EDUCAÇÃO, IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO


Magno da Conceição Peneluc

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Salvador, BA, Brasil


Edilson Fortuna de Moradillo

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Salvador, BA, Brasil


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i12.40583


RESUMO

As ideologias se referem à consciência prática indispensável à ação social. Elas mantêm vínculo com a educação, especialmente quando analisada dialeticamente no bojo da relação entre educação e alienação, tendo como base a crítica ao capitalismo, enquanto promotor de determinadas formas de alienação e de ideologias hegemônicas. Nesta pesquisa bibliográfica, buscou-se compreender como as ideologias interferem na relação entre educação e alienação. Também foi analisado como a alienação interfere em práxis educativas voltados à qualificação para identificar e para criticar as ideologias relevantes à prática social. A crítica ideológica pode ser de grande valor pedagógico para a formação dos professores e para a formação humana omnilateral, sendo assumida, ao mesmo tempo, como meta educativa e como conteúdo de ensino. Por fim, apontamos, dentro do cenário educativo brasileiro, a Pedagogia Histórico-Crítica, devido aos seus pressupostos filosóficos e educacionais, como aquela mais apropriada para dar conta dessa relação: educação, ideologia e alienação.

Palavras-chave: Crítica ideológica. Educação omnilateral. Alienação.


EDUCATION, IDEOLOGY AND ALIENATION


ABSTRACT

Ideologies refer to the practical awareness that is indispensable for social action. They maintain a link with education, especially when analyzed dialectically in the context of the relationship between education and alienation, based on the criticism of capitalism, as a promoter of certain forms of alienation and hegemonic ideologies. This bibliographic research sought to understand how ideologies interfere in the relationship between education and alienation. It was also analyzed how alienation interferes with educational praxis aimed at qualifying to identify and criticize ideologies relevant to social practice. Ideological criticism can be of great pedagogical value for the training of teachers and for omnilateral human training, being assumed, at the same time, as an educational goal and as teaching content. Finally, we point out, within the Brazilian educational scenario, Historical-Critical Pedagogy, due to its philosophical and educational assumptions, as the most appropriate to account for this relationship: education, ideology and alienation

Keywords: Ideological criticism. Omnilateral education. Alienation.



EDUCACIÓN, IDEOLOGÍA Y ALIENACIÓN


RESUMEN: Las ideologías se refieren a la conciencia práctica que es indispensable para la acción social. Mantienen un vínculo con la educación, especialmente cuando se analiza dialécticamente en el contexto de la relación entre educación y alienación, basada en la crítica del capitalismo, como promotor de ciertas formas de alienación e ideologías hegemónicas. Esta investigación bibliográfica buscó comprender cómo las ideologías interfieren en la relación entre educación y alienación. También se analizó cómo la alienación interfiere con la praxis educativa dirigida a calificar para identificar y criticar ideologías relevantes para la práctica social. La crítica ideológica puede ser de gran valor pedagógico para la formación de docentes y para la formación humana omnilateral, asumiéndose, al mismo tiempo, como un objetivo educativo y como contenido didáctico. Finalmente, señalamos, dentro del escenario educativo brasileño, la Pedagogía histórico-crítica, debido a sus supuestos filosóficos y educativos, como los más apropiados para dar cuenta de esta relación: educación, ideología y alienación.

Palabras clave: Crítica ideologíca. Educación omnilateral. Alienación.



Introdução

No livro de Destutt de Tracy, Elementos de Ideologia (1801), a ideologia é definida como a ciência do estudo das ideias, dos fatos da consciência e de sua origem, ou seja, acepção bem próxima da etimologia do termo: estudo das ideias, conhecimento das ideias (TURA, 1999). Marilena Chauí esclarece: “de Tracy, Cabanis, com De Gérando e Volney, elaboram uma teoria sobre as faculdades sensíveis, responsáveis pela formação de todas as nossas ideias: querer (vontade), julgar (razão), sentir (percepção) e recordar (memória)” (2004, p.10). Uma ideologia é, pois, uma doutrina, ou seja, um corpo sistemático de ideias e um posicionamento interpretativo perante a determinados fatos.

Ideologia pode significar, desde resquício de ideias antigas, preconceitos, discurso inócuo e estéril ou, de forma positiva, como conjunto de ideias referente a concepções válidas em um processo discursivo. Enquanto um fenômeno social relevante, grande parte dos filósofos e dos cientistas sociais sustentam que as ideologias têm assumido um propósito eminentemente de dissimulação da realidade, de distorção, de alienação; e de sua transformação em ‘verdades’ universais. Esta acepção está clara em Marx e Engels (1982), em A ideologia alemã, ao se referirem à ideologia como parte da relação de mútuo condicionamento entre homem e natureza, acabando por resultar em deturpação ou mascaramento da realidade. Esta função emerge em um contexto histórico conflitivo, em uma sociedade fundada sob o modo de produção capitalista, na qual o capital necessita de uma organização social que amplie sua produção de mercadorias e a manutenção da taxa de crescimento. Dessa forma a função da ideologia seria:

Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas ideias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia (CHAUÍ, 2004, p. 8).


No campo político, as ideologias estão sempre presentes enquanto produção discursiva que embasa a práxis social1 e dela deriva, mas que frequentemente prestam-se à função de ocultamento da realidade. Em sociedades marcadas pela luta de classes, a ideologia acoberta a realidade das relações sociais, legitimando e dando contornos identificáveis e aparentemente familiares. De fato, as classes dominantes usam e abusam de ideologias que ampliam a alienação derivada das relações materiais, acabando por distorcer o que realmente ocorre no seio das relações sociais capitalistas.

No entanto, nascem alguns questionamentos: será este o único status epistemológico (de enunciado teoricamente falso) e função social negativa da ideologia? Ela possui outros sentidos valorativos e outras funções sociais -, dependendo de qual classe social se aproprie, de como esta é construída no processo discursivo e de como (quais as intenções veladas ou explícitas) essa classe social usa a ideologia? Não seria mais adequado reconhecer as implicações das ideologias tanto no campo epistemológico quanto no sociológico? A ideologia pode ganhar uma função social emancipadora, que decorra de uma aproximação da realidade histórica? Prevalecerá nela o significado negativo de distorção, contributo da alienação?

Segundo Löwy (2000), em Marx o conceito de ideologia aparece inicialmente como falsa consciência, concepção idealista na qual a realidade é invertida. Contudo ele adverte que o mesmo Marx, em obras tardias, afirma que as ideologias podem assumir formas desveladoras, de consciência sobre o real. Interessante é a concepção leninista de ideologia, segundo a qual

uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária, deixa de ter um sentido crítico, pejorativo, negativo, que tem em Marx, e passa a designar simplesmente qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe” (LÖWY, 2000, p. 20).


Assim, a partir dessa perspectiva mais ampla de ideologia e a partir de uma leitura marxiana, atualizada por alguns autores, com ênfase em Lukács, Mészáros e Eagleton, objetivamos esclarecer a sua relação com a educação e com a alienação. Entendemos que a ideologia tende a fornecer propósitos e sentido à ação social e a influir em processos educativos e nos juízos que as pessoas fazem sobre a realidade em questão inseridas. Se as ideologias fazem parte da práxis social dos sujeitos, certamente possuem um aspecto pedagógico, na medida em que compõem o repertório conceitual e axiológico que dão significado à ação social do sujeito. Caberia ao educador ter consciência da relevância que a ideologia possui na composição do sujeito e de sua ação social. Esse mesmo educador, poderia assumir a crítica ideológica como um de seus objetivos-meios de ensino; ou seja, reconhecê-las internamente e reestruturá-las, com intenções libertárias e emancipadoras.

Como detentora dos meios de produção, a burguesia e suas ideologias certamente sobredeterminam as suas ideias, ainda que devamos considerar isso como um campo de disputas e conflitos, no qual a ideologia proletária continua em luta, mesmo que por vezes de forma não tão consciente. No entanto, não julguemos assim tão rápido as ideologias que dão sentido à ação política dos trabalhadores, talvez eles não estejam nem estiveram assim tão inocentes (no sentido de estarem em uma ideologia alienante, sem ao menos desconfiarem). Muito pelo contrário, se assim fosse, seríamos forçados a reconhecer que o efeito mistificador da ideologia seria tal, que os trabalhadores seriam submetidos a uma plena ilusão, em um mundo sufocantemente plácido.

Desse modo, teria a ideologia tal poder mistificador e alienador, transformando a sociedade em um uníssono de complacência? Além disso, dentro das relações hegemônicas burguesas no Brasil, é possível esse tipo de abordagem pedagógica que relaciona educação, ideologia e alienação? Abordaremos essas questões nos próximos tópicos.


1. Ideologia, seus significados e funções históricas

Em uma concepção mais abrangente, por vezes, ideologia é concebida como ‘visões sociais de mundo’, que tem a vantagem de não se envolver com as circularidades advindas da sua acepção negativa, mas que se encontra vinculada à materialidade histórica da sociedade e à de luta de classes. Porém, pode ser um equívoco assumir uma acepção tão genérica como essa, como ‘visão de mundo’; pois como afirma Eagleton (1997), quando se define um conceito tão amplo, ele acaba por nada significar.

Em meio ao processo histórico de alienação, sejam assumidas por enunciados com status de verdade científica, por ilusões desprovidas de fatualidade; as ideologias acabam por influenciar decisivamente nas relações sociais, pois as relações de produção são constituídas por superestruturas ligadas dialeticamente às condições de produção (infraestrutura). Na constituição de uma sociedade, a sua produção material depende das condições sociais criadas historicamente para que ela exista e se reproduza. Fundamentado nessa premissa, Althusser (1980), defende a tese de que as ideologias são parte fundamental das condições de produção para que uma dada formação social se estabeleça historicamente. Sustenta

[...] que a reprodução da força de trabalho exige não só uma reprodução da qualificação desta, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução da submissão desta às regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução da submissão desta à ideologia da classe dominante (ALTHUSSER, 1980, p. 21-22).


De forma crítica, Althusser (1980) reconhece que embora a infraestrutura econômica possua uma relação dialética com a superestrutura (o Estado, a Escola, o setor jurídico, as ideologias, etc.); as ideologias influenciam necessária e funcionalmente sobre a materialidade produtiva, especificamente mediadas pela ação interventiva e repressora do Estado. O Estado, portanto, em sua função repressora equipar-se-á como um aparelho potencialmente onipotente. Ele e os seus aparelhos ideológicos seriam indispensáveis à manutenção e à reprodução de uma dada classe no poder, garantindo também o funcionamento da infraestrutura produtiva. Mesmo considerando a intensificação eventual da luta de classes, o Estado ainda permaneceria em sua função repressora, mesmo porque devemos considerar quais indivíduos (pertencentes a qual classe social e que adotam determinada postura ideológica orgânica) compõem o seu aparelho.

O ensaio Aparelhos Ideológicos do Estado, tomado como um todo, passa uma noção estrutural e sociológica da ideologia. Todavia, ao defender a tese de que “a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 1980, p. 77); o autor sustenta o caráter ocultador das condições materiais reais que a ideologia possui. Essa tese o traz de volta ao campo epistemológico, o qual se refere à falsidade ou à veracidade do enunciado ideológico. Ao ‘interpelar o sujeito’ a ideologia o faz a partir de um conteúdo inverídico, distante da ‘verdade’ científica, ainda que cumprindo eficazmente seu papel repressor. Trata-se, portanto, de proteger a ciência da ‘intromissão’ ideológica. Na perspectiva althusseriana, ideológico é todo enunciado que, em termos puramente epistemológicos, configura-se de modo oposto àquela que seria a função da teoria do conhecimento (VAISMAN, 2010).

Para Althusser (1980), em seu caráter oclusivo da realidade, a ideologia exprimiria uma vontade política podendo ser ela conservadora, reformista ou revolucionária. Teria função de imprimir coesão à sociedade, passando, os sujeitos, interpelados pela ideologia, a agirem de forma dócil, sem resistência, apesar da intensificação da luta de classes promovida pela divisão social e da precarização crescente do trabalho.

Nessa perspectiva, em sua relação com a materialidade do real, os indivíduos representam esse real de forma distorcida derivada da sua própria deficiência. Porém, como esclarece Konder (2002), no afã de construir uma teoria geral da ideologia, Althusser afirma-a como transhistórica, posto que ela manteria a sociedade em funcionamento, permitindo que esses sujeitos se reconheçam mutuamente. Embora reconheça que as ideias são representações das condições reais de existência, Althusser afirma que os indivíduos representam sempre uma imagem distorcida do real.

O caráter sociológico da ideologia passou a ser discutido com base na teoria de luta de classes e na relevância que a consciência de classe tem na história. Disso decorre que:

Os momentos ideológicos não ‘acobertam’ somente os interesses econômicos, não são somente as bandeiras e as palavras-de-ordem de combate. São parte integrante e os próprios elementos da luta real. (...) Agora a luta social se reflete em uma luta ideológica para a consciência, a revelação ou a dissimulação do caráter de classe da sociedade (LUKÁCS, 2014, p. 11).


Dissimuladora, conservadora, desveladora, revolucionária: as ideologias cumpririam uma dada função social dependendo da luta de classes impressa nas relações produtivas, de forma relativamente independente de sua veracidade ou falsidade. Isso permitiu a Lenin falar em ideologia proletária, assim como Eagleton (1996, p. 181) pôde afirmar que “todas as formas de consciência de classe são ideológicas, mas algumas, por assim dizer, são mais ideológicas que outras”. Aqui o autor se refere, com certa ironia, ao aspecto específico da burguesia que se caracteriza pela reificação exacerbada, impedindo-a, enquanto classe social, de compreender a realidade no sentido de totalidade.

É importante deixar claro que aqui se assume que as ideologias possuem sua origem nas relações de produção, na materialidade histórica, e embora dependam e derivem das condições econômicas materiais, não se resumem a elas. Condicionam-se mutuamente com a infraestrutura, ajudando a compor a subjetividade dos sujeitos sociais. Considerando a hegemonia de uma classe sobre a outra, não esqueçamos que estas permanecem em luta, inclusive ideológica. Contudo, ainda que considerável, não podemos nos iludir com o poder que a ideologia exerce sobre as massas. Tal poder não impede que ideologias alternativas, contra-hegemônicas, sejam construídas e se constituam como agentes fundamentais que ajudam a redefinir como se concretizam as relações de produção.

Como esclarece Eagleton (1997, p. 19):

um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatíveis com ele; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e aparentemente inevitáveis; denegrindo ideias que possam desafiá-lo.


Isso acaba por naturalizar e dar contornos de oclusão da realidade, levando a crer que as ideologias só possuem esse caráter. Embora essa seja, de fato, uma função tradicionalmente atribuída à ideologia - e na história, múltiplas ocasiões assim provavelmente ocorreram, esse sentido não esgota as suas funções sociais. Por isso Eagleton insiste em uma acepção mais ampla, como “intersecção entre sistemas de crença e poder político (op. cit., p. 20)”, nos quais

[...] as ideologias dominantes podem moldar ativamente as necessidades e os desejos daqueles a quem elas submetem; mas devem também comprometer-se, de maneira significativa, com as necessidades e desejos que as pessoas já têm, captar esperanças e carências genuínas, refleti-las em seu idioma próprio e específico e retorná-las a seus sujeitos de modo a converterem-se em ideologias plausíveis e atraentes. Devem ser “reais” o bastante para propiciar a base sobre a qual os indivíduos possam moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a ação efetiva, e devem empenhar-se, o mínimo que seja para explicar suas contradições e incoerências mais flagrantes. Em resumo, para terem êxito as ideologias devem ser mais do que ilusões impostas e, a despeito de todas as suas inconsistências, devem comunicar a seus sujeitos uma versão da realidade social que seja real e reconhecível o bastante para não ser peremptoriamente rejeitada (EAGLETON, 1997, p. 26-27).


As ideologias devem ser familiares ao sujeito e devem dar sentido à sua prática social. Conforme esclarece Žižek (1996), a ideologia não está livre das perturbações e vicissitudes da sociedade, muito pelo contrário. Ele exemplifica que pensamentos como a AIDS ser um castigo divino aos pecados da humanidade podem ser ideológicos, mas seu contrário lógico, pode não ser menos ideológico. Assim, o filósofo tenta desconstruir a acepção puramente centrada no caráter epistemológico.

A ideologia é um processo de internalização das determinações do real, para que ele passe a fazer sentido para o sujeito social. No entanto, ela pode ser também um processo de apreensão insuficiente ou equivocada do real, já que, por vezes, concebe-o como insignificante. Ou seja:

A lição teórica a ser extraída disso é que o conceito de ideologia deve ser desvinculado da problemática ‘representativista’: a ideologia nada tem a ver com a ‘ilusão’, com uma representação equivocada e distorcida de seu conteúdo social (ŽIŽEK, 1996, p. 12).


Para ser considerada como parte da prática social, a ideologia deve ser um discurso funcional efetivo e com penetração social nas relações de poder. Interessante percebermos, conforme Žižek (1996), que se tiver um status de verdade, ainda melhor os seus efeitos de manutenção dos processos de dominação, mesmo que por vezes ela opere de forma oculta, ou ‘sob o disfarce da verdade’.

A crítica da ideologia passou a considerar a expressão ideológica como um campo de disputa de subjetividades fortemente ancoradas nas objetividades prementes nas relações materiais, para além de seu caráter de falsidade. Esse aspecto é patente na obra tardia de Lukács:

Se agora e mais tarde falarmos de ideologias em contextos mais amplos, estas não devem ser entendidas no enganoso uso atual da palavra (como uma consciência de antemão falsa da realidade), mas, assim como Marx determinou no prefácio da Crítica à economia política, como formas ‘nas quais os seres humanos se conscientizam desse conflito’ (isto é, daqueles que emergem dos fundamentos do ser social) ‘e o combatem’. Essa determinação abrangente de Marx – e esse é o elemento mais importante de sua ampla aplicabilidade – não dá nenhuma resposta unívoca à questão de correção ou falsidade metodológica e objetiva das ideologias. Ambas são igualmente possíveis na prática. Assim, as ideologias em nosso caso podem proporcionar tanto uma aproximação do ser como um afastamento dele. De qualquer modo, porém, tem um grande papel na história do nosso problema o interesse repleto de conflitos dos homens em saber se um momento importante – para eles – de sua vida social deve ser considerado como existente ou meramente aparente. E como tais ideologias, especialmente em tempos de crise da sociedade, podem aumentar tornando-se verdadeiras forças espirituais, sua influência na formulação e solução da questão teórica sobre o ser é considerável (LUKÁCS, 2010, p. 34).


Como esclarece Vaisman (2010), somente no momento de sua concretização no seio da sociedade é que um determinado enunciado pode ser considerado como ideológico. Ao se tornar veículo teórico/prático, ele se constitui como prévia-ideação e concretização da prática social dos homens. O ser social é “um ser prático que reage às demandas postas pela realidade objetiva, um ser prático que trabalha a natureza como resposta a necessidades determinadas” (VAISMAN, 2010, p. 46).

O ser social é caracterizado por seu potencial de dar respostas a alternativas que lhe são colocadas pela realidade objetiva. Ou seja:

um ser que dá respostas é um ser que reage a alternativas que lhe são colocadas pela realidade objetiva, retendo certos elementos que nesta existem e transformando-os em perguntas, para as quais procura a melhor resposta possível. Em outras palavras, o homem é um ser que responde ao seu ambiente e, ao fazê-lo, ele próprio elabora os problemas a serem respondidos e lhes dá as respostas possíveis naquele momento. Essas respostas podem, no momento subsequente, transformar-se em novas perguntas, e assim sucessivamente, de tal modo que tanto o conjunto de perguntas quanto o conjunto de respostas vão formando gradativamente os vários níveis de mediações que aprimoram e complexificam a atividade do homem, bem como enriquecem e transformam a sua existência (VAISMAN, 2010, p. 46).


Em sua função de consciência prática, a ideologia se expressa como um por teleológico2 secundário, frente à tomada de decisões sobre uma miríade de alternativas.

A relevância da educação crítico-dialética reside aí, neste âmbito mediador da práxis social, moldando as formas de ação social derivadas das questões colocadas pela/na história, questionando e procurando as melhores respostas e se aproximando gradativamente da realidade.

Para tanto, deve-se educar os sujeitos sociais a partir de um corpo de conhecimentos indispensáveis acumulados na história da humanidade, para que estes mesmos sujeitos reconheçam essas alternativas e, criticamente, optem pela emancipação humana, voltada ao interesse da coletividade; ou seja, os interesses da coletividade devem estar incorporados nos objetivos educacionais no tocante à formação omnilateral do sujeito social. Ao educador convém estar também consciente do caráter práxico das ideologias, e do seu potencial oclusivo, conservador, subversivo ou emancipador.

Na educação de matiz histórico-crítica, o ser social, enquanto ser que reage, deve estar apto a escolher conscientemente alternativas colocadas pela realidade objetiva, reagindo ao seu socioambiente, questionando, respondendo e agindo de acordo.

Por isso as ideologias são essenciais ao processo educativo, pois seus enunciados são veículos práxicos constituídos a partir da prévia-ideação e da prática social, mas que acabam retornando a ela, porém de forma qualitativamente diferente. É o que se espera de um ser social que se submeteu a um processo educativo assim fundamentado. Isso quer dizer que na perspectiva lukacsiana, as ideologias funcionam como reguladoras (ou mediadoras) dos pores teleológicos humanos, em meio a necessidades sociais vitais de um dado tempo histórico.

De importância vital ao funcionamento da sociedade, as ideologias surgem também dos conflitos típicos das relações de trabalho imersas na luta de classes. No entanto, reproduzem e retroalimentam esses conflitos, além de criar novos; por isso a ideologia emancipadora tem de

ordenar essas decisões isoladas em um contexto de vida geral dos seres humanos e esforçar-se por esclarecer ao indivíduo como é indispensável para sua própria existência avaliar as decisões segundo os interesses coletivos da sociedade (LUKÁCS, 2010, p. 142).


As ideologias são também instrumento social de tomada de consciência e de resolução de conflitos, não se confundindo com mera falsa consciência. Esta definição está claramente fundamentada na concepção assumida pelo próprio Karl Marx na Contribuição à Crítica da Economia Política, ao afirmar que a “transformação das condições econômicas, das formas jurídicas, filosóficas e das formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência deste conflito e o levam até o fim” (MARX, 2007, p. 46).


2. Ideologia e educação

A crítica pedagógica acerca da relação entre trabalho e educação é essencial para a construção de teoris sobre a função da educação como meio de emancipação e de formação do ser social omnilateral. Em decorrência, questionamos como ideologias capitalistas cumprem um papel conservador e potencializador do status quo que caracteriza nossa educação como reprodutora mecânica de competências e habilidades demandadas pelo capitalismo?

No tocante ao modo de produção, o capital necessita de uma superestrutura política, educacional, jurídica, ideológica e institucional que viabilize as relações entre os capitalistas e os trabalhadores. Portanto, concentrando-se no complexo educacional, buscou-se compreender como as estruturas ideológicas interferem em processos formais de ensino.

Ao fornecer propósito e sentido à ação social, a ideologia acaba por influir nos juízos que as pessoas fazem sobre a realidade da qual são parte. Se as ideologias compõem também a identidade dos sujeitos sociais, certamente possuem um aspecto pedagógico, na medida em que compõem o repertório comportamental, linguístico e conceitual que dão sentido à ação social do sujeito.

Talvez seja importante ao educador ter consciência da relevância que a ideologia possui na composição da práxis do sujeito social. Esse mesmo educador pode assumir a crítica e o desvelamento da função social das ideologias como uma de suas metas educacionais, reconhecê-las minuciosamente e inseri-las nos seus planos de aula. Pode buscar criticá-las, e propor ideologias contra-hegemônicas, com intenções libertárias e emancipadoras.

Esse aspecto pedagógico é corroborado pela filosofia da ontologia do ser social sustentada por Lukács. A ideologia se aproxima da educação e da política por serem eles pores teleológicos secundários, ou atos socioteleológicos. Por isso “a dinâmica inerente às interações categoriais do trabalho não apenas instaura a origem humana como também determina a dinâmica das formas superiores da prática social” (VAISMAN, 2007, p. 258).

Relacionada com a ciência e com a política; a ideologia irá compor esses pores teleológicos secundários que fazem parte de um complexo de atos que medeiam a relação dos homens com a natureza e com a sociedade. Assumida dessa forma, a ideologia está entre a educação e a ação política, ou seja: “a ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o momento ideal, que antecede o desencadeamento da ação, nas posições teleológicas secundárias” (VAISMAN, 2010, p. 49). Por estar entre o campo educacional e a ação polítia que é altamente estratégico formar educadores atentos e capazes em identificar e criticar ideologias.

Para Lukács (2010), a ideologia possui uma função nas lutas sociais, perfazendo primordialmente uma aguda função social - ela compõe a ontologia do ser social. Presta-se à função de conscientização, ajudando a compor a prévia-ideação do ser social (VAISMAN, 2007). A partir da perspectiva luckacsiana, a ideologia pode ser entendida como funcionalmente ligada à luta de classes, sem qualquer redução economicista, mas concebida em sua relação dialética com a infraestrutura.

Como esclarece Eagleton (1996), essa visão se aproxima da filosofia de Antonio Gramsci, o qual concebia as ideologias como formas ativamente influentes na conduta dos indivíduos, e na formação das suas consciências em um mundo repleto de ideias conflitantes e mais ou menos dominantes. A ideologia ajudaria na coesão da classe hegemônica, em uma totalidade orgânica. Por outro lado, podem e de fato integram a consciência prática das classes dominadas, fundamentando o ideário revolucionário dos oprimidos.

A relação entre consciência, situação e interesse de classe impõe uma contradição entre o interesse imediato e o objetivo final, posto que, conduz o ser social a uma necessária transformação consciente da sociedade. Em outras palavras: “somente em se incorporando à visão de conjunto do processo, em se vinculando ao objetivo final que eles se colocam concreta e conscientemente para além da sociedade capitalista” (LUKÁCS, 2014, p. 21).

Essa afirmação nos conduz à função da educação de fundamentação crítico-dialética, no bojo da luta de classes e na formação da consciência com fins revolucionários e emancipatórios. A ideologia é um complexo do bloco histórico (para utilizar o termo gramsciano) que possui articulação com o complexo educacional. Ela reúne relações dialéticas entre a infraestrutura produtiva e a superestrutura -, e guardam estreita relação com a educação.

No mais, a sua crítica dialética pode fazer surgir a alienação, uma categoria nascida da divisão social do trabalho e da organização capitalista das relações de propriedade e de produção.


2.1. Ideologia, educação e alienação

As ideologias são também instrumentos de aquisição de consciência e de aprofundamento (desvelamento, crítica radical) dos conflitos de classes, considerando a historicidade das transformações processuais das relações de produção. De fato

[...] a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal, não pode ser superada na sociedade de classes. Sua persistência se deve ao fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstruída) como consciência prática inevitável da sociedade de classes, relacionada com a articulação de conjunto de valores e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo social em todos os seus aspectos básicos. Os interesses sociais que se desenvolvem ao longo da história e se entrelaçam conflituosamente manifestam-se, no plano da consciência social, na grande diversidade de discursos ideológicos relativamente autônomos (mas, é claro, de modo algum independente), que exercem forte influência sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo social. (...) Uma vez que as sociedades em questão são elas próprias divididas, as ideologias mais importantes devem definir suas respectivas posições tanto quanto “totalizadoras” em suas explicações e, de outro, alternativas estratégicas umas às outras. Assim, as ideologias conflitantes de qualquer período histórico constituem a consciência prática necessária em termos de quais as principais classes da sociedade se inter-relacionam e até se confrontam, de modo mais, ou menos, aberto, articulando sua visão de ordem social correta e apropriada como um todo abrangente (MÉSZÁROS, 2004, p. 65, negritos do autor).


Levando em consideração o conflito entre interesses sociais antagônicos, as posições ideológicas dependem também da intencionalidade do discurso, sendo, portanto, um discurso classificado como: acrítico; crítico, mas viciado pelas contradições de sua posição classista; e crítico-histórico, quando questiona a viabilidade histórica da própria sociedade de classes (MÉSZÁROS, 2004).

Enquanto consciência prática necessária, ancorada e derivada da realidade material, as ideologias são indispensáveis ao funcionamento e evolução histórica das sociedades; mas que, por vezes, em uma sociedade de classes, podem assumir funções sociais antagônicas.

Uma dada ideologia pode afirmar ou sustentar uma determinada formação social na manutenção orgânica de seu poder tradicionalmente instituído. Por outro lado, ela pode adquirir uma função crítica e revolucionária, fundamentando posições contra-hegemônicas insurgentes. Por isso, ela tem por função primaz

ordenar essas decisões isoladas em um contexto de vida geral dos seres humanos e esforçar-se por esclarecer ao indivíduo como é indispensável para sua própria existência avaliar as decisões segundo os interesses coletivos da sociedade (LUKÁCS, 2010, p. 42).


Todavia, em uma sociedade cindida em classes, o ser social possui uma consciência precária da realidade. Some-se a esse fato, a separação entre trabalho intelectual e trabalho material que incorre em uma consciência relativamente divorciada do real, resultando em uma forma de alienação.

Nos Manuscritos Econômicos-filosóficos de 1844 (2006), Marx se concentrou em compreender como, no âmbito das relações de produção - a divisão social do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção -, acabam por derivar diversas formas de alienação. Marx (2006) esclareceu que o trabalho acumulado intensifica a separação do trabalhador do produto do seu trabalho, privando-o dele. Assim, o trabalho assalariado torna-se contraposto ao homem, já que os meios de produção e a própria atividade humana se concentram nas mãos do capitalista. Essa dialética explica a origem e o processo da alienação material. No entanto, vale dizer que a alienação aparece também internamente à atividade produtiva, no próprio processo produtivo. Dessa forma,

[...] a alienação não se expõe apenas no resultado, mas também no processo de produção, no seio da própria atividade produtiva. Como o trabalhador poderia estar numa relação alienada como produto da sua atividade, se não se alienasse de si mesmo no próprio ato de produção? [...] em consequência, se o produto do trabalho é a alienação, a produção em si tem de ser a alienação ativa – a alienação da atividade e a atividade da alienação. Na alienação do objeto do trabalho resume-se apenas a alienação na própria atividade do trabalho (MARX, 2006, p. 114).


Segundo Marx (2008), ela ocorre porque o trabalho no capitalismo produz algo estranho ao trabalhador, o qual se defronta com ele e se torna independente do seu produtor. Por isso, a mercadoria é a coisa reificada, já que resulta da objetivação de um trabalho alienado como um objeto que tem o trabalhador como seu serviçal.

Marx (2008) concebe de forma mutuamente relacionada a objetivação, a produção do trabalhador e o estranhamento, como perda do objeto e do produto do trabalho. Desta forma,

o trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si (quando) fora do trabalho e fora de si (quando) no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não lhe é voluntário, mas forçado, obrigatório. O trabalho não é por isso a satisfação de uma carência, somente um meio para satisfazer as necessidades fora dele. Sua estranheza (Fremdheit) evidencia-se aqui de forma tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Äusserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se o (trabalho) não fosse seu próprio, mas de um outro, como se o trabalho não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo (MARX, 2008, p. 83).


Ao realizar uma exegese do conceito de alienação nos Manuscritos, Mészáros (2006), sintetiza que para Marx, alienação é uma categoria e um conceito que pode significar que: o homem está alienado da natureza; está alienado de si mesmo (da sua atividade); está alienado do seu ser genérico (do seu ser como membro da espécie humana); ou que o homem está alienado do homem (dos outros homens). Logicamente que as quatro dimensões estão dialeticamente relacionadas e derivam da forma de trabalho alienada como constituída historicamente sob o capitalismo. Contudo, considerando os objetivos da presente explanação, concentra-nos-emos na alienação do homem do seu ser genérico.

Mészáros (2006, p. 19) explica o que Marx quis dizer quando constatou o estranhamento3 do ser genérico

tanto como ‘estranhamento da coisa’ tanto como ‘autoestranhamento’ – com respeito à relação do homem com a humanidade em geral (isto é, a alienação da ‘condição humana’ no curso do seu rebaixamento por meio de processos capitalistas), considerando a relação do homem com os outros homens.


Aqui o processo do autoestranhamento e do estranhamento da ‘coisa’ (da natureza e da sua atividade vital mediada pelo trabalho) é um obstáculo considerável para a humanização em termos de formação omnilateral do ser social; já que trata do afastamento da real unidade ser humano-natureza e do estranhamento, ou do não reconhecimento dos outros membros da sua espécie. Já que

o estranhamento aparece tanto no fato de meu meio de vida ser de um outro, no fato de aquilo que é meu desejo ser a posse inacessível de um outro, quanto no fato de que cada coisa mesma é um outro enquanto si mesma, quanto (também) no fato de que minha atividade é um outro, quanto finalmente – e isto vale também para os capitalistas – no fato de que, em geral, o poder não humano domina (MARX, 2008, p. 147).


A superação do estranhamento da natureza depende da construção de uma nova forma de produção da existência, bem como de uma nova forma de compreender essa relação. Para tanto, é necessário haver uma ciência única, não fragmentada, na qual as ciências naturais se encontrem organicamente unificadas com as ciências humanas, gerando conhecimentos que devem necessariamente ser socializados a todos os sujeitos sociais (MANACORDA, 2010).

O autoestranhamento (alienação da sua própria atividade) do ser humano interfere em sua relação com outros seres humanos (alienação do seu ser como membro da espécie humana). A superação da alienação trata também de uma questão de humanização, da formação da consciência e de ações críticas sobre a natureza e sobre os demais seres humanos. Em decorrência, a educação histórico-crítica deve ser uma atividade problematizadora das múltiplas determinações que constituem o real e das possibilidades de superação da alienação. Afinal, na medida em que “o trabalho estranhado 1) estranha do homem a natureza, 2) (e o homem) de si mesmo, de sua condição ativa, da sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero (humano)” (MARX, 2008, p. 84).

A Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) pode ser valer dos processos históricos de formações ideológicas e de alienação para aprofundar a crítica á prática social, com vistas à emancipação e formação do ser omnilateral. Uma educação voltada à superação da alienação, enquanto meta da educação escolar, fundamentando a formação do sujeito. Para tanto, ela deve estar centrada na noção de Aufhebung (consciência de classe formada a partir do processo de ‘transcendência’, ‘supressão’, ‘preservação’ e ‘superação’, ou ‘substituição’ pela elevação a um nível superior; o sujeito coletivo que nega e supera) (MÉSZÁROS, 2006).

Essa superação não poderia ser realizada sem uma crítica sobre o currículo, a didática, o sistema educacional como um todo e sobre a prática social: “tornando evidente o caráter ideológico de tais conteúdos e práticas escolares na sociedade capitalista” (VAISMAN, 2012, p. 9). Além disso, ao se falar de superação da alienação ainda sob o capitalismo, referimo-nos a uma possibilidade histórica que é contingente, pois depende também da eliminação da apropriação do trabalho alheio que permite a extração de mais-valor e da supressão da apropriação privada dos meios de produção.

No entando, sem em uma educação crítico-dialética, como os sujeitos sociais estariam preparados para promover ativamente tal processo de superação da alienação? Portanto, a superação é um processo indispensável e que deve ser construído coletivamente e também por meio do complexo da educação. Enquanto processo histórico, a superação da alienação se refere a um

[…] ideal de uma “transcendência positiva” da alienação é formulado como uma superação sócio-histórica necessária das mediações: propriedade privada – intercâmbio – divisão do trabalho que se interpõem entre o homem e sua atividade e o impedem de se realizar em seu trabalho, no exercício de suas capacidades produtivas (criativas), e na apropriação humana dos produtos de sua atividade (MÉSZÁROS, 2006, p. 78, negritos do autor).


A alienação é uma categoria que possui fatores da realidade histórico-natural que se influenciam reciprocamente e que podem contribuir para asua própria superação, pois

[…] se o homem é alienado, ele deve ser alienado com relação a alguma coisa, como resultado de certas causas – o jogo mútuo dos acontecimentos e das circunstâncias em relação ao homem como sujeito desta alienação, que se manifesta num contexto histórico. Do mesmo modo, a transcendência da alienação é um conceito inerentemente histórico, que vislumbra a culminação bem sucedida de um processo em direção a um estado de coisas qualitativamente diferente (MÉSZÁROS, 2006, p. 40).


Em outras palavras, a relação entre a atividade produtiva e a consciência alienada significa que a “atividade produtiva é então a fonte da consciência, e a consciência alienada, é o reflexo da atividade alienada ou da alienação da atividade, isto é, da autoalienação do trabalho” (MÉSZÁROS, 2006, p. 80).

Portanto, a transcendência da alienação é indispensável (mas não suficiente) para que se possa superar a estrutura e a lógica das relações sociais capitalistas. Para que se concretize esse processo de superação, é essencial uma educação intencionalmente humanizadora, que socialize os conhecimentos essenciais para a crítica de ideologias capitalistas e dos processos de alienação característicos do capital. Considerando que a alienação deriva das relações sociais próprias da base produtiva, mas em uma relação dialética, as ideologias podem majorar o processo de alienação do sistema capitalista; ou, pelo contrário, entrar em contradição, quando estamos tratando de ideologias contra-hegemônicas.

A partir dessa noção de alienação, pode-se dar maior importância à cultura e à formação da consciência crítica, em seu sentido histórico-dialético. Considerando o processo de formação inicial do professor, propor um professor que busque formar um estudante ciente das contradições que opõem os sujeitos sociais, no contexto de luta de classes e compreendendo seus condicionantes históricos. Como esclarece Gramsci (1976), a partir de um objetivo preestabelecido, julgam-se os fatos e os acontecimentos de si e para si. Nesse sentido, conhecer-se a si próprio, por ser ele próprio, isto é, ser dono de si próprio, distinguir-se, sair do caos, ser um elemento de ordem, mas da própria ordem e da própria disciplina que tendem para um ideal. Contudo, não se pode obter isso se não se conhecem também os outros, a sua história, o desenrolar dos esforços que fizeram para serem o que são.

Nesse processo de desenvolvimento da consciência e da crítica, está implícita a noção de desenvolvimento humano integral (omnilateral). E, no universo escolar, refletir sobre o desenvolvimento humano, como um processo de objetivação e de apropriação da cultura, só é possível em uma escola verdadeiramente humanista, onde se promova “espontaneidade-organização, ativismo-promoção: organicidade do pensamento e a organização da cultura em dois aspectos: subjetivo e objetivo, da mesma exigência” (MANACORDA, 2008, p. 38).

A unilateralidade associada à alienação gerou uma humanidade em crise. De acordo com Gramsci (1996), isso só terá solução por meio do desenvolvimento racional (planejado) de uma escola única criadora de cultura geral, humanista, formativa e que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (técnica e industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Dessa maneira, tratase de uma educação de vida, construída com base no nosso mundo, por isso, atividade vital, autêntica.

Portanto, a via da formação omnilateral estaria integrada e seria derivada de uma educação humanizadora e totalizante, tanto no sentido de formação mais integral possível, quanto no de assumir centralmente a categoria de totalidade como objetivo educacional e como conteúdo inalienável e inadiável.

O princípio educativo gramsciano parte da noção da relação dialética entre objetividade-subjetividade, espontaneidade-organização, cultura-trabalho. Gramsci sustentava uma organização da cultura a partir de um ordenamento intelectual e moral, plasmados em uma escola unitária fundamentada e voltada para a cultura geral da sociedade, na qual a ação didática do professor é central. O sujeito social crítico deve estar imerso na vida prática e ser um organizador que se eleva para além do espírito abstrato das ciências puras, a partir da relação entre a técnica e o trabalho, da técnica e a ciêncis, alcançando uma concepção humanista histórica omnilateral (GRAMSCI, 1982).

A escola única, centro de socialização do saber sistematizado ao longo da história da humanidade, deve ser humanista e formativa e visar à formação do homem integral, capaz de conhecer a cultura geral e de trabalhar de modo eficaz tanto intelectualmente quanto na produção em geral. Vale ressaltar que isso é um fundamento importante da PHC.

O processo de socialização do saber sistematizado acumulado ao longo da história da humanidade marca uma das particularidades da PHC. Para ela o processo de mediação didática tem como base a prática social (a realidade objetiva), por isso, os problemas postos para a educação e que precisam ser apropriados pelos indivíduos estão relacionados com duas dimensões fundamentais da nossa existência no seu movimento histórico: a totalidade social, em que comparece forçosamente uma concepção de mundo, e a dimensão das diversas partes sociais constitutivas dessa totalidade, nas suas relações dialéticas, e nas suas particularidades históricas, com realce para a ciência, a filosofia e a arte. A visão de mundo defendida pela PHC aponta de forma explícita para a superação revolucionária das relações sociais reprodutoras do capital, nas quais o sujeito social fica subsumido.

É importante notar que a PHC não parte de uma cisão entre forma e conteúdo, ou seja, a mera transmissão de conteúdos não constitui sua socialização, isso depende de como se concretiza a relação professor-conteúdos-estudante e de que forma é efetivada a práxis pedagógica, considerando as condições objetivas nas quais o ato pedagógico se concretiza. Na pedagogia tradicional “considera-se que a formação pedagógico-didática virá em decorrência do domínio dos conteúdos do conhecimento logicamente organizado, sendo adquirida na própria prática docente” (SAVIANI, 2011, p. 8). No entanto, de acordo com a perspectiva histórico-crítica, os professores devem avançar para além dos saberes culturais cotidianos, do seu “fazer profissional”, e se fundamentar em uma práxis pedagógica dialética, que garanta a formação omnilateral dos estudantes. Para isso, precisa partir da prática social, síntese das relações sociais historicamente determinadas, e a ela retornar (na realidade, nunca se está fora da prática social, obviamente), em um movimento que vai além das aparências e que explicita a essência dos vários complexos sociais historicamente constituídos; superando. desta forma, o cotidiano alienado e alienante.

Os professores e as professoras devem ser antes filósofos, questionadores sistemáticos da realidade. Quer dizer, nossos educadores e educadoras devem desenvolver “essa atitude não habitual, não espontânea à existência humana” (SAVIANI, 2011, p. 13), que é a filosofia. O questionamento sistematizado sobre uma questão que necessita de uma resposta que alcance mais que a superficialidade, indo ao essencial, explicitando a questão no âmbito de sua concreticidade histórica. Nesse sentido, para que se compreenda o seu aspecto político-pedagógico é importante a explicitação da relação entre educação, ideologia e alienação.


Considerações finais

As ideologias compõem a ontologia do ser social, prestam-se à função de conscientização e condicionam a sua prévia-ideação. Enquanto consciência prática necessária ao funcionamento e evolução histórica das sociedades; a ideologia, ao fornecer propósito e sentido à ação social, acaba por influir nos juízos que as pessoas fazem sobre a realidade da qual fazem parte. O ser social, enquanto um sujeito que reage, deve estar apto a escolher conscientemente alternativas colocadas pela realidade objetiva, questionando, respondendo e agindo.

Conforme Saviani (2013), o ser humano tem por singularidade sua capacidade de reproduzir e de gerar cultura. No entanto, ao ser historicamente alienado dessa, acaba por se desumanizar. O resgate da humanização por meio da aprendizagem qualificada dos conteúdos clássicos produzidos ao longo da história é o que propõe a PHC.

Trata-se, portanto, de lutar contra a alienação prática do homem, contra a alienação da sua própria ação. Não podemos deixar de considerar que ela está dialeticamente relacionada à sua base material, à forma e ao conteúdo como nos organizamos para consumir, para produzir, para distribuir e para dar conta da nossa existência. Certamente, tudo isso também é perpassado pela alienação ideológica promovida pela burguesia. O caráter histórico e dialético da relação educação-ideologia-alienação nos permite afirmar que a educação pode ganhar e assumir matizes retrógradas e conservadoras, ou revolucionárias, críticas e contra-hegemônicas. Essa tensão é real e vem se concretizando diariamente ao longo da história.

Sabemos dos limites que estão postos, dentro de relações reprodutoras do capital, para uma educação que procura elevar a consciência dos educandos visando à emancipação humana. Dessa forma, não há nenhuma ilusão nossa com relação a uma educação emancipadora no seu sentido pleno, sem a mudança da base material da sociedade hodierna; sem uma sociedade socialista. Contudo, reafirmamos mais uma vez, que a luta pela transformação da base material - o momento predominante - se faz também nos diversos complexos sociais secundários.

Sendo assim, voltamos a frisar que a educação, como um dos complexos secundários, na sua relação reflexiva com a totalidade social e com outras partes constitutivas do tecido social pode proporcionar uma concepção de mundo rica de determinações sociais historicamente condicionadas. Contudo, isso deve partir da prática social e das suas diversas mediações possíveis, posto que são elas o ponto de apoio fundamental para a base material da nossa existência a partir do trabalho.

Assim, a prática pedagógica tem sido desafiada para que, de forma sistematizada e intencional, o processo educativo, fundamental para definir a nossa segunda natureza (a nossa natureza sociocultural), eleve-se para além da formação unilateral, que visando formar mão de obra adequada para as necessidades do mercado.

Nessas mediações necessárias, provenientes do ato educativo, incluímos como fundamentais os complexos da ideologia e da alienação, posto que passam a ter um papel relevante no desenvolvimento da consciência de classe e da emancipação humana.

Como contributo, propomos, no âmbito da formação de professores, a conformação de programas curriculares que incluam a crítica ideológica, visando a construir com os licenciandos ideologias contra-hegemônicas, em suma, ideologias anticapitalistas. Esse pode ser também uma caminho político-pedagógico a ser seguido nas escolas, na concretização da práxis pedagógica de professores e professoras.

Assim, propõe-se assumir a crítica ideológica como uma das ferramentas que tem o potencial de viabilizar a superação da alienação, no sentido de alienação da sua própria condição humana e no sentido de autoestranhamento. Com isso os futuros professores e professoras poderiam ser qualificados de modo a incluir a crítica ideológica no seu planejamento pedagógico.

Desse modo, torna-se fundamental reconhecer a essência das ideologias, as suas intencionalidades e os seus efeitos alienantes, colocando-os na pauta diária das nossas aulas com o propósito de construir ideologias contra-hegemônicas voltadas à prática social emancipadora com vistas à construção de pores teleológicos alternativos.


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SOBRE OS AUTORES


MAGNO DA CONCEIÇÃO PENELUC é doutor em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação (GEPEC/UFBA).

E-mail: bio.magno@gmail.com


EDILSON FORTUNA DE MORADILLO é doutor em ensino, filosofia e história das ciências pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, do Instituto de Química, e da Faculdade de Educação, todos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências e Formação de Professores (UFBA), membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Campo (GEPEC/UFBA) e membro do Grupo de Pesquisa em Ensino Concreto de Ciências (ENCONCiÊNCIAS/UFBA). Realizou pós-doutoramento em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pós-doutoramento em Educação em Ciências (UESC), pós-doutoramento pela Faculdade de Letras, Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa (FLUL).

E-mail: edilson@ufba.br



Recebido em: 01.02.2020

Aceito em: 09.04.2020

1 Conforme Gramsci (1996) há uma identificação entre teoria e prática, no sentido de construir sobre uma determinada prática uma teoria, a qual coincidindo e identificando-se com os elementos decisivos da própria prática, acelere o processo histórico em ato, tornando a prática mais homogênea, coerente e eficiente em todos os elementos; ou então, dada uma certa posição teórica, no sentido de organizar o elemento prático indispensável para que toda a teoria seja colocada em ação. A identificação entre teoria e prática é um ato crítico, pelo qual se demonstra que a prática é racional e necessária ou que a teoria é realista e racional.

2 Por teleológico é um conceito filosófico utilizado por G. Lukács para se referir às mediações que o homem faz com a natureza por meio do trabalho (por teleológico primário) e mediações realizadas entre os seres humanos (política, ideologia, educação, por exemplo, que constituem os pores teleológicos secundários).

3 Importante notar que “estranhamento” e “alienação” não são sinônimos, mas são usados como correlatos. Marx (2008), ao definir a gênese da alienação fala da efetivação do trabalho como desefetivação (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung).

Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.12, p. 297-323, jan/abr. 2020.