EDUCAÇÃO POPULAR E CULTURA POPULAR: retomando o debate (EDITORIAL)
Universidade Federal Fluminense
Niterói, RJ, Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i12.42979
Este Editorial é dedicado a todas as trabalhadoras e a todos os trabalhadores que experienciam a superexploração do trabalho sob a atual crise do capital e a crise sanitária, que apresentam cenários dramáticos no mundo e no Brasil. Também a todas as mulheres que, nesse contexto de pandemia de Covid-19, passaram a enfrentar uma sobrecarga de trabalho (profissional, acadêmico, doméstico e tutora de ensino remoto), com o aumento exponencial da jornada laborativa, particularmente aquelas provedoras da família e que não contam ou nunca contaram com os serviços de empregados domésticos.
Resumo
Este texto resgata a memória da educação popular em períodos marcados pelo movimento cultural ocorrido de baixo para cima, no Brasil, entre final do século XIX e o final do XX, no bojo das modificações mais amplas da América Latina. De modo a cumprir com o desafio, parte do presente histórico, no contexto de crise do capital e de crise sanitária, evidenciando não apenas as contradições pelas quais opera o bloco dominante no poder, o seu caráter conservador, anticiência e fundamentalista, mas também a sua investida na produção cultural da ignorância. Em seguida, analisa a concepção de cultura à luz do materialismo histórico dialético de modo a capturar os conceitos de cultura popular e de educação popular que emergiram dos períodos de revolução cultural. Depois, a pergunta “Questão cultural ou opção política?” remete ao processo de colonização na América Latina para caminhar de volta ao presente, ao longo de centenas de anos marcados por lutas de classe, por diferentes formas de resistência e por laços de solidariedade que possibilitaram a formas de expressar a cultura, o processo de conscientização dos grupos subalternos por mediações da identidade de interesses comuns e da educação popular. À guisa da conclusão, aponta-se para o desafio da classe trabalhadora e do movimento popular de conduzirem o processo contra o conservadorismo e os monopólios.
Palavras-chave: Educação popular. Cultura popular. Revolução cultural. Lutas de classe.
POPULAR EDUCATION AND POPULAR CULTURE: recovering the debate (EDITORIAL)
Abstract
This text recovers the memory of popular education during a periods that has been marked by the cultural movement occurred between the mid/late 1890s and the mid/late 1990s, in Brazil, during the social and pollical movements in Latin America. In order to meet the challenge, it parts of the historical present, in the context of the capital crisis and the sanitary crisis, showing the contradictions around the dominant power bloc operates, its conservative, anti-science and fundamentalist character as well as its energies on the cultural production of ignorance. Then, it analyzes the conception of culture in the light of dialectical historical materialism in order to capture the concepts of popular culture and popular education that emerged from periods of cultural revolution. Then, the question “Cultural issue or political option?” refers to the colonization process in Latin America to walk back to the present, over hundreds of years marked by class struggles, by different forms of resistance and by ties of solidarity that enabled ways to express culture, the awareness process subordinate groups through mediations of the identity of common interests and popular education. As a conclusion, it points to the challenge of the working class and the popular movement to lead the process against conservatism and monopolies.
Keywords: Popular education. Popular culture. Cultural revolution. Class struggles.
EDUCACIÓN POPULAR Y CULTURA POPULAR: reanudando el debate (EDITORIAL)
Resumen
Este texto rescata la memoria de la educación popular en períodos marcados por el movimiento cultural que ocurrió de abajo hacia arriba, en Brasil, entre finales del siglo XIX y finales del XX, en medio de los cambios más amplios en América Latina. Para enfrentar el desafío, parte del presente histórico, en el contexto de la crisis del capital y la crisis sanitaria, mostrando no solo las contradicciones por las cuales opera el bloque dominante en el poder, su carácter conservador, anticientífico y fundamentalista, sino también su embestida en la producción cultural de la ignorancia. A continuación analiza la concepción de la cultura a la luz del materialismo histórico dialéctico para captar los conceptos de cultura y educación popular que surgieron de los períodos de revolución cultural. Entonces, la pregunta "¿Cuestión cultural u opción política?" se refiere al proceso de colonización en América Latina para retroceder al presente, a lo largo de cientos de años marcados por las luchas de clases, las diferentes formas de resistencia y los lazos de solidaridad que hicieron posibles las formas de expresión de la cultura, el proceso de concientización de los grupos subalternos a través de mediaciones de la identidad de intereses comunes y la educación popular. A modo de conclusión, señala el desafío de la clase obrera y el movimiento popular para llevar a cabo el proceso contra el conservadurismo y los monopolios.
Palabras clave: Educación popular. Cultura popular. Revolución cultural. Luchas de clase.
Introdução
Ora, pensar sobre educação popular obriga a uma revisão do sentido da própria educação (Carlos Rodrigues Brandão)1.
Nos dias que correm, experenciamos um mundo assolado pela pandemia, causada pela doença Covid-19, a qual infectou mais de seis milhões quatrocentas mil pessoas no mundo durante os últimos cinco meses e trouxe a morte de aproximadamente outras trezentos e oitenta mil. No Brasil, foram confirmados seiscentos e seis mil trezentos e quarenta e nove casos e trinta e três mil trezentos e setenta e nove2.
Independentemente da condição geopolítica e econômica de cada Estado, a Covid-19 apresenta caráter de classe em toda parte do mundo capitalista, pois que, ao engendrar a crise sanitária, manifesta-se nas seguintes contradições: capital, trabalho e educação; imperialismo e dependência; produção e destruição da natureza (incluído o trabalho vivo); produção, consumo e distribuição; desenvolvimento das forças produtivas, desemprego e formas precarizadas de trabalho; produção de riqueza e generalização da miséria; aumento do fundo público e expropriação dos direitos sociais e subjetivos; necessidade de produção do consenso e tomadas autoritárias de decisão.
A própria expansão do capital em sua desordenada e devastadora relação com a natureza vem agudizando permanentemente a possibilidade de pandemias, e já há uma enorme quantidade de estudos a esse respeito – confinamento animais, tratados com doses massivas de medicamentos; alteração do uso do solo e do ambiente por monoculturas gigantescas, massivamente impregnadas de agrotóxicos etc. Todos os dias as mídias proprietárias relembram das últimas grandes pandemias – Ebola, SARS, MERS, H1N1 etc., mas ‘esquecem’ de dizer que foram gestadas pelo próprio capitalismo (FONTES, 2020, p. 2).
Os dados mudam rapidamente e não expressam a realidade concreta. Em meio ao obscurantismo de governos como o estadunidense e o brasileiro, o futuro próximo é incerto. O Sistema Único de Saúde (SUS) mostra os seus sinais de esgotamento ante ao desmonte histórico e à recente Proposta de Emenda Constitucional nº 95. No entanto, antes mesmo da Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar a pandemia, pesquisadores brasileiros de universidades públicas, de Fundações de Apoio (FAPs estaduais), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – referência nas Américas no estudo sobre a Covid-19 –, e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas (INCTV) já vinham imprimindo esforços para responder às necessidades científico-tecnologias que exigem o combate à doença, como vacinas, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), kits de diagnósticos e respiradores mecânicos.
Importante ressaltar que nossas universidades mapearam o genoma do vírus (SARS-Cov-2) em menos de 48 horas, o que permitiu rastrear sua origem, as pssíveis mutações, e contribuir para melhor entendimento da dispersão do vírus e consequentemente da evolução da doença, Inclusive, fornecer parâmetros que pode nos ajudar no desenvolvimento de possíveis vacinais (FLAUZINO, 2020, p. 6).
No entanto, esses esforços operam sobre contradições entre capital (estatal e privado), trabalho e educação (formal e não formal), produção do conhecimento científico-tecnológico, folclore, religiosidade e senso comum, os quais se manifestam cotidianamente nas palavras do atual chefe do Poder Executivo, a exemplo da afirmação: “Não tem que se acovardar! 70% [da população] serão contaminados” (CORREIO BRASILIENSE, 2020).
Com essas palavras, Jair Bolsonaro banaliza a pandemia e desqualifica as orientações das autoridades (brasileiras e internacionais) no assunto quanto ao isolamento social, engendrando um dilema de cunho político, econômico e ideológico entre vidas e economia de mercado. Em outras palavras, o dilema afirma que uma classe deve trabalhar enquanto a outra precisa lucrar.
Estamos remetendo, pois, para um bloco de poder que expressa o movimento anticiência e o fundamentalismo religioso que, ao desafiar intelectuais singulares e coletivos de todas as áreas do conhecimento (Ciências Exatas e da Terra, Ciências Biológicas, Engenharia / Tecnologia, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, Ciências Sociais, Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes), engendra um movimento de “produção cultural da ignorância” (MIGUEL, 2020. Negritos meus).
Se, antes, esse movimento era estigmatizado e estava à margem da sociedade, nesse contexto ele está em espaços centrais nas tomadas de decisões. Tem sido crescente a presença desses indivíduos entre lideranças em diversos países. São pessoas que prezam por uma política que não é baseada em evidências científicas. Não se trata de um movimento homogêneo, mas de uma relação complexa de intensas disputas pela informação, na qual a ciência tem sido um dos alvos principais de ataques (OLIVEIRA, 2020).
Tal produção cultural da ignorância se desenvolve, com o apoio de intelectuais orgânicos do bloco de poder e aparelhos hegemônicos, em um movimento contínuo de “corrosão do caráter” (SENNET, 2012) e, sobretudo, de ataques à escola e à universidade públicas.
Uns empunham as bandeiras do governo ditatorial, empresarial-militar (1964-1985), ao exaltar torturadores em uma alusão ao anticomunismo. Outros fazem referências à ordem e ao progresso trazidos pelo “dia que durou 21 anos”, apoiando-se no tripé pátria, religião e família (burguesa-fordista). Há ainda aqueles que denunciam a corrupção sob a ética utilitarista. Todos, ao mesmo tempo, tornam notório seu ódio às minorias (mulheres, negros, índios, LGBTs). Todos vociferam contra o comunismo, aproximando-se da análise pró-capitalista de Hayek (1984) n’O caminho da servidão, além de empregarem palavras-chave como ideologia de gênero, doutrinação ideológica, marxismo cultural, alusivas à suposta escola neutra e sem escola sem partido.
O critério de verdade científica é posto de ponta-cabeça.
A produção cultural da ignorância tem como um dos mentores e guia do atual governo Olavo de Carvalho, autoproclamado filósofo, para quem os intelectuais da Escola de Frankfurt, como Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, tiveram a ideia de misturar Sigmund Freud e Karl Marx e teriam concluído “que a cultura ocidental era uma doença, que todo mundo educado nela sofria de ‘personalidade autoritária’, que a população ocidental deveria ser reduzida à condição de paciente de hospício e submetida a uma ‘psicoterapia coletiva’ (CARVALHO, 2002).
Estaria assim criado, segundo Olavo de Carvalho, o “marxismo cultural” que, depois de alcançar o objetivo de “destruir a confiança entre as pessoas e os grupos, destruir a fé religiosa, destruir a linguagem, destruir a capacidade lógica, espalhar por toda parte uma atmosfera de suspeita, confusão e ódio”, atribuiria a responsabilidade de todos os males, por ele causado, à direita e ao capitalismo.
Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do Ocidente [...] Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais das vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a virulência do seu conteúdo calunioso e perverso (CARVALHO, 2002).
De fato, entre outros intelectuais da Escola de Frankfurt, Hebert Marcuse recorreu aos estudos de Freud para a evidenciar a contribuição dos conceitos psicanalíticos, recheados de conteúdo social e político, para analisar o desenvolvimento da sociedade capitalista dos anos de 1960 sob a guerra fria. Buscava, assim, desvelar a intensidade e a amplitude de regressão das massas aos seus sentimentos mais primitivos. Afinal, à exemplo dos dias que correm, o avanço das tecnologias da informação, da propaganda e do marketing vinham construindo imagens concretas e imediatas do inimigo comum, muito menos contra o comunismo ameaçador do que contra um poder personalizado como os vermelhos, os comunistas, os chineses, os homossexuais, os negros, os judeus, os estrangeiros e os intelectuais críticos (MARCUSE, 1998, p. 91-105). Nada mais atual tanto quanto a produção cultural da ignorância que se manifesta no olavismo e no bolsonarismo do Brasil contemporâneo.
Marcuse, filósofo marxista e ativista, denunciava não apenas a reificação e o conservadorismo da sociedade capitalista, na qual predominava o modelo de produção taylorista-fordista, mas também, ainda que parecesse uma heresia, a conformação da classe trabalhadora nos limites do papel civilizador da cultura (CUEVA, 1989, p. 19). E, mais, rebatia o academicismo que promovia certa dicotomia entre cultura e civilização bem típica de intelectuais que buscavam separar as ciências da natureza das outras ciências3.
É nessa perspectiva que, ainda na década de 1960, Edward Thompson e Raymond Williams tomavam posição quanto à necessária intervenção no debate sobre a cultura, na medida em que apreender as sucessivas modificações da dinâmica sociedade requer capturar a diferentes facetas do movimento anticapitalista como uma totalidade articulada, mas também as formas a elas contrárias de se manifestar a contrarrevolução.
Todo nosso modo de vida, da forma de nossas comunidades à organização e conteúdo da educação, e da estrutura da família ao estatuto das artes e do entretenimento, está sendo profundamente afetado pelo progresso, pela relação democracia e indústria, e por extensão, pelas comunicações. O aprofundamento da revolução cultural como parte significativa da experiência que estamos vivenciando está sendo interpretado e contestado, de forma bastante complexa, no mundo da arte e das ideias. É somente quando tentamos estabelecer uma relação entre o modo pelo qual ocorre todo esse processo e as mudanças [acontecidas em outras dimensões da sociedade] abordadas por disciplinas como a política, a economia e as comunicações que, encontramos maior dificuldade no movimento de análise, mas também outras tantas questões de cunho humanístico (WILLIAMS, 1965, p. 12. Tradução livre e negritos meus)4.
Trata-se, pois, de apreender a cultura como práxis, tendo no trabalho o seu modelo. O que os homens fazem ou produzem, em sociedade, no e pelo trabalho, é o que torna visível aquilo que chamamos de cultura. A cultura material inclui tudo que é produzido ou transformado como parte da vida social e coletiva. A cultura não material inclui símbolos, como a linguagem escrita e a falada, além das ideias que modelam e informam a reprodução da vida, tais como as, atitudes, as crenças, os valores e as normas (SILVEIRA, 2014, p. 11).
Remete-se a um sistema (BARATA-MOURA, 1997) concreto de relações socioculturais e econômicas recíprocas, no qual opera o processo de aculturação (PARIS, 2002). Esse processo diz respeito ao modo como os homens se relacionam para produzir e para reproduzir sua existência, daquilo que encarnam aspectos comportamentais expressos nos processos educativos e de comunicação, bem como nos padrões de consumo e de rotinas (idem, idem).
A produção cultural da ignorância, sob a vulgata do marxismo cultural e da doutrinação ideológica, perpetrada pelo olavismo e pelo bolsonarismo por mediação do aparato tecnológico da informação e da comunicação, evidencia a agudização de forças políticas em torno da (contra)reforma intelectual, moral e cultural e, também, da (con)formação dos sujeitos em sociedade, de “alto a baixo”, particularmente da “classe trabalhadora” (MARX, 2003; ENGELS, 2008), “dos de baixo”(FERNANDES, 1989; THOMPSON, 2004; HOBSBAWM, 1998), dos “grupos subalternos” (GRAMSCI,2001, CC10.), do que a cultura popular e a educação popular fazem parte.
1. Cultura popular e Educação popular
A revolução cultural tem sua gênese na Era dos Impérios, quando, pela primeira vez, o movimento cultural ocorrera de baixo para cima, marcando uma ruptura fundamental na história da cultura erudita. Ao mesmo tempo em que as bases da sociedade liberal burguesa do século XIX estavam em processo de destruição da sua existência com seu sistema de valores e convenção de costumes, ocorria o processo de democratização da sociedade, trazendo em seu cerne um mercado das artes populares, tanto na sua versão arts-and-crafts quanto de base tecnológica avançada (HOBSBAWM, 2005, p. 323; 2011, p. 365-369).
Dessa forma, podemos citar como exemplos de espaços de expressão cultural e de resistência o teatro popular que se desenvolveu em bairros operário; a ascensão de Charles Chaplin como representante não só da classe trabalhadora, mas também como seu ícone de diversão; a taberna, o salão de danças, o café-concerto, o bordel, as casas das tias5. Vale lembrar que surgiu ainda um leque de inovações musicais como a canzone napolitana, o flamenco andaluz de Espanha, o blues e o jazz de afro-americanos do Norte, o tango da Argentina e o samba de afro-brasileiros, ambos latino-americanos (idem, 2011, p. 365-369)
Acima de tudo, tratava-se de artes que não deviam substancialmente nada à cultura burguesa, nem sob forma de arte ‘erudita’ nem sob forma de entretenimento ligeiro de classe média. Ao contrário, elas estavam transformando a cultura burguesa de baixo para cima (HOBSBAWM, 2011, p. 369).
No Brasil, junto ao movimento cultural, experiências comuns e associativas como as irmandades, beneficentes ou de caráter de auxílio mútuo, os grêmios, as ligas, as uniões e os jornais contribuíram para os usos da(s) leitura(s) − não apenas como ato de apreender o conteúdo específico de um texto, mas também da realidade concreta –, da escrita, dos protestos e das reivindicações, enfim, da formação da classe e da consciência de classe dos trabalhadores brasileiros (MAC CORD, 2012; MAC CORD, BATALHA, 2014; MATTOS, 2008).
Assim, os de baixo seguiram praticando a educação popular como forma de resistência e de alternativa de poder em um movimento contrário ao hegemônico dos dominantes na sociedade. Ao mesmo tempo, eles clamavam por uma educação formal e com melhores condições infraestruturais, o que engendrou questões como a necessidade e a pertinência ou não da instrução dos negros, dos índios, das mulheres e, de modo geral, dos desvalidados da sorte e da fortuna por parte do Estado. Desde então, a educação popular assume caráter de classe pela via institucional.
A educação popular é, pois, resultado de um processo de lutas de classe e, portanto, de disputas históricas em torno de projetos político-culturais e pedagógicos que trazem, em seu bojo, currículos formais - explícitos pela pedagogia oficial - e currículos ocultos – manifestos tanto em espaços da educação formal quanto em lugares da não formal.
O termo popular não se confunde com populismo e tampouco com uma idealização ou uma sacralização do povo. Nos textos de Antonio Gramsci, localizam-se
os sujeitos populares concretos, ‘grupos socais subalternos’ historicamente ‘existentes e operantes’ que, mesmo nas suas ambiguidades e fragilidades, se apresentam como ‘políticos em ato’ que expressam ‘uma realidade em movimento, uma relação de forças em contínua mudança’, dentro de um preciso contexto social e econômico, em ‘assédio recíproco’ com a hegemonia das dos grupos dominantes (SEMERARO, 2013, p.289).
Obviamente, entendemos com Marx (2003, p. 246-258) que a categoria população é uma abstração na medida em que há a possibilidade de escorregar para a análise que desconsidera as classes sociais e frações de classes que as compõe. Por seu turno, estas podem se tornar palavras ocas se desprezarmos as suas dimensões, tais como capital, trabalho assalariado, alienado, explorado e expropriado, propriedade privada, mercados interno e internacional, divisão sociotécnica e internacional do trabalho, câmbio, crédito e dívida pública.
Nessa perspectiva, ao empregar a expressão Educação Popular, não perdemos de vista que: (i) a educação antecede a sua forma escolar e se dá no processo e no ato do trabalho nos quais homens, mulheres, crianças e jovens, ao se relacionarem uns com outros, aprendem entre si, desenvolvem-se e se humanizam cotidianamente; (ii) a escola moderna (pública e estatal) tem a sua gênese nas revoluções burguesas acontecidas entre o século XV e meados do XIX, no entanto, o seu desenvolvimento histórico vem sendo marcado pela natureza do processo ontológico-social, atravessado por lutas de classe, contradições e mediações; (iii) a Educação Popular se traduz em “módica educação da escola pública, a única compatível com as condições econômicas da classe trabalhadora” (MARX, 2012, p. 45)6.
Desde a Europa de meados do século XIX, com o crescimento dos movimentos socialistas (utópicos), anarquistas, comunistas e independentistas de Nuestra América, a proposta de Educação Popular passa a vicejar como forma de construção alternativa de poder. Assim, ela vem não apenas acumulando práticas e debates teórico-políticos (MEJÌA, 2006, p. 206), mas também sofrendo significativas mudanças em seu conceito, marcadas, de um lado, por concepções estreitas, e, de outro, de desmedida ampliação (PAIVA, 1986, p. 15).
2. Questão cultural ou opção política?
O processo de colonização na América Latina levou à configuração de relações intersubjetivas de dominação entre a Europa e a região latino-americana. Reprimiram-se as formas de produção de conhecimento dos povos originários, os seus padrões de produção de sentidos, o seu universo simbólico, os seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. A repressão no campo da cultura foi reconhecidamente mais violenta, profunda e duradoura entre os indígenas da América ibérica, a quem condenaram como seres inacabados, ferozes e inferiores, cujo aperfeiçoamento somente seria viável pela educação civilizadora. Algo equivalente ocorreu na África7. O mesmo menosprezo ocorria com os saberes, a religião e a música da cultura negra, particularmente entre os que sofreram a escravidão. Assim, os colonizadores forçaram os povos originários a apreender a cultura utilitarista para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, seja no plano subjetivo, especialmente religiosa (QUIJANO, 2005; ARANHA, 2006, p. 166).
Foram mais de três séculos e meio de expropriações, experimentadas segundo a origem econômica, social, cultural e étnico-racial dos sujeitos (dominantes e dominados), mas também de lutas de classe, marcadas por diferentes formas de resistência e laços de solidariedade que se forjou um processo de formação da consciência de uma identidade de interesses comuns entre os de baixo.
Na região latino-americana, tal proposta tem como referências os intelectuais venezuelanos Simón Rodriguez (1769-1854) e Simón Bolívar (1783-1830), o cubano José Martí (1853-1895) e, mais tarde, no início do século XX, o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930)8. Ao logo do século XX, as concepções de educação popular defendidas pelos citados latino-americanos se manifestaram das seguintes maneiras: tentativas de edificação das universidades populares (PRONKO, 2002); na primeira escola indígena de professores, hoje Escola Superior de Formación de Maestros Warisata, cuja fundação deve-se a Elizardo Peréz e o líder aymara Avelino Siñani; no movimento católico (PAIVA, 1986) e na Pedagogia Freireana (PAIVA, 1986; FÁVERO, 2011; ESTEBAN, 2019;MEJÍA, 2014).
Destaca-se a contribuição do peruano José Mariátegui pela original interpretação da realidade latino-americana, com base no materialismo histórico dialético, voltada para a transformação estrutural da América Latina.
Sua interpretação marxista tinha como elementos centrais a tese da inviabilidade de uma revolução democrático-burguesa na América Latina, considerando que as burguesias latino-americanas eram subordinadas ao imperialismo e articuladas ao latifúndio. Em consequência, defendia que era necessária uma Revolução Socialista, para liquidar simultaneamente os resquícios pré-capitalistas e o próprio capitalismo [...] Em termos mais amplos, sua posição foi marcada pelo entusiasmado apoio à Revolução Russa, pela crítica à social-democracia e ao anti-imperialismo pluriclassista [...], bem como pelo conflito com o stalinismo que se explicitou em 1929 na Conferência Latino-Americana da Internacional Comunista, quando suas teses foram violentamente atacadas, tendo-se definido uma política geral para a América Latina que preconizava a realização de uma “revolução “anticolonial” liderada pelas burguesias locais (CALIL, 2019, p. 37-38).
Segundo o historiador, a interpretação de José Mariátegui é marcadamente crítica, em seu sentido negativo, à educação vigente e às propostas de reforma nos limites da ordem burguesa, ao mesmo tempo em que apresenta diversas propostas práticas e concretas para a educação popular (idem, p. 38).
Dentre os escritos de José Mariátegui sobre a educação, destacam-se a coletânea 7 ensaios de interpretação da realidade peruana e o livro intitulado Temas de educação.
O legado desse conjunto de intelectuais, que pensaram a transformação da Pátria Grande, manifestou-se entre em fins dos anos 1940 e meados da década de 1960. Nesse período, houve uma efervescência cultural, posto que se efetiva a organização dos sindicatos dos trabalhadores urbanos e rurais; estruturam-se as Ligas Camponesas; a União Nacional dos Estudantes (UNE) é fortalecida pelos estudantes; surge a organização de militares subalternos; mobilizações populares reivindicam Reformas de Base (agrária, econômica, educação); os Centros Populares de Cultura (CPCs), por meio da UNE, levam teatro ao povo; o Movimento de Cultura Popular (MCP) e Campanha De pé no Chão Também se Aprender a Ler promovem programas de alfabetização eficientes e altamente politizados, organizados por Miguel Arraes, Moacyr de Góes e Paulo Freire; o Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à CNBB e às forças progressistas da Igreja, cria o sistema de radiodifusão educativa e, ainda, o Plano Nacional de Alfabetização (PNA), do governo João Goulart, propõe-se a alfabetizar cinco milhões de brasileiros de 1964 a 1965 (SILVEIRA, 2010, p.140).
Osmar Fávero, uma das memórias vivas da educação brasileira, docente pesquisador e aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (FEUFF), organizou um belo e rico acervo com a finalidade de resgatar, preservar e divulgar a memória e a história da educação popular no Brasil entre os anos 1947 e 1966. A documentação, compilada ao longo de 50 anos, foi reunida no Núcleo de Estudos e Documentaçăo de Educaçăo de Jovens e Adultos (Nedeja/FEUFF) e publicada no DVD intitulado Educação Popular 1947-1966, o qual se encontra disponível no Portal dos Fóruns de EJA do Brasil e no sítio do Nedeja/FEUFF9.
O conteúdo propriamente dito está dividido em: a) Campanhas, compreendendo a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos, sistematizada em 1947, a Campanha de Educação Rural, criada em 1950 como reforço à primeira, o Sistema Radio Educativo Nacional (Sirena), também criado no mesmo ano, e a Mobilização Nacional contra o Analfabetismo, criada em 1958. Delas apresentam-se alguns documentos constituintes e respectivos materiais didáticos (Cartilha Ler, livro de pós-alfabetização Saber e a Radiocartilha); b) Ceplar - Campanha de Educação Popular da Paraíba; c) CPC – Centro Popular de Cultura, criado pela UNE, com sede no Rio de Janeiro, com vários desdobramentos nos estados; d) MCP – Movimento de Cultura Popular, inicialmente implantado no Recife e depois estendido para outros municípios de Pernambuco; d) MEB – Movimento de Educação de Base; d) Sistema de Alfabetização Paulo Freire (experiência de Angicos e montagem do Plano Nacional de Alfabetização) ; e) Campanha “De Pé no Chão também se Aprende a Ler”, de Natal. Para cada um desses movimentos, além de um texto inicial contendo breve histórico, são apresentados: livros, documentos, material didático, textos de divulgação, fotos, peças de teatro, áudio e vídeo (FÁVERO, 2008, p. 5)
Os anos que antecedem o golpe de 1964 foram marcados pela luta em torno da educação pública e da democratização do acesso à escola/universidade e da fragmentação do ensino. Malogradas as propostas progressistas de educação, o governo empresarial-militar (1964-1985) expurgou o pensamento crítico, impondo a pedagogia oficial de cunho tecnicista e balizada pela doutrina da segurança nacional.
A educação tornada responsabilidade de todos, desde de 1970, sob as orientações da Unesco, as especificidades culturais acabam respondendo à dinâmica capitalista, sobretudo a partir dos anos 1990, como subsetores econômicos que geram renda, estimulam o desenvolvimento local e incentivam a criatividade, fortalecendo, assim, os setores do ramo empresarial, como o do turismo, do agronegócio, do artesanato, da propaganda e marketing, entre outros. Dessa maneira, serão forjados, no meio popular, valores de uma nova cultura cívica baseada no regime de colaboração de classes e na ética empresarial.
Retomando a questão no regime ditatorial, o conceito de educação popular passa por modificações que serão aprofundadas nas décadas de 1980 e 1990. Tais modificações, de acordo com Paiva (1986, p. 27-29), estiveram articuladas à ideologia de desenvolvimento e modernização dos governos populistas. No mais, elas estavam ligadas ao financiamento do setor privado pelo público e, sobretudo, à concretização da educação não escolar capitaneada por setores católicos, a exemplo do Movimento de Educação pela Base (MEB)10, que contribui para a difusão do pensamento escolanovista.
Como é sabido, o movimento escolanovista traz em seu cerne, acertadamente, uma severa crítica aos métodos da escola tradicional e à relação autoritária. No entanto, ao transferir o protagonismo do ensino-aprendizagem para o estudante, ele secundariza, a contrassenso, o elemento clássico da escola, ou seja, o papel crucial que o intelectual professor exerce no processo de formação da consciência crítico-política sobre a realidade11.
Na medida em que o regime ditatorial aprofundou a repressão, a Ação Básica Cristã (ABC) passou a substituir os movimentos anteriores, com recursos da Aliança para o Progresso. Além disso, o governo cria, em 1968, o Mobral e torna-o um movimento em nível nacional a partir de 1970.
Nesse contexto, emergiram, de um lado, um certo populismo pedagógico no interior das salas de aula, e, de outro, um determinado trabalho revisionista e reformista em meio ao pedagógico-pastoral.
o trabalho pastoral foi se confundindo com o trabalho político-pedagógico mais amplo, com o movimento sindical e a organização dos mais variados setores da sociedade civil. Esta ‘confusão’ refletiu-se sobre aquilo que se entendia como ‘educação popular’. A adjetivação ‘popular’ descolocou-se do destinatário para o conteúdo político da educação, aparecendo como legitimamente digna de tal qualificação apenas a educação ‘produzida pelas classes populares ou para as classe populares em função de seus interesses de classe e, de preferência, realizada através de um processo informal inserido e confundido com a vida cotidiana das camadas populares (PAIVA, 1986, p. 33).
Junte-se a essa questão o movimento de intelectuais entre aparelhos hegemônicos da sociedade civil, sociedade política e a Unesco, já no período de redemocratização, sob o mote da educação para a paz12 e da educação permanente ou da educação ao longo da vida13.
Fávero (2008) aponta a problemática da designação de educação de jovens e adultos, já que ela
passou a ser utilizada somente a partir de meados dos anos de 1980 e, somente, nos dias atuais tem sido objeto de pesquisa sistemática. Sua forma ainda predominante escolarizada, na qual a certificação é peça fundamental, ou nas ações de formação profissional – nas quais, salvo exceções, vigora a preparação imediata para o trabalho –, a afastam da progressiva e radical ampliação tanto do conceito e do entendimento da educação popular, como exigência e complemento dos movimentos sociais, e também da perspectiva de uma educação continuada ao longo de toda a vida (FÁVERO, p. 8-9).
Dando um salto histórico até a temporalidade neoliberal, quando, como dantes, as críticas das armas não substituem as armas da crítica, Brandão (2006, p. 252-253), ao revisitar os projetos de cultura popular dos movimentos de cultura popular dos anos de 1960, incorpora alguns elementos críticos no que diz respeito à subsunção da cultura à determinada ideia unidirecional de poder e à uniformização das diferenças culturais populares como se fosse possível, no processo ontológico de lutas, estabelecer pares dicotômicos entre erudito e popular, dominante e dominado, alienado e liberto, urbano e rural. Além desses aspectos, proclamava-se a unicidade de destinos – a libertação autoconstruída do povo e a construção popular de um outro modelo de estrutura social – que engendrou problemas de ordem político-teórica e empírica da maneira.
Entretanto, o que de fato incomoda o educador é ausência da categoria cultura nos documentos teóricos, nas ideias de ação e nos métodos de trabalho com grupos indígenas, ribeirinhos quilombolas, dentro outros grupos subalternos.
É como se uma modernização das críticas políticas à sociedade desigual e das propostas pedagógicas com vistas à sua superação, pudesse ser agora pensada sem a questão da cultura e, especialmente, das culturas populares [além disso] Nos últimos anos o próprio sentido da ideia de poder e de uso político do poder tem tomado direções diferentes de como ele era pensado anos atrás. Creio não ser um exagero dizer que, mesmo entre os movimentos populares e suas ONGs de apoio, a questão do poder está hoje mais para Foucault do que para Marx, mais para Geertz do que para Gramsci (BRANDÃO, 2006, p. 251-252).
Não é o propósito deste texto abordar os deslocamentos político-teórico e empíricos dos intelectuais nos diferentes espaços que ocupam na sociedade e tampouco discutir as (des)razões do emprego ou não das categorias que contribuem para entender a realidade concreta. No entanto, fato é que “há uma lista interminável de intelectuais que efetuaram a guinada à direita” (CUEVA, 1989, p. 29) e que, quando incorporam a temática da cultura, fazem em uma perspectiva fragmentada da realidade e apoiada em subculturas.
As implicações políticas dessa visão fragmentada de mundo e de produção do conhecimento se manifestam na impossibilidade de qualquer política emancipadora que: (i) tenha por base a solidariedade e a ação coletiva; (ii) pressuponha a formação da identidade de classe ou da experiência comum ou, ainda, dos interesses comuns; (iii) pressuponha a transformação da consciência folclórica em consciência de classe; (iv) busque qualquer tipo de mobilização regional e global.
Os movimentos de educação popular e de cultura popular, na América Latina e, particularmente, no Brasil, cumpriram papel significativo, desde o século XIX até os anos de 1970/1980, na formação crítica de trabalhadores urbanos, do campo e dos povos originários.
Com a guinada à direita, que serviu de pilar à aplicação das políticas neoliberais por parte dos governos social-democratas, e pavimentou a entrada do conservadorismo em nível internacional, os projetos hegemônicos de educação popular, educação ao longo da vida, educação para a paz, que empunham as bandeiras da “inclusão social”, do “combate à pobreza” e “às desigualdades na educação”, buscam agora afirmar o capitalismo como um modo de produção e reprodução da vida ampliada insuperável até mesmo nos limites do atual governo Jair Bolsonaro.
Fato é que a Proposta de Plano de Governo (2018) de Jair Bolsonaro afirma que “o Brasil passará por uma rápida transformação cultural” e, para tanto, seria necessário expurgar o “marxismo cultural” e as suas derivações como o “gramscismo” e a “ideologia de Paulo Freire”, além de reduzir o movimento contestatório que emerge da classe trabalhadora.
2.1. Por que Paulo Freire?
Educador, pedagogo, filósofo e patrono da educação brasileira14, Paulo Freire (1921-1997) é respeitado internacionalmente, sendo um dos autores mais citados na área das ciências humanas. Seu trabalho fez emergir, nos anos 1960, uma intelectualidade estudantil, universitária, religiosa e militante com a capacidade de alfabetizar e de organizar as classes subalterna de maneira inovadora.
Esteban (2019), ao analisar o modo pelo qual a obra de Paulo Freire se inscreve no pensamento latino-americano, incorpora a contribuição de dois importantes autores, igualmente latino-americanos, que assumem uma perspectiva crítica ao eurocentrismo nas ciências humanas e sociais, quais sejam, Enrique Dussel e Walter Mignolo.
Falar do trabalho de Freire é falar de uma profunda reflexão sobre as relações entre a educação e os processos de libertação, marcada por sua condição de latino-americano e pela produção latino-americana, à qual também constitui. Falar da educação popular tal como é inventada na América Latina: potência que se constitui nos muitos entrelaçamentos entre o que se nega, o que se destrói, o que permanece, o que se oculta, o que se se sonha, o que se cria, o que se vive. A palavra proferida, o silêncio e o silenciamento atravessam a experiência de ser latino-americano (ESTEBAN, 2019, p. 7).
Assim, optamos por transcrever, a seguir, as palavras de Moacyr de Góes, em De Pé no Chão Também se Aprende a Ler [...], porquanto ele situa o pensamento de Paulo Freire no período anterior a 1964.
Historicamente, o Método Paulo Freire nasce no Centro de Cultura do MCP Dona Olegarinha, no Poço da Panela, no Recife, em 1961, fruto de 15 anos de acumulação de experiências do educador pernambucano no campo da educação de adultos, em áreas proletárias e subproletárias, urbanas e rurais.
A obra de – e sobre – Paulo Freire é, hoje, certamente, a mais extensa e mais
profunda que já se escreveu sobre o pensamento pedagógico de um brasileiro. Guardadas, assim, as limitações desta notícia, preferimos situar do pensamento do educador, apenas, o referencial a antes de 1964, por uma questão didática. Neste caso, o melhor roteiro seria seu artigo “Conscientização e alfabetização – Uma nova visão do processo
É importante visibilizar em Paulo Freire: a História, a Antropologia Cultural, a Metodologia e a Cronologia de aplicação da experiência. Desses quatro aspectos pretendemos nos ocupar em síntese.
Quanto à sua visão histórica, Paulo Freire partiu do princípio de que, na primeira metade dos anos 60, ocorria um trânsito do povo brasileiro de uma sociedade fechada para uma sociedade aberta, aproveitando uma rachadura ocorrida no sistema, em decorrência da “substituição das importações”. Nesse processo econômico emergiria o fenômeno que Mannheim chama de “democratização fundamental”, que implica uma crescente e irreversível ativação do povo no seu próprio processo histórico, abrindo leques de participações interdependentes de ordem econômico-social-político-cultural. O povo deixa de ser objeto para ser, sujeito.
O Sistema Paulo Freire passa, antes de mais nada, pela Antropologia Cultural. É ele mesmo quem diz:
Pareceu-nos (...) que o caminho seria levarmos ao analfabeto, através de reduções, o conceito antropológico de cultura. A distinção entre os dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com a sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para as relações é comunicações dos homens. A cultura como acrescentamento que o homem faz ao mundo que ele não fez.
A metodologia do Sistema Paulo Freire implica o cumprimento das conhecidas etapas que devem ser executadas na seguinte ordem: levantamento do universo vocabular do grupo que se vai alfabetizar; seleção neste universo dos vocábulos geradores sob um duplo critério: o da riqueza fonêmica e o da pluralidade de engajamento na realidade local, regional e nacional; criação de situações existenciais, típicas do grupo que se vai alfabetizar; criação de fichas-roteiro, que auxiliam os coordenadores de debate no trabalho; feitura de fichas com a decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores.
A cronologia dos experimentos do Sistema Paulo Freire parece ter sido a seguinte: Recife – MCP – Centro de Cultura Dona Olegarinha – Poço da Panela (1961); Recife – SEC (Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife), quando uma equipe interdisciplinar aprofunda a fundamentação científica do Método, criando o Sistema; João Pessoa – CEPLAR (Fundação da Campanha de Educação Popular da Paraíba); Recife – União Estadual dos Estudantes de Pernambuco e Diretório Central dos Estudantes da Universidade do Recife (financiado pelo Plano de Emergência do MEC); Natal – Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler (financiado pela Prefeitura do Natal); Angicos e Exército (16º RI) – Governo do Estado do Rio Grande do Norte (financiado pela Aliança Para o Progresso, através da SUDENE74; Osasco (São Paulo); Brasília (financiado pelo Plano Nacional de Alfabetização do MEC, através da Comissão
de Cultura Popular, criada junto ao Gabinete do Ministro, em 28 de junho de 1963); Projeto Nordeste e Projeto Sul (Sergipe e Rio de Janeiro – financiamento do PNA – MEC).
O educador Paulo Freire, em abril de 1964, foi preso, cassado e sobreviveu no exílio até 1979, quando regressou ao Brasil (GÓES, 1980, p. 41-42).
Esse momento dramático da vida de Paulo, no qual se encerram as palavras de Moacyr de Góes sobre O sistema Paulo Freire, evidencia a opção política do bloco no poder tanto do governo empresarial-militar quanto do atual mandato militar de cunho fascista, ambos contrarrevolucionários.
Hoje, tanto quanto aquele dia que durou 21 anos, a América Latina e, particularmente, o Brasil encontram-se mergulhados no dilema socialismo ou fascismo. O desafio da classe trabalhadora, ou seja, do movimento popular está em compreender a união intrínseca das tarefas democráticas e anti-imperialistas com as tarefas socialistas, bem como apreender que seu sucesso está condicionado à sua capacidade de conduzir o processo sem se comprometer com alianças espúrias, enfrentando a política do pânico, a repressão às entidade representativas da classe trabalhadora e a máquina de notícias falsas, lutando contra o fascismo e os monopólios (DOS SANTOS, 2018).
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SOBRE LA AUTORA
ZULEIDE S. SILVEIRA é Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora da Faculdade de Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação (stricto sensu), do Programa de Pós-Graduação em Educação, Trabalho e Cultura (lato sensu) da UFF, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estado, Trabalho, Educação e Desenvolvimento: pensamento crítico latino-americano e tradutibilidade de Antonio Gramsci (GPETED/UFF) e editora-chefe da Movimento- Revista de Educação.
E-mail: zuleidesilveira@gmail.com
Recebido em: 02.06.2020
Aceito em: 02.06.2020
1 BRANDÃO (2006).
2 Dados do Ministério da Saúde em 3 de junho de 2020.
3 A esse respeito vale remeter para os manuscritos de Marx e Engels sobre A ideologia alemã, quando afirmam: Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. Os dois lados não podem, no entanto, ser separados; enquanto existirem homens, história da natureza e história dos homens se condicionarão reciprocamente. A história da natureza, a assim chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas, quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história (MARX; ENGELS, 2007, p. 86-87. Negritos meus).
4 Para uma historiografia da Revolução Cultural, ver Hobsbawm (2005, p.314-336; 2011, p. 343-376).
5 No Brasil, os terreiros, locais onde se localizavam as casas das tias, foram espaços de culto religioso, de festas e, sobretudo, de resistência que mais tarde, já no século XX, incorporam o movimento de resgate e de preservação da memória do samba.
6 A classe trabalhadora abarca um leque amplo de frações de classe, como os trabalhadores assalariados, os subcontratados, os de tempo parcial, os de tempo intermitente, informais, os ribeirinhos, quilombolas, indígenas e os do campo.
7 A colonização efetiva do continente africano ocorre em fins do século XIX, mais precisamente no período que estende de 1885 e 1915. Entretanto, foi no começo do século XVI que os europeus transformaram os africanos escravizado em uma alternativa lucrativa ante a dizimação de parte significativa da população ameríndia e a proibição da escravização indígena (SANTOS, 2017).
8 Cf. Calil (2019).
9Os endereços eletrônicos são, respectivamente, www.forumeja.org.br e http://nedeja.uff.br/ .
10 O MEB emerge, oficialmente, de um convênio da CNBB com o Governo federal (Decreto 50.370, de 21 de março de 1961), resultado de uma série de entendimentos entre o episcopado brasileiro e a Presidência da República. fruto da experiência acumulada por parte da Igreja Católica a partir do final dos anos 1950, cujo marco mais importante foi a expansão do SAR (Serviço de Assistência Rural) do Rio Grande do Norte, com as escolas radiofônicas criadas por Dom Eugênio Sales (GÓES, 1980, p. 43).
11 Para mais detalhes, ver Saviani (2013).
12 A proposta de educação para paz traz, em sua essência, a formação de competência comportamentais e atitudinais voltadas para a construção de sociedade coesa e, por conseguinte, que busca maximizar a redução dos conflitos entre capital, trabalho e educação.
13 Diferentemente da concepção ontológica trabalho e educação, que toma o trabalho como mediação central das relações socioculturais e atividade pela qual o homem se educa, forma-se e se humaniza, em um processo aberto ao infinito, a concepção da Unesco, tendo por base a ideologia do capital humano, defende a formação aligeirada, fragmentada e imediata, segundo a dinâmica do mercado. Como o investimento em educação é de responsabilidade individual, torna-se possível, por parte dos órgãos governamentais e do empresariado, justificar a crescente taxa de desemprego, afirmando a falta de pessoal qualificado. Nesse sentido, a escola cumpre papel fundamental na oferta de um leque diversificado de oferta de formativa.
14O Projeto de Lei nº 1930/19, de autoria do deputado Heitor Freire (PSL-CE), que revoga a Lei nº 12.612/ 2012, aguarda designação de Relator na Comissão de Educação desde 07/06/2019.
Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.12, p.1-25, jan/abr. 2020.