RESENHA
A MORADA DA MEMÓRIA EM PÁTIO DAS SOMBRAS, DE MIA COUTO
Por Etelvino Manuel Raul Guila
Universidade Eduardo Mondlane
Maputo, Moçambique
Milena Batista Bráz
Bolsista PIBIC/CNPq/UFSC
Florianópolis, SC, Brasil
Eliane Debus
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis, SC, Brasil
Dados catalográficos da obra COUTO, Mia. O pátio das sombras. Ilustração de Malangatana Ngwenya. Maputo: Escola Portuguesa de Moçambique, 2018.
DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.44603
O livro Pátio das sombras (KAPULANA, 2018) é de autoria do escritor moçambicano António Emílio Leite Couto, conhecido internacionalmente pelo pseudônimo de Mia Couto, e do ilustrador, também moçambicano, Malangatana Valente Ngwenha. A obra faz parte do conjunto de 10 títulos integrados ao projeto “Contos e Histórias de Moçambique”, que surge da colaboração entre a Escola Portuguesa de Maputo Centro de Ensino e Língua Português (EPM-CELP) e a Fundació Contes Pel Món, de Barcelona, e tem como objetivo principal divulgar, por meio de contos da tradição, o rico manancial do imaginário popular moçambicano e apresentá-los às crianças.
A coleção recebeu a coordenação editorial de Teresa Noronha (EPM-CELP) e Ruth Banón Méndez (Fundação), e foi publicada em Maputo/Moçambique entre os anos de 2009 a 2014. O título O pátio das Sombras foi o primeiro a ser publicado em Moçambique em 2009. No Brasil, a coleção recebeu a denominação de “Contos de Moçambique” pela editora Kapulana, que publicou entre os anos de 2016 a 2018. Aqui, o livro de Mia Couto foi um dos últimos a ser lançado, em 2018, sendo vencedor do prêmio de melhor livro para infância de literatura em língua portuguesa, pela Fundação Nacional do Livro Infantil Juvenil (FNLIJ).
O livro impresso, como todos os outros da Coleção, tem medidas de 21 cm de altura por 21 cm de largura e 32 páginas. Em Moçambique, possui dois formatos impressos: capa dura e brochura; no Brasil, a edição é em brochura. Como paratexto, encontra-se um breve comentário do escritor, que expõe sua experiência de leitura sobre o texto fonte (narrativa original) e compartilha a explicação do motivo da escolha de uma história tradicional para trabalhá-la como uma releitura, preservando ou alterando algum aspecto presente no texto de partida. Além disso, é apresentada a biografia do ilustrador e do escrito. O livro apresenta ao leitor, além da nova versão, o conto na sua forma original. Na contra capa, aparecem informações sobre o projeto que deu origem para a realização da coletânea.
O escritor da narrativa, Mia Couto, nasceu em 1955, na cidade da Beira, capital provincial de Sofala, na região central de Moçambique. Ele afirma ter herdado do pai, o escritor português-moçambicano Fernando Leite Couto, a veia poética e da mãe o gosto por contar histórias. É formado em Biologia e exerceu por um tempo o trabalho de jornalista em diversos órgãos de informação nos anos que se seguiram à independência de Moçambique, em junho de 1975, assumindo, em muitos deles, a função de diretor. Ele estreia no mundo da literatura com a obra de poemas A raíz do orvalho, no ano de 1983. No entanto, ressalta-se que é como contista e romancista que mais se destaca.
Mia Couto é um dos escritores mais emblemáticos da literatura moçambicana, a par de José Craveirinha, Noémia de Sousa, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, entre outros. A sua vasta obra oportunizou que ganhasse os seguintes prêmios: Prêmio Virgílio Ferreira, em 1999; Prêmio Mário António, em 2001; Prêmios União Latina de Literatura Românica e Passo Fundo Zaffari e Bourbon da literatura, em 2007; Prêmio Eduardo Lourenço, 2011; Prêmio Camões, 2013; e Prêmio Literário Internacional Neustadt, em 2014. No seu país de origem foi galardoado com o Prêmio José Craveirinha e recebeu o Prêmio de melhor romance, em 2004, da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). Salienta-se que, do seu vasto acervo, o romance Terra sonâmbula (1992) foi considerado um dos 12 melhores romances africanos do século XX. Para infância o escritor publicou, além do título em tela, os livros O gato e o escuro (2008), O beijo da palavrinha (2008), O menino no sapatinho (2013), A água e a águia (2018).
Malangantana Ngwenya, ícone das artes plásticas moçambicanas, nasceu em Matalana, distrito de Marracuene, na província de Maputo, Sul de Moçambique, em 1936. Trabalhou como criado e gandula antes de ser encorajado a desenhar e pintar pelo biólogo Augusto Cabral e, posteriormente, pelo arquiteto Pancho Miranda Guedes. Teve a sua primeira obra exposta em 1959, no salão de Artes Plásticas de, então, Lourenço Marques (Maputo), e a sua primeira exposição em 1961. Trata-se de uma personalidade eclética com reconhecimento em várias atividades: desenho, aquarela, tapeçaria, cerâmica, gravura, escultura monumental em ferro e em cimento, em murais, na poesia, no canto, na dramaturgia e na dança. Fez parte da criação do Museu Nacional de Arte, da Escola Nacional de Artes Visuais, Centro Cultural de Matalane, entre outras instituições. Foi galardoado com o prêmio de pintura “Comemorações de Lourenço Marques”, em 1962; diploma de Medalha de Mérito da Academia Tommasco Campanella de Artes e Ciências, em 1970; medalha Nachingwea, em 1984; prêmio da Secção Portuguesa da Association Internacional dês Critiques d’Art, em 1989; Ordem Eduardo Mondlane de Primeiro Grau, em 2006; doutoramento Honoris Causa pela Universidade Politécnica de Moçambique, em 2007, e pela Universidade Évora, em 2010.
Levados a conhecer um pouco dos autores (escritor e ilustrador), voltamos ao título Pátio das sombras, trazendo a informação de que a narrativa tem como base um conto original da etnia Maconde, localizada na região setentrional do país africano, Moçambique, e constitui o leque de grupos que corporificam o mosaico étnico do país. Desse modo, de forma ficcionalizada, um assunto relacionado ao cotidiano de um povo, o moçambicano, sobressaindo aspectos que nos remetem à religiosidade e ao tratamento dos anciãos no contexto social, representada pela avó.
Na narrativa contracenam como protagonistas a avó e o neto que vivem numa aldeia que se encontrava na fase da colheita da produção. Nesse contexto, a avó sentiu-se impossibilitada de acompanhar o restante do grupo familiar no processo da colheita, o que levou o neto a oferecer-se para fazer companhia à avó, fato que teve a reprovação pelos demais, alegando que este devia ir aprender a trabalhar a terra. No entanto, uma vez no campo, ouviram-se vozes de júbilo vindas da direção da aldeia.
O acontecimento em alusão levou os demais a mandarem o neto para verificar o que estava a suceder. Chagado em casa, o menino encontrou a avó junto ao poço, sentada na berma elevada que protegia a entrada da escavação de onde retiravam a água. O menino inquiriu a avó sobre as vozes e ela respondeu que não havia nada por ali. O fato sucedeu-se no dia seguinte e o menino foi enviado novamente. Diferente do dia anterior, a avó decidiu contar ao neto sobre o ministério que estava a acontecer. Todavia, pediu que ele mantivesse em segredo, posto que ela poderia ser condenada como feiticeira e poderiam tirar-lhe a vida.
O dilema do segredo e do castigo do conto original, com a morte da idosa, foi reorganizado por Mia Couto (2018, p. 27), como ele próprio explicita:
[...] pareceu-me que esta história se enquadra na crença generalizada de sociedades rurais que as mulheres viúvas e velhas se convertem em feiticeiras. É esta razão que leva a mulher idosa a ser morta, no final de história. Estes valores devem ser questionados hoje e é necessário reconverter esta história alterando o seu desfecho. Isto do ponto de vista da ética que o conto sugere. (COUTO, 2018, p. 27).
Todos os títulos da Coleção, como O Pátio das sombras (COUTO, 2018), trazem para o cenário da literatura um novo olhar para o conto, que circulava tradicionalmente pela oralidade, com características próprias no que se refere ao tom moralista e exemplar. De acordo com Silva (2012, p. 29), o reconto:
Aberto a inúmeras possibilidades de paráfrase, paródia e atualização, o universo dos recontos é amplo, como se vê. Se nas sessões noturnas de contação de histórias a palavra do contador popular mantinha a plateia cativa, presa ao sortilégio o encantamento ou do medo, na leitura dos recontos literários isso não é diferente, o leitor continua a manipular as emoções do leitor.
Embora algumas vezes essa prática da releitura do conto e sua versão atualizada para a contemporaneidade seja questionada por alguns estudiosos, visto que “pertencem ao grande patrimônio cultural da humanidade” (SILVA, 2012, p. 30), ela tem sido uma prática constante nas narrativas para infância, em particular, nos contos europeus. No caso da Coleção “Contos de Moçambique”, a escolha é justificada por cada autor.
As ilustrações do mestre Malangatana Ngwenya, na sutileza que caracteriza o seu trabalho, dão vida e cor ao mundo imaginário tecido pelas palavras de Mia Couto (2018), usando como recurso as páginas coloridas, incluindo a capa, cada uma com a sua cor singular, que torna o livro mais atrativo e, consequentemente, mais agradável a sua leitura.
Referências
COUTO, Mia. O gato e o escuro. Ilustração Marilda Castanha. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008a.
COUTO, Mia. O beijo da palavrinha. Ilustração de Malangatana Ngwenya. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008b.
COUTO, Mia. O menino no Sapatinho. Ilustração de Danuta Wojciechowska. Lisboa: Caminho, 2013.
COUTO, Mia. A água e a águia. Ilustração de Danuta Wojciechowska. Lisboa: Caminho, 2018.
COUTO, Mia. O pátio das sombras. Ilustração de Malangatana Ngwenya. Maputo: Escola Portuguesa de Moçambique, 2018.
SILVA, Vera Maria Tietzmann. Sobre contos e recontos (nos 200 nos de Kinder-und Hausmarchen, dos Irmãos Grimm, 1812-2012). In: AGUIAR, Vera T. De; MARTHA, Alice Penteado (org.). Conto e reconto: das fontes à invenção. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.
SOBRE OS AUTORES
ETELVINO MANUEL RAUL GUILA é Mestre em Educação pela UFSC. Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique.
E-mail:etelvino.guila@gmail.com
MILENA BATISTA BRÁZ, é Graduanda do Curso de Pedagogia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista PIBIC/CNPQ/UFSC.
E-mail:milena.bbraz@gmail.com
ELIANE DEBUS é Doutora em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E-mail: elianedebus@gmail.com
Recebido em: 17.08.2020