documentação, Memória e História da Educação no Brasil: diálogos sobre políticas de educação e diversidade. v. 1, p. 133-158. Tubarão: Copiart, 2016.


SOUZA, Maria Antônia de. A educação é do campo no estado do Paraná? In: SOUZA, Maria Antônia de (Org.). Práticas educativas no/ do campo. Ponta Grossa: EdUEPG, 2011.


SOUZA. Maria Antônia de; GERMINARI, Geyso Dongley (Orgs.). Educação do Campo: território, escolas, políticas e práticas educacionais. Curitiba: UFPR, 2017.


SOBRE AS AUTORAS


MARIA ANTÔNIA DE SOUZA é geógrafa pela UNESP/PP, mestre e doutora em educação pela Universidade de Campinas, professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná, bolsista produtividade em pesquisa do CNPq, 1B.

E-mail: masouza@uol.com.br


CECÍLIA MARIA GHEDINI é doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (Uerj), mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, professora associada na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus de Francisco Beltrão.

E-mail: cemaghe@gmail.com



Recebido em: 30.08.2019

Aceito em: 16.09.2019


1 Projeto de Extensão “Fortalecimento das Escolas públicas do campo da Região sudoeste do Paraná na perspectiva da Educação do Campo: Rearticulação da Escola e Rede de Formação de Educadores”, organizado pelo GEFHEMP - Grupo de Estudos em "Educação, Formação Humana e Movimentos Sociais Populares”, sediado na Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná), Campus de Francisco Beltrão.

2 O grupo de pesquisa tem membros de outras universidades como a Universidade Federal Fronteira Sul (UFFs) – Campus de Laranjeiras do Sul - PR e Campus de Erexim - RS.

3 REFocar

4 Disponível em: https://www5.unioeste.br/portal/grupos-de-pesquisa-beltrao/gefhemp/formacao-continuada. Acesso em: 10 maio 2019.

Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.12, p.130-155, jan/abr. 2020.