ALTERIDADE E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM NOVOS PARADIGMAS DE ENSINO DE LÍNGUAS


Tania Ferreira Rezende

Universidade Federal de Goiás

Goiânia, GO, Brasil


José dos Santos Baptista

Universidade Pedagógica de Maputo

Maputo, Moçambique


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i12.40675


RESUMO

Este artigo objetiva refletir sobre a alteridade na formação de professores de português, desenvolvendo uma leitura crítica sobre estigmas e preconceitos decorrentes de atitudes de falantes de diferentes línguas maternas bantu, aprendentes de português, em contato no contexto escolar moçambicano. Nesse mesmo contexto de aprendizagem, propõe-se analisar as consequências de estigmas e de preconceitos sobre a língua do “Outro”. A revisão bibliográfica e documental são os métodos privilegiados para a apresentação desta reflexão e, quanto aos resultados, espera-se promover uma formação de professores de português com visão de respeito da alteridade, dos valores éticos e morais e minimizar a estigmatização em todos os ambientes escolares para a reversão da marginalização das línguas nativas e contribuir para a manutenção das línguas minorizadas moçambicanas, bem como valorizar as variedades e as identidades linguísticas nacionais. Consequentemente, intenta-se reconfigurar uma política linguístico-educativa orientada para a paz e para a humanização.

Palavras-chave: Alteridade. Preconceito. Diversidade. Humanização. Línguas.



OTHERNESS AND TEACHER TRAINING IN NEW LANGUAGE TEACHING PARADIGMS


ABSTRACT

This article aims to reflect on the otherness in Portuguese language teacher training, developing a critical reading about stigma and preconception resulting from the attitudes of Portuguese language learners and speakers of different Bantu mother tongues in Mozambican schools context and analyses the consequences of stigma and preconceptions about the language of the “Other” in Portuguese language teaching. The literature review and document analysis are the methods used for the presentation of this reflection and, as for the results, it is expected to promote a Portuguese language teacher training for the purpose of respect to otherness, ethical and moral values and minimize discrimination and stigmatization in all school environments for the native language marginalization reversal and contribute to the maintenance of Mozambican minority languages and value the national linguistic varieties and identities. Consequently, to reconfigure a linguistic and educational policy oriented to peace and humanization.

Keywords: Otherness. Preconception. Diversity. Humanization. Languages.



L’ALTÉRITÉ ET LA FORMATION DES ENSEIGNANTS DANS LES NOUVEAUX PARADIGMES D'ENSEIGNEMENT DES LANGUES


RÉSUMÉ

Cet article a pour objectif une réfléxion sur l'altérité dans la formation des enseignants de portugais en proposant une lecture critique sur les stigmates et les préjugés suscités par les attitudes des locuteurs-apprenants de portugais envers les différentes langues bantoues que apprendre portugais en contact dans le contexte scolaire mozambicain, et d'analyser les conséquences de ces stigmates et de ces préjugés sur la langue de l’Autre dans l’enseignement du portugais, dans le respect des valeurs de citoyenneté contenues dans la Déclaration universelle des droits de l’homme. La révue de littérature et l’analyse documentaire sont les méthodes privilégiées dans cette réflexion. En termes de résultats, on espeère que cette étude puisse promouvoir une formation des enseignants de portugais respectueux de l’altérité, des valeurs éthiques et morales, combattre la discrimination et la stigmatisation dans tous les contextes scolaires, inverser la tendance de marginalisation des langues autochtones et contribuer au maintien des langues minoritaires du Mozambique en valorisant les identités et les variétés linguistiques nationales. Par conséquent, œuvrer en faveur d’une politique linguistico-éducative orientée vers la paix et l'humanisation.

Mots-clés: Altérité. Préjugés. Diversité. Humanisation. Langues.



Introdução

O panorama escolar moçambicano tem sua representação formada em duas épocas históricas marcantes: a colonial e a pós-colonial. O repertório de atitudes preconceituosas e de estigmatização se distingue nessas duas épocas, com destaque na colonial, em que a alteridade não é respeitada nem considerada nos processos de formação de professores de línguas. Hoje ainda se percebe a continuidade desses elementos negativos mais bem disfarçados nas enunciações de alguns membros da sociedade moçambicana envolvidos na formação de professores de línguas.

Neste texto, pretendemos analisar a alteridade e as barreiras dos diversos tipos de estigmas e preconceitos de falantes especialmente da língua portuguesa na formação de professores de português e refletir sobre as consequências de estigmas e preconceitos sobre o “Outro” no contexto da pluralidade linguística e do direito à educação linguística.

Em termos de contexto linguístico, Lemos (2018, p. 21) defende que

existe uma coexistência não muito pacífica entre as línguas moçambicanas de origem bantu, a língua portuguesa, [...] [de instrução] e as línguas estrangeiras, o inglês e o francês. [E que] existem igualmente as línguas asiáticas e islâmicas.


Destacamos, ainda, que

o português detém a primazia diante das cerca de vinte e cinco línguas nacionais de origem bantu, que constituem as línguas maternas da maioria das crianças e jovens na escola, mesmo nos meios urbanos (LEMOS, 2018, p.25).


Em termos de panorama da diversidade sociolinguística, há necessidade de explicitar que a palavra “bantu”.

A palavra Bantu significa pessoas ou povos. Inicialmente, foi usada para se referir às línguas da África Sub-Sahariana que exibem um sistema comum de concordância por prefixo. Actualmente, o termo Bantu é usado para se referir a um grupo de cerca de 600 línguas faladas por perto de 220 milhões de pessoas numa vasta região da África contemporânea, que se estende a sul da linha que vai desde os montes Camarões, junto à costa atlântica, até à foz do rio Tana, no Quénia, abrangendo os seguintes países: África do Sul, Angola, Botswana, Burundi, Camarões, Congo, Gabão, Guiné Equatorial, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Moçambique, Namíbia, Quénia, República Democrática do Congo, Ruanda, Swazilândia, Tanzânia, Uganda, Zâmbia e Zimbabwe (PATEL, MAJUISSE; TEMBE, 2018, p. 27).


Para o caso de Moçambique, em relação às línguas bantu, importa compreender que “existem, no país, cerca de vinte e quatro línguas moçambicanas, também conhecidas como línguas locais ou línguas bantu. Dezanove destas línguas têm a ortografia padronizada e são usadas na educação bilíngue” (PATEL, MAJUISSE; TEMBE, 2018, p. 27).

Relativamente à distribuição das línguas bantu em Moçambique, observa-se o seguinte: as línguas Kimwani e Shimakonde, na província de Cabo Delgado; Ciyaawo, nas províncias do Niassa e Cabo Delgado; Emakhuwa (a com maior quantidade de falantes), nas províncias de Nampula, Cabo Delgado, Niassa e Zambézia; Ekoti, na província de Nampula; Elomwe, na província da Zambézia; Echuwabu, nas províncias de Zambézia e Sofala; Cinyanja, nas províncias do Niassa, Zambézia e Tete; Cinyungwe, na província de Tete; Cisena, nas províncias de Manica, Sofala, Tete e Zambézia; Cibalke, Cimanyika e Ciwute, na província de Manica; Cindau, nas províncias de Sofala, Manica e Inhambane; Gitonga, na província de Inhambane; Citshwa, nas províncias de Inhambane, Gaza, Manica e Sofala; Cicopi, na província de Inhambane e Gaza; Xichangana, nas províncias de Maputo, Gaza, Manica e Sofala; e a língua Xirhonga, falada nas províncias de Maputo, Gaza e Inhambane. Importa também referir que essas línguas moçambicanas são as que apresentam a ortografia padronizada e são usadas no ensino bilíngue (PATEL, MAJUISSE; TEMBE, 2018).

Em relação à metodologia de trabalho, optamos pela revisão bibliográfica e documental. Assim, temos a destacar a utilização do seguinte corpus de análise: estudo de Raposo (2018), que objetiva refletir sobre a efetividade das políticas curriculares desenvolvidas no processo de ensino-aprendizagem focado no impacto na qualidade da formação de professores. Também tivemos o estudo de Agibo e Chicote (2018), que apresenta uma análise dos modelos de formação de professores em Moçambique. Analisaremos, ainda, a pesquisa de Quimuenhe (2018), a qual apresenta uma síntese provisória da história da Educação em Moçambique.

Quanto aos documentos básicos do corpus, analisamos a Lei no 18/2018 sobre o novo Sistema Nacional de Educação em vigor que resulta da revisão da Lei no 6/1992 que alterou substancialmente a primeira lei de educação da República Popular de Moçambique (Lei no 4/1983). Também recorremos à Constituição da República de Moçambique (2018), à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e à Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (UNESCO, 1996). Assim, para além desses documentos legislativos, o estudo usa como suportes documentais de análise as Estratégias de Expansão do Ensino Bilíngue 2020-2029 do Ministério de Educação e Desenvolvimento Humano de Moçambique.

Na verdade, a Lei no 18/2018 do Sistema Nacional de Educação (SNE) em vigor em Moçambique preconiza, no seu artigo 3, relativo aos Princípios Gerais, alínea e):

Organização e promoção do ensino, como parte integrante da acção educativa, nos termos definidos na Constituição da República, visando o desenvolvimento sustentável, preparando integralmente o Homem para intervir activamente na vida política, económica e social, de acordo com os padrões morais e éticos aceites na sociedade, respeitando os direitos humanos, os princípios democráticos, cultivando o espírito de tolerância, solidariedade e respeito ao próximo e às diferenças (MOÇAMBIQUE, 2018a, p.3748-(19)).


Vale lembrar que a lei anterior, no 6/1992, não previa, relativamente aos seus princípios, a valorização da preparação do Homem e o respeito dos direitos humanos nem fazia referência ao espírito de tolerância, solidariedade e respeito ao próximo e suas diferenças.

Nesse sentido, observa-se uma inovação na lei de educação moçambicana na valorização implícita da alteridade. A outra inovação a destacar na Lei no 18/2018 está relacionada com o Artigo 4, Princípios Pedagógicos, alínea e: “dotação do indivíduo de conhecimento que lhe permitam aprender a ser, aprender a viver juntos e com os outros”. (MOÇAMBIQUE, 2018a, p.3748-(20)).


1. A alteridade na sociedade contemporânea

Um estudo sobre alteridade ajuda “a refletir sobre a importância da alteridade e nos leva, por meio da educação e da ética, a uma vida mais humana no mundo contemporâneo” (COSTA; CAETANO, 2014, p.195). Esses autores tomam como referência o filósofo Emmanuel Lévinas, que explica o valor da alteridade. Para ele, “a Alteridade, na contemporaneidade, torna um fator contribuinte para a busca de uma forma mais humana de se viver em sociedade, onde cada um deve ter responsabilidade pelo próximo” (Ibidem).

Mais do que buscar entender a Alteridade, Lévinas percorre um caminho diferente, no qual aborda novas propostas de como viver a ética na convivência com o próximo e assim chegar à Alteridade, o que permite vislumbrar em seu pensamento caminhos para se pensar a educação e uma formação mais humana. Esse novo pensamento contemporâneo vem desafiar a todos quanto às falhas no relacionamento com o próximo e leva a buscar uma integração harmoniosa com o outro que se revela no cotidiano (COSTA; CAETANO, 2014, p. 196-197).


Assim, encontramos os fundamentos para a presente reflexão. Aliás, é nossa preocupação, a partir da nossa realidade, refletir sobre a relação com o Outro na formação de professores de língua portuguesa em Moçambique. E, para encontrar sentidos positivos na convivência escolar, iremos levar em conta o desafio para os professores: “tentando despertar no homem a sensibilidade pelos seus semelhantes, que está expressa no Rosto de cada pessoa”. É a partir do “Rosto que aprendemos a ser mais humanos, onde encontramos a verdadeira Alteridade, no acolhimento do Outro” (Ibidem).


2. A alteridade e a formação de professores de português em Moçambique


Primeiro, importa perceber que a formação de professores em Moçambique, no geral, é fundamentada pela Lei no 18/2018 do Sistema Nacional de Educação (SNE). Assim, relativamente à estrutura do SNE, o Artigo 9 apresenta seis (6) subsistemas, dos quais um deles é o de Educação e Formação de professores, e o Artigo 16 indica as suas características e os seus objetivos. Importa referir que é este subsistema que regula a formação de professores para todos os subsistemas de Moçambique. No entanto, o Artigo 28 da Lei no 6/1992, a anterior, enquadrava a formação de professores no conjunto de modalidades especiais de ensino escolar, no qual incluía o ensino especial, o vocacional, o de adultos e o ensino a distância.

Nesse novo contexto descolonizado, o negro passa a ser o “sujeito da História”1 e da sua educação. Relativamente às questões associadas às atitudes de estigmatização e de discriminação, elas quase não são discutidas em nível das inter-relações escolares e na formação de professores. Esse cenário parece fornecer indícios de que tudo vai bem. Temos percebido que, das causas dos resultados anuais sobre o insucesso escolar, são apontados como pontos fracos a pouca competência e as fragilidades nas habilidades de leitura e de escrita, a assiduidade, a precariedade e o contato reduzido com a escola. Além desses, apontam-se também a má preparação dos professores, sem se indagar acerca dos estigmas, dos preconceitos e da discriminação como algo que contribui para a desmotivação, a frustração, o desconforto e o insucesso dos estudantes perante o Outro.

Assim, a palavra “estigma” pode ser utilizada para “designar um atributo que diferencia e lança descrédito profundo, dificultando as relações entre o indivíduo estigmatizado e os indivíduos normais” (MARÔPO, 2014, p. 109).

Para Remotti (1996, apud Malizia, 2014, p. 240), o “ego identifica-se através de alter”, ou seja, ‘Eu existo e me identifico com o Outro’. Na tentativa de explicar melhor essas relações interpessoais, Malizia (2014) afirma que “em muitas culturas, há quase um automatismo entre afirmação de si próprio - depreciação do Outro”.

Relativamente aos preconceitos, Malizia (2014, p. 253) os distingue em racial, social, étnico, cultural e racial-cultural. Assim, para o primeiro caso, ela descreve que “se baseia na demonstração ‘indemonstrável’ de uma realidade biológica de ‘raça’ que, pelas suas características intrínsecas, divide muito ‘simplesmente’ o mundo em duas raças (a ‘raça superior’ e as ‘raças inferiores’)”.

O preconceito social, o segundo, “atribui a camadas sócio-económico-culturais hegemônicas a possibilidade/capacidade de avaliar e gerir o resto da sociedade como ‘inábil’”.

Com o preconceito étnico, é afirmado que o "objeto" cultural certamente não recente [...], que infelizmente volta [...] até justificar novamente massacres e guerras, graças também ao seu forte "sodalício" com os localismos políticos. Esse tipo de preconceito toma a "comunidade" em oposição à "sociedade", com base em um conceito, em uma mesma etnia.

O preconceito cultural considera uma cultura como “verdadeira, filho do etnocentrismo, segundo o qual a própria cultura é a ‘melhor’ (se não a ‘única’)” e daí é lícito apelidar "O Outro" como "bárbaro", "selvagem" etc.

Já o preconceito racial-cultural “alimenta-se, pelo contrário, através dum relativismo cultural extremo”. Nessa listagem, poderemos acrescentar o preconceito étnico-linguístico, que associa os aspectos étnicos e suas línguas e se guia por supervalorizar esses aspectos do Eu/Nós e desvalorizar a todo custo elementos étnico e linguísticos do Outro, inferiorizando-o. Esse tipo de preconceito, por envolver o aspecto étnico-racial, quase sempre gera sentimentos de ódio e conflitos. Não tem sido difícil perceber atitudes preconceituosas disfarçadas em frases acompanhadas de tom de brincadeira (gozo), como, em Moçambique, para marginalizar um aprendente do português língua segunda.

Nesse sentido, os professores de português em formação precisam compreender que os estigmas possibilitam o surgimento de desigualdades e de exclusão social. Por isso, a nossa formação de professores precisa debater melhor esse assunto para que os valores de alteridade sejam respeitados pelos futuros professores, principalmente, os de língua portuguesa.

Refletirmos sobre a alteridade e os direitos humanos na formação docente de língua portuguesa exige-nos a compreensão de aspectos éticos e morais para além das políticas públicas contextualizadas.

Hoje quase todos os professores permanecem em silêncio diante de atitudes de estigmatização, de preconceitos e de discriminação praticados no meio escolar e, principalmente, nas salas de aula multiculturais e plurilíngues. Assim, como tem sido o ensino e a formação de docentes de língua portuguesa?

Na era colonial, a política era explicitamente para uma formação estratificada. Praticava-se um ensino voltado para: as elites brancas (brancos portugueses), os assimilados (mestiços e negros aculturados) e os indígenas (negros desprestigiados). A questão de classes sociais era determinante nas relações com o Outro, altamente comprometido com a superelevação do homem branco e rico e inferiorização, dos não brancos e pobres. Ressaltamos que, nesse sistema colonial, nunca foi de interesse alcançar níveis altos de qualidade de educação para os pobres e os negros, especialmente, o que resultava em uma evidente violação dos direitos humanos.

Importa lembrar também que o novo governo de Moçambique, após a independência, tomou como principal razão a exclusão do povo para alterar o Sistema Nacional de Educação, pois o regime colonial português era menos abrangente e não dava grandes oportunidades de acesso/ ingresso à educação aos nativos (negros) e às outras comunidades não valorizadas (AGIBO; CHICOTE, 2018).

Quanto à formação de professores durante a colonização, o regime colonial se pautou por preparar professores para melhor exploração da mão de obra barata, em que a valorização do Outro pouco contava e se cultivava a alienação dos nativos, através do processo de assimilação considerado “civilizador”. Em outras palavras, “na realidade, não se pretendia criar entre os povos africanos elites letradas, mas sim torná-los “instrumentos” ao serviço de Portugal” (QUIMUENHE, 2018, p. 5-6).

Importa referir que a educação colonial era opressiva e seletiva para com os nativos e outras etnias não brancas. A questão da humanização na formação de professores indígenas era bastante ausente e sem expressão, mostrando que a alteridade nunca foi valorizada. Como ilustração desse fato, o sistema colonial tinha dois subsistemas de ensino: o oficial, destinado para os filhos dos colonos e dos assimilados e o indígena para os nativos. Este visava tirar o nativo da vida selvagem para a vida civilizada dos povos considerados cultos e civilizados. Em 1930, a Igreja Católica passa a gerir este subsistema através do Diploma Legislativo nº 238 de 17 de maio. Na contramão disso, o primeiro subsistema visava a dar instrumentos fundamentais de todo saber e as bases de uma cultura geral e preparar as crianças para a vida social (QUIMUENHE, 2018).

Niquice (2006, p. 25), citando o Ministério do Ultramar (1930), esclarece que a primeira escola de formação de professores surge em 1930 – A Escola de Habilitação de Professores Indígenas do Alvor. Entretanto, essa escola, apesar de estar sob gestão da igreja católica, servia aos interesses políticos do regime colonial, por meio do projeto de assimilar e civilizar os indígenas. Em 1962, foram criadas as Escolas do Magistério Primário em Lourenço Marquês (antigo nome da atual capital de Moçambique) e, em 1966, na cidade da Beira, com vistas à formação de professores para ensinar os filhos dos colonos. Já em 1965, foram criadas as escolas de Habilitação dos Professores do Posto Escolar sob a responsabilidade das missões católicas, as quais formavam docentes indígenas com padrões coloniais (NIQUICE, 2006, p. 25).

Após a independência do país, Moçambique passou por vários modelos de formação de professores. Em 1975, herdou um sistema educativo com um número de escolas limitado aos centros urbanos, restrito às proximidades da igreja católica, ao longo do território. Legou também um sistema escolar com insuficiente quantidade de professores para responder à demanda do novo contexto social, político e econômico no modelo socialista.

Assim, entre 1975 a 1981, o novo governo da República Popular de Moçambique realizou muitas ações e esforços para mobilizar o povo para a construção de novas escolas e massificação da alfabetização e da escolarização dos moçambicanos. Foram retiradas as matérias de ensino com teor colonial e introduziram-se as associadas à ideologia socialista, alterando-se, principalmente, os conteúdos de História e de Geografia (INTANQUÊ; SUBUHANA, 2018).

Importa destacar que o país ficou independente do colonialismo e privado dos quadros técnicos portugueses qualificados. Além disso, a maior parte dos assimilados treinados e com considerável experiência em diversas áreas abandonou o país. Assim, é relevante lembrar que o apelo ao voluntarismo dos moçambicanos foi a estratégia usada para alfabetizar grande parte dos cidadãos sem acesso à educação no regime colonial. Daí que os que tinham um mínimo de escolaridade ensinavam os que não sabiam ler nem escrever.

Na área de educação, em 1981, ocorreram às primeiras iniciativas tomadas para uma planificação a nível nacional, isto aconteceu devido à aprovação dos princípios e objetivos gerais de sistema nacional de educação. As normas da política da educação concentravam-se na democratização do ensino e na sua articulação com as políticas do desenvolvimento nacional [...] onde alguns objetivos foram estabelecidos.


Desses objetivos gerais, podemos destacar o de “formar professores profissionalmente conscientes e educadores, com capacidade de educar outras pessoas através dos conceitos socialistas” (INTANQUÊ; SUBUHANA, 2018, p. 5). Nesse primeiro SNE, a formação de professores dá um dos primeiros passos importantes no país para a implementação formal da política de educação com respeito aos direitos universais do homem. No entanto, ainda está longe do respeito à alteridade, uma vez que a questão das línguas nativas continuou a não merecer atenção necessária nem reconhecimento oficial do papel das línguas moçambicanas. A formação de professores deveria somente ser feita em língua portuguesa. É de referir que o “SNE proibia a discriminação e exigia a garantia de acesso à formação sem considerar a cor da pele, sexo, religião ou raça, exigia também a existência da igualdade de oportunidade para toda a população de Moçambique” (INTANQUÊ; SUBUHANA, 2018, p. 6).

Mugime, Mapezuane Mahalambe, Cossa e Leite (2019, p. 4) referem que os “objetivos do desenvolvimento sustentável (Agenda 2030) sobre a educação de qualidade, educação inclusiva e equitativa, influenciaram sobremaneira a política de formação de professores em Moçambique”.

Ainda segundo a fonte acima, o período entre 1977-1991, foi a fase de consolidação da formação de professores para o Ensino Primário e Ensino Secundário do SNE. Para a formação de docentes do Ensino Secundário, foram abertas as seguintes instituições: a Faculdade de Educação, na Universidade Eduardo Mondlane, na cidade de Maputo (atual capital de Moçambique), em 1977, o Centro de Formação de Quadros de Educação para preparar instrutores para os Centros de Formação de Professores Primários (CFPP) e técnicos de educação; as Escolas de Formação e de Educação de Professores (EFEPs); os Institutos Médios Pedagógicos (IMPs) para formar professores do Ensino Primário do 2º Grau (EP2) em substituição aos EFEPs; o Instituto de Aperfeiçoamento Pedagógico (IAP) para a formação, em exercício, de professores do Ensino Primário da Carreira de Docente N5 para a de Docente N4 e o Instituto Superior Pedagógico (ISP), fundado em 1985.

O Instituto Superior Pedagógico, criado “uma instituição vocacionada para a formação de professores para todos os níveis do Sistema Nacional de Educação (SNE) e de quadros da educação”2, passou a ser designado como Universidade Pedagógica em 1995.

Em termos históricos, é fundamental apresentar alguns dados que ajudam a compreender a realidade política moçambicana. Desse modo, lembrar que, em 1990, houve a introdução do novo cenário político multipartidário e foi introduzida a nova Constituição da República de Moçambique baseada no multipartidarismo. Em 1992, foi promulgada a Lei no 6/1992 do SNE, já referenciada. Em 1994, o Ministério da Educação apresentou um plano-diretor para o ensino técnico e geral, no qual se estabelecem algumas prioridades, entre as quais a inserção de línguas locais ou línguas maternas nos materiais escolares. Esse aspecto merece seu destaque positivo, uma vez que a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996) preconiza, no Artigo 3.º, como direitos inalienáveis a serem exercidos, em todas as situações, “o direito a ser reconhecido como membro de uma comunidade linguística; o direito ao uso da língua em privado e em público” (UNESCO, 1996).

A referida Declaração considera ainda que os direitos coletivos dos grupos lin­guísticos podem incluir, de acordo com as especificações do ponto 2 do artigo 2°: o direito ao ensino da própria língua e da própria cultura” (Ibidem).

Sobre a formação de professores, é importante referir:


A questão da formação de professores aparece referenciada tanto nas políticas, de um modo geral, como nas políticas educativas, em particular. A Constituição da República de 1990 e a de 2004, no seu Artigo no 88, consagram o direito à educação, sublinhando que a educação constitui um direito e um dever de cada cidadão. A conceção de que a educação é um direito de todos vem, (...), refletida em outras políticas públicas como o Programa Quiquenal do Governo (2005-2009), o PARPA (Programa para Redução da Pobreza Absoluta), a Lei no 6/92 do Sistema Nacional de Educação nos seus princípios gerais (SNE) e a Política Nacional sobre a Educação (PNE) de 1995 (MUGIME, MAPEZUANE MAHALAMBE, COSSA e LEITE, 2019, p. 6).


De acordo com Mugime, Mapezuane Mahalambe, Cossa e Leite (2019), as políticas públicas de Moçambique para a educação apontam para a necessidade da formação de professores para que seus objetivos sejam plenamente alcançados. Equivale a dizer que os objetivos pretendidos na educação, de expansão, de acesso, de qualidade e de inclusão dependem da formação de professores, de modo a integrar todos os níveis, desde a formação inicial até a continuada.

Tomando como base documentos relativos à Lei no 6/92 do SNE, ao Plano Estratégico da Educação e Cultura 2006-2011, ao Plano Estratégico da Educação 2012-2016, à Estratégia para a Formação de Professores 2004-2011, ao Plano Curricular de Formação de Professores 2011, ao Plano Curricular dos Centros de Formação de Professores Primários versão 7ª classe+2v+v1 anos (2012), ao Plano Curricular do Instituto de Magistério Primário (1998), os autores Mugime, Mapezuane Mahalambe, Cossa e Leite afirmam que:

As conceções de formação de professores encontram-se entre uma formação sustentada no desenvolvimento de competências, uma formação que confira o desenvolvimento profissional dos professores, uma formação centrada no indivíduo, uma formação integrada, reflexiva e crítica e orientada para a profissionalidade docente, e transversalidade da formação de professores (MUGIME, MAPEZUANE MAHALAMBE, COSSA; LEITE, 2019, p. 6-7).


Observando essas concepções, facilmente podemos verificar que a questão de alteridade até essas alturas ainda não recebia o devido trato pelas políticas educativas de Moçambique.

Retomando a questão do preconceito e do estigma, podemos afirmar que, atualmente, há uma forte negação de atitudes preconceituosas por parte da sociedade e do Estado através da atual Constituição da República de Moçambique. Hoje também interessa levantar uma questão: quem são os principais alvos dos preconceitos e estigmatização? É fato certo de que são os negros, os pobres, os “indígenas”, os deficientes (físicos e mentais), os “albinos”, os viciados, os (ex-) prisioneiros, os homossexuais, os analfabetos, os falantes de línguas nativas minorizadas, os desempregados e outros.

A lista é tão grande que nos faz pensar que vivemos em comunhão com o Outro, mas, na verdade, muitos de nós vivemos ainda em uma sociedade de aparências onde os valores morais e éticos deixam a desejar. Nesse caso, há que se desaprender as atuais vivências escolares e as suas práticas. Aliás, a estigmatização através da classe social, da raça, das línguas, das culturas, das deficiências, da origem étnica, das profissões, da pertença política, das religiões, da escolarização, do analfabetismo, da sexualidade e da precariedade constituem fontes para estigmatizar o Outro na sociedade e na formação de professores.

O sistema educativo colonial impunha barreiras para limitar a entrada na escolarização às pessoas não brancas e aos brancos pobres. Ao longo de muitos anos, as sociedades contemporâneas se debatem em torno da educação mais próxima aos cidadãos sem restringir o acesso a alguma classe social. Demarcando, assim, o afastamento do paradigma educacional tradicional, muito criticado nas últimas décadas, pelo seu caráter autoritário e seletivo. Tal mudança não está livre de críticas se observarmos algumas atitudes e comportamentos de educadores, de professores, de especialistas na própria ação pedagógica. Pensar e agir a favor da humanização do ambiente escolar e das suas práticas em relação ao ensino de língua portuguesa é uma exigência para a valorização do Outro por meio de novos paradigmas formativos e da adoção de planos curriculares consoante os contextos e as necessidades humanas.

Na Contemporaneidade, a escolarização tenta quebrar as barreiras políticas descontextualizadas para humanizar a educação e a formação de professores:

Novos temas e interesses passam a constituir as políticas contemporâneas de escolarização. (...). No que tange aos modos de vida e aos procedimentos em uma sociedade democrática, uma das temáticas exemplares dessas referências de mudança sociocultural (...)é a questão dos direitos humanos (SILVA; SILVA, 2013, p.487).


A mudança de paradigma tem sido uma relação dicotômica conflitante entre o novo/antigo, a forma/conteúdo, técnicas/métodos, teoria/prática, conhecido/desconhecido, sujeito/objeto, eu/Outro, normal/anormal, certo/errado, aceitável/inaceitável, o coloquial/padrão, etc. No entanto, a resistência, muitas vezes, é acompanhada de estigmas e de preconceitos nessa dicotomia. O reconhecimento do novo não tem sido recebido com passividade. Contudo, os professores de português em formação devem ser conscientizados de que os princípios e os fundamentos paradigmáticos são reinventados e não imutáveis.

A nossa formação de professores de língua portuguesa atual necessita de uma focagem na alteridade e, principalmente, para a humanização da formação de professores em uma perspectiva de respeito perante a alteridade e a língua do Outro.

Na formação de professores de português, o estudo da norma-padrão da língua oficial promove, em contexto multilíngue, a estigmatização do Outro que tem língua materna diferente da língua-alvo de ensino. Daí que as situações de bilinguismo são menos focalizadas nas zonas urbanas (plurilíngues) e mais nas rurais recônditas (monolíngues). No primeiro caso, as pessoas interagem na família e com os amigos em língua materna bantu e, em muitos casos e situações, em língua segunda (a portuguesa) utilizada em contextos mais alargados de interação (comunidade, escola, instituições etc.). No segundo caso, ou seja, o rural, a língua usada nas famílias dessas localidades é de origem bantu e é também a usada na comunidade. Muitas dessas famílias rurais ainda não possuem uma rede escolar nas proximidades (são comunidades isoladas), apresentando um desconhecimento total do português como língua oficial. Devido a essas diferentes realidades, é comum observar, no contexto escolar e da formação de professores, a utilização de expressões preconceituosas, tais como ilustra a tabela:


TABELA: Expressões preconceituosas

Expressões marcadas de preconceito

Tipo de preconceito

  1. 1.

Eu tenho dois alunos “brancos”.

Rácico

  1. 2.

Nunca vou falar macua na minha vida.

Étnico-linguístico

  1. 3.

Vocês parecem brancos do bairro.

Rácico

  1. 4.

Brincar-se como macua? Nunca e jamais!

Étnico-cultural

  1. 5.

Isso é comida de macondes, nem quero ver.

Étnico-cultural

  1. 6.

Está a falar dialeto. Aqui só se fala português!

Linguístico

  1. 7.

Aqui ninguém deve falar macua.

Étnico-linguístico

  1. 8.

Esse não é nosso e não deve ser chamado.

Político

Fonte: Acervo da pesquisa.


Na primeira expressão, o termo “brancos” é usado, algumas vezes, para estigmatizar os alunos que são verdadeiramente de raça branca, mas que têm umas qualidades e posturas aculturadas, por exemplo, se forem oriundos do meio urbano de famílias com status elevado. Na segunda, o preconceito de inferiorização da língua Emakhuwa da etnia da maioria do Norte e do país. Na terceira, a expressão “brancos do bairro” revela uma conotação rácica, associada a um ser menos importante comparado a um saloio3, que nasceu e vive no meio suburbano. Na quarta, a negação marca um valor discriminativo e de desprezo da pessoa, associada à cultura e etnia Emakhuwa. Na quinta, “é comida de macondes”, desvaloriza-se a gastronomia da comunidade linguística Makonde, onde se come, especialmente, o caracol. Na sexta, o termo “dialeto” tem um valor pejorativo, posto que não se reconhecem as línguas nativas como legítimas. A sétima está relacionada com o preconceito descrito em 2 e 4, ao passo que, a oitava, com “não é nosso”, remete-se a uma forte conotação pejorativa associada a um partido da oposição muito contestado e desacreditado.

Os exemplos acima ilustram a relação existente entre os preconceitos e a alteridade. Muitas vezes, eles surgem para discriminar ou humilhar o Outro. No entanto, dependendo do tom usado pelos interlocutores, a gravidade da expressão pode ou não ofender o destinatário.

Não há dúvida de que a nação moçambicana se consolida na manutenção da hegemonia existencial e funcional da língua portuguesa como a única com matriz capaz de realizar a unificação linguística, promovendo toda a educação e formação dos seus cidadãos diante de uma rica diversidade linguística. Entretanto, a cidadania linguística não é somente vista na perspectiva da língua portuguesa, aliás, a existência interna de diversas comunidades de falantes de línguas bantu nacionais, na verdade, já é um reconhecimento explícito pelo Estado moçambicano seu caráter plurilíngue. Daí que a Constituição, no Artigo 9 (Línguas Nacionais), institui: “O Estado valoriza as línguas nacionais como património cultural e educacional e promove o seu desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares da nossa identidade” (MOÇAMBIQUE, 2018b, p. 788 (9)). Já no Artigo 10, aponta-se a língua oficial nos seguintes termos: “Na República de Moçambique a língua portuguesa é a língua oficial” (Ibidem).

Assim, internacionalmente, a política linguística do Estado assume o papel privilegiado da língua portuguesa. Esse fato não deixa dúvidas e revela haver uma política monolíngue para o exterior dada a limitação de abrangência e de representatividade das línguas nativas faladas dentro do país e desconhecidas fora do território nacional.

Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo II:

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.4


Relativamente ao estigma, Monteiro e Villela (2013) afirmam que se trata de um atributo negativo ou depreciativo, o qual torna o sujeito diferente, diminuído ou possuidor de uma desvantagem. É nessa negatividade que precisamos centrar a nossa leitura reflexiva diante da ausência de alteridade em todo um complexo de valores necessários à formação de professores de língua portuguesa. Assim, questionamos: o que faz um estudante de língua se sentir diminuído em relação ao “Outro” no mesmo contexto de sala de aula? Será que esse Outro ou esses Outros percebem e estão conscientes de que as suas atitudes afetam negativamente o estado motivacional do nosso próximo? Na verdade, a sala de aula é um complexo de relações psicossociais previsíveis, mas, muitas vezes, imprevisíveis como resultado ou consequência da interação entre professor-aluno, aluno-alunos, alunos-professores, formandos-formadores que podem despoletar conflitos, empatias, simpatias e frustrações.

A estigmatização pode resultar em resignação, frustração, desmotivação, angústia, receio de aprendentes da língua portuguesa. As relações tensas entre os alunos e os professores podem alimentar sentimentos de fragilidade em quem sofre a marginalização, posto que a “humilhação do desprezo e do preconceito, por não aprender na escola, fica introjetado como o ideal do eu” (PADILHA, 2016, p. 451).

O nosso contexto escolar atual é marcado por um número reduzido de crianças e de professores brancos nas escolas públicas. Esse aspecto faz com que as questões de discriminação racial não estejam presentes explicitamente na ordem normal em relação à estigmatização do branco por parte dos negros. Entretanto, convive-se ainda com certas doses disfarçadas de discriminações étnicas entre os negros.

Com a existência de sistema de ensino privado, as minorias brancas e asiáticas convivem nesse ensino elitizado no qual a raça negra é menos destacável e algumas vezes estigmatizadas se não pertencer a uma família com poder (político ou econômico).

Alguns flagrantes do cotidiano escolar de atitudes preconceituosas e discriminatórias contra os não negros não podem ser generalizadas, pois, apesar de existirem, e esse fato é inegável, elas não são recorrentes o bastante para constituírem uma regra.


3. Desafios de empoderamento de línguas minorizadas

Antes de mais nada, “o termo minorizada coloca em evidência uma condição imposta e não intrínseca, além de não fazer projeções demográficas imprecisas acerca de determinadas realidades”5 (MELLO, 2011).

No entanto, há a necessidade de entidades moçambicanas assumirem com consciência e com responsabilidade a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo I, em que delineia os direitos humanos considerados como básicos: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (ONU, 2009, p. 4).

A existência de línguas no mesmo espaço territorial é uma realidade, uma vez que se desenvolvem relações entre línguas/falantes, costumes/hábitos etc. Tal condição promove, de certa forma, o desenvolvimento do bilinguismo nas comunidades linguísticas moçambicanas. Na verdade, “as diferenças entre as comunidades de fala em contato representam as divisões sociais, políticas e geográficas entre as pessoas” (MELLO, 2011, p.9).

A arma mais potente para a sobrevivência de qualquer sociedade é a sua língua materna. Silenciar uma língua é desmaterializar um povo. As línguas moçambicanas precisam de uma nova perspectiva de reconhecimento em termos de política linguística que promova o ensino bilíngue sem menosprezar ou estigmatizar as línguas minorizadas. Nesse momento, essas estão desprotegidas e, se não houver interesse contrário, as novas gerações sentirão a perda do direito ao seu patrimônio linguístico.

As línguas faladas pelos nativos de várias regiões e etnias não se beneficiam das mesmas oportunidades formais dentro do conjunto das políticas de educação. Essa disponibilidade coloca em causa “Língua como um componente essencial da formação intercultural para promover o entendimento entre os diferentes grupos de populações e assegurar o respeito pelos direitos fundamentais” (UNESCO, 2003).

O grande entrave a reconhecer sobre as línguas autóctones é que muitas delas não desenvolveram um sistema de escrita e sobrevivem graças às práticas coloquiais do dia a dia. Para as empoderar, o desafio passa pela criação de núcleos de pesquisa, de produção de materiais didáticos, da introdução da alfabetização em línguas minorizadas. No entanto, os nativos escolarizados precisam ter a consciência dessa necessidade e não esperarem por milagres de outros concidadãos de outras línguas.

Na verdade, as políticas públicas se fazem negligentes em relação à promoção e à manutenção de muitas das línguas autóctones minorizadas. Tudo acontece em uma normalidade tal que as minorias subalternizadas aparecem falsamente representadas pelas comunidades mais representativas no conjunto das variedades. A coexistência de línguas majoritárias e minorizadas, dentro dos limites geográficos de Moçambique, ocorre sem respeito ao peso valorativo das línguas e ao respeito pelo Outro.

O Estado moçambicano deve garantir a instrução dos falantes de línguas minorizadas por meio da educação bilíngue. No contexto de bilinguismo, os falantes dessas línguas que não falam a majoritária correm riscos de se sentirem estigmatizados.

Em Moçambique, as comunidades minorizadas, monolíngues de origem bantu, devido ao isolamento, sofrem limitações de conhecimento sobre o mundo, mesmo sendo bastante ricas em conhecimentos endógenos, mas que são considerados assistemáticos, sobrevivendo por meio da passagem oral de geração para geração. Esse afastamento se verifica por condições da disposição geográfica e não por razões sociopolíticas, uma vez que o contato com outras línguas majoritárias se processa esporadicamente.

Para responder às preocupações colocadas acima sobre a valorização das línguas nacionais, hoje o Governo de Moçambique tem em execução um programa especial de Estratégia de Expansão do Ensino Bilíngue 2020-2030. Quanto à formação de professores, esse programa apresenta um objetivo que irá ao encontro da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos e da valorização do Outro: “Garantir que até 2029 todos professores do ensino primário estejam habilitados para leccionarem turmas do ensino bilíngue”. (MINED, s/d, p. 14).


Considerações finais

No mundo atual, marcado pela elevada produção e pela utilização tecnológica, fica-se com a sensação de que o homem está em decadência de valores e necessita ter a mente descolonizada para reconfigurar a sua consciência moral e ética cada vez mais duvidosa em relação à convivência com o Outro. Para a convivência pacífica entre os seres humanos, há que tornar as diferenças culturais e linguísticas um instrumento de desconstrução da estigmatização.

Ao sistema educativo, cabe-lhe a tarefa de promover a formação de professores de língua portuguesa com visão de respeito da alteridade e promover os valores éticos e morais, garantindo que as questões fulcrais dos direitos humanos sejam cada vez mais respeitadas. Além disso, as atitudes preconceituosas e de marginalização devem ser eliminadas na formação de professores para o ensino do português. No entanto, urge a necessidade de introdução nos currículos de formação desses docentes da disciplina de ética e moral para que seja acautelada a alteridade e os valores universais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nesse caminho, Moçambique precisa promover uma melhor política linguística que incentive a valorização da alteridade, com a utilização de termos e de expressões das línguas maternas de origem bantu nas formações de professores. Por fim, o país necessita reconfigurar a política linguística e educacional para a humanização e para a paz onde a alteridade esteja sempre presente.


Referências

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SOBRE OS AUTORES



TANIA FERREIRA REZENDE é doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais, professora da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás.

E-mail: taniaferreirarezende@gmail.com



JOSÉ DOS SANTOS BAPTISTA é doutorando em Ciências da Linguagem Aplicada ao Ensino de Línguas na Universidade Pedagógica de Maputo, professor do Departamento de Letras, área de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas da Universidade Rovuma,

E-mail: dappeupn@gmail.com



Recebido em: 12.02.2020

Aceito em: 21.04.2020


1 Expressão usada por Vieira (2017).

2 Portal da UP. Disponível em: <https://www.up.ac.mz/universidade/breve-historial-da-up>. Acesso em: 20 abr. 2020.

3 Sentido figurado: Indivíduo rude, grosseiro; aldeão. In: Decio: Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/saloio/.

4 Disponível em: https://www.tecnolegis.com/estudo-dirigido/escrivao-sp/declaracao-universal-direitos.html. Acesso em: 28 mar. 2020.

5 O grifo é da autora.

Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.12, p. 345-369, jan/abr. 2020.