ANTONIO GRAMSCI E A CRÍTICA PEDAGÓGICA COMO CRIAÇÃO POLÍTICA 1
Universidad de Buenos Aires
Buenos Aires, Argentina
RESUMO
O artigo trata das reflexões e das contribuições de um dos pensadores fundamentais da filosofia política do século XX, Antonio Gramsci, para pensar a concepção dos processos educativos nas sociedades contemporâneas. A interpretação das suas reflexões será desenvolvida, assumindo-as na sua peculiaridade e na contribuição para o pensamento crítico sobre a necessária e inelutável relação entre política e educação.
Palavras-chave: Marxismo. Educação. Pedagogia. Política. Hegemonia.
ANTONIO GRAMSCI AND PEDAGOGIC CRITIC AS CREATING POLICY
ABSTRACT
In the article we propose to work the Ideas and contributions of one of the key thinkers of the political philosophy of the twentieth century, Antonio Gramsci, the design of educational processes in contemporary societies. The interpretation we make of his thoughts will be developed, assuming them in their uniqueness and contribution to critical thinking about the necessary and inevitable relationship between politics and education.
Keywords: Marxism. Education. Pedagogy. Politics. Hegemony.
ANTONIO GRAMSCI Y LA CRÍTICA PEDAGÓGICA COMO CREACIÓN POLÍTICA
RESUMEN
En el artículo se abordan las reflexiones y aportes de uno de los pensadores fundamentales de la filosofía política del Siglo XX, Antonio Gramsci, a la concepción de los procesos educativos en las sociedades contemporáneas. Se desarrollará la interpretación que se realiza de sus reflexiones, asumiéndolas en su peculiaridad y contribución al pensamiento crítico sobre la relación necesaria e ineluctable entre política y educación.
Palabras clave: Marxismo. Educación. Pedagogía. Política. Hegemonía.
Introdução
“Todo discurso crítico tem a necessidade de reconhecer
sua
dívida com o objeto criticado”
(DERRIDA, 1995, p.
68).
Muitos desafios se empreendem quando se trata de refletir sobre a abordagem interdisciplinar e de ultrapassar as barreiras canônicas em busca de recriar, de modo constante, o pensamento crítico. O desafio torna-se atrativo quando a indagação pretende afirmar a vigência de um pensamento em contraposição às leituras mais frequentes e tradicionais. Por esse motivo, a busca é claramente mais árdua do que simples. Não são casuais as palavras de Jacques Derrida, que pretendem esclarecer nossa intenção: a de recuperar Gramsci em perspectiva crítica, desde uma crítica política até às suas reflexões pedagógicas. Derrida, ao mesmo tempo, orienta-nos a resgatar nosso autor, desde e a partir da tradição do marxismo heterodoxo, ao qual Gramsci se dedicou. Interessa-nos revitalizar as contribuições de Gramsci ao marxismo como uma tradição teórica calorosa e humanista – como alguns souberam denominá-la–, e centralmente como um heterodoxo ideário de pensamento que tem feito justiça à necessidade de criar novos modos de pensar e conhecer em uma chave emancipatória.
Uma dúvida que poderia invadir o leitor pode ser sobre a vitalidade, a validade, a pertinência, as contribuições de um pensador ao que pouco se recorreu na história das Ciências Sociais.2 Por isso, ganha vigor a necessidade de recuperar Gramsci como “clássico” do pensamento político-filosófico contemporâneo.3 Nesse sentido, a bagagem teórico-metodológico gramsciana, é factível de ser utilizado no campo científico-social, independentemente das orientações políticas que o italiano tenha adotado.
Pois bem, como uma primeira intenção deste escrito, aspiramos recuperar a referida validade do italiano e, de passagem, responder àquelas eventuais hesitações que possam ser apresentadas ao leitor, como suspeitamos acima. No entanto, em particular, propomos nos aprofundar na relação de necessidade em que Antonio Gramsci, ao longo de toda a sua produção filosófica, tem exercido entre a educação e a política.
Embora o aspecto pedagógico da sua obra seja pouco conhecido da inteligência acadêmica dominante, para o autor sardo, a questão da pedagogia faz parte do estudo da totalidade social. Este é, para Gramsci, um problema que diz respeito a tantas pessoas que, em suma, é uma questão puramente política. No que segue, reconstruir-se-á brevemente o nó górdio do qual emerge a reflexão do nosso autor sobre o princípio educativo.
1. “Primeiro livres”4: sinais dos tempos e da criação
Tão grande é a convulsão que tomou conta do mundo quando o velho continente começou a sentir os efeitos da terrível hemorragia, e tão profunda é a guinada sofrida pelos homens, pelas idéias e pelas consciências, em resultado dela, que é preferível deixar que os fatos respondam por nós, sem correr o risco de julgar antecipadamente ou de cair no reino das presunções. Há momentos na história dos povos em que é impossível saber onde está o termómetro dos sentimentos humanos, onde está o pulsar da opinião (MARIÁTEGUI, 1987, p. 166).
Em termos gerais, devemos situar que a trajetória intelectual do nosso autor se inscreve na crise de sentido que atravessou a sociedade ocidental no período entreguerras. Com isso, aludimos à colocação em questão do marco de referências e valores que haviam acompanhado a consolidação da hegemonia burguesa depois do processo aberto em 1789. Alguns fatos históricos determinantes, somados a algumas inovações em relação às ciências, causaram a quebra de muitas das certezas e noções que pareciam ser estabelecidas sobre bases imóveis nas sociedades ocidentais.
A Primeira Guerra Mundial foi um conflito que teve certas características que a transformaram em um acontecimento sem precedentes na história do ocidente. Por exemplo, E. Hobsbawm (1998) assinala que a guerra marcará de maneira definitória o desenvolvimento da civilização.5 Acompanhando o processo de desencanto global iniciado pela guerra, publicam-se algumas obras que dão lugar a refletir e entender o sentimento de frustração e de que algo chegava ao seu fim, sentimento que inquietou e pesou sobre Gramsci e entre outros tantos autores da época6.
A incapacidade das instituições políticas da democracia liberal aparecia com força ao ler que os temores que se colocavam em diversos escritos, associados à ideia de que a burguesia como classe dominante parecia ter perdido o lugar de “direção moral e intelectual da sociedade”, como logo o chamaria Gramsci (1975a, p. 104). De fato, durante aproximadamente quatro anos (1916-1919), Gramsci escreverá a coluna Sottola Mole, dedicada a comentar, desde a imediatez, à sombra da Mole Antonelliana que dominava a cidade, o discorrer da vida em Turim. Seus artigos refletiram com clareza o contexto de um país que se debatia na definição de um modelo econômico na superação do modelo social e político de uma burguesia dominante, mais estatal católica que liberal industrializadora, diante de uma revolução em crescimento. Em uma das notas de Sottola Mole, o italiano diz:
A fatalidade que parece dominar a história é precisamente a aparência ilusória desta indiferença deste absentismo [...] Os destinos de uma época são manipulados segundo umas visões estreitas, aos fins imediatos de pequenos grupos ativos, e a massa de cidadãos ignora-o. Mas os fatos que amadureceram acabam por vir à luz, a tela tecida na sombra acaba terminando, e então parece que a fatalidade o atropela tudo e a todos, que a história não é mais que um fenômeno natural. (GRAMSCI, 2009, p. 52).
Na Itália dos anos vinte, com a derrota do movimento operário e a ascensão de Benito Mussolini ao governo, as piores perspectivas pareciam tomar corpo. O balanço da guerra aparece em Gramsci em seus escritos juvenis ligados à revolução em curso na Rússia:
A prolongada e infeliz guerra tinha deixado uma triste herança de miséria, de barbárie, de anarquia; a organização dos serviços sociais estava desfeita; a própria comunidade humana tinha-se reduzido a uma horda nómade, sem trabalho, sem vontade, sem disciplina, matéria opaca de uma imensa decomposição (GRAMSCI, 1975b, p. 8).7
No entanto, diante desse panorama, os bolcheviques souberam encarnar a vontade de todo o povo russo e
o novo Estado recolheu da matança os pedaços torturados da sociedade e os recompôs, os soldou; reconstruiu uma fé, uma disciplina, uma alma, uma vontade de trabalho e de progresso. Missão que pode constituir a glória de toda uma geração (GRAMSCI, 1975b, p. 8).
Na visão de Gramsci, era o ato heroico dos bolcheviques que estava dando sinais de uma nova forma de civilização. E, assim, como diante do declínio do ocidente, também aflora no italiano a necessidade de gerar uma nova ordem que deve superar a atual, caracterizada por sua decadência e mostrar uma nova maneira de viver em sociedade.
São a libertação dos espíritos e a instauração de uma nova consciência moral o que nos é revelado por essas pequenas notícias. É o advento de uma nova ordem que coincide com o que nossos mestres nos ensinaram. Uma vez mais, a luz vem do oriente e irradia ao velho mundo ocidental, o qual, assombrado, não sabe mais que lhe opor as banais e tontas piadas de suas penas (GRAMSCI, 1975b, p.41).8
Nesse contexto global, a Itália lançou o movimento de reforma intelectual e moral, liderado por Benedetto Croce, quem influenciou fortemente a Gramsci e seria o foco de várias dissidências do sardo em diversas páginas de seus escritos e notas carcerárias. Em uma carta a sua cunhada Tania, em 1929, escreveu:
Decidi me ocupar principalmente e tomar notas sobre estes três temas: 1) a história italiana no século XIX, com especial atenção pela formação e desenvolvimento dos grupos intelectuais; 2) a teoria da história e da historiografia; 3) o americanismo e o fordismo” (GRAMSCI, 2003, p. 193).
Gramsci considerava que o primeiro grande teórico depois do Risorgimento era Benedetto Croce, que, segundo nosso autor, teve o mérito de ter chamado energicamente a atenção sobre a importância do momento ético-político no desenvolvimento da história. Assim, o historicismo idealista crociano provocou a dissolução das interpretações correntes do marxismo, grosseiramente mecanicistas, positivistas, evolucionistas, em favor de colocar o homem como único protagonista da história. Contudo, é nesse ponto em que Gramsci se pergunta sobre qual é o homem que entende Croce e sustenta que é aquele ancorado em uma ideia abstrata a nível do espírito hegeliano. Afirma, ainda, que, enquanto a concepção historicista da realidade na filosofia da práxis se libertou de todo resíduo de transcendência e de teologia, o historicismo crociano permanece na fase teológico-especulativa.
Assim como a filosofia da práxis tem sido a tradução do hegelismo em linguagem historicista, a filosofia de Benedetto Croce, é em muito notável medida, uma retradução em linguagem especulativa do historicismo realista da filosofia da práxis… Agora devemos fazer com a concepção filosófica de Croce a mesma redução que os primeiros teóricos da filosofia da práxis, Marx e Engels, fizeram com a concepção hegeliana.E este é o único modo historicamente fecundo de provocar uma adequada renovação da filosofia da práxis, de elevar esta concepção (que se foi 'vulgarizando' pelas necessidades da vida prática imediata) à altura que deve alcançar para a solução das mais complexas tarefas que apresenta o desenvolvimento atual da luta, ou seja, a criação de uma nova cultura integral (GRAMSCI, 1975a, p. 362).
Nessa luta histórico-filosófica, as filosofias de cada época pelejam entre si e também contra as anteriores, as quais tendem a renascer de suas cinzas em novos pontos de vista mais atuais e que funcionam como dispositivos ideológico-culturais para fortalecer a hegemonia das classes dirigentes de cada época. Essa é a razão pela qual Gramsci se empenha tanto em discutir com o idealismo de Benedetto Croce, o qual, ao mesmo tempo, parte da filosofia da práxis para construir a sua própria. Nosso autor se pergunta se o que Croce faz com Hegel não é uma “reforma reacionária”. Se assim for, Croce não somente reduz a filosofia da práxis ao estudo do momento ético-político, retornando assim à filosofia idealista e especulativa, como também implica uma superação dialética “regressiva”, na qual o que conserva de Hegel é o mais reacionário, enquanto a filosofia da práxis tira o vital conceito de unidade dos opostos em tensão, pensando, ao mesmo tempo, na possibilidade de uma “dialética dos diferentes” (p. 198-199).
O idealismo inicial9 que aos poucos se amalgamaria com a ideologia socialista foi a primeira premissa que o jovem Gramsci pôs em prática. E é precisamente nesses momentos de criação de uma nova ordem que o sardo propõe, em um discurso fortemente ligado à batalha política que começava a empreender, as suas primeiras reflexões sobre a escola e sobre o princípio educativo. Daqui emerge uma crítica grosseira à escola de índole burguesa e também a certos matizes da política escolar socialista.
Na nossa opinião, o traço peculiar das preocupações de Gramsci sobre o educativo e o pedagógico consiste em conceber a complexidade dos problemas pedagógicos enquanto parte inerente dos problemas culturais e políticos, inseparáveis da convivência de homens e mulheres. Assim, salientamos que, na vocação gramsciana, por gerar uma nova ordem sustentada na prefiguração, desde o “aqui e agora”, está subjacente uma ampla concepção do político-social existente e sobretudo uma avaliação das possibilidades de transformação. Por isso, mais acima, o caracterizamos como uma concepção “integral” do problema pedagógico educativo. No que se segue, tentaremos dar conta dessa complexidade, assim como da produtividade do pensamento do italiano.
2. As reflexões do jovem Gramsci: pedagogia e praxisprefigurativa
Não vale o grito isolado por mais longo que seja seu eco. Vale a pregação constante, contínua e persistente. Não vale a ideia perfeita, absoluta, abstrata, indiferente aos fatos, à realidade mutável e em movimento. Vale a ideia germinal, concreta, dialética, operante, rica em potência e capaz de movimento (MARIÁTEGUI, 1928, par. 2).
Embora o Quaderni del Carcere – doravante I Quaderni – constitua a “obra” mais difundida e analisada do nosso autor, em poucas ocasiões foi destacado o desenvolvimento original de certas hipóteses ligadas a problemas educacionais. Pelo contrário, e com razão, tem sido dada ênfase às conceitualizações relativas ao Estado, ao papel do intelectual, entre muitas outras que se refletem nas notas constitutivas do I Quaderni, pertencentes ao período carcerário de Antonio Gramsci.
Dissemos mais acima que um dos desafios deste escrito era aproximar as reflexões pouco difundidas do italiano. É assim que adiante desenvolveremos o interesse do Gramsci jovem (grosso modo, entre 1916-1919) de participar profusamente da vida social e cultural de Turim e de realizar contribuições a uma concepção crítica da prática pedagógica. Gostaríamos, por conseguinte, de salientar que, embora sejam evidentes as formulações feitas durante o seu período prisional, aparentemente desprovidas da etapa juvenil imediatamente prévia, não existe um corte nítido entre o militante de L'Ordine Nuovo e o ativo pensador de I Quaderni.
Por volta de 1914, o pensador italiano começará a refletir sobre a escola profissional e a universidade popular e tentará propor outras formas de organização cultural que, em definitivo, implicam outro modo de pensar o político e o educativo como par indissolúvel. Essas outras vias de solução do problema educativo são a abertura de clubes, associações, círculos de pensamento que estejam estreitamente ligados à atuação dos setores operários, ou seja, dos sindicatos e dos partidos. A partir da influência da Revolução de outubro de 1917, segundo Manacorda, Gramsci:
Passa da pura reivindicação do direito dos proletários a uma cultura indiferenciada e desinteressada, à busca da definição de uma cultura proletária autnoma e comprometida. Às vezes ressoam em suas páginas frases de aparência extremista, que são na realidade expressão de uma nova e mais madura consciência de classe como quando proclama a necessidade de destruir as velhas hierarquias culturais, de rejeitar o estudo objetivo e desinteressado, de conceber a cultura como consciência teórica dos fins imediatos e supremos do proletariado. Na realidade, estas propostas marcam claramente a saída do jovem Gramsci do círculo da experiência socialista italiana e da tutela idealista e sua conquista de uma dimensão internacional (MANACORDA, 1987, p. 16).
De acordo com o acima exposto, Gramsci, em Il grido del popolo, escrevia:
o problema da educação é o maior problema de classe e só pode ser resolvido sob o ponto de vista da classe, que é o único que permite a avaliação proletária das instituições sociais e das leis [...] Nós devemos nos fazer partidários da escola livre e conquistar a liberdade de criar nossa escola (BROCCOLI, 1984, p. 42).
Como se pode ver pelas citações acima, partindo de uma concepção integral da totalidade social, Gramsci julgava que a luta contra o sistema devia desenvolver-se em três frentes: o econômico, o político e o ideológico que, em suma, reduzem-se ao da consciência que supera a espontaneidade e permite assumir as condições de realização do sujeito, compreender o seu desenvolvimento e desempenho das contradições sociais etc. Daqui deriva também a importância da educação e da estimulação dos núcleos de bom senso nas classes subalternas.
Os fenômenos ideológico-políticos apresentam um tratamento especial em Gramsci, que não se preocupa apenas com os elaborados e coerentes “sistemas de pensamento”, mas com as manifestações dispersas e autocontraditórias que compõem o senso comum em que se aninham formas de pensar das mais díspares origens. Os conteúdos de senso comum incluem uma concepção do mundo, embora não elaborada de forma consciente e crítica: “senso comum é a concepção do mundo difundida numa época histórica na massa popular” (GRAMSCI, 1975a, p. 327). O senso comum é “o folclore da filosofia”, mas também a antecâmara da verdadeira filosofia a ser encarnada nas massas (GRAMSCI, 1975a, p. 73).
Segundo o italiano, “as classes subalternas de todas as sociedades conhecidas não puderam ter, por definição, concepções elaboradas, sistemáticas e politicamente organizadas e centralizadas”. Entretanto, “um processo de desenvolvimento orgânico” poderá conduzi-las agora “do simples senso comum ao pensamento coerente e sistemático” (GRAMSCI, 1975a, p. 2312, 2263). O “bom senso” do povo aparece como condição necessária desse processo e uma psicologia de corte racionalista acaba atribuindo os eventuais desvios do momento catártico a uma educação política deficiente, ou seja, a falhas no trabalho dos intelectuais orgânicos (ADAMSON, 1980, p. 147-155). Certamente, existe ali uma tensão e se esconde em contraponto: “
as mudanças nos modos de pensar, nas crenças, nas opiniões, não ocorrem por explosões rápidas, simultâneas e generalizadas; acontecem quase sempre por combinações sucessivas, segundo fórmulas muito diversas e não controláveis pela autoridade (GRAMSCI, 1975a, p. 1386).
E a própria “concepção do real que superou o senso comum e se tornou crítica” se move “dentro de limites ainda restritos” (GRAMSCI, 1975a, p. 1386).
Criticar o senso comum não significa para Gramsci enfrentar doutrinariamente os “sentimentos espontâneos das massas: não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida individual de todos, mas de inovar e de tornar crítica uma atividade já existente” (1975a, p. 1383). A mesma experiência concreta dos setores populares gera um núcleo de bom senso no marco de seu senso comum, por mais que este tenda a “embalsamar, mumificar e degenerar” as reações saudáveis que aquele promove, porque, em todo o caso – e contra qualquer leitura reprodutiva –, a concepção do mundo das classes dominantes “limita o pensamento das massas populares negativamente, sem o influenciar de modo positivo” (GRAMSCI, 1975a, p. 1378, 1396). Sorel havia dito: “Seria impossível conceber o desaparecimento da dominação capitalista se não soubéssemos que na alma do trabalhador está sempre presente um sentimento ardente de revolta” (1950, p. 151). E o repete Gramsci quando interpreta a unidade da teoria e da prática como um processo histórico “que tem sua fase elementar e primitiva no sentido de distinção, de separação, de independência apenas instintivo, e progride até a posse real e completa de uma concepção do mundo coerente e unitária” (1975a, p. 1385).
Há sempre um conformismo, um sentido da “normalidade” do que sempre foi e o senso comum expressa esse conformismo. Os intelectuais que se tornam “dirigentes” (especialista mais político) podem reorientar o senso comum em um sentido anticonformista e transformador, desenvolvendo os “núcleos de bom senso” que aquele abriga. Do mesmo modo, e como se tentou demonstrar, Gramsci adverte sobre a heterogeneidade do senso comum: “O bom senso é um agregado desordenado de concepções filosóficas e nele se pode encontrar tudo o que se quer” (GRAMSCI, 1975a, p. 304).
Em linha com o que vimos expressando, do nosso ponto de vista, consideramos que é difícil encontrar dentro da tradição marxista um autor que, como Antonio Gramsci, tenha refletido sobre uma ideia tão carente de dogmatismo como a que refere o “princípio educativo” enquanto criação inerente aos núcleos de bom senso arraigado na cultura popular. No sardo, princípio educativo é o fundamento que sustentava as escolas elementares de sua época, que, nesse contexto, era o conceito de trabalho:
O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática), é o princípio educativo que corresponde à escola elementar, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres), é introduzido e identificado na ordem natural pelo trabalho. O conceito de equilíbrio, entre ordem social e ordem nacional sobre a instituição do trabalho, ou seja sobre a atividade teórica e prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo, liberta de toda magia e bruxaria, e dá a base para o desenvolvimento posterior de uma concepção histórica, dialética do mundo, para compreender o movimento e o devir, para valorizar a soma de esforços e sacrifícios que o presente custou ao passado e aqueles que o futuro está custando ao presente, para conceber o presente como uma síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro (GRAMSCI, 1975a, p. 477).
Nesse sentido, a relação pedagógica se aproximava das categorias de ideologia, religião, folclore e, do mesmo modo, propunha qual práxis libertadora e política, que, na relação hegemônica, busca realizar a verdadeira religião da liberdade e a consumação da filosofia na liberdade humana.
Dizemos, então, que, segundo Gramsci, a relação pedagógica educativa não implica a mera concessão cultural, mas especialmente a imbricação da historicidade social com a consciência histórica do sujeito, o que significa compreender o homem e a mulher em toda a história e sua dialética. Nas palavras do próprio Gramsci:
Este problema da realização de uma unidade cultural social com base numa comum e geral concepção do mundo pode e deve aproximar-se da abordagem moderna da doutrina e da prática pedagógica segundo a qual o rapport entre professor e aluno é um rapportactivo, de relações recíprocas pelo que todo professor permanece aluno e todo aluno é professor. Mas o rapport pedagógico não pode limitar-se às relações especificamente escolares, mediante as quais as novas gerações entram em contato com as velhas absorvendo delas a experiência e valores historicamente necessários, e amadurecendo e desenvolvendo uma personalidade histórica e culturalmente superior. Esta relação se dá em toda a sociedade em sua totalidade e em cada indivíduo em relação aos demais, entre castas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e asseclas, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de hegemonia é necessariamente um rapport pedagógico e se verifica não só no interior de uma nação, entre as diferentes forças que a compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre o conjunto de civilizações nacionais e continentais (GRAMSCI, 1987, p. 114).
3. “Criar uma escola”10: o rapport pedagógico como uma atividade libertadora
“Trata-se de saber se o próprio ato de receber a palavra do mestre – a
palavra do outro – é uma prova de igualdade ou de desigualdade [...] se
tenta saber se um sistema de ensino tem por presuposição
uma desigualdade que deve diminuir ou uma igualdade que
deve ser verificada” (RANCIÈRE, 2002, p. 2).
Basta ler o Decreto sobre a Educação Popular (1917), redigido pelo Comissário para a Instrução Pública no calor dos acontecimentos de outubro de 1917, para verificar até que ponto a abordagem fazia sentido, que, com tanta insistência, pregou Gramsci nas páginas de Il Grido del Popolo e depois em L'Ordine Nuovo. Ali se estabelece uma grande distinção entre ensino e educação e postula-se a necessidade de uma educação autônoma:
É preciso assinalar a diferença entre ensino e educação. Ensino é a transmissão de conhecimentos já definidos pelo professor ao aluno. A educação é um processo criador. Durante toda a vida, a personalidade do homem se “educa”, é ampliada, enriquecida, consolidada e aperfeiçoada. As massas populares trabalhadoras – operários, soldados, camponeses – ardem em desejos de aprender a ler e escrever, de iniciar-se em todas as ciências. Mas aspiram igualmente à educação, que não lhes pode ser dada nem pelo Estado, nem pelos intelectuais, por nada nem por ninguém mais do que por eles mesmos. A este respeito, a escola, o livro, o teatro, o museu, etc., só podem ser uma ajuda. As massas populares devem fixar por si mesmas sua cultura (LUNACHARSKY, 1959, p. 306).
As ressonâncias da Primeira Conferência Panrussa do Proletkult – realizada entre 15 e 20 de setembro de 1918 –, serão visibilizadas no projeto educativo encarnado mais tarde no L'Ordine Nuovo, que dará foco no trabalho didático e criativo de toda iniciativa cultural e educativa surgida do próprio seio das classes subalternas. O próprio Lunacharsky recomendará que a Proletkult deveria:
concentrar todo o seu interesse no trabalho de estudo, na descoberta e na promoção do talento original dos trabalhadores, na criação de círculos de escritores, de artistas e de todos os tipos de jovens estudiosos provenientes da classe trabalhadora, na criação de diferentes tipos de estudos e de organizações vitais em todos os campos da cultura material e espiritual (LUNACHARSKY, 1978, p. 470).
Por meio de uma leitura rápida de L’Ordine Nuovo, podemos inferir uma dupla dimensão da disputa cultural e educacional: por um lado, uma crítica implacável ao que existe; por outro, a necessidade de criar uma institucionalidade que incorpore novos valores e a comunidade de interesses para a qual se articulam as lutas. Assim, a prática pedagógica requer uma disputa diária de sentido no plano ideológico-cultural, uma concepção da construção ideológico-política que será mais claramente percebida a partir da noção de hegemonia desenvolvida por Gramsci, especialmente no confinamento, ao qual mais tarde proporcionaremos um espaço privilegiado.
Marcos Del Roio reconhece que a escola ordinovista:
não tinha a intenção de preparar os trabalhadores para um mundo estranho a eles. Pelo contrário, a idéia era reforçar o princípio de solidariedade e o de saber-fazer que era próprio de seu cotidiano de produtores, de incorporar a aprendizagem já adquirida no espaço público gerado pela greve, pelo comício, pelo debate. Embora seu propósito fosse “educar o proletariado para a autogestão da produção e para a administração pública”, entendida como autogoverno, na escola do trabalho também seriam cultivados os intelectuais gerados pela própria classe operária, em condições de criar uma nova cultura, distinta e contraposta à da intelectualidade burguesa e também reformista (2006, p.111).
Na “Crônica da Ordem Nova 'XXII” publicada em L’Ordine Nuovo (1919) se lê:
E temos visto ao nosso lado, cheios, colados uns aos outros nos bancos desconfortáveis e no espaço estreito, esses estudantes incomuns, a maioria deles pouco jovens, fora da idade em que aprender é algo simples e natural, todos eles, portanto, exaustos após um dia no escritório, acompanhando com a mais profunda atenção no decorrer da aula, fazendo um esforço para tomar notas, sentindo com segurança que entre aquele que fala e aquele que escuta foi estabelecido um canal vivo de inteligência e simpatia. Isto não seria possível se nestes operários o desejo de aprender não surgisse de uma concepção do mundo que a própria vida lhes ensinou e que eles sentem a necessidade de esclarecer, para possuí-la por completo, para poder vivê-la plenamente. É uma unidade que preexiste e que o ensino busca reanimar, é uma unidade viva que nas escolas burguesas em vão se busca criar (GRAMSCI, 1975b, p. 467).
Vale a pena reproduzir um dos parágrafos em que se explica a dinâmica de funcionamento dos cursos ministrados, que, complementando o que indica a citação prévia, explicita uma concepção pedagógica disruptiva com respeito à educação tradicional. A experiência de autoformação dos trabalhadores, associada à noção de autonomia como capacidade de deliberação e criação, é um dos aspectos que, do nosso ponto de vista, denota singularidade nos modos de entender os processos educativos. Nos sucessivos números de L'Ordine Nuovo, aparecerão artigos vinculados com o desafio da práxis educativa em uma sociedade em transição, nos quais diversos autores ressaltarão a necessidade de “reunir a escola com a vida de produção”. A esse respeito, E. Hobsbawm (2011), em um capítulo destinado ao nosso autor, diz:
Quando Gramsci fala do papel da produção no socialismo não é simplesmente como um meio para criar a sociedade de abundância material, embora podemos apontar de passagem que ele não tinha dúvidas sobre a prioridade de maximizar a produção. Porque o lugar do homem na produção era fundamental para sua consciência sob o capitalismo, porque a escola natural desta consciência era precisamente a experiência dos trabalhadores nas grandes fábricas. Gramsci teria a considerar, talvez à luz de sua experiência em Turim, que as grandes fábricas modernas não eram tanto um lugar de alienação, mas sim uma escola para o socialismo. Mas o caso é que a produção no socialismo não podia ser tratada simplesmente como um problema técnico e econômico separado, tinha que ser tratada simultaneamente, e do seu ponto de vista basicamente, como um problema de educação política e de estrutura política. Mesmo na sociedade burguesa, que neste aspecto era progressista, o conceito de trabalho era fundamental sob o ponto de vista pedagógico, desde que a descoberta de que as ordens social e natural estão mediados pelo trabalho, pela atividade teórica e prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo livre de toda magia e superstição. Proporciona uma base para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórica e dialética do mundo, que compreende o movimento e a mudança, que concebe o mundo contemporâneo como uma síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro. Esta era a verdadeira base da escola primária' (2011, pp. 327-328).
Como se notará, nas palavras de Hobsbawm, é possível identificar a articulação privilegiada que já Gramsci em sua juventude enfatizaria teórica e praticamente. Referimo-nos à necessária fraternidade da reflexão pedagógica com o sentido estratégico de transformação social. Isto é, o entendimento da escola, da formação, a didática não são para Gramsci um problema anexo ou apêndice à realidade histórica, mas sim o seu fundamento. Segundo nosso ponto de vista, ali reside o potencial da reflexão gramsciana, aqui e agora, para o pensamento na atualidade das Ciências Sociais.
Já em seu triste momento carcerário, Gramsci opinará sobre a reforma educativa que desenharia e implementaria o ministro do fascismo Giovanni Gentile, a partir de 192311, reforma que sumariamente aprofundava tendências à segmentação entre o ensino primário, secundária e superior e no interior de cada uma delas. A propósito, Gramsci recorda que as escolas elementares, tradicionais, universalistas “estavam fundadas no princípio do trabalho”(1975b, p. 116)12. Entende por isso não a formação interessada para o emprego, mas uma formação que une o conhecimento das leis da natureza para a transformar com o conhecimento das leis da sociedade, ou seja, aquela que os homens criam para regular a vida social e produtiva e que podem modificar. Concebe o trabalho como atividade teórico-prática e propõe uma escola única, comum, de desenvolvimento intelectual e manual, que ensine a história humana e a história das coisas, que reúna a educação primária e secundária e que tenha o trabalho como princípio educativo.
Face às propensões a ler e difundir Gramsci como culturalista apolítico, é necessário recordar com Héctor Agosti que, em Gramsci, a cultura não é um acréscimo da política, mas ela mesma é política e a batalha pela renovação econômica social é, ao mesmo tempo e necessariamente, uma batalha cultural (AGOSTI, 2005). Além disso, tanto Paulo Freire (2008) como Henri Giroux (2008), recordam a natureza política da educação e a chamam a fazer a pedagogia mais política e a política mais pedagógica.
Costuma-se dizer, e nós também o dissemos, que na Itália se dá demasiada importância à escola do conhecimento desinteressado, enquanto se descuida a escola do trabalho. Mas o Ministro Ruffini demonstra não dar importância nem a uma nem a outra. Ele acha que a qualidade da escola pode mudar se os alunos forem para a fábrica. Mas quem trabalha a sério só poderá instruir-se com um grande esforço de vontade. Confundi-las como se está fazendo é uma de tantas aberrações pedagógicas que vêm impedindo que a escola na Itália seja uma coisa séria.Que a escola seja só para quem tenha a aptidão, a inteligência e a vontade necessárias, e que a escola não seja privilégio só para quem a possa pagar. Limpem as escolas dos intrusos, dos futuros fracassados e obriguem-nos a trabalhar onde forem mais úteis. Que a escola seja realmente escola e que a fábrica não seja uma condenação, assim se conseguirá uma geração de homens úteis (GRAMSCI, 2009, p. 57).
Gramsci afirma que a educação tradicional girava em torno do trabalho por pretender transmitir ambas as ordens de conhecimento e corresponder-se ao desenvolvimento produtivo e cultural da sociedade. No entanto, o nosso autor, com a noção de “princípio educativo”, procura edificar outro modo de articular escola, educação e trabalho: a relação pedagógica deve universalizar-se, deve dar-se na sociedade na sua totalidade e em cada indivíduo em relação aos outros.
O princípio educativo, procurado por Gramsci, tende a proporcionar um equilíbrio entre a escola e a vida, entre a ordem social e a natural, porque o conceito de equilíbrio entre:
a ordem social e a ordem natural sobre o fundamento do trabalho, da actividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo, liberta de toda a magia e feitiçaria, e dá motivo para o ulterior desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo” (GRAMSCI, 1975a, p. 374).
É preciso assinalar então que o resultado procurado no desenvolvimento e na aplicação da filosofia da práxis como método intelectual crítico era, em resumo, pedagógico, formativo: a criação de um sujeito social autorreflexivo, autogovernado, autocentrado e plenamente consciente de si mesmo. Esse sujeito histórico configurar-se-ia como o resultado contingente da disposição histórica e da luta de forças sociais ativas em conflito.
Talvez essa tenha sido a razão de sua ênfase em apontar a análise de correlação de forças como uma das tarefas intelectuais centrais da luta política e como um dos desafios mais duros para a ciência e a arte políticas. Política, filosofia e cultura são para Gramsci elementos inseparáveis: a intervenção consciente, voluntária, política sobre as condições totais de existência constitui uma política de conhecimento, um programa político de crítica social e de reforma cultural: “daí que não se possa separar filosofia de política e que se demonstre que a escolha e a crítica de uma concepção do mundo é também um fato político” (GRAMSCI, 1975a, p. 66).
Angelo Broccoli indica com firme clareza:
O nexo gramsciano teoria-prática é experiência pessoal de vida antes de ser objeto de estudo e de aprofundamento cultural. Em todo caso, seja como atividade concreta, seja como reflexão sobre as possibilidades de renovação da classe operária, é sobre o plano político onde Gramsci encontra os estímulos para a educação das massas e dos indivíduos (1983, p. 36).
4. Por uma pedagogia da práxis: política e hegemonia em debate
o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para alterar as condições objetivas de reprodução, como para a autotransformação consciente de indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente [...]. Portanto, não é surpreendente que na concepção marxista a efetiva transcendência da autoalienação seja entendida como uma tarefa inevitavelmente educacional (MÉSZÁROS, 2008, p. 16).
Como salientamos acima, será a fase de encarceramento na qual Gramsci empreenderá a maior elaboração teórica, refletida nos conhecidos Quaderni. As notas interessantes, sobre tantos “temas de época”, são infelizmente parte de uma produção que podemos chamar de fragmentada. Algo dessa valiosa produção intelectual de nosso autor corre em torno da problemática educativa. As cartas que envia a seus familiares, por exemplo, são um incansável discurso sobre a educação em um sentido molecular, perfeitamente compatível com as meditações que entendem o político desde um caráter universal. Indagações que subsequentemente formarão – centralmente – parte da escrita a ser sabida como: La formación de los intelectuales y la organización de la cultura na primeira compilação de I Quaderni enfrentada por P. Togliatti.
Por exemplo, o americanismo e o conformismo – debate orientado a refletir sobre a essência da espontaneidade das massas e o lugar das mesmas na sociedade industrial –, são dois temas que ocuparam numerosas cartas e notas de seus cadernos, bem como a fervente inquietação em torno dos intelectuais.
Ora, Gramsci entendia que a relação político-pedagógica a partir da qual o Estado educa o consenso, difunde uma concepção da vida e elabora, portanto, uma consciência coletiva homogênea e infértil. Assim, os intelectuais constituem o instrumento da supremacia exercida em toda sociedade pelos setores dominantes, o que Gramsci define como direção intelectual e moral, mais documentada como hegemonia.
Poderia dizer-se que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais. Quando se distingue entre intelectuais e não intelectuais refere-se um na realidade e exclusivamente à função social imediata da categoria profissional dos intelectuais, ou seja, pensa-se na direção em que gravita o peso maior da atividade profissional específica: na elaboração intelectual ou no esforço nervoso muscular.Isso significa que, embora se possa falar de intelectuais, não se pode falar de não intelectuais porque não existem os não intelectuais [...]. Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual: não se pode separar o homo Faber do homo sapiens. Afinal, cada homem desenvolve alguma actividade intelectual, é um filósofo, um artista, um homem de bom gosto, participa da concepção do mundo, tem uma linha consciente de conduta moral e contribui, portanto, para suscitar novos modos de pensar (GRAMSCI, 1975a, p. 392).
Levando em conta a citação anterior, advertir-se-á que, segundo nosso autor, aprofundar sobre o papel assumido pelos intelectuais na sociedade capitalista implica também penetrar o problema educativo enquanto possibilidade de construção de hegemonia: a questão pedagógico-educativa, além de um substrato político, adquire assim um indiscutível componente cultural. Com efeito, a hegemonia não visa apenas à formação de uma vontade coletiva capaz de criar um novo aparelho estatal e de transformar a sociedade, mas, também, que é o que interessa centralmente aqui, à elaboração e consequente à difusão e à realização de uma nova concepção do mundo (BROCCOLI, 1983; COBEN, 2001; GRAMSCI, 1975a).
Toda possibilidade de criação de novos sentidos envolve disputa pedagógica e, por isso, a noção de hegemonia é, efetivamente, diluidora e esclarecedora da articulação entre praxis pedagógica e ideologia (BROCCOLI, 1983; COBEN, 2001; GRAMSCI, 1975a). Enquanto “[a ideologia] é uma concepção do Estado que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva” (GRAMSCI, 1975a, p.16), a possibilidade da sua transformação conduz à noção de práxis política.
Paralelamente, a construção pedagógica poderá ser vista na categoria que Paulo Freire (2008) denominou “conscientização”, entendida como o despertar de uma consciência crítica a partir da qual os oprimidos empreendem um processo práxico dialógico de autoconhecimento para mudar sua situação ou sua condição social (FREIRE, 2008, p. 97; COBEN, 2001, p. 90). Broccoli aponta:
a primeira destas indicações diz respeito justamente ao comportamento do problema da hegemonia, não como conclusão histórica de uma série de vitórias ou de derrotas previsíveis, na medida em que se referem a determinadas direções políticas culturais, mas sobretudo como quadro metodológico no qual forças dominantes e forças dominadas, simples e intelectuais, massa e partido, se encontram e se compenetram sucessivamente num contexto de recíproca assimilação que não pode ser definida de outra maneira que como relação pedagógica (1983, p. 103).
Outra lúcida noção gramsciana, por ser eminentemente política e propor uma visão processual do processo histórico assim como dos diversos momentos da articulação entre estrutura e superestrutura, é a de “catarse”. Com esse termo, o italiano nomeia:
a passagem do momento meramente econômico (ou egoístico-passional) ao momento ético político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isso significa também a passagem do objetivo para o subjetivo e da necessidade para a liberdade […]. A fixação do momento catártico torna-se, parece-me, o ponto de partida de toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de síntese resultante do desenvolvimento dialético (GRAMSCI, 2003, p. 47).
Longe das acusações que impugnam a obra gramsciana, qualificando-a de determinista ou economicista, é imperioso ressaltar – e assinalar mais uma vez –, que as contribuições de Gramsci estão orientadas a superar, conceptual e operacionalmente, a sujeição do homem a toda estrutura, a todos os fatores econômicos. A produtividade da ideia de catarse reside em afirmar que a filosofia e a práxis, tal como as concebe Gramsci, levam a despojar as determinações de um sistema alienante que dessubjetiva o homem no material e converte a cultura em uma depravação da vida.
O materialismo do italiano, como acima tentamos expressar, espera “desvincular a divisão dos homens e as desigualdades próprias da humanidade, que ameaçam descartar uns à passividade intelectual e a outros no intelectualismo romântico de quem fica desconectado da vida real” (MANACORDA, 1987, p. 32).
Em suma, e no afã de configurar um encerramento pelo menos circunstancial, observamos que aquilo que motivou o escrito e pretendemos refletir é que o que se deve recuperar para a conformação de um discurso pedagógico alternativo é, fundamentalmente, a perspectiva relacional, holística e pragmática que Gramsci adotou em sua produção intelectual.
Dessa forma, é possível ponderar, de maneira efetiva, que a contribuição mais significativa do italiano é quando ele concebe o processo educativo em geral e a escola em particular em dois sentidos: como instrumento de hegemonia orientado a promover e recriar certa aquiescência social acerca do estado atual de coisas; como um campo da construção hegemônica, em que os atores sociais criam, batalham e articulam sentidos acerca do mundo, as relações de mulheres e homens em sua condição específica no marco e através de relações de poder desiguais e assimétricas.
Precisamente, acreditamos que a potência interpretativa do pensamento gramsciano reside nas possibilidades que abre para articular teoricamente as chamadas dimensões superestruturais e infraestruturais do todo social, assim como os chamados níveis macro e micro da vida social, política e cultural, e, por último, as complexas relações entre estrutura e ação humana.
Desse modo, assim como iniciamos o escrito na intenção de localizar o autor em seu trama contextual, é para nós fundamental terminar destacando que Gramsci, imerso em um marco de crise de civilização, tentou, de uma perspectiva secularizada como a que assume o materialismo histórico, recorrer à carga essencialmente coesa da cultura. Retomar a relação entre educação, cultura e política habilita, em um contexto de crise civilizatória como o que atualmente assistimos, busca pela noção de um sustento para batalhar os sentimentos de crise e desencanto: um convite à criação e à re-criação de novos sentidos e modos de conceber a práxis pedagógica.
Referências
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SOBRE A AUTORA
MARÍA CECILIA PATO é doutoranda em Ciências Sociais na Universidade de Buenos Aires.
E-mail: mceciliapato@gmail.com
Recebido em: 30.04.2020
Aceito em: 04.05.2020
1 Publicado originalmente en: Revista Filosofía UIS, v. 13, n. 2, p. 37-58, jul./dic. 2014. Disponible en: https://revistas.uis.edu.co/index.php/revistafilosofiauis/article/view/4991.
Tradução do espanhol para o português de Cátia Cristina Tavares da Silva. E-mail: rjcatiacristinarj@gmail.com
2 Comparativamente aos estudos heterogêneos que se empreenderam durante os anos oitenta em nosso país e no conjunto da América Latina (ARICÓ, 2005). Na Argentina, no entanto, nos últimos anos, foram editados produções e reflexões sobre Gramsci, acreditamos que elas atendem aos estudos sustentados na matriz da história intelectual, desde uma análise da recepção gramsciana na Argentina e seus concomitantes impactos e influências no campo cultural dos anos sessenta. Referimo-nos centralmente às publicações de Raúl Burgos (1997, 2005), as quais valorizamos imensamente – foram inspiração e impulso para outras reflexões –, embora, neste caso e do nosso ponto de vista, fazem uma entrada analítica distante à de uma recuperação teórica e heurística de Antonio Gramsci.
3 As características que Bobbio apresenta são: “a. ser intérprete autêntico e único de seu tempo, para cuja compreensão se utilizam suas obras; b. sempre é atual e cada geração o releia; c. construiu teorias-modelo, empregadas na atualidade para compreender a realidade” (BOBBIO, 1985, p. 257).
4 Assim denominou uma nota de Il Grido do Popolo de 31 de agosto de 1918, na qual entre outras coisas Gramsci descreve: “O individualismo econômico do regime capitalista determina o associacionismo político. Esta necessidade imanente do regime, Marx sintetizou-a no grito ‘Proletários do mundo, uni-vos!’ [...] A união não é apenas aproximação de corpos físicos: é comunhão de espíritos, é colaboração intelectual, é mútuo apoio no trabalho de aperfeiçoamento individual, é educação recíproca e recíproco controle” (OUVIÑA, 2011, p. 177).
5 “As expectativas que tinha gerado de conseguir um mundo pacífico e democrático constituído por estados nacionais sob o predomínio da Sociedade das Nações, de retorno à economia mundial de 1913 e mesmo de que o capitalismo fosse erradicado dentro de alguns anos ou de apenas alguns meses por uma revolta dos oprimidos foram rapidamente frustradas” (HOBSBAWM, 1998, p. 33).
6 Referimo-nos, por exemplo, à análise e descrições inevitáveis de Th. Adorno, W. Benjamin, S. Freud, O. Spengler, entre outros. Algumas reflexões podem ser complementadas com as desenvolvidas por Juan Carlos Portantiero em Los usos de Gramsci (1983).
7 L'OrdineNuovo foi um semanário fundado em 1919 por Antonio Gramsci junto a outros intelectuais socialistas como Angelo Tasca, PalmiroTogliatti e Umberto Terracini. Em suas páginas, declarava-se com fervor a necessidade de constituir um programa de renovação social e operária. Das páginas da revista, promoveu-se a formação do movimento de “conselhos de fábrica” entre diversos setores dos núcleos operários organizados. Também, a partir de suas críticas ao Partido Socialista, passou a ser uma das plataformas precursoras do Partido Comunista Italiano em 1921.
8 Il Grido del popolo foi fundado em 1892 e teve vigência até 1918, ano em que se definiu a suspensão de sua edição. Funcionava com publicações semanais, exceto no período entre 1907 e 1908. Foi sem dúvida um ponto de referência para a intelectualidade socialista e positivista: entre outros, Gramsci, a partir de 1914, inicia publicações sobre a posição assumida pela Itália na Primeira Guerra Mundial. Em 1917, seria diretor no semanário.
9 Manacorda, na introdução à La alternativa Pedagógica (1987), assinala que “a adesão ao idealismo não foi para ele uma pura recepção passiva, mas devia servi-lo como o hegelismo serviu a Marx para para ir além do materialismo ainda setentesco dos filósofos reformadores contemporâneos”(1987,p.11).
10 Frase de PalmiroTogliatti (1919), em L’OrdineNuovo, n° 26 (GRAMSCI, 1975b, 34).
11 Na política educativa italiana, podem-se estabelecer três períodos: o primeiro marcado pelo ministro Gentile; um segundo, a partir de 1924, caracterizado pela política de retoques à reforma Gentile; um terceiro, a partir de 1934, em que o Estado passou de liberal para totalitário. No primeiro período da política educativa de Mussolini, destaca-se a aprovação da reforma orgânica do sistema educativo de Gentile em 1923. Mussolini tomou a decisão de nomear ministro Gentile da educação, porque considerava que a filosofia educativa do neo-hegeliano era útil a seus interesses. A filosofia educativa de Gentile partia de uma concepção particular do Estado e da autoridade. Gentile defendia a teoria de um Estado como forma suprema de realidade espiritual, na qual a vontade e a liberdade do cidadão deviam, necessariamente, coincidir. Esse filósofo considerava o Estado como uma substância ética, na qual a própria consciência do indivíduo e a síntese das consciências individuais deviam coincidir. Mussolini concordava com Gentile nessa visão do Estado e especialmente no reconhecimento da autoridade do Estado de Mussolini para a possibilidade da libertação e a completa realização do indivíduo (OSTENC, 1980, p. 34). Além de sua particular concepção de Estado, a filosofia educativa de Gentile se definia pelo princípio da meritocracia que se traduziu em um rigoroso sistema de exames.
12 Deve-se ressaltar que Gramsci, referindo-se aos debates em torno do tema, expressou sua opinião em defesa da Lei Casati, considerando que ela expressava o clima histórico e cultural, difundia os núcleos de bom senso enraizados em toda a Itália e continha em seus fundamentos um sentido democrático que valia a pena recuperar para não desarraigar a escola e os intelectuais dos interesses do povo e da nação. Pelo contrário, segundo Gramsci, a Reforma Gentia idealista, esteticista e antipositivista “não afunda suas raízes no húmus social do entorno” (PUIGGRÓS, 1991, p. 77).
Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.12, 492-516, jan./abr. 2020.