O OPORTUNISMO NEOLIBERAL NA PANDEMIA DE 2020: a nova morfologia da educação e a superexploração do trabalho docente



Paula Junqueira da Silva

Universidade Estadual de Goiás 

Iporá, GO, Brasil


Antonio Bosco de Lima

Universidade Federal de Uberlândia

Uberlândia, Minas Gerais, Brasil



DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.42973



Resumo

A história da segunda década do século XXI, marcada pela contaminação da população mundial pela Covid-19, registrou uma crise humanitária e econômica global e explicitou a insustentabilidade do capitalismo. Discutir a precariedade das políticas públicas de saúde e da banalização da educação a distância durante a pandemia é objetivo deste texto. Na educação pública brasileira, o oportunismo do Estado genocida de Jair Bolsonaro e de seus executivos estaduais intensificou o trabalho docente, improvisando o trabalho remoto no processo de ensino dos alunos durante a contenção do vírus no país pelo isolamento social. A construção teórico-metodológica da temática está pautada no materialismo histórico e dialético e destaca a centralidade do trabalho como eixo de compreensão da sociedade. As categorias marxianas e marxistas contextualizam as contradições do capital na territorialização pandêmica. As expressões educação a distância, remota, digital, online, Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e congêneres foram aproximadas como recurso à limitação da modalidade improvisada de educação problematizada neste texto. Em síntese, na análise dessa crise global são destacados alguns pressupostos, os quais alertam sobre a insustentabilidade do necromodelo do Estado Nano, revelam que o avanço do neoensino a distância representa a subsunção dos professores e das famílias no processo de precarização do ensino-aprendizagem, o que reverbera na configuração de uma nova morfologia da educação brasileira. Enfim, na história do tempo presente a Covid-19 engendra, em conluio com as incertezas dos desdobramentos da crise mundial, o avanço de uma nova sociabilidade do trabalho na educação e acumulação privada da superexploração docente.

Palavras-chave: Covid-19. Ensino remoto. Trabalho. Neoensino. Necrocapitalismo



NEOLIBERAL OPPORTUNISM OF 2020 PANDEMIC:

the new morphology of education and the overexploitation of teacher’s labor


ABSTRACT

The history of the second decade of the 21st century, marked by the contamination of the world population by Covid-19, has registered a global humanitarian and economic crisis and has explained the unsustainability of capitalism. This text aims to discuss the precariousness of public health policies and the trivialization of distance education during the pandemic. In Brazilian public education, the opportunism of Jair Bolsonaro genocidal State, and his state executives, has intensified the teaching labor by improvising remote work in the students teaching process during the containment of the virus in the country by social isolation. The theoretical-methodological construction of the thematic is based on historical and dialectical materialism and highlights the centrality of labor as an axis to understand the society. The marxian and marxist categories contextualize the contradictions of capital in pandemic territorialization. The expressions distance education, remote, digital, online, Information and Communication Technologies’ (ICTs) and congener were approximated as a resource to the limitation of the education improvised modality discussed in this text. In synthesis, in the analysis of this global crisis, some assumptions are highlighted, which warn about the unsustainability of the Nano State necromodel, show that the advance of the distance neo-learning represents the subsumption of teachers and families in the precarious process of teaching and learning, what reverberates in the configuration of a new morphology of Brazilian education. Finally, Covid-19 engenders, in collusion with the uncertainties of the world crisis consequences, the advance of a new labor sociability in education and accumulation based on overexploitation of teaching labor.

Key-words: Covid-19. Remote teaching. Work. Neo-teaching. Necrocapitalism.



EL OPORTUNISMO NEOLIBERAL EN LA PANDEMIA DE 2020:

la nueva morfología de la educación y la superexplotación del trabajo docente



RESUMEN

En la historia de la segunda década del siglo XXI, marcada por el contagio de la población mundial por el Covid-19, se registró una crisis humanitaria y económica global, y se explicitó la insostenibilidad del capitalismo. Discutir la precariedad de las políticas de salud pública y la banalización de la educación a distancia durante la pandemia, es el objetivo de este texto. En la educación pública brasileña, el oportunismo del Estado genocida de Jair Bolsonaro y de sus gobernantes estatales intensificó el trabajo docente, con la improvisación del trabajo remoto durante el aislamiento social. La construcción teórica y metodológica de la temática está pautada en el materialismo histórico y dialéctico, y señala la centralidad del trabajo como eje para comprender la sociedad. Las categorías marxianas y marxistas contextualizan las contradicciones del capital en la territorialización pandémica. Las expresiones educación a distancia, remota, digital, en línea y congéneres se han sido acercadas como recurso para la limitación de la modalidad improvisada de educación problematizada en este texto. En el análisis de esa crisis global se señalan algunos presupuestos, los cuales alertan sobre la insostenibilidad del necromodelo del ‘Estado Nano’ y revelan que el avance de la “nueva enseñanza” a distancia produce la configuración de una nueva morfología de la educación brasileña. En fin, en la historia del presente, el Covid-19, coludiendo con las incertidumbres de las ramificaciones de la crisis mundial, engendra el avance de una nueva sociabilidad del trabajo en educación y acumulación privada de la superexplotación docente.

Palabras clave: Covid-19. Enseñanza remota. Trabajo. Nueva enseñanza. Necrocapitalismo.


Introdução

Dada a história do tempo presente da humanidade, não é redundante lançarmos ao centro do debate as condições postas pelo evento que desencadeou, na segunda década do século XXI, uma grande crise humanitária e econômica em nível mundial. Uma pandemia (do grego pan = todo e demos = povo), cujo epicentro primário ocorreu no continente asiático no interior da China, afetando as projeções econômicas dos lugares mais remotos do planeta e transformando diretamente as relações mais cotidianas e elementares de praticamente todos os territórios nacionais. Referimo-nos à difusão global do novo vírus Corona (do latim corõna = coroa), causador da doença altamente contagiosa denominada de Covid-19.

O nome dado à doença é uma associação de abreviações das palavras corona (Co), vírus (vi) e doença (d) dada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a uma patologia descoberta no ano de 2019 (19). Como a Covid-19 se caracteriza por um tipo de vírus da família corona que causa uma síndrome respiratória aguda grave, em inglês severe acute respiratory syndrome (sars), semelhante à epidemia que ocorreu em 2002 também na China. A pandemia de 2020 foi então denominada pela OMS como causada pelo vírus Sars-cov-2. A classificação alfanumérica Sars-cov-2 é uma nomenclatura internacional padrão utilizada para caracterizar o segundo surto de sars causada pelo coronavírus (cov), que marcou o ciclo da grave patologia mundial nas duas primeiras décadas do século XXI (DANTAS, 2020; TESINI, 2020). Para tanto, neste texto, utilizaremos as expressões novo coronavírus, Covid-19 e pandemia não como sinônimos, mas como uma delimitação do objeto para problematização do tema.

Conforme afirmado pelo ex-Ministro da Saúde no combate à pandemia, a crise que o Brasil enfrenta em 2020 tem nome e sobrenome: Covid-19. O Decreto publicado na edição extra do Diário Oficial da União em 16 de abril de 2020, 73-A, seção 2, página 1, o Deputado Luiz Henrique Mandetta (Partido Democratas – DEM) presente no governo desde 2018 foi demitido1 do cargo de Ministro da Saúde em plena ascensão do vírus pelo país. A sua permanência no Ministério ficou insustentável a partir da postura negacionista do Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), em relação às evidências científicas sobre a doença e contrária às recomendações da OMS. Durante uma entrevista coletiva em 06 de abril do corrente ano, o ex-ministro utilizou a expressão “inimigo” numa tentativa de minimizar a crise estabelecida entre o Ministério da Saúde e a Presidência, bem como a usou como apologia às atitudes controversas do chefe do executivo no combate à doença.

O Presidente, em consonância com os interesses necropolíticos2, privilegiando o mercado ao invés da vida, fez críticas explícitas ao isolamento social como método para conter a contaminação. Ainda, o chefe do executivo minimizou os efeitos da volta às aulas negligenciando o fato de as escolas concentrarem parte da população considerada vetor do vírus (crianças e jovens), incitou a desobediência às condutas sanitárias à prevenção da disseminação do vírus Sars-cov-2, sem que o Sistema Público de Saúde do Brasil estivesse preparado para receber todos os casos de doentes. Numa postura genocida, o Presidente expôs a saúde da população em risco ao sair, várias vezes pelas ruas, em ascendente fase de contaminação pelo vírus da Covid-19 (LEHER, 2020; APÓS[...], 2020).

Para problematizar a temática contemporânea, tomamos emprestado como recurso metodológico o termo ‘história do tempo presente’ para delimitar a repercussão da história vivida pela sociedade brasileira, após a globalização da doença que surgiu na China no final de 2019. De acordo com Delgado e Ferreira (2013, p. 25), por ser um campo científico singular, a história do tempo presente se caracteriza por se reescrever continuamente, dada a dinâmica do evento que ainda se processa na presença de suas fontes históricas vivas e, por isso, justificamos o seu uso como aporte metodológico. Destarte, o tempo presente é passível de alterações em seu curso conforme as ações dos sujeitos e as intenções das fontes e, ainda, inclui diferentes dimensões, tais como:

[...] processo histórico marcado por experiências ainda vivas, com tensões e repercussões de curto prazo; um sentido de tempo provisório, com simbiose entre memória e história; sujeitos históricos ainda vivos e ativos; produção de fontes históricas inseridas nos processos de transformação em curso; temporalidade em curso próximo ou contíguo ao da pesquisa. (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 25).


Nesse sentido, a história em curso mostrou que em poucos meses a pandemia vem provocado intensas transformações nas relações políticas e econômicas mundiais, alterando a dinâmica produtiva dos países, provocando novas formas de sociabilidades no planeta e revelando o caráter insustentável da atual fase do capitalismo. No Brasil, o novo coronavírus amplificou as consequências nefastas do estado-mínimo implantado por Fernando Henrique Cardoso em 1995 com o Plano Diretor da Reforma do Estado3.

Para a construção reflexiva dessa temática, pautamo-nos no materialismo histórico e dialético. O referencial teórico metodológico se explicita ao longo do texto por meio de categorias fundantes desta epistemologia, tais como: alienação, causalidade, concreto pensado, contradição, dialética, luta de classes, mais valor, meios de produção, mercadoria, objetivação, prévia ideação, segregação, subsunção, superexploração, entre outras. Destacamos a centralidade do trabalho como eixo de nossa compreensão de sociedade. O uso das categorias sustenta nossos argumentos e contextualiza as contradições explicitadas na territorialização da pandemia na composição do necroestado e não temos, por isso, a pretensão de aprofundarmos epistemologicamente nelas.

Importante também destacar que as expressões educação a distância, remota, digital, online, Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e congêneres serão utilizadas no texto, meramente como recurso facilitador para a limitação da modalidade improvisada de educação4, problematizada neste texto. Por discutir a precarização do trabalho docente, a superexploração do trabalho por meio da tecnologia substitutiva do trabalho vivo e a utilização da força de trabalho não paga da família no processo educativo formal e, assim, a educação na pandemia produzindo mais valor, justificamos que a discussão aqui apresentada está em consonância com as reflexões do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia e Educação (GPEDE), da linha de pesquisa Trabalho, Sociedade e Educação (LPTSE) do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (PPGED/FACED/UFU).

Assim posto, e com o aporte teórico-metodológico, este texto objetiva contextualizar como a doença global Covid-19 se territorializa no Brasil, em pleno processo de desmonte dos direitos sociais, de precarização da educação pública gratuita e de qualidade indicam a configuração de uma nova morfologia do trabalho e do processo ensino-aprendizagem na história do tempo. Nesse sentido, esmeramos em discutir a implantação aligeirada da educação remota como uma ferramenta importante para agilizar os interesses neoliberais e para fazer da modalidade uma mola propulsora da contrarrevolução preventiva (FERNANDES, 1975) e da manutenção dos interesses da classe hegemônica.


1. O caráter geopolítico da pandemia: a doença globalizada

Desde a sua descoberta em novembro de 2019, em Wuhan na China, até a declaração da OMS em 11 de março de 2020, em que o avanço da contaminação para além das fronteiras chinesas se tratava de uma epidemia global, as relações geopolíticas e geoeconômicas dos principais centros produtivos do capitalismo e das remotas cidades dos países periféricos estão vivendo uma crise de proporções incalculáveis e que denuncia as contradições do modo de produção hegemônico de escala global.

Contraditoriamente, a República Popular da China, berço da pandemia Covid-19, com suas políticas públicas eficazes e eficientes de isolamento, converteu o avanço da doença no interior do país em estabilização do processo de contágio. O investimento do governo comunista em Ciência e Tecnologia e em educação e saúde foi capaz de conter os impactos da doença em território chinês. Seu parque industrial robotizado estava preparado para o enfretamento da crise sanitária-econômica-social e a produção a atender o mercado interno. Além disso, a China se destaca como fornecedora de produtos médicos à contenção da doença no mundo (YOSHIDA et al, 2020). Tal fato revela um escape ao soerguimento da estabilidade e fortalecimento da economia chinesa em meio à catástrofe humanitária global e ao crescente receio das potências capitalistas em relação à perda da hegemonia econômica, especialmente os Estados Unidos, seu principal opositor na guerra comercial mundial.

O contágio planetário está intimamente ligado às viagens internacionais de interesses distintos, realizadas por milhares de pessoas por meio das empresas de serviços aéreos e marítimos, tais como: viagens turísticas; transporte de mercadorias; produção e divulgação de pesquisas científicas e acadêmicas; campeonatos esportivos e similares; cuidado à saúde em centros hospitalares mais modernos etc. Contudo, os mais representativos fluxos dessas viagens são aqueles intrínsecos à Divisão Internacional do Trabalho (DIT), como: realização de acordos políticos e comerciais entre países; transações financeiras de interesses comerciais entre corporações; o transporte de mercadorias, especialmente produtos primários dos países periféricos aos países mais ricos e o transporte de mercadorias industrializadas/processadas/de alta tecnologia das potências capitalistas para as periferias econômicas, sendo estas últimas imprescindíveis para o capitalismo desigual, contraditório e combinado, conforme nos ensina Ianni (1998) ou de economia dependente, como trata Marini (1973) na sua tese sobre a Dialética da Dependência.

Para além desta origem sistêmica da dinâmica geográfica da contaminação, a pandemia está expondo o caráter necrótico do Estado Mínimo, ou melhor, do Estado Nano5 fundamentado pelas políticas neoliberais dos últimos trinta anos. Utilizamos o neologismo Estado Nano por ser a expressão que mais agrega as características da extrema diminuição da presença do Estado nos setores de atendimento ao público, no que tange aos direitos essenciais à vida e na regulação das atividades econômicas dos países.

No estágio mais neoliberal da sociedade globalizada, direitos essenciais de garantia da dignidade humana como assistência à saúde, à alimentação, à segurança e à educação se transformaram em mercadorias. Atendendo às recomendações de organismos supranacionais que regulam as políticas sociais e o capitalismo financeiro no mundo como, o Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID), o Banco Mundial (BM), a  Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), a União Europeia (UE), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), entre outros, os sistemas de saúde e de assistência social foram entregues à inciativa privada e se tornaram mercadorias, cujo direito de consumo se resume ao público que possui condições financeiras de comprá-las, baseado no valor de troca na relação mercadoria e dinheiro. Como no capitalismo a divisão de classes sociais é um marco, a classe burguesa permaneceu tendo acesso aos serviços de melhor qualidade (ANTUNES, 2018; FREITAS, 2018).

O colapso nos sistemas de saúde dos países do Velho Mundo, por efeito da falta de estrutura adequada para atender à demanda de infectados pela doença, associado à demora de tomada de decisões dos líderes mundiais na contenção da pandemia em seus territórios demonstra a priorização dos lucros em detrimento das vidas, neste grave momento de crise sanitária mundial. O contágio globalizado mostra que as bases do neoliberalismo estão ruindo, mas não pelos movimentos sociais de resistência, não pelas ações do pensamento político de esquerda pelo mundo, não pela bolha criada pelo capitalismo financeiro. A economia prevalecendo sobre as vidas está ruindo pela força da natureza invisível que procurou um hospedeiro, a humanidade, para se multiplicar. A relação homem e natureza, tão contida nas análises da Ciência Geográfica, demonstra que o avanço do meio técnico científico informacional no contexto da globalização (SANTOS, 1996) ou do universo informacional-digital (ANTUNES, 2018) não ficou imune à força da natureza sobre a vida humana na Terra. Esta força acabou ditando um novo comportamento humano em nível planetário. Neste sentido, destruir a natureza de forma catastrófica e virulenta constitui-se uma máxima na qual o homem está em último lugar.

O agente patogênico multiplicou o seu exército em escala exponencial, ocupando os corpos que compõem as diferentes classes sociais: dos trabalhadores, força produtiva que move os meios de produção e da elite política/econômica do mundo capitalista, e ambas as classes ficaram reféns do desconhecido e imprevisível agente biológico. O Estado, frente à crise, assumiu o ônus das privatizações neoliberais genocidas que não garantiram o bem estar social da massa populacional. Os governos nacionais agora se deparam com uma realidade em que a ciência e a tecnologia privadas não investiram na produção de reserva de equipamentos sui generes para catástrofes humanitárias como a pandemia.

Nesse ínterim, poucos países se prepararam para enfrentar a crise6. Entre as ações no continente europeu destacamos a Alemanha. Este país investiu em um pacote bilionário de euros para salvar a população da crise7. Na Ásia, a China continuou a fortalecer sua hegemonia tecnológica e econômica e ampliar a dependência dos demais países quanto a sua produção, especialmente aquela voltada à saúde. Diferente desses países, com a Covid-19 as demais nações colheram o efeito da mesquinha realidade burguesa, cujo mercado e os parques industriais se preocuparam sempre em atender o fetiche das mercadorias e estas alheias as verdadeiras necessidades humanas (MARX, 2017).

Acirrando esta crise no Brasil, a volta à barbárie temida por Adorno (2003) ressurge nos discursos do governo fascista liderado pelo Presidente Bolsonaro, incitando trabalhadores a voltarem aos seus postos para que o ciclo produtivo do capital não cesse, mesmo que isso custe a vida dos trabalhadores ou a vida de seus familiares. É previsto que, por causa da precariedade do sistema público de saúde brasileiro, a volta prematura às atividades laborais que reúnam pessoas reverberará no caos, ainda maior, caso estas pessoas sejam contaminadas pelo novo vírus.

A barbárie está se refletindo, também, na morosidade e até mesmo na ausência do Estado para minimizar os impactos sociais causados pela necessidade do isolamento social para refrear a contaminação pelo coronavírus. No tempo presente da pandemia, os estudantes e as famílias de baixa renda estão isolados em suas casas em situações adversas. Crianças e jovens de baixa renda, privados da alimentação diária escolar e submetidos a uma educação precarizada remota. Pais e responsáveis privados dos postos de trabalhos já precarizados, à mercê da falta de política pública assistencial e preventiva eficiente para a manutenção da dignidade humana.

Para Adorno (2003) a barbárie existirá enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. Estas condições podem ser desde as condições psicológicas latentes em possíveis algozes ou mesmo condições de “ausência de compromisso” daqueles que deveriam zelar para que o mundo e as pessoas sejam melhores. Neste sentido, o Estado e suas respectivas Secretarias de Educação têm acirrado os conflitos naturalizados na docência. Estresse, desgaste mental, sensação de incompetência profissional, responsabilização aos professores em sua formação continuada e em serviço em virtude da transfiguração da residência em permanente sala de aula ou em secretaria, somaram ao medo da nova vilã do adoecimento do século XXI – a Covid-19 – e a outros tantos aspectos que denunciam a desvalorização e a precarização do trabalho docente.

A pressão para voltar ao trabalho, a morosidade perversa do Estado em políticas sociais emergenciais, a responsabilização dos professores e da família pelo resultado da educação nos próximos meses e o adoecimento provocado pela modalidade improvisada de ensino exemplificam a dialética do tempo presente e contextualizam a síntese de Ribeiro (2018, p. 24) que no capitalismo

[...] o povo, a gente comum, os trabalhadores são tidos como uma mera força de trabalho, destinada a ser desgastada na produção [...]massa energética desgastável, um carvão humano que se queima na produção” que se destina a ser consumida e eliminada.


A banalização da educação a distância, abraçada oportunamente pelo Estado Neoliberal, ocorre à custa da “desantropomorfização”8 da docência, ou seja, na despersonificação do trabalho social docente e discente na produção do saber. A ausência de contato físico no processo de ensino-aprendizagem e a sobrecarga de trabalho morto aos sujeitos envolvidos nesse modelo educacional são transformadas em mais valor para o próprio Estado e, sobretudo, pelos donos do conhecimento (grandes corporações ou agentes individualizados) que produziram os algoritmos como força motriz das plataformas digitais de ensino remoto, ou ensino remorto9.

2. A educação pública como alvo dos oportunistas

No Brasil, poucos dias após a divulgação dos primeiros casos de contaminados pelo vírus foram suficientes para que crises políticas entre as diferentes esferas de poder se acirrassem e o debate entre salvar vidas ou salvar o lucro dividisse a opinião de diferentes segmentos da sociedade civil.

Com a suspensão das aulas presencias como estratégia para conter a transmissão do vírus na sociedade, tanto nas escolas dos centros populacionais mais dinâmicos como nas cidades mais remotas no interior do Brasil, a recomendação do isolamento social desencadeou uma discussão sobre a relevância do papel dos professores no processo educativo e a necessidade irrevogável da formação qualificada para os usuários de plataforma de ensino a distância. Como reflexo, especialistas em Educação, especificamente aqueles devotados ao Ensino a Distância (EAD) como modalidade de ensino, portanto dotada de currículo próprio e de suas epistemologias próprias, iniciaram as críticas a este neoensino à distância, baseado apenas na capacidade dos sujeitos alimentarem com tarefas escolares os ambientes virtuais.

A situação inusitada de confinamento em massa como estratégia de controle sanitário despertou na sociedade brasileira a discussão sobre a respectiva divisão social do trabalho nos diferentes espaços produtivos da sociedade capitalista, especialmente nos lares que mudaram repentinamente sua dinâmica cotidiana. O debate de quem deve ficar em casa e quem deve sair para continuar expondo seu único bem produtivo – a força de trabalho - invade as conversas nas redes sociais (espaço livre para aglomeração virtual de pessoas) e revela a condição de alienado do proletariado oprimido, resultando em algo que é extremamente vital para a classe hegemônica: a divisão da classe dentro da mesma classe de trabalhadores (LESSA; TONET, 2011).

Somando-se a este conflito na classe, outras intempéries sociais também eclodiram no interior dos núcleos familiares no período de excepcionalidade global. Pais e responsáveis, sobretudo avós e as mães assumiram, cumulativamente, mais papéis sociais. Mulheres trabalhadoras - mães, cuidadoras, cozinheiras, lavadeiras e domésticas nas funções inacabáveis do lar - adquiriram a quarta jornada de trabalho: a de tutora educacional.

A educação a distância instituída, a toque de caixa10, pelas secretarias de educação, sem planejamento e sem o consentimento dos professores e da comunidade escolar, tem provocado verdadeira contrarrevolução educacional em nosso país. As famílias, e em especial as mães afastadas de seu emprego, foram responsabilizadas a tutoriar seus filhos, em idade escolar, de maneira a cumprir o conteúdo programático previsto no currículo escolar e nas avaliações internas e externas que gerenciam o rendimento acadêmico dos alunos.

O resultado da improvisação tecnológica será a responsabilização aos professores e às famílias quanto à precarização do ensino e pelo não zelo da performance produtiva da aprendizagem dos alunos em casa. Essa performance é materializada nas avaliações externas, padronizadas, que taxonomizam o domínio de conteúdos mínimos. Tais avaliações são objetivadas pelas políticas de controle de qualidade da educação, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), em consonância com os interesses das agências internacionais (BID; BM; CEPAL; FMI; OCDE; UE; UNESCO; e outras) e da sociedade civil representada por empresas que, desde o Movimento Todos Pela Educação em 200711, miraram no setor educacional como campo de exploração no mercado consumidor e financeiro (SAVIANI, 2007).

Para Fernandes (1975) a contrarrevolução se revela quando as ações do Estado atendem a fins privados e não têm o propósito de garantir ou proteger a educação como direito, mas como serviço, dedicando-se à permanência dos anseios capitalistas. Assim, a educação online e o trabalho individualizado sem a decisão da comunidade escolar favorece a desmobilização social em tempo de tensão pandêmica, e fortalece o solapamento do caráter revolucionário da educação que poderia atacar os interesses conservadores da sociedade.

Em concordância com o checklist elaborado pela OCDE (2020) que orienta os países a tomarem providências quanto ao impacto da pandemia da Covid-19 na educação, sobretudo a educação básica, autoridades educacionais, de todo Brasil, rapidamente, adaptaram estratégias para manter produtivas as atividades escolares durante o avanço da doença no país. Para a OCDE (2020, p. 7): “Os líderes educacionais devem adotar uma abordagem proativa para contribuir para a mitigação do impacto da Pandemia e para prevenir a perda de aprendizagem durante o período de distanciamento social necessário.”

No Brasil, a tomada de decisão aligeirada, baseada no checklist, esbarra em um contraditório fato: o acesso às TICs depende das condições socioeconômicas das famílias. De acordo com os dados de 2018 do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), quanto menor a renda da família, menor o uso de diferentes equipamentos eletrônicos para acessarem a internet: “Entre a população que tem renda familiar de até 1 salário-mínimo, o uso exclusivo do celular atinge 78% dos usuários, com 19% usando computador e celular.” (LAVADO, 2019).

As pesquisas do CETIC (2018) revelam que 30% da população brasileira não têm acesso nem a computador e nem a internet. Por isso, é relevante chamarmos a atenção para o que parece privilégio, no pseudo acesso à democratização tecnológica e ao mundo informacional, trata-se da segregação digital, um espectro da luta de classes da sociedade capitalista. Enquanto os filhos pobres estudam exclusiva e precariamente em equipamentos inapropriados à interatividade de qualidade, os filhos ricos seguem caminhos opostos. Sem contar que a segregação digital e o acesso ao ensino remoto se aviltam quando verificadas as condições sobre a qualidade dos serviços de dados (banda larga, internet 3G, 4G etc.) a que o alunado tem acesso.

Esse modelo de educação sugerido pelo organismo internacional, que prioriza a relação família e escola no processo de aprendizagem dos filhos, seria menos trágica se todos os responsáveis pelas crianças em casa tivessem domínio do conhecimento escolar para as tarefas escolares, propostas digitalmente pelos professores por meio de plataformas de ensino remoto. Tendo em vista que no Brasil as crianças em isolamento social, especialmente as crianças oriundas da escola pública historicamente preterida de políticas públicas eficazes, ficam sujeitas as serem instruídas por seus responsáveis que têm dificuldades de ler, compreender e interpretar um simples enunciado de uma questão voltada para o ensino fundamental das séries iniciais. Isso pode ser deduzido, pois, segundo os dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a maioria da população que constitui a classe trabalhadora menos abastada, acima de 25 anos, possui apenas o ensino fundamental completo ou equivalente, ou são analfabetas funcionais. Conforme o IBGE

[...] em 2018, 48,1% da população de 25 anos ou mais de idade estava concentrada nos níveis de instrução até o ensino fundamental completo ou equivalente; 27% tinham o ensino médio completo ou equivalente; e 16,5%, o superior completo. (IBGE, 2018).


Na figura 1, ao observarmos as colunas do gráfico classificadas como sem instrução, fundamental incompleto, fundamental completo e médio incompleto, concluímos que mais de 52% da população não concluiu a educação básica.



Figura 1 – Dados oficiais do IBGE sobre o nível de escolaridade brasileira

com 25 anos ou mais. Fonte: IBGE (2018)


Os dados do gráfico justificam nossa crítica quanto à relevância da educação mediada por tecnologias no período de pandemia e sobre as possiblidades desse modelo de educação em casa conseguir o êxito no processo de aprendizagem dos conteúdos previstos nos currículos escolares da educação básica, especialmente no ensino fundamental e educação infantil.

Esse processo de ensino injetado à massa populacional em idade escolar, longe de ser um salto tecnológico na educação para o futuro, materializa a forma subsumida de ensinar com o auxílio de smartphones e engendra um fosso entre educação e transformação social. O uso irrefletido da ferramenta e das plataformas digitais, adotada de cima para baixo pela caneta dos governantes e substitutivas das atividades docentes presenciais, em tempo de Estado Nano, manifestam-se com o propósito de manter produtivo o calendário escolar e intocável o parco recurso financeiro pré-determinado no orçamento do Estado.

Esta desventura educacional amplia o papel do Estado em negar a educação enquanto direito constitucional e constitui o retrocesso político emancipatório que a educação escolar pode e deveria produzir na sociedade. Mudança essa em que alunos e professores, por meio da educação, poderiam transformar a sociedade capitalista em uma nova sociedade pautada na igualdade e emancipação dos sujeitos. Nesse sentido, a propositura de uma educação a distância, especialmente ao público da educação básica, demostra a contradição entre o discurso do Estado brasileiro e os decretos governamentais para a adesão compulsória do trabalho digital pelos professores. De acordo com Educa IBGE o objetivo do Estado para a educação brasileira:

O acesso à Educação de qualidade é direito fundamental para o desenvolvimento da cidadania e ampliação da democracia. Os investimentos públicos em educação são de extrema importância para a redução da pobreza, criminalidade e ampliação do crescimento econômico, bem-estar e acesso aos direitos fundamentais pela população (IBGE, 2018).

Em poucas semanas percebemos que o projeto de flexibilização das atividades docentes e de processos formativos da educação básica na escola pública caminha paulatinamente para uma nova morfologia da sociedade: toyotista. Para Lucena (2004, p. 111-112),

o ponto essencial do toyotismo é a flexibilização do aparato produtivo e dos direitos dos trabalhadores. Esse sistema é estruturado por um número mínimo de operários, [...] eles vendem sua força de trabalho em condições precárias. [...]. São jornadas de trabalho em que as força vitais dos operários são exauridas até o limite. [...] Esse aumento do ritmo e das horas de trabalho aponta ganhos de produtividade que não são transferidos proporcionalmente para os salários. [...]


No caso específico desse modelo de sala de aula em plataformas digitais, professores e famílias ampliam a possibilidade de redução de investimento na educação e, portanto, ampliando a eficiência econômica do modelo. O professor em casa se esmera em planejar, pesquisar, acessar plataformas diuturnamente sem receber horas extras, enquanto pais/responsáveis tutoram as atividades dos alunos sem o mínimo investimento formativo do Estado. A atuação da família nesse momento histórico de pandemia representa a mais efetiva exploração do mais trabalho pois ela não é paga, ao contrário. À família coube o ônus de se instrumentalizar com recursos pedagógicos em casa e se tornou em eficiente protótipo no processo de desoneração do Estado na promoção da educação.

Assumindo tais tarefas sem se rebelar ao modelo de educação remota, professores e família abrem as portas para a precarização ainda maior da qualidade da aprendizagem dos alunos. A lousa agora passa a ser, para o aluno, a tela dos equipamentos eletrônicos, majoritariamente os smartphones, em que professores enviam suas atividades diariamente por meio de plataformas digitais disponíveis na internet, ou pelos grupos de redes sociais, para que sejam lidas e copiadas. No caso da educação básica, esta nova morfologia do trabalho docente está compactuando com um processo de precarização ainda maior na formação das crianças quanto ao acesso aos conteúdos curriculares. Pais e, ou, responsáveis desses alunos estão substituindo, de maneira subsumida, a atuação pedagógica do professor em sala de aula pela tutoria da reprodução técnica de tarefas escolares.


3. A nova morfologia do trabalho docente na educação remota improvisada

A nova morfologia do trabalho do século XXI se caracteriza por uma geração de homens e mulheres que, na luta pela sobrevivência, reifica sua condição de força produtiva à superexploração do trabalho, segundo o conceito de Marini (1973), aumentando sua capacidade produtiva com o menor recebimento possível de sua hora despendida à realização da tarefa. A isso, segundo Marx (2017), associamos à exploração do mais-valor e elevação exponencial do lucro dos donos do meio de produção. Para análise deste texto, o mais-valor está na exploração do docente em trabalho remoto, em sua residência, arcando com seus próprios recursos com todos os instrumentos tecnológicos para acessar as plataformas digitais e realizarem sua docência. Associado a isso, a tutoria dos pais e responsáveis torna ainda mais marcante o desinvestimento do Estado na qualidade da educação e reforça, no presente, que a educação não é prioridade.

Professores subsumidos estão permitindo a perda do significado do trabalho docente e da importância da prática pedagógica como prática política emancipatória proposto por Saviani (2011). Ao assumir as plataformas digitais como espaço de ensino, a categoria docente está subsumindo aos interesses hegemônicos em dividir a sociedade entre os instruídos e os intelectuais.

Aproveitando-se da Pandemia e, logo, do confinamento em massa de alunos de novos níveis educacionais no Brasil, os donos das tecnologias de algoritmos que já há algum tempo disponibilizam na rede mundial de computadores as ferramentas digitais como instrumento de ensino, estão acelerando o processo de substituição do trabalho produtivo do professor. Essa invisibilidade do substitutivo da escola como lócus de aprendizagem e sociabilidade entre os sujeitos, processo estendido a todos os estados brasileiros, caminha a passos largos para concretizar o interesse neoliberal de Estado Nano, que é o de tornar o direito à educação pública, gratuita e de qualidade em coisa de pouco valor, em um objeto depreciado. A educação se transfigura em uma mercadoria deformada que oferece riscos reais à formação do sujeito que a consome. O risco está na aquisição de um conhecimento estrangulado e pela ausência de uma didática mediadora que torne o aluno capaz de refletir e problematizar sobre a realidade imediata em que vive e, assim, chegar à síntese da realidade concreta pensada. Diante desse contexto, a alienação do indivíduo é o resultado latente da sociedade de classe, dominada pelo modo de ser hegemônico da nova/velha burguesia do país.

Em consenso com o pensamento marxiano, percebemos que a educação precarizada, e para atender o mercado como prévia ideação do pensamento capitalista em países de economias agroexportadoras como o Brasil, ganha forças com a causalidade, a pandemia. A educação, pela causalidade, é entregue ao mercado de forma acelerada e sem a participação democrática das instituições de ensino, conforme os interesses do Estado Nano. A objetivação pelo capitalismo neoliberal, o enxugamento dos gastos do Estado na educação, efetiva-se paulatinamente na medida em que se estende a necessidade de salvar vidas com a extensão dos dias de isolamento social.

Em outras palavras, a ideia que é objetivada se transforma em objeto. O novo objeto se converte em parte da causalidade e passa a sofrer influências e a influenciar a evolução da realidade da qual é parte. Ao fazê-lo, é submetido a uma relação de causas e efeitos que impulsionam a sua evolução com autonomia frente à consciência que a idealizou (LESSA; TONET, 2011, p. 31).


Outro risco que se acentua nesse modelo improvisado de educação por meio de plataformas digitais está na fatídica estratégia do Estado e do mercado em culpar os professores por eles não promoverem uma educação de qualidade. As plataformas são a materialização do gerenciamento do processo de ensino e do trabalho docente. Com elas, o monitoramento da produtividade do trabalho do professor e dos conteúdos desenvolvidos são facilmente fiscalizados. A ferramenta digital se torna, assim, um importante instrumento de controle da prática docente no sentido de atender os documentos que norteiam os direitos à aprendizagem12 dos alunos, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e respectivos documentos elaborados pelos estados da federação para a implantação da Base em todas as escolas do território brasileiro. Nesse contexto, a docência em tempo de pandemia reforça o modo toyotista de trabalho do professor, caracterizado por uma “ruptura com o padrão fordista e gerando um modo de trabalho e de vida pautados na flexibilização e na precarização do trabalho.” (ANTUNES, 2018, p. 41).

Segundo Lucena (2004, p. 111) o Toyotismo, em termos de ganhos de produtividade, baseia-se na ausência do conflito de classe. Partindo dessa reflexão, podemos dizer que a necessidade de isolamento social para a manutenção da vida é ferramenta apropriada para manter o controle do trabalho individualizado e evitar sociabilidades motivadoras de possíveis críticas às exigências do estado gerencialista. O uso das TICs, mercadoria fetichizante, passa a ser assumida como espectro da modernização da docência e o trabalhador, ora encantado pela técnica, ora sobrecarregado pelo trabalho alheio à sua função principal – mediar o processo de ensino-aprendizagem – não percebe que o “[...] capital põe o sistema em funcionamento e eleva a produtividade. O trabalho desenvolve uma maior responsabilidade e polivalência elevando a produtividade. [...].”

A subsunção da categoria atendendo às normativas do trabalho remoto, aula online, teletrabalho, expressões vinculadas à educação improvida e a distância manifesta a epifania alienada frente à tecnologia. Ao aceitarmos o programa de educação remota sem planejamento como alternativa para manutenção do ensino, sem a consultoria democrática dos professores, e a máquina como uma ferramenta auxiliar ao intelecto humano não estamos atentos ao que está se arquitetando é a diminuição ou a substituição do ser humano como mediador do processo de conhecimento.

Assumindo sem reflexão a tarefa de alimentadores das plataformas digitais, os professores e alunos deixam de ser o centro do processo de ensino-aprendizagem e passam a ser apêndices das máquinas eletrônicas que fornecem dados para serem gerenciados pelos aplicativos. Em conformidade com as reflexões de Engels (1979) ao invés de o ser humano ditar o ritmo da máquina, a máquina passa a ditar cada vez mais a produtividade do ser humano.


Para não concluir...

A história do tempo presente nos revela um objeto de estudo potencialmente destruidor das normalidades próprias do capitalismo. Na fase em que a sociedade colhe os frutos amargos do avanço de exploração do homem pelo homem, o modo de produção capitalista se fortalece com o desenvolvimento do teletrabalho/home office/trabalho remoto e suas versões em diferentes frentes de trabalho.

O professor não deveria ser um escravizado digital. A educação a distância, na sua forma mais precarizada e estandardizada, no momento da maior crise do capitalismo depois da Grande Depressão de 1929, encontra a oportunidade de que precisava para se expandir e atender às exigências dos interesses das diferentes corporações privadas que fizeram da educação uma mercadoria. A contaminação da população mundial pelo novo coronavírus acontece, concomitante, com o avanço devastador da substituição do trabalho produtivo pelo trabalho improdutivo, oriundo da “introdução do universo informacional-digital” (ANTUNES, 2018, p. 27) como ferramenta de trabalho.

O trabalho é um valor que não pode conviver com uma lógica destrutiva que enriquece a extrema minoria da sociedade. A auto-organização popular e coletiva deveria reacender no seio dessa sociedade, nessa crise sanitária-econômica-social histórica da sociedade capitalista que, no Brasil, desde 2016 com o golpe jurídico-midiático-parlamentar (SAVIANI, 2018) tem se caracterizado por uma plêiade de políticas públicas contrarrevolucionárias preventivas cada vez mais genocida.

O confinamento compulsório como estratégia de controle do colapso do sistema se saúde pública demonstra o quão importante é a ação coletiva para a conquista de objetivos comuns e à manutenção da vida na Terra. A postura solidária focada pela presença do inimigo invisível comum numa sociedade dividida em classes como na capitalista brasileira, experimenta a necessidade de mudanças de hábitos e costumes de exploração do homem pelo homem. A partir desse experimento, temos uma condição histórica sine qua non para sindicatos e coletivos de diferentes categorias colocarem em xeque mate a barbárie prolongada do capitalismo e lançarem as bases para uma nova sociabilidade humana, o socialismo.

A fonte de inspiração para este movimento de catarse (SAVIANI, 2011) vem da própria história da burguesia hegemônica e opressora que se solidificou como classe detentora das decisões políticas e econômicas nos séculos XVIII e XIX. Organizada contra um modo de produção decadente e hegemônico que a oprimia durante séculos, a burguesia, como classe, protagonizou a Revolução Francesa e Revolução Industrial na Europa e derruba por terra os resquícios da sociedade feudal. Ela inaugura, portanto, o modo de ser e pensar burguês que perdura até os dias contemporâneos. (LESSA; TONET, 2011).

Assim, como a burguesia construiu sua hegemonia e sendo a história da humanidade dinâmica, construída socialmente pela humanidade, poderia agora os representantes do proletariado, entre estes os docentes, mudar o modo de ser capitalista (engendrado pelo modo burguês de ser individualista, competitivo e perverso) pelo modo de vida mais comunitário e sem as amarras da nefasta divisão de classes. No tempo presente, percebemos a tendência da individualização cada vez maior dos sujeitos, mantendo a lógica da reprodução social para o capital. Esta lógica, na perspectiva do pensamento revolucionário, pode ser combatida por uma nova sociabilidade política capaz de derribar o fortalecimento do capital em detrimento da vida e do trabalho humano.

Em síntese, o evento global, causado pela Covid-19 e que marca profundamente as duas décadas do século XXI, permite-nos destacar alguns pressupostos: desnuda os desajustes insustentáveis e dialéticos do modo de produzir e viver no capitalismo; revela a crise profunda desse modo de produção hegemônico há cerca de dois séculos; a revolução da natureza contra as forças destrutivas da sua apropriação privada pelo capital; o isolamento social e o home office fortalecem a contrarrevolução educacional; desponta o domínio do gerenciamento do currículo mínimo no processo ensino-aprendizagem remoto na nova relação família-escola; substituição do ser humano como mediador do processo de ensino-aprendizagem por uma nova lógica de educação, adentrando o trabalho morto aos domínios dos processos de conhecimento; acirra a segregação sócio digital no campo educacional; desnuda a incapacidade e ineficiência do Estado Nação e o Setor de Ciência e Tecnologia no atendimento às questões vitais da sociedade; escancara o caráter genocida do Estado Nano do governo de Jair Bolsonaro, que abre as portas à barbárie humana e se fortalece com o avanço do neoensino remorto na educação brasileira.

Enfim, não com o intuito de concluir, o objeto em discussão na história do tempo presente Covid-19 engendra em conluio com as incertezas dos desdobramentos da crise mundial, o avanço de uma nova sociabilidade do trabalho na educação e acumulação privada da superexploração da docência.


Referências


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SOBRE OS AUTORES



PAULA JUNQUEIRA DA SILVA é mestra em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), membro do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia e Educação (GPEDE).

E-mail: paula.junqueira@ueg.br



ANTONIO BOSCO DE LIMA é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), coordenador do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia e Educação (GPEDE). Realizou estudo pós-doutoral na área de concentração História, Filosofia e Educação, na UNICAMP, e em Teoria e Fundamentos da Educação, na Universidade Federal de São Carlos (UFSC).

E-mail: boscodelima@gmail.com




Recebido em: 01.06.2020

Aceito em: 09.08.2020


1 Apesar do embate político com o presidente Jair Bolsonaro durante a crise do coronavírus, o ex-ministro sempre defendeu a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS), demonstrando

o seu alinhamento ao projeto neoliberal de mercantilização do atendimento à saúde. Veja na reportagem: https://www.esquerdadiario.com.br/Mandetta-defensor-da-privatizacao-do-SUS-e-demitido-por-contrariar-negacionismo-de-Bolsonaro.

2 Termo de autoria do filósofo e cientista social camaronês Achille Mbemb publicado pela primeira vez em 2003 em um ensaio na revista americana Public Culture. Para o filósofo a necropolítica pode ser definida como a racionalidade da morte no avanço das forças hegemônicas. Para o autor, em nome da soberania, o Estado por meio de suas políticas decide quem vive em quem morre na sociedade do capital.

3 Sobre a reforma administrativa do Estado brasileiro verificar em Pereira (1997, p. 41).

4 A expressão modalidade improvisada de educação foi utilizada por Freitas em 07 de abr. de 2020. Disponível em: https://youtu.be/NELStqkmktY.


5 A expressão grega nanos significa ‘anão’. É utilizada como prefixo para compor palavras que caracterizam elementos da natureza em escala molecular e se refere à bilionésima parte de uma unidade de medida (x 10–9). (JURNO, 2016).

6 Segundo Almeida (2020, 172-173): “Parte da Europa amargou um colapso no sistema de saúde. Países como Itália e Espanha e França passaram a ter estatísticas devastadoras de mortes por falta de acesso aos leitos de UTI. [...]Ao longo dos meses, o novo epicentro mundial

da pandemia passou a ser os EUA, [...] isso acontece em uma população desprovida de sistema universal de saúde, e entre as vítimas, um alto índice de pessoas negras e latinas. [...] Na América Latina, o primeiro país a ter um colapso foi o Equador. As imagens de corpos nas ruas e sem uma ação de Estado [...]demonstraram a falta de estrutura médica dos países para suportar o impacto do Covid-19. No Brasil, a epidemia chegou em um dos momentos mais delicados de nossa democracia.”

7 Sobre esta informação verificar em https://brasil.elpais.com/internacional/2020-06-04/alemanha-gastara-130-bilhoes-de-euros-para-combater-crise-causada-pelo-coronavirus.html

8 Conceito de Györd Lukács na obra Per l’ontologia dell’essere sociale. A cura di Alberto Scarponi, Roma: Riuniti, 1981. Sobre o aprofundamento sugerimos Infranca (2014).

9 Neologismo usado para realçar o ensino precário baseado na exploração do trabalho morto, forjado pela necropolítica educacional improvisada do Estado, em plena ascendência dos contágios e mortes pela Covid-19. Tipifica também a estratégia adotada que negligencia as condições objetivas de ensino no ambiente doméstico, como: material didático adequado; alimentação saudável; condições sanitárias básicas para evitar o contágio pelo vírus; segurança quanto a possibilidade de violência doméstica etc.

10 De acordo com Ribeiro (2017) no Dicionário Online de Português a expressão se refere a “Executar uma tarefa de modo acelerado, às pressas; rapidamente, apressadamente” e sua origem “refere-se ao corpo oco do tambor, instrumento utilizado pelos chefes militares para orientar e comandar as tropas.”

11 Movimento empresarial surgido no Brasil após a ‘Conferência Mundial sobre Educação para Todos’, ocorrida na Tailândia em 1990, que inaugura o formato da educação neoliberal no país.

12 Termo oficial nos documentos da BNCC. Segundo Freitas (2018) é um conceito contraditório, pois faz referência ao direito de acessar a alguns conteúdos e não a obrigação do Estado em ofertar conhecimento sistematizado e historicamente produzido. O termo visa à formação ao mercado de trabalho e não para o trabalho como “[...] eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana.” (MARX, 2017, p.120).