RESENHA


REFLEXIVIDADES INDÍGENAS E O PROTAGONISMO DE EPISTEMOLOGIAS E ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS





Por Ana Cláudia Gomes de Souza

Universidade da IntegraçãoInternacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB)

São Francisco do Conde, BA, Brasil



Dados catalográficos da obra

Coleção Reflexividades Indígenas (quatro livros). Manaus, AM: Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena da Universidade Federal do Amazonas (NEAI/UFAM), 2018.



DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i13.40930



Os quatro livros que compõem a coleção são o resultado das pesquisas desenvolvidas no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS-UFAM) pelos quatro autores da etnia Tukano. Essas dissertações partem da noção de antropologia reversa para problematizarem questões já tratadas por outros/as pesquisadores/as não indígenas. Assim, fazem o exercício da reflexividade ao procederem a uma análise dos temas já pesquisados e que se referem a suas comunidades, colocando-se agora como interlocutores privilegiados para refletirem como tais análises reverberam, seja nos pesquisadores indígenas ou nos outros membros da comunidade.

Os autores assumem, portanto, o pressuposto da antropologia simétrica ao apresentarem para os não indígenas e para os indígenas como os conhecimentos nativos possuem lógica e epistemologias próprias, assim como ocorre na ciência produzida por quem não reconhece acento étnico e identitário, como é o caso da ocidental.

Na nota introdutória que antecede os livros da coleção, é apresentada uma contextualização sobre o ingresso dos quatro primeiros indígenas no curso de mestrado do PPGAS-UFAM. Em 2009, o professor Gilton Mendes dos Santos nos conta que ingressa João Rivelino Rezende Barreto, interessado em estudar as categorias do pensamento tukano e o sistema hierárquico no Alto Rio Negro. Já em 2014, com as ações afirmativas implementadas no PPGAS-UFAM, ingressa João Paulo Lima Barreto, dedicando-se à produção de conhecimentos científico e acadêmico sobre peixes, levando-o a refletir sobre as especificidades do conhecimento tukano e as apreensões produzidas acerca da cosmologia do noroeste amazônico. Em 2014, ingressam mais dois discentes, Gabriel Maia, que estudou a astronomia tukana, descrevendo ''os marcadores do tempo e as práticas rituais'', e Dagoberto Azevedo, responsável por examinar o sentido atribuído para o entendimento da relação terra\floresta, a partir de como a classificação desses espaços aparece nos benzimentos (ou bahsese) de domínio dos kumuã (conhecedores).

O ingresso dos quatro mestrandos inaugura a participação de indígenas no programa de antropologia da UFAM e no Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI\UFAM). Dessa forma, eles passam a contribuir com a antropologia produzida sobre a região amazônica, ''os observados tornaram-se observadores e sujeitos da disciplina[...], investigar e encontrar na floresta epistemológica indígena, novas noções que dessem conta de exprimir uma lógica outra, que melhor e mais fiel pudesse traduzir a compreensão, as práticas e as relações estabelecidas entre pessoas e mundos diversos'' (2018, p.8).

A produção antropológica de João Rivelino, João Paulo, Gabriel e Dagoberto nos facilita ter acesso a novos sistemas explicativos, construindo, assim, outras possibilidades de antropologia. Vale ressaltar que, não por acaso, dois dos livros foram publicados em edição bilíngue: português e tukano. Isso também evidencia o direito conquistado pelos pós-graduandos indígenas do Programa de poderem produzir em língua materna.

No livro Agenciamento do mundo pelos kumuã Ye´Pamahsã: o conjunto dos bahsese na organização do espaço Di´ta Nuhku, Dagoberto Lima Azevedo apresenta uma descrição bilíngue da cosmologia tukano, do espaço terra/floresta, por meio de diferentes classificações da vegetação: floresta madura (yokubukuro), capoeira (wiakara), floresta sobre areia (tatabonha), chavascais (tari). Inicialmente, o interesse de Azevedo surge do desejo de sistematizar e conceituar as palavras técnicas dos kumuã yepamahsã ou os conhecedores tukano. Com a pesquisa passou a se dedicar à compreensão do sistema de conhecimento presente nos benzimentos, como classificam e agenciam os seres e os espaços do mundo e como eles se articulam com a construção das reflexões dos saberes dos yepamahsã (tukano). A sua pesquisa foi ancorada em sua própria experiência e na de pesquisadores indígenas como João Paulo e João Rivelino, além de outras produções antropológicas de conhecedores do Alto Rio Negro.

Em Formação e Transformação de Coletivos Indígenas do Noroeste Amazônico: do mito à sociologia das comunidades, João Rivelino Rezende Barreto inicia afirmando a ausência de pretensão para realizar uma farta revisão bibliográfica etnográfica e etnológica do Alto Rio Negro. Além do mais, o autor afirma que tampouco pretende refletir rebuscadamente em torno da teoria e da metodologia antropológica. Ele sustentará que, em linhas gerais, pretende descrever o coletivo social sararó yupuri búbera põra, enfatizando as formas de articulação e de integração das pessoas que a ele se vinculam e constroem sentimento de pertencimento. Terá ainda a intenção de arrolar as falas de alguns antropólogos sobre as unidades sociais do Alto Rio Negro para gerar interlocuções com os dados produzidos na autobiografia que desenvolveu. Para além disso, dialoga com as categorias conceituais antropológicas, as quais também foram acionadas para uma maior compreensão de determinadas indagações surgidas no campo. Por meio da autobiografia comentada, João Barreto apresenta o processo de transformação social vivenciado no âmbito interno e externo de sua comunidade. O pesquisador reconhece ter feito o esforço para situar o exercício da reflexividade sociológica via lógica do pensamento em que foi socializado ao analisar a cultura tukana e ao tratar “a origem do mundo, seus componentes e ocupantes” (BARRETO, J. R. 2018, p. 22).

João Paulo Lima Barreto é o autor de Waimahsã: peixes e humanos. O seu livro inicia por um provocador preâmbulo, em que explicita o seu contato com a área da antropologia e com as críticas ao campo ao satirizar se seria possível a antropologia estudar os “brancos” nos mesmos moldes que estudam os povos indígenas. Além disso, o autor aborda a intensificação do seu interesse e o seu ingresso no mestrado, bem como o encontro com o problema de pesquisa: levantamento da produção do conhecimento sobre os peixes e o exercício da reflexividade ao problematizar o pensamento indígena e a produção acadêmica. Nesse caminho, a sua pesquisa o levou a pensar as vantagens de ser um antropólogo nativo, como em suas desvantagens para o próprio exercício da reflexividade, tendo em vista que para os conhecedores indígenas tukano, o conhecimento é prático e não algo sobre o qual se reflete, pertencendo à ordem do vivido e experienciado.

Ao longo do livro, João Paulo afirma que a sua proposta foi produzir uma antropologia indígena ao se dispor a pensar os conhecimentos a partir dos conceitos nativos, servindo-se da antropologia para sistematizar os conhecimentos tukano por meio do seu instrumental (teórico-metodológico). Assim, aciona as categorias da antropologia para tornar acessível, para além da comunidade indígena, o pensamento tukano sobre os peixes, mostrando a “sua importância e seu papel no interior das teorias e das concepções nativas” (BARRETO, J. P. 2018, p. 22). Como ele próprio afirma, o resultado final é uma etnografia da prática científica com peixes, produzida na interlocução com o seu pai e no acompanhamento dos trabalhos de pesquisadores nos laboratórios de taxonomia e tombamento. Assim, o peixe é o elemento central na construção de conhecimentos acerca das aproximações e dos distanciamentos entre os modelos de saberes científico e tukano.

Em Bahsamori: o tempo, as estações e as etiquetas sociais dos Yepamahsã, Gabriel Sodré Maia faz uma descrição bilíngue do conjunto das cerimônias rituais. Denominadas de bahsamori, tais cerimônias são praticadas ao longo do ano conforme o calendário (inscrito por 17 constelações) que rege os trabalhos da roça, da pesca, da caça, da coleta e das outras atividades cotidianas. Elas criam uma compreensão a partir do diálogo com o baya (responsável pela astronomia tukano) sobre os conhecimentos e as práticas musicais, os instrumentos, as coreografias e os outros elementos presentes nesse ritual. O pesquisador defende, ainda, a importância da dupla grafia em sua publicação, em português e em tukano, como forma de inovação da universidade e, sobretudo, pela oportunidade de demonstração da verbalização do conhecimento Yepamahsã (Tukano) enquanto sujeito e não mais como objeto de pesquisa.

Na coleção, temos um pouco do que cada um dos autores contribuiu para uma antropologia de maior potência, capaz de refletir os sinais dos novos sujeitos presentes nas universidades. Desse modo, podemos afirmar que esses pesquisadores nos revelam os esforços intelectuais realizados a fim de contribuir com a antropologia a partir de conceitos-chaves dos modos de vidas Yepamahsã da sua vivência e convivência com os detentores dos conhecimentos. Os autores sistematizam o que compreendem por epistemologia indígena e produzem espaços de interlocução mais simétricos com os conhecimentos indígenas na universidade. Ao mergulharem em suas próprias produções, eles constatam que é possível criar um reconhecimento de uma epistemologia indígena no espaço acadêmico e uma antropologia feita por indígenas.


Referências


AZEVEDO, Dagoberto Lima. Agenciamento do mundo pelos Kumuã Ye´pamahsã: o conjunto dos Bahsese na organização do espaço Di´ta Nuhku. Manaus: EDUA, 2018. 270 p.


BARRETO, João Paulo Lima. Waimahsã: peixes e humanos. Manaus: EDUA, 2018. 128 p. (Coleção Reflexividades Indígenas)


BARRETO, João Rivelino Rezende. Formação e transformação de coletivos indígneas do noroeste amazônico: do mito à sociologia das comunidades. Manaus: EDUA, 2018. 167 p. (Coleção Reflexividades Indígenas)


MAIA, Gabriel Sodré. Bahsamori: o tempo, as estações e as etiquetas sociais dos Yepamahsã (Tukano). Manaus: EDUA, 2018. 348 p. (Coleção Reflexividades Indígenas)


SANTOS, Gilton Mendes. Nota Introdutória. In: BARRETO, João Paulo Lima. Waimahsã: peixes e humanos. Manaus: EDUA, 2018. 128 p. (Coleção Reflexividades Indígenas)


SOBRE A AUTORA


ANA CLÁUDIA GOMES DE SOUZA é doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora do curso de Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), campus Malês, e pesquisadora dos grupos de pesquisa PINEB/UFBA e NYEMBA/UNILAB.

E-mail: anacla@unilab.edu.br





Recebido em: 07.03.2020

Aceito em: 11.03.2020


Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.13, p. xxx-xxx, maio/ago. 2020.