UNIVERSIDADE E JUVENTUDE NA AMÉRICA LATINA: horizontes e desafios para uma afirmação das Epistemologias do Sul

diálogos com Boaventura de Sousa Santos



Ana Elisa de Castro Freitas

Universidade Federal do Paraná

Caiobá Matinhos, PR, Brasil


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i13.41383


A entrevista que trazemos hoje integra a organização do dossiê temático da Revista Movimento, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, reunindo contribuições que focalizam os processos de escolarização dos povos indígenas na América Latina no contexto contemporâneo, à luz das demandas, das lutas e movimentos. 

As organizadoras do dossiês nos convidam a dialogar sobre essa temática, criando espaço na entrevista para a difusão da perspectiva de Boaventura de Sousa Santos acerca dos avanços, dos desafios e dos retrocessos no campo das políticas públicas e dos movimentos etnopolíticos da região, situando o tema da educação superior indígena e da interculturalização da universidade. Agradecemos imensamente à professora Mariana Paladino por estimular esse espaço de conversa e igualmente ao professor Eduardo Harder pela colaboração na transcrição da entrevista.

Considerando a vasta contribuição de Boaventura de Sousa Santos a esse debate, nosso diálogo buscará, no contexto da sua obra, abordar os desafios e estratégias das Epistemologias do Sul frente a tempos de retrocesso da democracia e de avanço das forças conservadoras em escala global. No contexto da política do conhecimento, as Epistemologias do Sul aportam conhecimentos válidos criados e recriados diuturnamente nas práticas comunitárias e nas lutas sociais.

Sua intervenção epistemológica se torna tão mais eficaz quanto mais alargado o diálogo intercultural, o qual Boaventura compreende na medida de uma Ecologia de Saberes. Ao longo da entrevista, discutiremos em que medida a luta social assume o papel de força motriz das Epistemologias do Sul e os desafios de uma ciência que pretenda promover sua emergência. A referência a uma ciência das emergências busca ampliar os horizontes da Sociologia das Emergências, apontada sucessivamente na obra de Boaventura de Sousa Santos, de modo a reconhecer os deslocamentos críticos que se desdobram também nos campos das Antropologia das Emergências, Ecologia das Emergências, Pedagogia das Emergências, Arte das Emergências, entre outros nos quais a política do conhecimento válido é cotidianamente reconfigurada.

Quais lutas necessitam ser travadas para que o ingresso de estudantes indígenas e afrodescendentes nas universidades possa efetivamente contribuir para que as Epistemologias do Sul operem politicamente como dispositivos de reversão ou bifurcação nas dinâmicas de produção do conhecimento e na transformação da realidade? Nesse sentido, a conversa buscará compreender os desdobramentos das lutas sociais no plano institucional das universidades, especialmente frente à implementação e à consolidação de políticas públicas de corte étnico-racial e de gênero e o impacto das ações afirmativas nas identidades sociais. Em seu recente livro, “O Fim do Império Cognitivo – a afirmação das Epistemologias do Sul” (2019), Boaventura confere um tratamento especial à categoria de luta, e nossa conversa visa também a criar uma oportunidade de aproximar os leitores e as leitoras dos aportes dessa obra no auge de sua atualidade no Brasil e na América Latina. 


Ana Elisa - Inicialmente, gostaria de situar nossa entrevista como um espaço para o desenvolvimento da tese apresentada no seu recente livro O fim do Império Cognitivo: a afirmação das Epistemologias do Sul, no qual reafirma que a transformação da realidade deve ocorrer simultaneamente a sua permanente interpretação e reinterpretação, coletivamente e em meio à luta social. Essa perspectiva parece revitalizar o horizonte heurístico da categoria de luta, situando-o no quadro crítico que emerge da afirmação1 das Epistemologias do Sul, dos pensamentos subalternos, cuja enunciação é imprescindível para a superação das Epistemológicas do Norte enquanto pensamento único. Afirmara Epistemologias do Sul, na luta, reinterpretando e transformando a realidade simultaneamente, valorizando as experiências, alimentando as esperanças e revigorando a vida. Parece-me que daí podemos extrair os princípios das agendas sobre as quais lhe proponho dialogar. Dessa forma, gostaria de focalizar nossa conversa, inicialmente, nos desafios que se apresentam à afirmação das Epistemologias do Sul no campo da educação superior para indígenas e afrodescendentes no Brasil e América Latina. Na esfera institucional das universidades públicas brasileiras, uma série de políticas de caráter inclusivo e afirmativo foram instauradas na última década. Embora ainda muito tímidas, tais políticas permitiram o ingresso de jovens indígenas e afrodescendentes nessas universidades, que hoje ocupam vagas discentes e docentes. Nesse sentido e diante de um cenário de incertezas da democracia e de avanço das forças conservadoras em escala global, a primeira questão busca elucidar o horizonte de luta que se apresenta para os jovens intelectuais indígenas, para as mulheres e para os afrodescendentes frente à necessidade de afirmação de suas Epistemologias do Sul e dentro das universidades.

Assim, quais os desafios para promover uma ciência das emergências de modo a criar um ambiente de recepção compreensiva a essas múltiplas vozes e qual é a agenda das lutas nesse contexto e nesse momento?

Boaventura – Essa é uma pergunta muito oportuna no continente. Como sabes, eu trabalho bastante com jovens e, felizmente, minha atuação tem uma expressão muito especial entre as diferentes camadas da juventude. Talvez isso se deva ao fato de, em todo o meu trabalho, eu procurar combinar um diagnóstico radical das nossas condições e a esperança de uma alternativa. E naturalmente que os jovens precisam ter essa esperança para não desistirem daquilo a que pensam ter direito - e a que efetivamente têm direito. Portanto, trato desse assunto com muito gosto. O continente está de fato em um período muito complexo, onde se misturam, de um lado, um retrocesso enorme nas políticas de inclusão intercultural que ocorreram em alguns países na primeira década do século XXI. E esse retrocesso é claro. O Brasil é quase um laboratório desse processo. Ao mesmo tempo, a América Latina é um continente onde as forças de resistência não param também de se afirmar.

Vejamos o que se passou na Argentina, depois do pesadelo neoliberal de Mauricio Macri. Os jovens e as mulheres, duas grandes forças de resistência e protesto, conseguiram ganhar as eleições, destituindo Macri do poder. Ao mesmo tempo, atravessamos uma situação dramática nesse momento no Chile, com a declaração do Estado de Emergência, que é um aproveitamento oportunista do presidente Sebastián Piñera, para proibir os protestos e toda a contestação social a que estava sujeito. Mas aí também as mulheres, os jovens, os povos indígenas, sobretudo os Mapuche, têm tido um protagonismo enorme no sentido de questionar o governo de Piñera e de propor uma assembleia constituinte plurinacional que finalmente possa pôr fim às constituições de ditadura editadas por Pinochet. Obviamente que a crise do coronavirus vai prolongar-se por alguns meses, mas estou certo de que as mulheres, os jovens e os indígenas no Chile voltarão. No México, temos neste momento uma janela de esperança com o governo de Andrés Manuel López Obrador, que com todas as contradições, procura de alguma maneira abrir espaços para uma leitura intercultural, mais inclusiva da sociedade. Vejamos um exemplo pessoal. Recentemente redigi um prefácio para um livro que jamais pensei que pudesse vir a ser publicado no México. Trata-se de um livro bilíngue de poesia, reunindo textos de poetas indígenas, todos eles em várias línguas, e posteriormente traduzidos ao espanhol, publicado pelo governo do México através da iniciativa de uma secretária de Estado indígena, que é também uma grande poeta, a Natalia Toledo Paz. Para além do significado pessoal desse exemplo, interessa registrar essa publicação como sintoma de uma sociedade que procura dar voz a outras vozes, historicamente silenciadas. Algo que os brasileiros e brasileiras conhecem bem, na medida em que, nos últimos quinze anos, houve muitas iniciativas dessa natureza no Brasil, promovendo as vozes indígenas, seja por meio das política de cotas, que oportunizaram o acesso de jovens indígenas e afro-brasileiros às universidades, seja por meio de políticas culturais de fomento a publicações similares a essa que lhes comento.

Este é, em síntese, o contexto geral em que nos encontramos hoje na América Latina, e sobre o qual necessitamos cotidianamente refletir. E essa reflexão, em meu entender, deve vir em um duplo sentido. De um lado, cabe-nos refletir qual é a responsabilidade destes jovens, agora universitários, em continuar o trabalho que, até há pouco contou com o apoio governamental, por meio de políticas inclusivas, ainda que com contradições e com hesitações, mas que hoje não tem nenhum horizonte positivo de incentivo. Trata-se de uma luta, definitivamente, contra a corrente. Não só contra a corrente política, mas também contra a corrente social. Portanto, esta é uma primeira questão a introduzir no nosso debate. E aqui vem a questão do conceito de luta. Realmente o conceito de luta é fundamental, porque as Epistemologias do Sul procuram uma terceira via, ou terceiro modelo epistemológico para trilhar seu caminho. Trata-se de um terceiro caminho epistemológico com relação aos dois que dominaram até hoje nosso sistema universitário e o conhecimento hegemônico. O primeiro modelo prevê que o conhecimento deve vir depois da luta, depois da luta social. Nesse modelo, o conhecimento não pode ser produzido noutras condições, senão quando a luta termina, quando as coisas estão calmas, ou quando a coruja de Minerva pode, ao final da tarde, levantar seu voo. É esta a proposta e a formulação de Hegel. Trata-se da perspectiva de que a aventura do conhecimento só pode se dar depois da luta, quando enfim. e finalmente, pode se afirmar. É conhecida a crítica que tenho tecido a essa perspectiva, somando-me a outros meus contemporâneos. Mas finalmente, qual é o problema deste modelo? É que depois da luta, o que resta, basicamente, é o conhecimento dos vencedores. O nosso conhecimento, por exemplo, é o conhecimento dos vencedores, pois foi esse o conhecimento que nos é dado a conhecer nas universidades. Alternativamente, depois da luta, o conhecimento dos vencidos desaparece.

O segundo modelo é o modelo marxista, que propõe que a produção do conhecimento deve se dar antes da luta. O conhecimento marxista e a proposta de Marx se apresentam no sentido de criar um conhecimento que habilite a classe operária para a luta, um conhecimento emancipatório, capaz de auxiliar a classe operária a superar o capitalismo que a oprime. Eu penso que este modelo continua válido, em muitos aspectos. Mas a verdade é que as frustrações frente aos conceitos que surgiram dele, tais como as proposições de comunismo, socialismo ou a própria ideia de revolução, foram muito grandes no século XX, sendo ambos simbolicamente rejeitados na queda do muro de Berlim. Portanto, também este modelo não parece oferecer soluções ao impasse contemporâneo. E isso porque, por um lado, esse modelo pressupõe investir em uma classe específica como sujeito epistemológico privilegiado, no caso, a classe operária, deixando de fora outras classes e sujeitos do conhecimento. Este modelo não contempla, por exemplo, os conhecimentos dos povos indígenas, das populações racializadas, das mulheres. Além desse problema, que obviamente é muito forte, há os problemas próprios do fracasso das soluções aportadas pelas experiências comunistas e socialistas ao longo do século XX.

Nesse sentido, as Epistemologias do Sul procuram uma terceira via: a via dos conhecimentos nascidos na luta, enquanto a luta ocorre. Porque esses conhecimentos são conhecimento incorporado, são os corpos em luta que o produzem. E os corpos em luta são corpos intelectuais, corpos trabalhadores, podem ser artistas, podem ser poetas, indígenas, mulheres, podem ser o que sejam, corpos coletivos de grupos e comunidades e, é fundamental, corpos em resistência. Nesse sentido, o conceito de luta é um conceito de resistência: processo através do qual uma vítima deixa de ser vítima para ser um ator social protagonista. É o processo através do qual uma mínima possibilidade de liberdade é convertida em um impulso de libertação. E quando esse impulso de liberdade é incorporado numa vontade, num input de libertação, nós temos luta. Não apenas a grande luta, mas também a pequena luta, de um pequeno grupo, a luta de duas ou três pessoas. Pode ser a luta de uma comunidade, a luta de uma universidade, de um departamento. A luta não tem escalas. Mas tem, obviamente, a importância de ser resistência. As Epistemologias do Sul são propostas epistemológicas que podem ser assumidas por diferentes grupos sociais de estudantes, professores e pesquisadores desde que estejam envolvidos nas lutas anti-capitalistas, anti-colonialistas e anti-patriarcais, mas representam desafios diferentes para os diferentes grupos. Neste momento quero centrar-me nos desafios específicos que enfrentam os nossos jovens indígenas e afro-brasileiros, que neste momento se encontram nas universidades, como estudantes ou professores. Têm em suas mãos, várias lutas específicas.

A primeira luta, obviamente, é a de poderem pôr em prática muito daquilo em que acreditam como Epistemologias do Sul e, como sabes, na forma como as tenho formulado, trata-se de uma luta de resistência a séculos de validação do conhecimento, sem que no processo de luta se elimine de maneira nenhuma ou descarte o conhecimento científico hegemônico que se produziu até agora, mas sim, o reposicione diante da validação de outros conhecimentos. Conhecimentos populares, de indígenas, vernáculos, de mulheres, de populações quilombolas, populações ribeirinhas, camponesas, conhecimentos favelados, construídos sempre fora da universidade e que as Epistemologias do Sul buscam resgatar para orientar e fortalecer suas lutas. Trata-se de reconhecer a luta como o grande centro epistemológico e político das Epistemologias do Sul. Trata-se, também, de reconhecer que, na luta, se intercambia e mistura uma diversidade de conhecimentos. E quando esta mistura é ativamente utilizada para potenciar ou estabelecer uma luta, nós dizemos que se trata de uma Ecologia de Saberes. Portanto, a primeira luta é saber se os jovens, hoje indígenas e afrodescendentes, podem continuar nas suas universidades a seguir essa luta. Ou, alternativamente, se abandonarão temporariamente a luta, comportando-se como intelectuais, acadêmicos, professores, pesquisadores, como universitários, tal como os brancos, tal como todos os demais que atuam nas nossas universidades, esquecendo temporariamente sua missão. Pois trata-se de uma luta muito grande, fundamentalmente porque eles e elas terão que travá-la contra a corrente. E poderão sofrer as consequências de estar contra a corrente. Há estudantes indígenas e afro que cursaram o doutorado comigo e hoje são professores e me escrevem. - "Professor, a situação é difícil. Nós estamos a ser vigiados. Estão a gravar nossas aulas. Como é que nós procedemos? Temos que preservar a nossa integridade, mas também não podemos cair no desemprego. E nossa voz é silenciada, além do mais". Vivem um conflito muito grande. Eu tenho a todos eles e a todas elas recomendado que o mais importante na vida é não perder a alma. É não perder a integridade. Portanto, eu acho que devereis continuar na medida do possível, nessa luta. A luta de trazer as Epistemologias do Sul para vosso trabalho. Porque só assim podereis contribuir para transformar a sociedade brasileira, latino-americana e mundial, através de uma luta anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal. É necessário, obviamente, estar atento às condições concretas. Pois uma coisa é agir quando temos o apoio político e governamental para a implantação de ações afirmativas. Outra coisa é seguir agindo quando esse apoio não existe, ou, pelo contrário, reverte em forças de desconstituição do que havia antes. Então, eu penso que uma das medidas é esta: unam-se, procurem criar associações, dentro da própria universidade, ou fora dela. Apropriem-se da vossa especificidade como professores, mas considerem positivamente as alianças com brancos, mestiços, etc. Mas, sobretudo, procurem não atuar sozinhos, isoladamente. Porque isoladamente sereis rapidamente neutralizados, ao passo que, coletivamente, a neutralização se torna mais difícil. Procurem cultivar lealdades e convivência com outros estudantes, para não se deixar isolar. E que esses contatos não se limitem à sala de aula. Que sejam estendidos à vida fora da sala de aula, fora da própria universidade. A título de exemplo, após minhas aulas tenho cultivado o hábito de jantar com meus estudantes. Constituímos, desse modo, uma comunidade de gente que, aliás, vem de várias partes do país e de fora. Nesses encontros cantamos, dançamos, recitamos poesia, comemos, bebemos. Exercitamos um convívio que põe o professor em contato com os estudantes num contexto não acadêmico, não letivo. Ali, recriam-se cumplicidades, alianças, os estudantes se conhecem melhor. Cabe, portanto, aos professores também criarem as condições para que seus estudantes se conheçam melhor entre si.

A segunda ideia é que, no momento em que nós vivemos, é muito importante ter em mente que muito do que os estudantes vão aprender, aprenderão uns com os outros. Trata-se de reconhecer e promover o currículo horizontal, aquele das reuniões dos estudantes, por vezes clandestinas. Sempre que os estudantes peçam apoio a nós, seus professores, que os ajudemos de uma forma ou outra, porque a disponibilidade deverá ser total. Pois devemos reconhecer que nossos estudantes também sabem muito e muito bem; são sujeitos de conhecimento. Nós não podemos, obviamente, tratar em nossas aulas do valor do conhecimento popular e, depois, considerarmos que nossos estudantes são uma tábula rasa, sem nenhum conhecimento, vendo-nos às voltas apenas com a agenda do conhecimento que lhes devemos transmitir. Não! Eles e elas são sujeitos plenos de conhecimento e esse conhecimento, muitas vezes, é valioso, mas tem que ser articulado com outros conhecimentos. Portanto, esta é uma segunda agenda de luta, que penso ser importante.

A terceira agenda de luta se apresenta na seguinte questão: Qual é o papel, em geral, de uma jovem professora ou professor indígena ou afro nas universidades do continente e, muito especificamente no Brasil? É exercer a tradução intercultural, basicamente. Essa luta se apresenta de modo importante a essas professoras e professores, pois elas e eles têm potencialmente capacidades extraordinárias, relativamente aos colegas brancos ou mestiços, os quais muitas das vezes são hostis à presença de povos ou culturas afro e indígenas nas universidades. Essas professoras e professores indígenas e afros conhecem bem a tradição ocidental, conhecem as Epistemologias do Norte, as praticam em suas aulas, mas também conhecem as Epistemologias do Sul, o conhecimento popular, o conhecimento de seus povos. Já aprenderam que este conhecimento também é precioso. Portanto, conhecem as duas tradições. E de alguma maneira terão que jogar o papel, diria eu, dialético - atuando criticamente na economia do conhecimento. Em relação às Epistemologias do Norte, à ciência hegemônica, que continua a predominar na universidade, eles de alguma maneira serão outsiders, algo estranhos, pois não ingressaram no jogo do conhecimento sem muita luta, travada a partir de suas posições. Disputam o conhecimento das Epistemologias do Norte, mas desde o horizonte de seus conhecimentos próprios, os conhecimentos de suas coletividades de pertencimento, povos indígenas, quilombolas, grupos de mulheres, entre outras alteridades. Por outro lado, têm a legitimidade de aportar ao conjunto de seus estudantes os conhecimentos de seus povos indígenas, de suas comunidades, conhecimentos no âmbito dos quais serão sempre insiders, isso é, gente de dentro. E, portanto, não é tanto a sua posição de professora ou professor de uma universidade -essa instituição estranha, exterior à comunidade em que se constrói o conhecimento que determina seu lugar de luta. É preciso reconhecer que esses professores e professoras são muitas vezes obrigados, perante suas próprias comunidades, enquanto estudantes e professores, a lutar também por suas vozes, pois muitas vezes são postos aí também na posição de estranhos, de gente que se distanciou, ou que se vendeu, inclusive. Na apreciação dos estudantes indígenas, afinal, esse professor também indígena já fala como se fosse um professor totalmente ocidentalizado, totalmente esquecido de seu conhecimento.

Eu considero que essa dialética tem que ser muito bem estudada pedagogicamente, pelos jovens indígenas e afro e por todos os aliados brancos na universidade que, como eles, partilham das Epistemologias do Sul. Pois as Epistemologias do Sul não têm nada de essencialista ou racializado. Ao contrário. Se apresentam exatamente para superar a racialização e o sexismo do conhecimento. E, portanto, temos que encontrar formas de trabalhar essa dialética, de modo a oportunizar que esses professores e professoras se vejam simultaneamente como gente de dentro e gente de fora. E se posicionem, por vezes, com um pé dentro e um pé fora. Se na docência universitária, em sala de aula, predomina a posição de um pé fora relativamente à posição um pé dentro, no contexto da pesquisa é necessário manter um pé dentro e um pé fora, transitando entre tradições hostis e familiares, um pouco na sua vida pessoal, na sua vida intelectual e acadêmica, mas sempre entre estas diferentes sociedades. Essa tensão é complexa, é muito importante, se traduzindo em um desafio enorme. E eu penso que esses professores e professoras são e devem se considerar privilegiados por terem de enfrentá-lo, porque normalmente o acadêmico treinado nas Epistemologias do Norte nem sequer se põe esses problemas. É um outsider para todos os estudantes e é um insider da sua cultura, e ponto. E esquece todas essas relações para pensar que está a lecionar uma ciência objetiva e neutra. Portanto, os estudantes que passaram pelo crivo das Epistemologias do Sul estão muito acima desse essencialismo bárbaro, eu diria, que se disfarça de conhecimento ocidental e de Epistemologia do Norte. Trata-se aqui de um contexto que tem fomentado muito diálogo, muito debate e muito estudo. Mas está sempre a exigir muito mais diálogo, e muita interação. Pois trata-se de um conhecimento feito de ignorâncias e ausências. É um conhecimento mudo. É a tal teoria da retaguarda, deque falo. Portanto, não é um conhecimento que se imponha por si. É um conhecimento que deve ser trabalhado e confrontado com outros conhecimentos, discutidas as implicações políticas, sociais, culturais e até espirituais de cada uma das formas de conhecimento. É assim que eu vejo essa questão, neste momento. É tempo de tomada de posição dos jovens professores, investigadores, pesquisadores indígenas e afro no continente e no mundo em geral. Porque se trata de um movimento que existe nas diversas partes do mundo, mas em cujo contexto agora se torna mais difícil a tomada de posição, devendo-se tomar certas cautelas, mas sem que isso, de maneira alguma, signifique abrir mão ou colocar entre parênteses a sua opção epistemológica, para fins de superar ou passar por esta crise. Porque se assim não o fizer, quando a crise passar, este professor poderá ao fim esquecer e ser esquecido, por ter sido convencido de que o melhor, de fato, era a ciência “normal”, hegemônica, das Epistemologias do Norte, aquela que ele aprendeu da maioria dos seus professores. Isso significa uma derrota epistemológica mas, acima de tudo, uma derrota política. Nesse sentido, este é um dos aspectos da conjuntura que me parece mais complexo nestes tempos em que vivemos.

Mas há um segundo aspecto, e este segundo aspecto, que também tem estreita relação com a ideia de luta: é que as Epistemologias do Sul se destruirão completamente se reduzirem-se a um tema entre outros temas, no meio de nossa pesquisa e da nossa docência universitária. Pois no momento em que houver apenas artefatos folclorizados das Epistemologias do Sul, e nada mais, será o fim das Epistemologias do Sul. Eu tenho dito e repetido isso mil vezes. Porque as Epistemologias do Sul se realizam na luta, e, portanto, é muito importante continuar na luta. Eu próprio, mantenho uma dinâmica de tempo-conhecimento a qual procuro organizar da seguinte maneira: metade do meu tempo na universidade e outra metade com os movimentos, as organizações e as comunidades. E procuro, de uma forma ou outra, realizar isso. Ainda agora, recentemente no México, nas montanhas de Oaxaca em reuniões com os movimentos indígenas e movimentos de luta contra os mega-projetos propostos pelo Presidente Andrés Manuel Lopez Obrador, como o Tren Maya e o complexo ferroviário e industrial transsístmico. Durante essa estadia gravei uma Conversa do Mundo com um grande intelectual-ativista das lutas populares, Gustavo Esteva2.Esta luta fora da universidade é agora mais difícil porque a universidade está num processo de invasão do capitalismo universitário. O “Future-se” é apenas um projeto mais extremo, mas as lógicas capitalistas estão presentes, há décadas, em diferentes instâncias universitárias no Brasil e em todo o continente. Isso pode ser sentido nas agendas que envolvem os professores em um ritmo de alta produtividade e publicações, prioritariamente em inglês e em revistas de impacto, etc. Tal dinâmica obviamente condiciona a disponibilidade dos professores e pesquisadores para a luta social. Mas a verdade, que precisa ser reiterada, é a de que se os pesquisadores abandonarem as lutas sociais, abdicando de estarem envolvidos nessas lutas, mantendo um pé na universidade, outro pé nas lutas dos movimentos sociais, acabarão por se corromper. E ao falarem das Epistemologias do Sul, soará algo como uma farsa. Perderão sua credibilidade, sua legitimidade. Porque é na prática da luta, na solidariedade ativa com os movimentos, onde se correm os riscos e se curam as feridas, que se afirmam as Epistemologias do Sul. Nestes termos está posto um contexto, que obviamente deverá ser analisado à luz das especificidades que se apresentem a cada país, ao longo do continente. É importante que, à luz desse contexto, os investigadores, pesquisadores, professores e professoras, acadêmicos indígenas ou afrodescentes e seus colegas brancos ou mestiços aliados na luta, analisem as condições concretas em cada situação, para poder coletivamente encontrar respostas que nunca serão encontradas isoladamente. Porque, ademais, isoladamente serão facilmente neutralizadas.


Ana Elisa – Muito me entusiasma seu programa Conversas do Mundo que faz parte do Projeto Alice3. As diferentes edições desse programa contribuem para que possamos balizar a Ecologia de Saberes na prática do diálogo. Para finalizar essa entrevista, gostaria de tocar em um ponto que foi desenvolvido em sua conversa transcorrida em outubro de 2013, no Valle de las Ánimas, na cidade de La Paz, Bolívia, com a feminista e socióloga Silvia Rivera Cusicanqui4. Nessa oportunidade, vocês trataram do tema das identidades sociais e da ideia de mestiçagem. Esse debate me parece oportuno para avançarmos na compreensão dos desdobramentos identitários que atravessam as lutas sociais contemporâneas no Brasil e na América Latina, nos quais a ideologia da mistura se reapresenta de diferentes maneiras. No debate, Sílvia Cusicanqui aporta uma categoria central no seu pensamento – Ch’ixi– que designa a experiência de mestiçagem na qual as ancestralidades constitutivas do sujeito não se anulam, mas, ao contrário, permanecem tensas como marcas de uma subjetividade manchada. Nas minhas pesquisas, na docência universitária e nas lutas feministas, tenho identificado um horizonte emergente Ch’ixi no movimento de mulheres agricultoras, artistas, camponesas e urbanas no Brasil e região, nas quais afirmamos positivamente nossas múltiplas ancestralidades, indígenas, afro, mas também europeias etc. Tais ancestralidades, silenciadas historicamente pelos regimes de conhecimento e heteroidentificação patriarcais e coloniais, passam a ser reafirmadas por nós, artistas e cientistas mulheres, que rejeitamos a simplificação identitária que força apenas um pertencimento. Paralelamente, no movimento indígena, ao menos no Brasil, permanece operante a dicotomia essencialista índios e brancos que, embora operante politicamente, socialmente tem se mostrado insuficiente para o reconhecimento de uma infinidade de experiências que seriam mais bem compreendidas na perspectiva Ch’ixi. Gostaria de ouvi-lo sobre isso.

Boaventura – Novamente, muito relevante essa questão. O primeiro equívoco que é preciso desfazer diz respeito a uma ideia muito presente no senso comum de que efetivamente a matriz colonial portuguesa teria sido orientada pelas ideias da miscigenação e de convivência entre raças. Esse senso comum teve a sua formulação matricial no lusotropicalismo de Gilberto Freyre. Realmente o Brasil é hoje um arco íris de cores no plano demográfico, mas isso não quer de maneira nenhuma dizer que o colonialismo português tenha sido menos violento que outros colonialismos. Ele foi exatamente e igualmente violento. Porque muito dessa mestiçagem e dessa mistura foi originalmente produto da violação de mulheres indígenas e afro e, portanto, envolve relações de poder que estão na matriz do sexismo e do racismo brasileiros. Realmente, talvez as mais oprimidas sejam as mulheres indígenas e negras, porque sofrem a dupla estigmatização: a de serem indígenas e negras, e a de serem mulheres. Mas dito isso, de maneira nenhuma se deve aceitar a ideia de que as cores determinam essências. Ao contrário, desde meu livro “Pela mão de Alice: o social e o político na pós modernidade” (1997), venho propondo que não há identidades, mas sim, identificações e, portanto, as identidades são identificações em curso. Muitos de meus colegas que vivem nos Estados Unidos, e que por muito tempo se percebiam como americanos comuns, pouco a pouco foram se identificando como judeus. Houve um momento em que eles quiseram afirmar as suas identidades. Portanto, as identidades são construídas e devemos fazer todo o possível para evitar os guetos identitários. Tais guetos estão aí, e não podemos ocultá-los. Não estão apenas nos grupos indígenas ou no movimento negro. Estão também no movimento das mulheres. Nós temos ainda hoje um certo feminismo radical, fundamentado em essencialismos de caráter biológico, e que dificulta a união das lutas. Eu penso que esse fenômeno também existe hoje no movimento negro. E é compreensível, porque depois de terem tido alguma esperança, nas primeiras décadas do século XXI, de que as coisas poderiam mudar para melhor, tais sujeitos viram como essa esperança foi de curta duração e logo voltaram a ser profundamente reprimidos. Mesmo que nesse período haja uma camada intelectual que conquistou espaço e voz, por outro lado, as comunidades indígenas e quilombolas não conquistaram muito do que queriam. Basta constatar, por exemplo, em relação à demarcação das terras indígenas que, embora o presidente Jair Bolsonaro tenha anunciado que em seu governo não haverá mais nenhuma demarcação de terras indígenas no Brasil, é penoso reconhecer que, nos últimos anos dos governos petistas de Lula e Dilma, também não houve demarcação de terras indígenas ou territórios quilombolas. Por certo, se isso tivesse ocorrido, as condições de luta dos povos indígenas e quilombolas hoje seriam melhores porque, ao menos, teriam um argumento jurídico que hoje não têm. Basta vermos o que está a passar na Amazônia, em Alcântara, no Maranhão, com a decisão do Governo de remover famílias quilombolas para ampliar a Base de Alcântara, uma decisão ilegal, inconstitucional e, além disso, moralmente repugnante por ser feita num momento de crise pandémica. Basta vermos o que está a passar na região do Mato Grosso do Sul, onde a Universidade Federal da Grande Dourados tem estado em uma das frentes de luta com os povos indígenas, cujos territórios não foram reconhecidos. Portanto, tens toda a razão e essa é uma grande discussão. E há nela um ponto em que meu pensamento faz convergência com o pensamento de Silvia Cusicanqui: na medida em que se torna necessário distinguir no conceito de mestiçagem ou de mistura entre a perspectiva de uma mestiçagem opressiva, repressiva, que diz respeito a atitude dos mestiços que sempre se identificaram com os brancos, esquecendo a ancestralidade que estás a referir, e a perspectiva de uma mestiçagem progressista, emancipatória, porque é uma mestiçagem que não perde a memória do ancestral e se identifica com quem está mais abaixo, os historicamente oprimidos e excluídos. Nesse sentido, podemos identificar dois tipos de mestiçagem: uma que é opressiva e outra que é libertadora. E essa é uma discussão que se reconfigura na medida em que nos deslocamos pela América Central ou Caraíbas, onde o debate terá outra conotação. O conceito de crioulização tem correspondência com o conceito de mestiçagem, mas no sentido que o sociólogo cubano Fernando Ortiz lhe conferiu: na perspectiva de um contrapunteo cubano5, em que a ideia da crioulização se configura como uma grande mistura que, para além da própria mistura, cria coisas novas. Todas essas ideias em torno do paradigma da crioulidade e da crioulização nas Caraíbas, que foram efetivamente o ponto de encontro de muitas culturas, define um outro contexto intelectual e político. Nesses termos, estou de acordo com a posição que acabas de manifestar, a qual considero ser a única que tem validade. Entretanto, tal posição lamentavelmente será aquela que, de alguma maneira, vai sofrer mais em contextos repressivos nos quais as tendências de composição identitária com os que estão abaixo, e que evocam as raízes ancestrais, será reprimida ideologicamente por aqueles que, nesse jogo, se identificam unicamente com as matrizes dominantes da sociedade branca eurocêntrica. Afinal, como afirmou Mauricio Macri: “Nós, argentinos, somos todos descendentes de europeus”. Afirmação que nega a existência Mapuche na Argentina, por exemplo. Por outro lado, nos últimos anos, aqueles que historicamente são vítimas de opressão identitária, chegaram à universidade e ali suas identidades indígenas ou afro foram postas em visibilidade. No contexto das políticas de cotas ou ação afirmativa nas universidades esses sujeitos não podem escapar a essa condição, e se sentem muitas vezes ainda mais oprimidos, podendo mesmo experimentar uma situação de veto identitário, abandonando o diálogo intercultural, radicalizando suas posições. E tal radicalização pode se desdobrar novamente no aprofundamento de uma radicalização racial e étnico-cultural, configurando os guetos identitários que nos dividem na luta, e que devemos evitar a todo o custo.







SOBRE A ENTREVISTADORA


ANA ELISA DE CASTRO FREITAS é doutora em Antropologia Social e mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora do curso de Licenciatura em Artes, do Bacharelado em Ciências Ambientais e do Programa de Pós-Graduação em Rede Nacional para o Ensino das Ciências Ambientais do Setor Litoral da Universidade Federal do Paraná, membro-pesquisadora do Laboratório de Interculturalidade e Diversidade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

E-mail: anaelisa@ufpr.br



SOBRE O ENTREVISTADO


BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça. De 2011 a 2016, dirigiu o projeto de investigação ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências o mundo, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Sua vasta produção intelectual abarca estudos sobre globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos, os quais encontram-se traduzidos para o espanhol, inglês, italiano, francês, alemão, chinês e romeno.

E-mail: bsantos@ces.uc.pt






Recebido em: 08.04.2020

Aceito em: 09.04.2020

1 Em relação à agenda das ações afirmativas, no campo da luta por reconhecimento, no sentido de Hegel.

2 Ativista e fundador da Universidad de la Tierra, na cidade Oaxaca, México. Membro do quadro administrativo na gestão do presidente Luis Echeverría Álvarez (1970-1976) e conselheiro do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em Chiapas, em suas negociações com os governos mexicanos. O mencionado programa está disponível para visualização em: https://www.youtube.com/watch?v=-nbzKhSIhaA

3 Projeto de investigação ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências o mundo, dirigido por Boaventura de Sousa Santos entre 2011 e 2016 e financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal.

4 Feminista, socióloga e professora emérita da Universidad Mayor de San Andrés em La Paz, Bolívia, a produção intelectual de Silvia Rivera Cusicanqui focaliza os processos coloniais indígenas e a luta de mulheres em contextos rurais e urbanos na América Latina. A Conversa do Mundo mencionada encontra-se acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=xjgHfSrLnpU

5 Esse debate atravessa a obra do sociólogo cubano Fernando Ortiz Fernández, com centralidade no ensaio Contrapunteo cubano: del tabaco y el azúcar (1940). Publicado pela primeira vez em 1940, esse texto de Fernando Ortiz tornou-se referência obrigatória para toda e qualquer reflexão sobre o fenômeno da mestiçagem não apenas em Cuba, mas por analogia, em toda a América.


Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.13 p. 352-367, maio/ago. 2020.