FRACASSO ESCOLAR E MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO: a culpabilização individual e o fomento da cultura patologizante
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil
Secretaria Municipal de Educação (SEMED)
Bom Jesus do Itabapoana, RJ, Brasil
Samela Estéfany Francisco Faria
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.43073
RESUMO
O presente estudo tem o objetivo de trazer uma abordagem crítica acerca do fracasso escolar e sua relação com a medicalização, apresentando, em um primeiro momento, uma discussão epistemológica do tema, seguida de uma breve perspectiva histórica do fenômeno investigado. Apresentamos também duas pesquisas de campo realizadas: a primeira, em 2015, com 14 alunos da educação básica pública, feita por meio de entrevistas semiestruturadas; e a segunda, em 2019, com 13 alunos formandos e 10 alunos egressos de um curso de Pedagogia de uma Universidade Federal, por meio de questionários on line. Buscamos conhecer a percepção deles sobre fracasso escolar, repetência e medicalização, acolhendo assim diferentes perspectivas. Os resultados mostraram que a compreensão individualizante/ biologizante/ patologizante/ medicalizante, fruto de uma educação acrítica muito conveniente aos interesses capitalistas, ainda predomina como percepção de alunos (sobre seu próprio fracasso) e de professores/ futuros professores. Assim, entendemos que cabe aos profissionais de educação não só se perceberem como agentes reprodutores de opressões e exclusões, como também direcionar esforços para a construção de políticas educacionais emancipatórias, desmedicalizantes e socialmente referenciadas.
Palavras-chave:
Fracasso Escolar. Medicalização. Formação
de professores.
Educação Básica.
SCHOOL FAILURE AND MEDICALIZATION IN EDUCATION:
Individual blaming and the promotion of pathologizing culture
ABSTRACT
The present study aims to bring a critical approach about school failure and its relationship with medicalization, presenting, at first, an epistemological discussion of the theme, followed by a brief historical perspective of the investigated phenomenon. We also present two field surveys carried out: the first, in 2015, with 14 students of public basic education, implemented through semi-structured interviews; and the second, in 2019, with 13 trainees and 10 graduates from a Pedagogy course at a Federal University, through online questionnaires. We seek to know their perception of school failure, repetition and medicalization, welcoming different views. The results showed that the individualizing/ biologizing/ pathologizing/ medicalizing understanding still predominates as the perception of students (about their own failure) and of teachers / future teachers. We considered these results to be an outcome of an uncritical education and very convenient to capitalist interests. Thus, we understand that the education professionals need not only to perceive themselves as agents that reproduce oppression and exclusion, but also to direct efforts towards the construction of emancipatory, not medicalizing and socially referenced educational policies.
Key-words: School failure. Medicalization. Teacher’s education. Basic education.
FRACASO ESCOLAR Y MEDICALIZACIÓN EN EDUCACIÓN: Culpabilización individual y promoción de la cultura patologizante
RESUMEN
El presente estudio tiene como objetivo brindar un enfoque crítico sobre el fracaso escolar y su relación con la medicalización, presentando, al principio, una discusión epistemológica del tema, seguida de una breve perspectiva histórica del fenómeno investigado. También presentamos dos investigaciones realizadas: la primera con 14 estudiantes de educación pública básica, implementada a través de entrevistas semiestructuradas; y la segunda con 13 estudiantes del ultimo año y 10 graduados de un curso de Pedagogía en una Universidad Federal, a través de cuestionarios on-line. Buscamos conocer la percepción de ellos del fracaso escolar, la repetición escolar y la medicalización, acogiendo a diferentes puntos de vista. Los resultados mostraron que la comprensión de individualización / biologización / patologización / medicalización aún predomina como la percepción de los estudiantes (sobre su propio fracaso) y de los maestros / futuros maestros. Consideramos que estos resultados ocurren debido a una educación acrítica y muy conveniente para los intereses capitalistas. Por lo tanto, entendemos que los profesionales de la educación necesitan no solo percibirse a sí mismos como agentes que reproducen la opresión y la exclusión, sino también dirigir los esfuerzos hacia la construcción de políticas educativas emancipadoras, no medicalizadas y socialmente referenciadas.
Palabras clave: Fracaso escolar. Medicalización Formación de profesores. Educación básica.
Introdução
Por que falar de fracasso escolar ao invés de sucesso escolar? Já ouvimos esta frase dezenas de vezes, proferida por educadores e pesquisadores que estudam/debatem formação e atuação de professores a partir de perspectivas teóricas não críticas. Apesar de ser considerado tema batido por alguns colegas e em muitas pesquisas o fenômeno ser compreendido à luz de concepções psicologizantes, patologizantes, tecnicistas, individualizantes e medicalizantes (ANGELUCCI et al., 2004; ASBAHR, LOPES, 2006), entendemos ser necessário insistir na problematização do fracasso escolar enquanto questão institucional, social e política.
Cabe considerar que um dos fatores que pode ampliar a discussão no campo da aprendizagem é justamente as possibilidades de aprender nas quais o indivíduo é submetido, no entanto, há um olhar estigmatizante, construído socialmente, que introduz nas escolas inúmeras categorias de alunos considerados bons e alunos rotulados como ruins, alunos que aprendem e alunos que não aprendem, alunos que são disciplinados e alunos indisciplinados, os considerados normais e os anormais. Essa categorização, de cunho seletivo e excludente, faz com que o fracasso escolar seja visto de forma individual. Nesse sentido, a culpa do insucesso acaba recaindo sobre o próprio aluno e, muitas vezes, sua família pobre e pouco instruída (PATTO, 1997, 2010; ASBAHR, LOPES, 2006).
Assim, o objetivo deste artigo é discutir a percepção que alunos de escolas públicas e professores em formação inicial (no nível superior) têm sobre fracasso escolar, problemas de escolarização e a patologização/medicalização destes.
Para isso, analisaremos os resultados de duas pesquisas de campo realizadas em momentos diferentes (2015 e 2019) por membros do nosso grupo de pesquisa na cidade de Santo Antônio de Pádua, Noroeste do Estado do Rio de Janeiro. Ambas foram selecionadas para este artigo por apresentarem resultados – publicados em uma dissertação de mestrado e um trabalho de conclusão de curso de uma Universidade pública da referida cidade – que dialogam entre si e com as temáticas acima citadas e que são objetivo deste trabalho.
A primeira pesquisa foi realizada por meio de entrevistas presenciais com 14 alunos multirrepetentes de uma escola estadual, e a segunda com questionários online respondidos por 23 formandos e egressos de um curso de Pedagogia de uma Universidade pública. Ambas tiveram os resultados analisados por meio da análise de conteúdo (BARDIN, 1977). Maiores detalhes serão apresentados na metodologia.
Pretendemos, portanto, a partir das percepções desses diferentes atores do cenário educacional, e à luz das contribuições de diversos autores e de pesquisas anteriores (INSFRAN, MUNIZ, ARAUJO, 2019; VIEGAS, 2011; LOUZANO, 2013), entender como a formação e a atuação docente têm contribuído para estigmatizar e culpabilizar alunos de famílias negras e pobres pelos problemas de escolarização que apresentam. Além disso, nos interessa pensar como a formação inicial e continuada de professores poderiam pautar essas dificuldades através de um viés crítico e histórico cultural (FRIGOTTO, 2001; SAVIANI, 2003), abandonando a reducionista/meritocrática/excludente visão individualizada do fracasso escolar (PATTO, 2010; ASBAHR, LOPES, 2006).
A psicologização/patologização/medicalização do fracasso escolar: do século XIX ao século XXI, seguimos rotulando
Em estudo realizado por Angelucci et al. (2004) sobre o estado da arte da pesquisa sobre fracasso escolar, sob recorte de 1991 a 2002, as autoras mostraram que diferentes vieses podem fundamentar a compreensão do fracasso escolar, a saber: explicação essencialmente psíquica e individual; problema técnico; questão institucional e questão política. Algumas pesquisas avaliadas pelas autoras demonstraram predomínio de uma visão psicologizante, tecnicista e individualizante do fracasso escolar; outras demonstraram coexistência de concepções incompatíveis; e haviam aquelas que demonstraram avanço na discussão crítica, entendendo não só as relações de poder existentes e constituintes das desigualdades vividas como validaram a importância de uma compreensão profunda das raízes históricas do fracasso escolar (ANGELUCCI et al., 2004; PATTO, 2010).
Angelucci e outras autoras (2004) concluem que a permanência da visão psicologizante sobre o fracasso escolar:
Apesar de já superada pela crítica que desvela as lacunas ou silêncios de que ela é feita, pode nos revelar: a) a força da redução psicológica na explicação do insucesso escolar que, ao passar por sucessivos ´renascimentos´, mostra o poder de convencimento que têm as concepções que não vão além do senso comum; b) a compartimentalização do campo teórico, reforçada pela crença de que as ciências humanas se caracterizam por diversidade teórica benéfica que deve ser preservada; c) a recusa da crítica teórica, vista com maus olhos (porque entendida como implicância ou confusão equivocada ou mal-intencionada entre ciência e política), ou simplesmente ignorada, porque relativizada (ANGELUCCI et al., 2004, p.63).
Assim, nos interessa reafirmar a importância de uma problematização que valide aspectos institucionais, sociais, históricos e políticos. Para isso, nos fundamentamos nas contribuições de Maria Helena Souza Patto (1997, 2010) que desde a década de 1970 denuncia em suas obras que as concepções psicologizantes/patologizantes/medicalizantes dos problemas de escolarização que acometem crianças e adolescentes pobres têm raízes históricas que remontam ao surgimento das ciências humanas (particularmente da psicologia) no século XIX.
Patto (2010) descreve que, durante esse período, os primeiros especialistas que se ocuparam de casos de dificuldade de aprendizagem escolar foram os médicos; e os alunos que possuíam problemas de aprendizado eram diagnosticados por eles como anormais escolares. Esses especialistas atribuíam às diferenças de rendimento da clientela escolar a, basicamente, dois fatores intrínsecos: a hereditariedade e a raça. Isto é, acreditava-se que se um aluno possuía insucesso na escola, esse insucesso estava profundamente relacionado com a sua herança genética.
Nesse sentido, é possível dizer que era legítima a lógica de que uns nasciam mais aptos para o conhecimento do que outros. Como é de se esperar, os menos aptos evidentemente eram os filhos pobres e negros da classe trabalhadora, justificando a realidade de que, ao longo da história, conforme evidencia Saviani (2003), a escola sempre esteve restrita a uma pequena parcela da sociedade: aos filhos dos governantes e das elites. Nesse contexto, contudo, a classe trabalhadora esteve historicamente submetida à fadiga e ao trabalho manual (GRAMSCI, 2004).
É importante ressaltar que até as primeiras décadas do século XX, a determinação desses alunos anormais e sua segregação já era uma prática social legitimada pela figura dos médicos. Esses, por sua vez, tiveram uma decisiva participação na construção das teorias racistas que embasavam os argumentos de anormalidade aos alunos pobres (negros, em sua maioria) e com históricos de insucesso escolar (PATTO, 2010).
Patto (1997) afirma que, a partir de 1930, de anormais escolares esses alunos passaram a ser chamados de alunos-problema. Além disso, as explicações para os problemas de aprendizagem e insucesso escolar, que antes eram étnico-raciais, passaram a ser culturais. Isso significa dizer que, de acordo com o juízo de valor expresso pelas clínicas psicológicas escolares (responsáveis por diagnosticar esses casos, durante esse período), o fracasso escolar se dava pelo atraso cultural dos grupos mais pobres.
Passou-se assim a afirmação não tanto de raças inferiores ou indivíduos constitucionalmente inferiores ou diferentes, mas de ambientes sociais atrasados que produziam crianças desajustadas e problemáticas (PATTO, 2010, p. 70).
A construção da teoria da carência cultural colaborou para justificar as dificuldades de aprendizagem dos alunos das classes sociais proletárias presentes nas escolas. De acordo com o discurso elitista da época, essa problemática justificava-se, por exemplo, pela falta de preparo vinda dos pais. Sobre essa questão, Patto descreve que os adultos das classes subalternas eram “considerados mais agressivos, relapsos, desinteressados pelos filhos, inconstantes, viciados e imorais do que os das classes dominantes” (PATTO, 2010, p.74).
A autora segue afirmando que a partir da década de 1960, sobretudo no início de 1970 nos Estados Unidos, a explicação da desigualdade educacional entre as classes sociais e do insucesso escolar, a partir da teoria da carência cultural, tornou-se ainda mais predominante. Durante esse período, passou-se a afirmar ainda com mais vigor a ideia de que a pobreza ambiental das classes baixas produzia deficiências no desenvolvimento psicológico dos alunos, o que seria a causa de suas dificuldades de aprendizagem e da adaptação escolar (PATTO, 2010).
Torna-se evidente também que no limiar dos anos sessenta e setenta, no Brasil, houve uma imensa aceitação do fracasso escolar ligado à teoria da carência cultural, reforçando, portanto, a ideia de que as pessoas das camadas mais desfavorecidas possuíam uma cultura pobre, negativa e comprometedora do desenvolvimento psicológico das crianças (PATTO, 2010).
Tal contexto induzia ao julgamento de que a pobreza nos espaços das classes baixas era a responsável por produzir deficiências no desenvolvimento psicológico infantil. Então, a classe social passava a ser considerada a causa das dificuldades de aprendizagem e de adaptação escolar dos alunos-problema, conforme eram chamados nos anos de 1980 (e ainda hoje muitos recebem esse rótulo).
Problemas de escolarização que geram fracassos individuais/ sociais/ geracionais são tratados como meros problemas individuais ou familiares. Famílias pobres, em geral, geram crianças menos sadias e pouco aptas para os estudos, justificam os simpatizantes das teorias racistas e da teoria da carência cultural (INSFRAN, MUNIZ, ARAUJO, 2019, p.88-89).
Assim, percebemos que em diferentes tempos históricos, as causas do fracasso escolar foram atribuídas aos próprios alunos (ASBAHR, LOPES, 2006), por uma equivocada compreensão de que supostos aspectos individuais – deficiência intelectual (advindas da raça/ hereditariedade ou da pobreza) ou deficiência cultural (e ‘família desestruturada’) – os impediriam de se interessar/ se dedicar como esperado à norma hegemônica burguesa.
Para Patto (2010, p.161), “a escola parte de um modelo abstrato de criança, que corresponde à classe burguesa”. Essa visão idealizada do aluno, alimentada por muitos professores e pela sociedade, na verdade, não se sustenta quando esses mesmos professores se defrontam com os alunos reais. É por essa razão que, em muitos casos, esses alunos são taxados de carentes, deficientes, privados culturalmente pelos próprios professores; uma vez que não correspondem às expectativas que norteiam as suas práticas docentes. Isso, inclusive, causa até mesmo a desistência do professor em relação a determinados alunos.
A partir do final dos anos 1970, o predomínio da teoria da deficiência cultural foi perdendo espaço para a compreensão da participação do próprio sistema escolar na produção do fracasso escolar. Nesse sentido, se convencionou denominar fatores intraescolares e suas relações com a seletividade social predominante na escola. Logo, a responsabilidade sobre os altos índices do fracasso escolar passou a ser atribuída à escola e não mais a determinados alunos.
O discurso reproduzido durante esse período foi o de que a causa do problema estava ou no professor inapto, ou no funcionamento do próprio sistema escolar que valorizava, em grande escala, um tipo de currículo, de cultura, bem como um método. Isto é, uma forma de ensinar, que não favorecia os conhecimentos da clientela carente, visto que tais conhecimentos estavam distantes de sua realidade cotidiana (PATTO, 2010).
Em relação ao currículo escolar, Patto (2010) chega a afirmar que o seu planejamento se dava partindo do pressuposto de que todos os alunos já dominavam determinados tipos de saberes, que teriam supostamente aprendido em casa. Todavia, nos lares da maioria dos alunos da classe trabalhadora não havia, como ainda hoje não há, a apreensão dos conceitos elementares valorizados pela escola; embora nesses lares haja uma riqueza cultural que a escola não costuma valorizar (PATTO, 2010; ARROYO, 2013).
Essa teoria dos fatores intraescolares é, nos dias atuais, a mais difundida por pesquisadores do tema quando procuram explicar o fracasso escolar. Entretanto, de nada adianta culpabilizar a escola e propor mudanças a ela, se essas mudanças não vierem acompanhadas de profundas transformações estruturais na sociedade, em virtude da superação de um sistema injusto e excludente, que nos rouba direitos e classifica padrões. Sem isso, no entanto, seguiremos culpabilizando ora alunos/famílias pobres, ora professores (cada dia com formação e atuação mais precarizadas e mais adoecidos)1.
Frequentemente frustrados, enraivecidos, desesperados, descrentes, os educadores se veem diante da necessidade de acionar, todos os dias, recursos para sobreviver em condições adversas de trabalho. Esses recursos, como se sabe, reforçam condições escolares adversas ao ensino: faltar, mudar de escola, tirar licenças, escolher as melhores escolas, recusar-se a lecionar para as séries mais trabalhosas, livrar-se dos alunos mais resistentes à adaptação escolar, diminuir ao máximo a duração das aulas, etc. Não por acaso, um novo tema foi inaugurado no campo da pesquisa educacional: a saúde dos trabalhadores em educação. São muitos os professores que adoecem sob tais condições de trabalho. Frequentemente frustrados, enraivecidos, desesperados, descrentes do ensino que lhes é oferecido e da possibilidade de melhorar as condições de vida pela escolarização, os alunos desenvolvem meios de sobrevivência em condições adversas. Muitas vezes, essas expressões de desespero confirmam, aos olhos dos adultos da escola, a predisposição à violência que a ideologia atribui aos meninos e meninas pobres. (...) Neste campo de batalha, o inimigo está sempre fora de foco (PATTO, 2005, p.34) [Negritos nossos].
O fracasso escolar e a medicalização da educação
Pensar em como o fracasso escolar é compreendido a partir de um viés de culpabilização individual dos grupos vulnerabilizados, que impõe sobre o próprio aluno e sobre a família a responsabilidade pelo insucesso no processo de escolarização, nos remete a inúmeras questões de medicalização. Estas, por sua vez, se estabelecem sob matrizes normativas de regulação da vida em todas as instâncias, como: “desenvolvimento, comportamento, aprendizagem, inteligência, afetividade, linguagem, gênero, sexualidade, eficiência, estética...” (FÓRUM, 2019, p. 12).
Nesse sentido, é importante ressaltar que os processos de medicalização envolvem a determinação de formatações de tipos naturalmente aceitos e não aceitos, ou seja, o que se deseja alcançar e o que não é desejável (FÓRUM, 2019). Seu surgimento no cotidiano se dá por diversas formas e em diversos espaços, como nas escolas, nos postos de saúde, igrejas, ruas, mídias, entre outros, onde se espera que atuemos como bons reprodutores de um modelo a ser seguido por todos, “[...] invisibilizando a complexidade da existência e camuflando o fato de que as condições de vida são absurdamente desiguais” (FÓRUM, 2019, p. 12).
Considerando que a medicalização é sustentada por vieses universalizantes e individualizantes ao mesmo tempo, uma vez que o universal produz e legitima padrões e o individual é obrigado a segui-lo e se adaptar (FÓRUM, 2019), percebemos que os moldes adentram os muros das escolas, tornando alunos também vítimas desse fenômeno. Pensemos, portanto, no quanto esse modelo adere ao disciplinamento no cerne da sala de aula e no quanto o processo de ensino-aprendizagem acaba se tornando uma ferramenta de busca e legitimação desses estigmas e padrões muitas vezes. Trata-se de um sistema que acaba por desenvolver a responsabilidade de o indivíduo se manter dentro das normas, sendo que qualquer desvio é visto como um problema a ser resolvido. Então, passamos a questionar: se existem sujeitos escolares com dificuldades em seu processo de aprendizagem, o que deverá ser feito para que o ensino verdadeiramente se efetive?
Ao passo que os casos de dificuldades de aprendizagem vão surgindo e professores/as se sentem incapazes de solucionar com suas ferramentas pedagógicas, a solução medicalizante se torna sedutora para educadores e famílias por ser, muitas vezes, fácil, prática e socialmente aceita - mais aceito do que psicoterapia2, sobre a qual ainda persiste um véu de incredulidade e preconceito. Para sujeitos que não aprendem, por exemplo, por falta de atenção, problemas comportamentais ou que possuam alguma dificuldade de aprendizagem, a procura por um diagnóstico é vista como uma saída aliviadora para um problema considerado sem solução - um comportamento fora do padrão e normativas educacionais e sociais (LIMA, 2005).
Lima (2005) atenta que centenas de manuais e livros de autoajuda ensinam como tomar seu filho com distúrbio do déficit de atenção (DDA) um sucesso, baseados em reforços comportamentais estandardizados que manterão interesse e concentração da criança dentro da curva esperada de um comportamento medicalizado/condicionado:
Após o diagnóstico, os pais são convidados a transformar-se em ´especialistas´ no tema, dominando a melhor postura a adotar em situações cotidianas. Com a adequada orientação, eles ficam sabendo que a rotina doméstica deve ser organizada com regras claras, que os limites necessitam ser impostos tranquila e repetidamente, evitando-se um estilo permissivo de paternidade. Por outro lado, os pais são desestimulados a aplicar punições e a fazer críticas excessivas, trocando-as pelo ´reforço positivo´, destacando e premiando o que a criança fez corretamente (LIMA, 2005, p. 118).
Tal evidência trazida por Lima (2005) aparece também nos estudos de Patto (2009), que mostra que a credibilidade do diagnóstico e das orientações de como tratar a doença vem da percepção que a população tem de que o especialista (médico, psicólogo, neurocientista, psicomotricista, psicopedagogo e outros profissionais que diagnosticam ou encaminham para um diagnóstico) é o único competente para apontar um laudo (redentor para muitos). “É assim que a maioria dos laudos confirma queixas leigas e afirma que os solicitantes dos exames psicológicos querem ouvir” (PATTO, 2009, p. 408).
Complementando o que trazem os autores citados acima, vemos em Cruz, Okamoto e Ferrazza (2016), que houve uma
[...] popularização do saber psiquiátrico, que exclui o saber parental constitutivo do laço social e afetivo, para reduzi-lo apenas ao saber médico. De fato, o saber parental e até mesmo popular se enfraquece diante de uma afirmação médica a respeito do comportamento infantil, já que ao longo do tempo a ciência médica se caracterizou como a ciência que ditaria o modo e a maneira correta e saudável de se colocar no mundo. Isto leva pais e professores a buscarem fora de seus domínios a resolução para seus problemas, apoiando-se na palavra final do especialista (CRUZ; OKAMOTO; FERRAZZA, 2016, p.711).
Baseada nas evidências sócio históricas culturais que suas pesquisas demonstram, Patto faz fortes críticas aos diagnósticos, pois considera que são produto do mais absoluto senso comum, produtores de estigmas e preconceitos e usados para justificar “a exclusão escolar de quase todos os examinandos, reduzidos a coisas portadoras de defeitos de funcionamento em algum componente da máquina psíquica” (PATTO, 1997, p. 49).
A medicalização, no entanto, não acontece apenas sob forma de diagnósticos. Ela acontece quando há a intencionalidade de tratar os problemas escolares como de cunho médico, individualizante, biologizante e que acaba por psicologizar tendências e comportamentos como uma doença a ser combatida (COLLARES; MOYSES, 1994). Perspectiva esta que é inserida nas escolas sob ordem de preconceito e desqualificação social de alunos pobres. Nesse sentido, Viégas afirma que a cultura da medicalização não afeta apenas a quem faz uso de medicalização e tratamento, mas todos nós, pois aceitamos “[...] mais ou menos passivamente que a desigualdade social é reflexo de diferenças individuais” (VIEGAS, 2014, p. 135).
Quando o olhar que julga anormalidade encontra um problema no/a aluno/a, uma patologia precisa ser confirmada, o que sugere que o caminho a seguir não pode ser mais visto como responsabilidade da escola, dos profissionais de educação, do sistema social, do Estado. Desresponsabilizar o sistema é anular os direitos. Desresponsabilizar a escola é impedir o processo de ensino, é sucumbir alunos a rótulos e classificações que coexistem numa sala de aula já tão normatizada por preconceitos e discriminações contra discordantes/não normativos.
Tratar problemas escolares como de cunho médico é desestabilizar sujeitos e tratá-los como incapazes, simplesmente por serem diferentes ou por estarem submetidos a diversas formas de injustiças sociais diariamente. Ressaltamos, inclusive, que quando há o olhar que julga anormalidade, há também a concepção, produzida historicamente, de que especialistas são os que entendem o que é melhor para a vida, então uma farta distribuição e venda de remédios se torna o negócio financeiro do mercado (MACHADO, 2014). Sistema que nos faz questionar: a quem serve o fracasso escolar e sua consequente medicalização?
Nessa perspectiva, problemas de origem social, histórica e política são cunhados como individuais e transformados em culpa do próprio sujeito, vítima desse sistema (GIUSTI, 2016). Sobre essa questão, Conrad (2007) classifica a medicalização como processo que reduz questões sociais a fenômenos de causalidade biológica, o que faz com que a medicina organize a própria vida e descontextualize processos históricos, culturais, políticos e sociais. Desse modo, ele entende que a medicalização diz respeito ao processo de tratar como doenças e distúrbios questões que não dizem respeito à saúde.
Ainda nesse sentido e de acordo com o verbete elaborado por Hora (2006) para o glossário do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR), a medicalização diz respeito ao processo de intervenção política no corpo social, enquanto o modo de vida é apropriado pela medicina, cuja interferência ocorre na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos. Este fenômeno é evidenciado historicamente e se desenvolve no contexto das sociedades disciplinares, o que acabou por ampliar o espectro médico/higienista ao plano político (HORA, 2006).
Assim, percebemos que as populações vulnerabilizadas, vitimizadas por perspectivas teóricas ultrapassadas/reducionistas/racistas/elitistas como as teorias racistas e a teoria da carência cultural (PATTO, 2010), também são o alvo preferencial dos processos de medicalização da vida. Os alunos, que geralmente passam pela experiência de fracasso e evasão escolar, não são números, eles têm cor, gênero e classe social. E quando percebemos que quem fracassa geralmente são os alunos das camadas populares, filhos da classe trabalhadora, nos damos conta de que o fracasso escolar não brota na escola como algo natural. Trata-se de um projeto arquitetado pela burguesia dominante a fim de manter a sua governabilidade, em detrimento da negação de uma educação de qualidade de forma sistematizada e democrática a todos os alunos (KUENZER, 2005).
Metodologia
Apresentaremos aqui, brevemente, informações sobre as duas pesquisas de campo, realizadas por membros do nosso grupo de pesquisa, que iremos analisar à luz das contribuições que trazem os teóricos que buscamos para fundamentar este trabalho.
A primeira pesquisa, realizada em 2015, consiste em entrevistas presenciais feitas com 14 alunos multirrepetentes (este foi o critério de escolha dos participantes) do período noturno de uma escola pública estadual de Santo Antônio de Pádua/RJ. A escola foi escolhida em função da proximidade de um dos pesquisadores com a coordenação da escola, que viabilizou sua entrada para inicialmente ter conversas informais com os alunos. Participaram, portanto, aqueles que tiveram interesse em continuar as conversas (e, portanto, serem entrevistados) com os pesquisadores. Os participantes têm a faixa etária entre 14 e 17 anos, predominantemente homens e negros (por se tratar de entrevistas presenciais, não nos sentimos à vontade para perguntar gênero e raça, portanto não temos percentuais desses marcadores). As entrevistas objetivaram entender, mediante a perspectiva dos próprios alunos, a sua trajetória de multirrepetência escolar, suas dificuldades e frustrações, por meio do acolhimento de suas falas e histórias de vida.
Em relação a idade dos entrevistados, tivemos um aluno com 14 anos, três com 15 anos, seis com 16 anos e quatro com 17. As entrevistas (semiestruturadas, de caráter qualitativo) ocorreram no espaço da escola, em um horário antes da primeira aula, e todas as respostas foram anotadas para serem analisadas a posteriori. As entrevistas se basearam em um total de seis perguntas/eixos que poderiam ser aprofundadas a depender da resposta dos participantes. Os alunos que participaram da entrevista foram aqueles que se disponibilizaram durante o horário de intervalo entre as aulas, já que a abordagem dos pesquisadores ocorreu na escola estadual durante o período letivo. De modo geral, buscamos entender como se deu o processo de multirrepetência desses alunos, como eles lidavam com essa situação, qual é a perspectiva que eles tinham em relação à escola e qual o sentimento e/ou a percepção que desenvolveram baseado na experiência de repetência na escola.
A segunda pesquisa contou com a participação de 10 formandos/as (do último ano3) e 13 egressos (totalizando 23 pessoas que responderam ao questionário do Google Formulários4 das 228 que foram contatadas na Universidade e através de redes sociais) de um curso de Pedagogia de uma Universidade pública da região Noroeste Fluminense, em 2019. Importante ressaltar que esta pesquisa é parte integrante de uma dissertação de mestrado desenvolvida pela mesma instituição responsável pelo curso de Pedagogia e que foi escolhida – dentre as demais do nosso grupo de pesquisa – por salientar as temáticas que estavam em foco neste artigo (assim como a pesquisa de 2015). Destes, 65,2% eram mulheres; majoritariamente com idades entre 21 e 40 anos (91,3%), sendo que 60,9% eram negras/pardas e 39,1% brancas/os. A relação entre formandos/as e egressos foi a seguinte: 56,5% eram Pedagogos/as formados/as e 43,5% formandos/as do curso de Pedagogia. Perguntamos sobre a atuação profissional: 78,3% ainda não atuavam como professor/a. Entre os demais, 13% estavam atuando há menos de 3 anos e 8,7% lecionam entre 3 e 10 anos.
As perguntas abertas foram feitas através do questionário online, enviado por meio de redes sociais de alunos/as e egressos do curso de Pedagogia em questão e tivemos 10% de respondentes dentre o total de participantes destes grupos. O questionário continha 20 questões, porém selecionamos apenas três que tinham maior relação com a pesquisa de 2015 com os alunos da escola estadual. As três questões objetivaram, dessa forma, apreender a percepção dos participantes sobre o conceito de fracasso escolar; o que eles entendem por dificuldades de aprendizagem; e qual a compreensão deles/as sobre o fenômeno da medicalização.
É importante ressaltar que as duas pesquisas - registradas na Plataforma Brasil do Conselho Nacional de Saúde - ocorreram com total consentimento dos participantes e respeitaram as normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde. O anonimato dos participantes foi garantido e os nomes que aparecerão nas falas/ respostas transcritas são fictícios.
As respostas foram analisadas através da metodologia de Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977), onde, após o tratamento dos dados, agrupamos os resultados em categorias de análise, conforme será apresentado no próximo tópico.
Enfatizamos que a metodologia escolhida é respaldada em pesquisas anteriores de autoras consagradas na área de psicologia escolar e educacional, como Maria Helena Souza Patto (1997; 2005; 2009; 2010), Adriana Marcondes Machado (2014); Marisa Meira (2012) e Lygia de Sousa Viégas (2011; 2014; 2016).
Apresentação e discussão de resultados
Escolhemos apresentar e analisar as duas pesquisas conjuntamente, para que as diferentes perspectivas sobre fracasso escolar e medicalização da educação sejam compreendidas de forma conjuntural e com os atravessamentos que acometem o referido grupo.
Na primeira pesquisa, com alunos do ensino básico noturno, as entrevistas realizadas geraram seis eixos norteadores, a saber: história de vida; trajetória escolar; percepção sobre a formação escolar recebida; críticas a essa formação ou a escola; a escola esperada ou a escola dos sonhos; percepção sobre suas repetências escolares.
No eixo história de vida, destacamos que dos catorze alunos envolvidos na entrevista, onze moravam na periferia da cidade e alguns deles relataram terem envolvimento com facções criminosas. Dos 14 entrevistados, oito disseram ter em casa irmãos ou parentes próximos que também já passaram pela experiência da repetência escolar. Disseram também terem sido apoiados pelos pais, para que não desistissem dos estudos. Isso fica evidenciado claramente, por exemplo, na fala do Marcos Antony, ao ser perguntado se, após a experiência da terceira repetência, ele pensou em parar de estudar; no que respondeu: “Como minha mãe não deixou, eu não parei. Meus pais pegaram no meu pé”.
Com relação a isso, a pesquisa de Louzano (2013) aponta que o Brasil apresenta umas das taxas de distorção idade-série mais elevadas da América Latina. Apesar das políticas de progressão continuada, nossos índices de repetência ainda são mais elevados do que na maioria dos países da região, o que demonstra como segue fortalecida em nosso país a cultura de repetência.
Ademais, o estudo de Viegas (2011) mostra que a progressão continuada reduziu a distorção idade-série a um alto custo, pois após quase três décadas dessa política pública, os índices de aprovação na educação básica melhoraram5, porém tem gerado milhões de
semi-analfabetos, que concluem a escola média regular e os supletivos sem conhecimentos mínimos que lhes permitam ingressar em universidades públicas ou ter oportunidades de trabalho que vão além de empregos pagos a preço de esmola (PATTO, 2005, p. 30).
Os adolescentes da primeira pesquisa parecem ter introjetado desde cedo as normativas sociais de que o sucesso escolar depende de disciplina, obediência e boas companhias (COIMBRA, 2001). Ao serem perguntados sobre os motivos que para eles foram determinantes de suas repetências, cinco alunos afirmaram que o problema foram as companhias dos amigos. Destacamos aqui duas falas:
Leonardo: — Foi por causa dos maus elementos.
Renato: — Muita bagunça. Eu brincava muito com os outros. Influência dos amigos.
Os outros nove alunos responsabilizaram a si mesmos pela sua repetência escolar, pois afirmaram que não conseguiam gostar de estudar e, por isso, não levavam seu estudo a sério. Isso fica claro em algumas falas a seguir:
Thiago: — O problema estava em mim. Porque eu gosto só de jogar bola.
Andrey — Eu era o aluno mais inteligente da sala. Hoje mais ou menos. Muita preguiça. Mas eu estudo, pra não virar mendigo.
Luiz Felipe: — Fui preso por causa da droga. Não gostava de estudar. A culpa foi minha.
João: — Seria bom se eu nascesse inteligente mesmo.
Quando foram perguntados sobre a visão que eles têm da escola e da formação que receberam, ficou claro que, em suas visões, a instituição também é responsável por suas repetências escolares. De acordo com suas falas, a escola é um ambiente no qual eles não conseguem se encaixar. Algumas das falas podem ser observadas a seguir:
Jonas: — Repeti porque era chato. Tudo era chato. Professores, a escola, as matérias, menos matemática. Eu mal ia a escola. Era melhor ficar em casa.
Marcos Antony: — Acho que a escola é chata. Tem hora que a tia enche o saco. É igual um presídio.
A pesquisa de Asbahr e Lopes (2006) intitulada “A culpa é sua” e realizada com alunos e professores de uma escola pública de São Paulo apresentou resultados semelhantes. Nela, alunos se culpabilizaram (e atribuíram parte do fracasso a seu ambiente familiar, social e aos professores) pelas dificuldades de aprendizagem, o desinteresse pelos estudos e a consequente repetência.
Asbahr e Lopes (2006) explicam que:
Muitas crianças reproduziram o discurso da família e da escola ao falarem sobre hereditariedade, separação dos pais, indisciplina ou problemas médicos; porém, denunciaram também a responsabilidade da escola por sua não-aprendizagem (ASBAHR; LOPES, 2006, p.57).
E complementam com uma reflexão muito importante para nossa discussão:
Essas ´denúncias´ das crianças inserem-se na mesma lógica de transferir a ´culpa´ pelo fracasso, historicamente atribuída aos alunos e às suas famílias, ao professor. Este equívoco de natureza ideológica está presente também no discurso de psicólogos e de educadores ´mais críticos´ que não pensam a escola no interior das contradições de uma sociedade de classes, mas atribuem o que se passa nas escolas públicas ao despreparo, à incompetência, ao desequilíbrio emocional e a tantos outros estigmas atribuídos aos educadores (ASBAHR; LOPES, 2006, p.68).
As falas destes adolescentes de escola pública nos chamam atenção para uma realidade que em todo o presente trabalho estamos destacando: a falta de significado que a escola e a educação formal (formatada para atender aos interesses das elites) têm para eles.
Há algumas décadas atrás, a escola era sinônimo de emprego, para a maioria dos que nela se inseriam e terminavam os estudos (uma parcela muito pequena da população, é importante ressaltar). Hoje, ela não oferece sequer essa garantia, principalmente quando estamos falando de alunos negros e moradores da periferia, para os quais as oportunidades de trabalho restringem-se ainda mais. A escola de hoje não absorve/valoriza os saberes que esses meninos trazem de suas vivências e realidades (muito distantes, na maioria das vezes do ideal de aluno e famílias fantasiada pela escola). É uma escola que não abarca (e nem abraça) sonhos.
Analisando a segunda pesquisa, com formandos/as e egressos de Pedagogia, escolhemos focar na percepção dos/as participantes sobre fracasso escolar, dificuldades de aprendizagem e medicalização, conforme explicitado na metodologia. As categorias de análise (BARDIN, 1977) geradas a partir dos resultados das questões referentes ao fracasso escolar e às dificuldades de aprendizagem, assim como na pesquisa de Angelucci et al. (2004) que também encontrou esses resultados, dizem respeito a compreensão individualizante; compreensão sócio histórica cultural; culpabilização das famílias dos alunos e crítica ao modelo de ensino e estrutura escolar.
Do total de 23 respostas recebidas, percebemos que a maioria dos/as participantes (dez pessoas ou 43,4%) têm uma compreensão mais elaborada sobre o que causa o fracasso escolar, indicando tanto fatores individuais quanto sistêmicos, conforme a resposta a seguir:
Entendo como uma série de fatores onde (sic) o aprendizado é prejudicado, bem como más condições de trabalho, situações financeiras, histórico de vida, questões sociais, psicológicas e cognitivas do aluno e professor que infelizmente contribuem para a não apropriação de conhecimento e frustração do professor (Pedagoga negra/ parda, entre 21 e 30 anos e atuando como professora a menos de 3 anos).
Somente quatro participantes consideraram que o fracasso escolar é apenas fruto do desinteresse do aluno; enquanto outro (aluno concluinte de Pedagogia, branco, entre 21 e 30 anos e que ainda não atua como professor) disse que o fracasso escolar tem “relação com a família”. Três pessoas demonstraram ter uma compreensão sócio-histórica-cultural do problema. Duas pessoas criticaram o modelo tradicional de educação e uma falou da falta de recursos e material. Outras duas culpabilizaram os governantes.
Quando perguntamos qual era a compreensão dos participantes sobre dificuldades de aprendizagem, percebemos que a compreensão individualizante/ biologizante/ patologizante foi mais proeminente do que com relação à pergunta anterior. 13 pessoas (ou 56,5% dos participantes) entendem que dificuldades de aprendizagem tem relação com “deficiência cognitiva”; “Desinteresse. Nada é difícil quando se quer”; “dificuldade de aprender conteúdos”. Seis participantes consideraram que a dificuldade de aprendizagem é fruto de metodologia de ensino equivocada: “É quando a didática aplicada não faz sentido para o aluno”. Dois participantes questionaram as condições precárias da escola, como as salas de aula lotadas. Outros dois entendem que o problema é amplo e fruto de múltiplos fatores.
A pesquisa de Insfran, Muniz e Araujo (2019) obteve resultado parecido quando os participantes da mesma foram arrolados acerca da sua percepção sobre dificuldades de aprendizagem. 58% dos professores de ensino superior e tecnológico que responderam à pesquisa têm uma compreensão individualizante/ biologizante/ patologizante. Sobre isso, explicam as autoras:
Talvez uma pergunta que faça referência explícita a dificuldades de aprendizagem leve os respondentes à óbvia individualização dos problemas de escolarização. [...] No entanto, antes de tecermos crítica a esta percepção majoritária dos nossos participantes, precisamos lembrar quão disseminadas estão as práticas individualizantes/ patologizantes/ medicalizantes. Quantos professores têm acesso e tempo de se debruçar sobre estudos dos males da medicalização, sobre a epidemia de doenças mentais que assola os Estados Unidos [por exemplo] ou tiveram oportunidade de pensar criticamente sobre o fracasso escolar das classes pobres? (INSFRAN; MUNIZ; ARAUJO, 2019, p. 98)
Percebemos que os relatos dos/as alunos/as formandos/as e formados/as do curso de Pedagogia se assemelham com às declarações dos alunos da educação básica entrevistados, sobretudo quando apontam que a escola é desinteressante para os estudantes. Alguns professores (e futuros professores) demonstraram preocupação com a falta de sentido que a escola tem para os alunos. Duas falas nos chamaram atenção:
Fracasso escolar é quando a escola não faz diferença na vida do aluno (Aluna concluinte negra/ parda, entre 31 e 40 anos, que ainda não atua como professora).
Fracasso Escolar é quando a instituição não compreende a pluralidade que adentra os muros das escolas e segrega os que não conseguem acompanhar o modelo pedagógico imposto (Pedagoga branca, 21 a 30 anos, atuando como professora a menos de 3 anos).
Entendemos, a partir dessas falas e do pontual contribuição de Patto (2005), que:
A situação escolar que delineamos só será revertida quando os educadores forem valorizados. Respeitá-los é, entre outras coisas, deixar de ‘pseudoformá-los’ como técnicos de ensino e passar a formá-los como trabalhadores intelectuais. Para tanto, é imprescindível uma proposta formativa centrada na reflexão sobre a realidade social em que vivem e sobre a relação dela com uma política educacional que vitima professores e alunos (PATTO, 2005, p.39).
Diante de todo esse panorama apresentado, tanto das entrevistas com os alunos da educação básica, quanto dos alunos e ex-alunos de Pedagogia, fica claro para nós como o espaço escolar vem se configurando historicamente. Isto é, um instrumento que, conforme nos aponta Althusser (1958), serve como um aparelho ideológico do Estado, cumprindo nesse sentido duas funções básicas: contribuir para a formação de força de trabalho para atender as demandas do capital e para a inculcação da ideologia burguesa.
Partindo desse pressuposto, cabe trazer a fala de Viégas (2016) que anuncia os vários aspectos que devem ser repensados na escola brasileira:
[...] a sua arquitetura, que mais se assemelha a um aparelho do sistema prisional; a forma centralizada de gestão, na qual domina a burocratização da vida escolar e a implantação autoritária de políticas educacionais, sem reconhecer a complexidade do chão da escola; o desrespeito crônico à profissão docente, revelado pelos baixos salários, formação precária e pouquíssima possibilidade de escuta de suas demandas, reivindicações, bem como de suas sugestões e experiências concretas; o engessamento da vida escolar, que tem sufocado a criação de novas formas de conduzir o processo de escolarização e o preconceito em relação aos pobres, incrustado na sociedade brasileira, que vem reforçando a estigmatização da criança pobre e de sua família, desde a elaboração e implementação de políticas públicas até a construção da vida diária escolar (VIÉGAS, 2016, p. 15).
Retornando à discussão sobre a medicalização da educação, percebemos uma intrínseca relação entre a compreensão individualizante/biologizante/ patologizante que alguns/as Pedagogos/as e formandos/as de Pedagogia demonstraram e o desconhecimento destes/as com relação ao processo que transforma questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais e biológicas (MOYSÉS; COLLARES, 2010).
Dos 23 participantes da segunda pesquisa, dois disseram desconhecer completamente o que significa medicalização. Dos 21 participantes que apresentaram sua compreensão sobre o termo, apenas uma pessoa demonstrou percepção equivocada, pois disse que medicalização é quando aparece “um professor para ajudar na dificuldade do aluno que não consegue acompanhar a turma” (Pedagoga negra/parda, entre 31 e 40 anos, que não atua ainda como professora). Os demais respondentes demonstraram conhecer o conceito, mas a maioria (13 pessoas ou 61,9%) entende que medicalizar é dar remédio, ou seja, uma percepção reducionista segundo a maioria dos estudiosos do tema (MEIRA, 2012; VIEGAS, 2016; FORUM, 2019).
Chama-nos atenção o fato de poucas pessoas terem demonstrado preocupação e/ou crítica ao paradigma medicalizante e em relação ao excessivo uso de medicamentos. Talvez a naturalização do uso de psicofármacos pela sociedade (WHITAKER, 2017), faça com que muitos acreditem que a medicalização é “necessária, em causas muito específicas” (aluno concluinte de Pedagogia, branco, entre 31 e 40 anos e que ainda não atua como professor).
Apesar disso, tivemos três pessoas que fizeram críticas ao sistema político, social e escolar, à própria categoria profissional (professores) e ao poder médico se impondo sobre o saber pedagógico. Aqui uma dessas respostas para ilustrar:
Entendo como um meio de que profissionais encontram para rotular alunos e passar o pano para uma série de problemas que poderiam ser resolvidas a partir de uma política social. Mas é melhor dar um remedinho do que tratar o aluno com outros métodos e ir na raiz do problema (Pedagoga negra/parda, entre 21 e 30 anos, atuando como professora a menos de 3 anos).
Portanto, partimos dessas falas críticas e das contribuições teóricas apresentadas ao longo desse trabalho para dizer que compreender a culpabilização do aluno, pelas suas experiências de multirrepetências e baixo rendimento escolar, apenas mascara a luta de classes na qual estamos inseridos/as. Precisamos entender “a escola como uma instituição social regida pela mesma lógica constitutiva da sociedade de classes” (ANGELUCCI et al., 2004, p. 63). Somente descortinando as relações de poder/ opressão constituintes das relações sociais e escolares, poderemos dar passos mais largos em busca de justiça social e direitos básicos, constantemente subtraídos ou negados por Estados necropolíticos (MBEMBE, 2019).
Considerações finais
Este estudo foi baseado na necessidade de contribuir com a desconstrução do que tange a reprodução de fatores que entendem o fracasso escolar como algo biologizante, individual e isolado de aspectos políticos, econômicos e sociais. Consideramos importante relacionar as duas pesquisas de contextos diferentes e participantes em papeis distintos (alunos/as, professores/as e futuros professores/as) para deixar claro que a educação básica precisa ser compreendida na totalidade das relações que a constitui.
Fez-se, portanto, necessário uma análise crítica e histórica da produção do fracasso escolar, a partir da obra de Patto (1997; 2005; 2009; 2010) e outras autoras (VIÉGAS, 2011, 2014, 2016; ASBAHR; LOPES, 2006), que há muitos anos denunciam toda a sorte de exclusões e opressões sofridas pelos filhos da classe trabalhadora.
Isso posto, fica evidente que a explicação individualizante/ biologizante/ patologizante/ medicalizante para as dificuldades que acometem as classes vulnerabilizadas é muito conveniente a esse injusto sistema, que nas últimas décadas só fez aprofundar ainda mais desigualdades, discriminações e exclusões. A faceta mais perversa do capitalismo, o neoliberalismo globalizado predatório, ao passo que zela pelos interesses das grandes instituições financeiras (e do deus Mercado), reduz o papel do Estado na garantia de direitos sociais e interfere no financiamento e nos objetivos das políticas públicas (PATTO, 2009).
Portanto, compreende-se ser de grande importância ressaltar o quanto o ensino nas escolas (acrítico, despolitizado e descontextualizado) é influenciado por interesses capitalistas, oriundos da necessidade do grande capital de formar um exército de reserva resignado/ abnegado/ alienado, fruto de um sistema educacional que menospreza e deslegitima as referências culturais populares e contra hegemônicas. Assim, priorizando normatividades que não fazem sentido dentro do conjunto de referências de milhões de meninos e meninas, nossas escolas públicas seguem o rito da exclusão, hoje travestido de inclusão excludente como fica claro nas falas dos meninos entrevistados na nossa pesquisa. E isso é reforçado, de certa maneira, pela forma como os/as professores/as e futuros/as professores/as concebem as dificuldades de aprendizagem.
Em suma, torna-se cada vez mais necessário que profissionais da educação, bem como profissionais que de alguma forma estejam em prol de contribuir com o sistema de ensino, se unam na luta por uma educação pública de qualidade e socialmente referenciada, ampliando a crítica ao sistema capitalista no qual a sociedade está submetida, buscando desconstruir ações e pensamentos predominantes de um viés que acaba por reproduzir práticas que culpabilizam vítimas e reforçam cada vez mais o fracasso escolar e a desigualdade. Não se trata, porém, de simplesmente compreender o contexto aqui posto e se perceber como agente reprodutor de opressões e exclusões. Trata-se de reconstruir o pensamento, mas também a própria prática enquanto ser social.
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SOBRE AS AUTORAS
FERNANDA INSFRAN é doutora e mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora do Instituto do Noroeste Fluminense de Ensino Superior e do Programa de Pós Graduação em Ensino da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora do Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Educação (NEIPE/UFF) e membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Realizou estudo pós-doutoral no Programa de Pós Graduação em bioética, ética aplicada e saúde coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGBIOS/UFRJ).
E-mail: insfran.nery@gmail.com
THALLES AZEVEDO LADEIRA é pedagogo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando do Programa de Pós Graduação em Ensino da Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Secretaria Municipal de Educação Bom Jesus do Itabapoana/ RJ, membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Educação (NEIPE/UFF) e do Núcleo de Pesquisa em Trabalho em Educação (NUPETE/UFF).
E-mail: thalles-ladeira@hotmail.com
SAMELA ESTÉFANY FRANCISCO FARIA é pedagoga pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestranda do Programa de Pós Graduação em Ensino da Universidade Federal Fluminense (UFF), membra do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Educação (NEIPE/UFF).
E-mail: estefanysamela@gmail.com
Recebido em: 14.06.2020
Aceito em: 13.11.2020
1 Segundo pesquisa realizada pela Associação Nova Escola em 2018 com mais de 5 mil educadores, 66% destes já precisaram se afastar por problemas de saúde, decorrente das condições de trabalho (TEIXEIRA, 2018).
2 Pesquisa norte americana mostrou que houve aumento na prescrição e uso de antidepressivos e redução nas consultas psicoterápicas com psicólogos e psiquiatras entre 2005 e 2008 nos Estado Unidos. A pesquisa aponta que o alto custo e lentidão do trabalho terapêutico contribuem para que os pacientes prefiram os psicofármacos (CHELMICKI, 2018). Estudo realizado pela empresa Funcional Health Tech apresentou um aumento de 23% no consumo de antidepressivos, principalmente entre mulheres acima de 40 anos, no Brasil entre 2014 e 2018 (VIDALE, 2020).
3 O questionário online foi enviado para alunos/as de Pedagogia que estavam no último ano de formação, pois consideramos importante que já tivessem iniciado os estágios docentes e as experiências nas escolas. Também enviamos para egressos com os quais tínhamos contato através de redes sociais – grupos de ex alunos/as do curso de Pedagogia em questão.
4 Google Formulários é uma plataforma digital disponibilizada para administração de pesquisas incluindo as ferramentas do Google Drive. Ele possui opções de criação de questionários, formulando gráficos e gerando planilhas para análises de dados, sendo possível usá-lo e administrá-lo online.
5 No ensino fundamental, eram 69,4% de aprovados em 1986 (VIEGAS, 2011) e passou para 91,2% em 2018 (INEP, 2019). A aprovação no ensino médio em 2018 foi de 83,4% (INEP, 2019).