RESENHA



A MEDICALIZAÇÃO DA VIDA ATRAVÉS DA INFLAÇÃO DIAGNÓSTICA: é possível reverter esse quadro?










Por Gleiciene Gomes de Araújo

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil



FRANCES, Allen. Voltando ao Normal: como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2016.



DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.42536



A grande inflação diagnóstica vivida no mundo atual possibilita cada vez mais intervenções medicamentosas que, muitas vezes, são realizadas de forma imprudente. Nesse sentido, Allen Frances, médico psiquiatra que liderou a equipe responsável pela elaboração da quarta edição do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), escreve este livro como uma grande crítica à quinta edição do DSM, ao mau uso deste manual e, sobretudo, à nossa sociedade medicalizada.

O livro é composto por dez capítulos divididos em três principais partes. Na primeira, composta pelos três primeiros capítulos, o autor inicia a sua busca pela definição do que seria o “normal”. Ele utiliza as acepções do dicionário e recorre à filosofia, à estatística, à medicina, à sociologia e à teoria freudiana na tentativa de compreender tal conceito.

Diante disso, Allen Frances conclui que, tão difícil quanto definir o que é normal, é determinar o que é o “anormal”. Para ele, esse conflito existe, pois definir a normalidade está para além das nossas possibilidades, o que nos aproxima ao que Foucault (2001), inclusive, já demonstrara: o “normal” é modificado ao longo do tempo, ou seja, assim como a verdade, ele é transformado de acordo com o tempo, o espaço e as relações de poder vigentes.

Mesmo sem a definição do que seria o “normal”, Frances afirma que a normalidade – seja ela o que for – vem perdendo o seu espaço na sociedade na medida em que a psiquiatria cria mecanismos mais simples para determinar diagnósticos ou para aceitar o suposto “anormal”.

Ainda na primeira parte do livro, o autor contextualiza historicamente o surgimento da psiquiatria desde as sociedades mais antigas até a prática profissional no mundo atual. Nesse momento, é interessante perceber que somente depois da criação da psicanálise que a psiquiatria começou a expandir o seu grau de atuação, deixando de tratar somente doentes mentais considerados mais graves.

Finalizando a primeira parte, o autor traz informações sobre a construção do DSM. O manual fora criado no ano de 1952 e, por ser elaborado com predominância no modelo psicanalítico, tinha como foco principal o tratamento do adoecido. Apenas na sua terceira edição que o foco passa a ser no diagnóstico como meio de padronização dos doentes psiquiátricos. Ocorre que, para isso, criam-se semelhanças gerais e ignoram-se as diferenças individuais.

Na revisão da terceira edição do DSM, a situação parece piorar, posto que as definições para diagnóstico ficam cada vez mais vagas, o que possibilita o aumento do consumo de medicamentos.

Ao falar do DSM IV, edição liderada pelo próprio autor, é perceptível a preocupação com o contínuo mau uso do manual, que deveria servir apenas como um guia e não como única fonte de informação. Assim, Frances se culpa por não ter advertido de forma mais incisiva, no próprio manual, os riscos do sobrediagnóstico.

Na segunda parte do livro, Frances se empenha em demonstrar as modificações diagnósticas ao longo do tempo, chamando-as de “modismos psiquiátricos”. Ele inclui três capítulos que visam a diferenciar os modismos do passado, do presente e do futuro, delineando alguns “diagnósticos” psiquiátricos que tiveram sentido em certo período e em determinados locais.

Em comparação com o presente, o autor conclui que os modismos do passado ficavam muito restritos a determinados ambientes porque a informação não fluía com tanta facilidade como na atualidade. Ele destaca, ainda, que a criação do DSM impulsionou a globalização dos modismos psiquiátricos, pois, com um manual para orientar diagnósticos, simplifica-se a criação de padronizações de forma global.

Ainda sobre os modismos do presente, o autor traz algumas doenças como destaque, mas aponta principalmente aquelas que atingem ao público infantil como fonte de maior preocupação. O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e o autismo são os diagnósticos mais frequentes, apesar da existência de outros também muito incidentes. No entanto, segundo o autor, esses dois acabam tendo maior destaque, pois a forma como é feito o diagnóstico possibilita que mais crianças se enquadrem nos quesitos elencados.

Frances alerta também sobre o perigo de se diagnosticar crianças tão cedo, pois, como cada sujeito carrega as suas individualidades, é necessário que quem realize o diagnóstico tenha ciência de que, muitas vezes, a criança é apenas imatura ou possui necessidade de orientação educacional ou de psicoterapia, por exemplo. Nesse caso, é indispensável que se diagnostique ou entre com a medicação apenas quando forem descartadas todas essas hipóteses.

Outro ponto importante levantado por Frances é que a própria escola auxilia nos destaques a esses diagnósticos, solicitando, por vezes, aos responsáveis que levem as crianças ao médico para o veredicto final.

O autor inclui o DSM5 como uma grande aposta na inflação diagnóstica e na construção de novos modismos no futuro, principalmente com a introdução do transtorno disruptivo da desregulação do humor (TDDH), o que, para Frances, é a transformação da pirraça em transtorno mental. Lima (2016) também dá destaque à alteração feita no diagnóstico de TDAH no DSM5, aumentando em três anos a possibilidade da instalação da doença, o que amplia também o número de diagnosticados.

Vale lembrar que essa transformação das possibilidades de “ser” em diagnósticos cria mecanismos para que a indústria farmacêutica ganhe espaço e lucre com doenças que não deveriam ter tamanho destaque. Moysés e Collares (2014) nos apontam inclusive que personagens como Menino Maluquinho e Mafalda não teriam espaço nessa sociedade medicalizada atual, já que as suas formas irreverentes de agir seriam tratadas como doenças e, por serem medicadas, os dois não teriam como construir suas histórias.

Ainda nessa linha, vale lembrar que podemos incorrer naquilo que Lima (2016) denominou de síndrome da criança normal, ou seja, quando esperamos que as crianças se comportem como se não fossem seres infantis, diagnosticando o que é natural da idade.

A terceira e derradeira parte é dedicada a tentar traçar uma maneira para “voltar ao normal” como o próprio nome do livro sugere. Com isso, Frances utiliza os quatro últimos capítulos com esse objetivo. Sendo assim, o autor conclui que o mau uso das drogas legalizadas faz tão mal quanto a utilização das drogas ilegais, mas que, mesmo assim, não sofrem com a grande represália social. Ele acredita que, para conter a inflação diagnóstica, é necessário que haja uma política interessada nisso, sendo o poder econômico da indústria farmacêutica o grande empecilho para que essas novas práticas sejam adotadas pelos órgãos responsáveis.

Na sequência, Frances defende que a criação de um diagnóstico deveria ser submetida a um processo tão cuidadoso quanto à de medicamentos. Dessa maneira, ela deveria ser realizada em conjunto com uma equipe de especialistas da área da saúde mental, da economia da saúde, da criminalística e da educação. Somente assim os diagnósticos teriam menores chances de serem mal formulados e mal utilizados.

Para a realização de um diagnóstico, Frances acredita que deve haver várias consultas até que se possa certificar-se da sua validade. Freud ([1909] 1996) já nos apontara o grande erro em diagnosticar apenas com as primeiras impressões trazidas pelo paciente, principalmente pelo caráter instável da subjetividade dos sujeitos. Ocorre que, vivemos em um mundo capitalista e, por isso mesmo, somos geridos pelo capital. Inseridos nessa lógica do valor, os médicos podem acabar realizando os atendimentos de forma bastante breve, baseando-se tão somente em perguntas rasas e rápidas, o que pode gerar um diagnóstico equivocado. Além disso, contamos com o poder das indústrias farmacêuticas que criam inúmeros mecanismos para fazer com que os médicos receitem os seus medicamentos.

A partir de todas essas reflexões, o autor nos coloca o seguinte questionamento: como driblar a bolha diagnóstica? Frances cita o jornalismo investigativo e a mídia como grandes aliados para diminuir a propagação do marketing das indústrias farmacêuticas ao divulgar os perigos dessa inflação.

Para demonstrar como a realização de um diagnóstico é uma questão complicada, Frances dá exemplos de diagnósticos mal feitos, os quais geraram grandes perdas e transtornos. Ele ainda exemplifica casos em que os diagnósticos foram realizados com sucesso e que fizeram toda diferença na vida do sujeito.

Por fim, compreendemos que este livro traz uma importante conclusão quando Frances deixa claro que os diagnósticos não são os maiores inimigos da sociedade, mas a sua má utilização é. Sobretudo porque, por meio de profissionais inseridos em uma lógica de poder medicalizante, criam-se barreiras para que a prática do diagnóstico seja realizada com parcimônia e responsabilidade, dificultando, assim, a possibilidade de “voltar ao normal”.


Referências

FOUCAULT, Michel. Os anormais: Curso no Collège de France (1974 – 1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001.


FRANCES, Allen. Voltando Ao Normal: como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2016.


FREUD, Sigmund. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). In:

FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Ed. Standard Brasileira das Obras Completas, 1976. v. X, pp.11-154.


LIMA, Rossano Cabral. Psiquiatria Infantil, medicalização e a Síndrome da Criança Normal. In: Comissão de Psicologia e Educação do CRP-RJ (Org.) Conversações em Psicologia e Educação. – Rio de Janeiro: Conselho Regional de Psicologia 5ª Região, 2016, pp.61-72.


MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso; COLLARES, Cecília Azevedo Lima Medicalização do comportamento e da aprendizagem: a nova face do obscurantismo. In Viégas, L. S. [et. al.] (Org.). Medicalização da educação e da sociedade: ciência ou mito? – Salvador: EDUFBA, 2014, pp.21-43.



SOBRE A AUTORA

GLEICIENE GOMES DE ARAÚJO é mestre em Ensino pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Educação (NEIPE/UFF).

E-mail: ggomes@id.uff.br







Recebido em: 04.05.2020

Aceito em: 24.05.2020