A DOCÊNCIA NA PÓS-GRADUAÇÃO SOB O SIGNO
DE JANO: cultura, conhecimento e
cansaço
Universidade do Sul de
Santa Catarina (UniSUL)
Palhoça, SC,
Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.45480
Neste artigo são analisados aspectos da
docência na pós-graduação do Brasil no tempo presente, relacionados à cultura,
conhecimento e processos de trabalho. O texto tem por objetivo apreender como
se constitui o trabalho docente na pós-graduação, com base na análise de
resultados de duas pesquisas qualitativas, empreendidas na forma de estudo de
caso múltiplo, envolvendo professores universitários de todo o país. A
comparação dos resultados permite evidenciar novos elementos da cultura de
trabalho em um contexto de aceleração de ritmos de vida pessoal e laboral, de
produção do conhecimento e de imersão em elementos da cultura digital. Neste
contexto, a docência na pós-graduação apresenta, tal como o personagem
mitológico Jano, ambivalências e ambiguidades.
Palavras-chave: Pós-graduação. Docência. Produção de conhecimento.
THE TEACHING PRACTICE IN
GRADUATE SCHOOL UNDER THE SIGN OF JANUS: Culture, knowledge and tiredness)
ABSTRACT
In this article, aspects of the teaching practice in
graduate school related to culture, knowledge and work
processes in Brazil´s present time are analyzed. The text aims to apprehend how
the teaching practice in graduate school is constituted, based on the analysis
of the results of two qualitative researches, undertaken in the form of
multiple case study, entailing university professors from all over the country.
The results ´ comparison allows us to highlight new elements of the work
culture in a context of accelerating rhythms of personal and professional life,
of knowledge production and immersion in elements of digital culture. In this
context, the teaching practice in graduate school presents, like the
mythological character Janus, ambivalences and
ambiguities.
Keywords: Graduate studies. Teaching
practice. Knowledge production.
ENSEÑANZA
DE POSGRADO BAJO EL SIGNO DE JANO: Cultura, conocimiento y
cansancio
RESUMEN
En este artículo se analizan aspectos de la docencia en la escuela de posgrado en Brasil en la actualidad, relacionados con la cultura, el conocimiento y los procesos de trabajo. El texto tiene como objetivo aprehender cómo se constituye el trabajo docente en la escuela de posgrado, a partir del análisis de los resultados de dos investigaciones cualitativas, realizadas con profesores universitarios de todo el país. La comparación de resultados nos permite resaltar nuevos elementos de la cultura laboral en un contexto de ritmos acelerados de la vida personal y laboral, de producción de conocimiento e inmersión en elementos de la cultura digital. En este contexto, la docencia en la escuela de posgrado presenta, como el personaje mitológico Jano, ambivalencias y ambigüedades.
Palabras clave: Posgrado. Trabajo docente.
Producción de conocimiento.
Introdução
Um dos principais campos de investigação para a análise da
constituição da pós-graduação no Brasil, em especial a stricto sensu, é
o campo de estudos do trabalho docente. A revisão de literatura em geral mostra
como, historicamente, foi sendo constituído no país um corpo de pesquisadores
especializado, desde a criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), no início dos anos de 1950, passando pela publicação do Parecer
CFE n. 977/65 (BIANCHETTI; SGUISSARDI, 2009; CURY, 2005). Este Parecer,
aprovado em 3 de dezembro de 1965, justificava a instauração da pós-graduação
no Brasil como um imperativo da formação de professores universitários e de
quadros docentes qualificados, em um contexto de ampliação dos cursos
superiores no país.
O Parecer CFE n. 977/65 é atualmente reconhecido, por seus aspectos
regulatórios e doutrinários, como “texto fundador da pós-graduação sistemática
no Brasil” (CURY, 2005, p. 10), todavia, uma série de marcos legais, embora não
prescreva nem descreva explicitamente o trabalho docente na pós-graduação, vai
moldando as características desse trabalho e as próprias identidades docentes
nesse nível de ensino. Bianchetti e Sguissardi (2009), entre outros, mostram como a
pós-graduação brasileira – concebida para formar professores universitários –
vai gradativa e concomitantemente institucionalizando a formação de
pesquisadores no país. E Chauí (1999) e Hostins
(2006), entre outros, mostram como a década de 1990 é paradigmática no sentido
de novas concepções acerca da sistemática da avaliação (e financiamento) da
pós-graduação impingida pela Capes, ao atrelar indicadores de referência de
produtividade à qualidade dos programas de pós-graduação.
No plano prático, para o trabalho docente
na pós-graduação, essas reconfigurações resultaram em busca incessante pela
produtividade, que a vasta literatura especializada consagrou sob a forma de
produtivismo acadêmico, não raro, em concomitância com a intensificação do
trabalho (SGUISSARDI; SILVA JR., 2009; SGUISSARDI, 2010; BIANCHETTI; VALLE,
2014). Voltaremos a essa questão posteriormente. Por ora, ela ajuda a compor o
quadro do trabalho docente em uma sumária e breve perspectiva histórica e nos
fornece elementos de contexto, que auxilia a compreender a constituição da
docência na pós-graduação no tempo presente a partir da cultura do trabalho e
das condições de trabalho.
Tomando por referência esses elementos,
analisamos resultados de duas pesquisas com professores de pós-graduação, às
quais nos referimos nesse texto como Pesquisa 1 (P1) e Pesquisa 2 (P2). Ambas
as pesquisas foram realizadas antes da crise pandêmica de 2020 e ambas se
constituem como estudo de caso múltiplo (YIN, 2001), com elementos do universal
contidos nos campos de pesquisa particulares. Ambos os estudos foram realizados
por meio de online survey (BABBIE, 2016). Não
se trata de um estudo comparativo, todavia, nesse texto mobilizarei elementos
comuns que aparecem nas respostas dos participantes das duas pesquisas, a fim
de que se possa delinear a constituição do trabalho docente na pós-graduação
com base nas perspectivas enunciadas anteriormente.
A Pesquisa 1 (P1) advém de uma pesquisa
de doutorado que analisou as alterações no trabalho docente na pós-graduação stricto
sensu a partir da incorporação de tecnologias digitais. Esse estudo
envolveu 1.169 docentes de 48 cursos de Doutorado em Educação, nas cinco
regiões geográficas brasileiras. Os participantes da pesquisa são professores
de universidades federais (58%), estaduais (23,9%) e privadas (18,1%). Já a
Pesquisa 2 (P2) resulta de um estudo sobre o perfil da docência em uma
universidade pública federal, envolvendo um universo de 4.141 professores do
ensino superior e da educação básica (neste texto recorremos às respostas dos
professores que atuam na pós-graduação, em todas as áreas e conhecimento
segundo classificação adotada no Brasil). Em ambas as pesquisas, realizadas por
meio de questionário, temos questões abertas e fechadas. Os depoimentos, quando
utilizados neste texto, serão creditados a nomes fictícios dos participantes das
respectivas pesquisas.
Conforme veremos no decorrer do texto, a
análise conjunta desses dados, em que pese as especificidades de contexto, nos
permite inferir que o trabalho docente na pós-graduação se encontra, por
diferentes motivos, sob o signo de Jano – personagem
da mitologia romana retratado sempre com duas faces voltadas para direções
opostas. E embora classicamente essa representação esteja relacionada à
transição entre passado e futuro, a escassez de registros dessa divindade
favoreceu o surgimento de versões do mito que expressam que as faces opostas
representam também a personalidade ambígua de Jano,
ora benevolente, ora punitiva.
Segundo Ménard
(1991), as representações das duas faces de Jano são
encontradas apenas em moedas antigas, advindo daí diversas interpretações
possíveis para a “dupla face” do personagem, incluindo as ambiguidades e ambivalências
de suas representações. É sob esta acepção que utilizamos, analogamente, as
duas faces de Jano para representar as ambiguidades e
ambivalências relacionadas à cultura do trabalho, à produção de conhecimento e
às condições de trabalho docente na pós-graduação.
1. Condições de trabalho e as múltiplas
dimensões do trabalho docente na pós-graduação
Nos estudos do trabalho, Tardif e Lessard (2012), embora não estivessem se referindo especificamente
à pós-graduação, propõem elementos para uma teoria do trabalho docente enquanto
profissão, abarcando diferentes dimensões desse trabalho. Partindo da noção de trabalho
docente como uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja “uma
atividade em que o trabalhador se dedica ao seu ‘objeto’ de trabalho, que é
justamente um outro ser humano, no modo fundamental da interação humana”
(TARDIF, LESSARD, 2012, p. 8), os autores propõem entender o trabalho docente
não naquilo que ele deveria ser, mas no que efetivamente se faz.
Nesse sentido, os autores propõem que, para estudar
o trabalho docente, não basta considerar apenas os elementos inerentes ao
trabalho em si, como as atividades, as tarefas, os ritmos de trabalho, as
prescrições vindas do currículo ou das políticas oficiais, o objeto de trabalho,
os tempos e os lugares: é necessário levar em conta a totalidade dos
componentes desse trabalho. Segundo os autores, uma tendência nas pesquisas
sobre o ensino consiste em separar completamente ou avaliar em separado os
múltiplos componentes desse trabalho – o que apenas reproduz no plano teórico a
decomposição burocrática do trabalho à serviço da racionalização (TARDIF;
LESSARD, 2012). Seguindo esta proposta, podemos distinguir dimensões internas e
externas do trabalho docente, analiticamente consideradas de modo
indissociáveis.
A produção acadêmica acerca do trabalho docente na
pós-graduação no Brasil abarca, nesse sentido, diferentes aspectos dessas
dimensões internas e externas. Todavia, um recorte temporal importante tem
balizado essa produção, a partir dos anos de 1990, com as políticas de
regulação e financiamento implementadas pela Capes, e que dão a tônica do
trabalho e da identidade docente na pós-graduação.
Em pesquisas anteriores, nos referimos à análise de Tardif
e Lessard (2012) acerca da ambiguidade do trabalho
docente: ao mesmo tempo em que fica subordinado à esfera da produção, se
constitui como chave para a compreensão das reconfigurações das “sociedades dos
serviços”, nas quais cresce a importância dos conhecimentos técnicos
necessários à inovação, gestão e tomada de decisão, em comparação com a
produção de bens materiais. Essas sociedades são marcadas tanto por uma reforma
laboral mais ampla (ANTUNES; BRAGA, 2011) quanto por uma reforma educativa que
têm se constituído sob a égide da reestruturação neoliberal e que, dentre
outros, aprofunda a situação de heterogeneidade e fragmentação do coletivo de
trabalhadores e impactam diretamente na identidade docente (MIGLIAVACCA, 2010).
A identidade docente na pós-graduação é uma temática
marginal nas produções acadêmicas. Todavia, é possível apreender que há um
deslocamento: o de uma identidade sustentada pela indissociabilidade
ensino-pesquisa-extensão para a relação ensino-pesquisa (BATTINI, 2011). Uma
das principais razões é que o produtivismo acadêmico – tema ao qual nos
dedicaremos mais detalhadamente na próxima seção do texto – compele os
professores a produzirem mais, de modo incessante, o que resulta em um certo
privilégio da pós-graduação em detrimento a outros níveis de ensino, como
apreendemos de Sguissardi e Silva Júnior (2009).
Em nossos estudos também alertamos que os sentidos
do trabalho docente analisados por Nogueira (2012) evidenciam como as condições
concretas de trabalho são tratadas de forma marginal (ou simplesmente não são
tratadas) em documentos oficiais de diferentes instâncias, de organismos
internacionais à legislação educacional.
Essa dimensão, importante para a dinâmica que se
estabelece entre o trabalho prescrito e o trabalho real, não é meramente
esquecida nos documentos oficiais: trata-se muito mais de um mecanismo de “racionalização
do trabalho de forma a ocultar as verdadeiras dimensões da atividade humana de
trabalho, o predomínio do olhar sobre o trabalho como atividade de simples
“execução” e despojada de suas habilidades, ajustes e circunstâncias” (idem,
p. 1239). A lógica de ocultação das condições de trabalho dos professores opera
para manter veladas questões importantes que têm permeado o trabalho docente em
todos os níveis de ensino: a racionalidade meritocrática que propicia
deslocamentos remunerativos em função de rendimento e desempenho quantificável;
a delegação de tarefas de gestão de recursos que contribuem para aumentar o
tempo de trabalho extraclasse (historicamente invisível para fins de
remuneração); a introdução de lógicas tecnocráticas na definição de políticas
educativas; a perda de direitos trabalhistas históricos; a ampliação das formas
de contratação dentro do mesmo sistema de ensino – fruto da privatização de
serviços – que tem contribuído para formas precarizadas
de contratação de professores, dentre outros aspectos (MIGLIAVACCA, 2010).
A adoção de um ideário neoliberal na pós-graduação
no Brasil, a partir do final dos anos de 1990 (CHAUÍ, 1999; MAZZILLI, 2009a)
representa uma guinada importante na constituição do trabalho docente na pós-graduação,
abarcando suas dimensões internas e externas. A noção de universidade
operacional, a qual Chauí se refere, surge no processo de reestruturação
produtiva por meio de uma série de regulações que visam, em última instância,
subordinar as instituições de ensino às necessidades do mercado e, no limite,
às necessidades sociais que impactem nas questões econômicas. Convertida em
organização voltada para si, por normas e padrões alheios à formação
intelectual e ao conhecimento, a universidade operacional é, nas palavras de
Chauí (1999, p. 7) “regida por contratos de gestão, avaliadas por índices de
produtividade, calculada para ser flexível [...], estruturada por estratégias e
programas de eficácia organizacional, [...] pela particularidade e instabilidade”.
Essa guinada política explica, em parte, segundo
Lara (2016) a ocorrência de temáticas frequentes na revisão de literatura sobre
a pós-graduação no Brasil. Dentre elas, tem-se: políticas para a educação
superior atendendo às demandas do mercado; reformas neoliberais, trabalho
flexível e mal-estar docente no ensino superior; precarização do trabalho no
ensino superior; mundialização e internacionalização do ensino superior e sua
relação com organismos internacionais; e exploração do trabalho docente no
ensino superior. Parte dessas temáticas, nas quais o trabalho docente está diretamente
envolvido, foi amplamente analisada em obras como as de Sguissardi
e Silva Júnior (2009), Mazzilli (2009b), além de uma profícua coleção de
artigos, teses e dissertações.
Depreende-se, desses debates, que o modelo de
universidade vigente – face a uma crise mundial no ensino superior – tem
consagrado o imediatismo empresarial no campo acadêmico-científico, a
instrumentalização de alunos e professores, a heteronomia e a subvalorização do conhecimento crítico, ao contrário de se
estabelecer a universidade como lócus de referência democrática e ética, de
liberdade, conhecimento e autonomia capazes de questionar, dentre outros, a
instrumentalização, a mercantilização e a militarização que a lógica neoliberal
impõe em escala mundial (GIROUX, 2010). Nesse processo, nas análises sobre o
trabalho docente nas universidades no tempo presente, temos um crescente
processo de pauperização dos professores, caracterizado pela precarização do
trabalho – que diz respeito tanto aos baixos salários evidenciados, sobretudo
na iniciativa privada, quanto às formas de contratação precárias, por contratos
temporários ou part-time – e pela
fragmentação do trabalho e a consequente perda de autonomia, além da intensificação
dos regimes de trabalho. (MANCEBO, 2009; SGUISSARDI; SILVA JR., 2009; MAUÉS,
2010).
Esse inventário compõe o campo analítico de
investigações acadêmicas acerca do trabalho docente na pós-graduação no Brasil
nas últimas duas décadas. E serve de pano de fundo para novos estudos e para a
compreensão do trabalho docente no tempo presente. No tocante à perspectiva das
condições de trabalho, enunciada no texto introdutório desse artigo, o panorama
geral da produção acadêmica comunga com as duas dimensões do trabalho – interna
e externa – depreendidas da proposta de Tardif e Lessard
(2012).
De um lado, temos uma dimensão na qual se localiza o
trabalho docente: um panorama social mais amplo que tem como base o modo de
produção vigente e suas contradições, no qual a docência se constitui como
ponto central na organização do trabalho geral no Estado. Sob esse aspecto,
decisões políticas e contexto econômico mais amplo, bem como o papel que a
universidade – sobretudo a universidade pública – desempenha nas representações
sociais mais amplas têm repercussões diretas nos contextos de trabalho e, por
conseguinte, nas condições de trabalho docente.
De outro lado, temos aquilo que compõe o universo do
trabalho docente propriamente dito: o que os/as docentes fazem, a docência como atividade, como trabalho codificado, como
experiência, como status e as finalidades desse trabalho (TARDIF, LESSARD,
2012). Nessa dimensão, por assim dizer, interna do trabalho docente, emergem
não apenas as tarefas e as atividades, mas as bases materiais nas quais esse
trabalho é realizado: as condições de trabalho, a carga de trabalho, os
ambientes, os recursos mobilizados, a organização do tempo, as regulações, a
cultura de trabalho e outros condicionantes que permeiam a atividade docente.
Sob esses aspectos, os dados levantados nas pesquisas
empíricas (P1 e P2, identificadas no início desse texto) dão conta de que o
tempo presente, em seus domínios políticos e econômicos, repercutem diretamente
na atividade docente propriamente dita e nas preocupações apresentadas pelos
professores da pós-graduação brasileira. A situação política do país ameaça o
futuro da universidade pública, no tripé que caracteriza sua existência
(ensino, pesquisa e extensão) e a falta de recursos, em particular para a
pesquisa, é o sinal mais evidente dessa ameaça. Mais especificamente na P2,
cerca de 2/3 dos docentes manifestaram suas preocupações com o espectro mais
amplo do momento político do país. A análise das respostas evidencia uma
preocupação com os riscos futuros da carreira de professor/a universitário/a no
país, e com os riscos presentes no que diz respeito ao desmonte da educação
superior pública, com os cortes orçamentários, ameaças de privatização da
universidade pública e suas consequências sociais.
Para 34,2% dos professores, suas principais
preocupações no trabalho docente dizem respeito à insegurança diante da
conjuntura política, da desvalorização (sucateamento; desmonte) da educação e
das estratégias de privatização da universidade pública. Alguns depoimentos
ilustram esses dados: “Destruição da universidade via cortes de verba e
Future-se” (Prof. 307). “Desmonte das universidades públicas” (Prof. 291). “Desmonte
da educação superior pública; evasão discente de curso de graduação;
desvalorização docente; redução de bolsas e demais recursos de permanência
estudantil; adoecimento de estudantes e docentes (físicos
emocionais/psicológicas)” (Prof. 327). A incerteza sobre futuro (próximo) da
Universidade, envolvendo todos os aspectos (ensino, pesquisa, extensão) e a
continuidade do nível de excelência da nossa instituição.” (Prof. 281). “Falta
de uma perspectiva clara para os próximos anos no que diz respeito à autonomia
universitária, autonomia de pesquisa e financiamentos necessários para a
ciência e educação como um todo.” (Prof. 373). Preocupo-me se teremos
Universidade Pública e Gratuita por muito tempo, como ficará a situação com
cortes de bolsas, se existe a possibilidade de ser demitida no futuro.” (Prof.
73).
Para 25,3%, no âmbito da carreira profissional,
questões ligadas a perdas de direitos, perdas salariais, progressão, aumento de
tempo para aposentadoria são aspectos que tem mais preocupado os/as docentes.
Alguns depoimentos ilustram essas preocupações: “Fim da universidade; ameaças à
carreira docente; fim da aposentadoria; falta de perspectiva na profissão;
corte de bolsas e auxílios; desvalorização da categoria” (Prof. 491). “A
perspectiva de continuidades da vida universitária para as futuras gerações e
as condições de aposentadoria” (Prof. 354). “As consequências do grave momento
político, econômico e institucional: o processo de contínuas perdas de
conquistas educacionais, sociais e trabalhistas; os cortes orçamentários; o
desmonte das instituições de apoio à pesquisa e ao ensino; o iminente processo
de privatização das universidades públicas; a perda da autonomia universitária;
o avanço de ações autoritárias e persecutórias; etc.” (Prof. 454).
Para 22,5% dos professores, as preocupações giram em
torno das políticas recentes do governo federal e com o consequente corte no
financiamento da educação pública: “A manutenção do funcionamento da
universidade com excelência, dadas as dificuldades orçamentárias e de avaliação
sobre o papel da educação e de uma universidade na sociedade.” (Prof. 63). “O
rumo econômico nebuloso atual. Sem dinheiro não se faz "educação" de
qualidade.” (Prof. 256). “As ameaças à Educação que vivemos neste momento,
especialmente os cortes de investimentos.” (Prof. 290). “A situação
universitária no geral está muito preocupante. Falta de recursos para
estudantes, pesquisa, infraestrutura que impede a melhoria nos três pilares da
uma universidade: ensino, pesquisa e extensão” (Prof. 114).
Há, como se percebe, uma mistura inextrincável das
dimensões internas e externas do trabalho docente que repercutem sobre a
atuação dos professores, e que se somam a outras condições – essas, de caráter
mais interno às dimensões do trabalho – referentes a tempo, espaços e
atividades realizadas.
Em ambas as pesquisas (P1 e P2), verificamos que há
uma multiplicidade de atividades de trabalho realizadas pelo mesmo docente. São
atividades relacionadas ao ensino (de pós-graduação em maior frequência, 96,2%,
de graduação, 91%; e supervisão de estágios, 30,2%), à pesquisa (como a
orientação de pesquisas de mestrado e doutorado (98,3%) e iniciação científica
(81,6%), coordenação de pesquisa (83,6%), participação em bancas de mestrado e
doutorado (87%), as funções de líder de grupo de pesquisa (77,5%), de membro de
comitê editorial (57%), de editor de revista (22,5%), além daquelas atividades
inerentes ao “estar” na pós-graduação, como a submissão de produções acadêmicas
para a publicação) e à extensão (como a coordenação de projetos de extensão,
realizada por 38,6%).
Mas, além destas, que caracterizam o tripé da
universidade, há uma série de outras atividades que, em geral, não aparecem
como atividades-fim do trabalho do professor-pesquisador, como atividades de
gestão universitária e acadêmica: participação em bancas de seleção de
professores (73,4%), membro de conselhos universitários (57%), membro de núcleo
docente estruturante (NDE) de graduação (34,5%) coordenação de laboratórios
(33,6%) chefia ou sub-chefia de departamentos
(22,7%), coordenação de atividades de gestão (20%), coordenação ou
vice-coordenação de curso de pós-graduação (13,6%), coordenação ou
vice-coordenação de cursos de graduação (5,2%).
Em ambas as pesquisas, respectivamente 23,2% e 18,8%
dos participantes indicaram realizar outras atividades, “invisíveis”, mas que
demandam tempo e esforço, o que impacta na jornada de trabalho dos professores
ou mesmo na consecução de outras atividades-fim da universidade. Identificamos
mais de 80 atividades, entre as quais atividades de gestão e de coordenação em
monitorias, direção de Centros, comissões nos departamentos, núcleos de
formação continuada, convênios de internacionalização, representações de
centro, conselhos universitários e outros. Uma síntese dessas atividades
diversas, realizadas no cotidiano universitário e nem sempre visíveis, pode ser
exemplificada pelo depoimento: “Existem muitas atividades não contempladas
aqui, como a redação de propostas de para editais de fomento, gestão financeira
desses recursos, organização e participação em eventos, participação em bancas,
comissões de para avaliação de processos etc.” (Prof. 500).
Os conjuntos de informações anteriores permitem
inferir que os e as docentes exercem uma multiplicidade de atividades inerentes
à tríade ensino-pesquisa-extensão, mas outras que extrapolam essa tríade e o
senso comum presente nos dispositivos discursivos da sociedade, comumente
restrito à ideia de “dar aula”. Além disso, pelos percentuais de respostas,
evidencia-se a sobreposição de atividades nem sempre contabilizadas na jornada
de trabalho formal contratada. Por isso, mais do que compreender a constituição
do trabalho docente na pós-graduação pelas atividades que são desempenhadas
pelos professores, é necessário contextualizar os tempos e espaços nos quais o
trabalho é realizado.
Em ambas as pesquisas, os docentes afirmam trabalhar
para além da jornada formal de trabalho: 71,4% da P1 considera a carga horária
de trabalho insuficiente. Apesar desse percentual, 94% dos docentes fazem,
sempre ou frequentemente, horas a mais de trabalho. Já na P2, 79,5% afirma que
trabalhar além da jornada de trabalho. Além disso, 88,7% dos participantes da
P1 levam trabalho para casa com frequência, ao passo que na P2 esse percentual
é de 69%. De fato, quando não estão em sala de aula, os professores utilizam
mais o espaço “casa” para realizar as suas atividades. Isso ocorre, grosso
modo, por duas razões: infraestrutura e tempo.
Observa-se, a esse respeito, que 56,3% dos docentes
da P1 considera a infraestrutura disponível em casa melhor do que a que dispõe
na universidade. Já na P2, aparecem outros motivos para a realização das
atividades em casa: o motivo mais recorrente, citado por 70% entre os/as
respondentes, é o de que, em casa, sofrem menos interrupções no trabalho: “Na
Universidade somos interrompidos o tempo todo e as condições para produção
intelectual ficam comprometidas” (Prof. 613). Questões de infraestrutura também
são motivos relevantes: quando comparam os recursos domésticos com os
disponíveis na universidade para a realização das atividades, parcelas
significativas dos docentes preferem suas casas em termos de espaço físico e
mobiliário (37,6%), acústica (27,3%) e tecnologias (25,1%) mais adequados.
Já no tocante à dimensão tempo, para um a cada três
docentes da P2, a possibilidade de coordenar e/ou conciliar o trabalho com as
atividades domésticas é um importante indicador sobre vida e trabalho de
professores e professoras, pois dá indícios de que compromissos domésticos são
preocupações que coexistem com os compromissos profissionais que, cada vez
mais, passam a coabitar nos espaços domésticos. Ainda na P2, para 20,8% dos
participantes evidenciam-se menções à necessidade de dar conta de prazos e
demandas e às práticas de prolongar tempos de trabalho (noites e fins de
semana) como estratégias de enfrentamento ao acúmulo de atividades concentradas
durante o expediente, o que reforça os indícios de sobreposição de
prolongamento de tempos e de espaços de trabalho para além daqueles formalmente
contratados.
Sob o signo de Jano, em
que pese as dimensões externas do trabalho na pós-graduação (o desmonte
político e orçamentário, as perseguições ideológicas, as ameaças à carreira),
as dificuldades inerentes aos tempos e espaços de trabalho e as menções que dão
indícios de intensificação do trabalho, no geral os professores de
pós-graduação indicam estarem satisfeitos com a maioria dos aspectos do seu
trabalho na Universidade.
Em especial, destacam-se aqueles itens que estão no
cerne da identidade profissional docente, como remuneração, plano de carreira,
qualidade de vida, experiência de trabalho e relações interpessoais. Somadas as
incidências das frequências “satisfeito” e “muito satisfeito”, os aspectos do
trabalho docente na P2 considerados mais satisfatórios por professores/as são,
respectivamente, a experiência de trabalho (83,9%), as relações interpessoais
com estudantes (83,1%), as relações interpessoais com chefias e integrantes de
instâncias superiores (68,3%), a quantidade de estudantes por turma (65,5%), e
as relações interpessoais com colegas de trabalho (63,6%).
Por sua vez, os dados permitem inferir que questões
sobre prestígio social já não são determinantes para o grau de satisfação de
professores e no que tange à realização plena da capacidade intelectual, os
índices são bastante heterogêneos entre os que se consideram satisfeitos e
insatisfeitos. Isso nos permite indagar se o volume de trabalho, relacionado à
burocracia e a multiplicidade de tarefas de cunho administrativo, não estão
tolhendo as plenas capacidades intelectuais dos docentes na realização de sua
atividade-fim. Analiticamente falando, essa configuração da docência na
pós-graduação guarda relações com a cultura do trabalho que vem se constituindo
e instituindo entre os docentes, mas especificamente, com as ambiguidades entre
produtivismo acadêmico e produção de conhecimento, típica do trabalho
intelectual nesse nível de ensino.
2. Produção de conhecimento versus produtivismo
acadêmico: a cultura do trabalho
Sguissardi (2010) e Bianchetti e
Valle (2014), dentre muitos outros, tratam da questão do produtivismo acadêmico
entre pesquisadores envolvidos com a pós-graduação a partir do modelo de
regulação da Capes, no qual a busca pela qualidade converteu-se, a partir do
final dos anos de 1990, em busca incessante pela quantidade; e a produtividade
se converteu em produtivismo acadêmico, como forma de garantia da sobrevivência
do pesquisador no Programa de PG e do próprio programa, visto que a avaliação
está diretamente ligada ao financiamento. Em Sguissardi
temos que esse fenômeno tem origem ainda na década de 1950, nos EUA, notório
pelo lema publish or
perish, sob o qual o pesquisador que não
publicasse de acordo com o ideal estabelecido pelos órgãos financiadores, pelo
mercado e pela burocracia universitária atrelada a elas estaria fadado a
perecer.
Dos estudos de Bianchetti
e Valle temos a contribuição de que esse ritmo de produtividade está atrelado
ao chamado capitalismo acadêmico, no qual se instauram verdadeiros processos de
competição entre os pesquisadores, em função dos resultados da avaliação da
Capes e suas finalidades – o que corrobora com os depoimentos de envolvidos com
a pós-graduação que foram analisados por Sguissardi e
Silva Júnior (2009) e Lara (2016). No limite, produtividade virou sinônimo de
competitividade sob a lógica de avaliar, regular e financiar a pós-graduação.
A ampla literatura sobre o tema do produtivismo,
todavia, apresenta duas características no tempo presente: segundo Lara (2016),
em sua revisão de literatura, é um tema recorrente em produções acadêmicas
(anais de eventos, artigos, teses e dissertações) de várias áreas do conhecimento,
por sua vez, sua incidência tem diminuído em produções mais recentes – o que
leva à hipótese de uma possível emergência de resignação entre os envolvidos
com a pós-graduação ao modelo Capes de avaliação, na esteira de formação de
doutores desde 1997 e que, portanto, vem se cristalizando (SGUISSARDI; SILVA
JR., 2009).
Em nossas experiências de pesquisa, esses fatores
levam a duas características observáveis na revisão de literatura: a
(auto)intensificação (HYPÓLITO; VIEIRA; PIZZI, 2009) e a extensificação do
trabalho docente na universidade. A intensificação do trabalho importa ao
trabalhador, individual ou coletivo, no que se refere aos processos de trabalho
nos quais se exige um empenho maior física, intelectual ou psiquicamente (DAL
ROSSO, 2008).
Lara (2016) observa que, embora categorias
distintas, produtividade – nesse caso, produtivismo – e intensificação do
trabalho caminham lado a lado e permeiam diferentes produções acadêmicas. Battini (2011) coloca em evidência essa relação no âmbito
das políticas avaliativas, cujo resultado é a polarização entre professores
“produtivos” e “improdutivos”, professores de ensino e professores de pesquisa
que, no limite, têm conduzido a uma transformação da identidade docente na
universidade, consubstanciada historicamente na indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão. Por sua vez, o fenômeno da extensificação do
trabalho já foi apreendido por diversos autores, sob os mais variados ângulos,
como extensão ou prolongamento da jornada de trabalho da PG, em função do
trabalho intensificado, da busca incessante por produtividade sem que,
obviamente, o tempo cronológico se altere.
Esses dados comungam com os encontrados na P1: 82,6%
dos professores avaliam que tempos e espaços de trabalho são estendidos para os
momentos originalmente destinados a não trabalho. Além disso, 74% dos
professores passou a reservar um tempo do descanso para responder e-mails e
antecipar demandas de trabalho; e 70,1% afirma “não desligar” do trabalho em
momentos originalmente de não-trabalho. “Trabalho diariamente até às 23h ou
24h, para tentar dar conta de tantas demandas, e trabalho comumente também nos
finais de semana em casa e feriados. É muito raro o final de semana e feriados
em que eu não trabalhe, pois sempre há demandas para dar conta” (Prof. 619,
participante da P2).
O uso das tecnologias digitais e móveis desempenham
papel fundamental no que diz respeito a condições de trabalho, sobretudo à
fusão de tempos e espaços de trabalho e não trabalho. Respectivamente, na
P1 e na P2, 52,8% e 46,6% avaliam que os
processos de trabalho ficaram mais intensificados; 73% e 86,7% afirmam serem
requisitados mais vezes e a qualquer instante para fins de trabalho, e 47,8% e 80,7%
não visualiza mais uma separação clara entre tempos e espaços de trabalho e
não-trabalho.
O conceito de trabalho ubíquo (LARA, 2016) tem sido
usado, nesses casos, para explicar os impactos das alterações de sentidos de
tempos, espaços e onipresença causados por estas tecnologias no cotidiano de
trabalho. Nesse contexto, desempenhar várias tarefas concomitantemente tem sido
uma estratégia comum para, respectivamente, 48% e 83% dos participantes das
pesquisas P1 e P2. Todavia, essa estratégia multitarefa não reverte em mais
tempo livre, apenas reforça a condição de intensificação do trabalho, haja
vista que o tempo que se economiza se converte em tempo para mais trabalho, em
qualquer tempo e lugar (BIANCHETTI; MACHADO, 2007; LARA; QUARTIERO; BIANCHETTI,
2019).
Lara (2016), baseado nas análises da Han (2015)
argumenta que a técnica temporal da multitarefa tem ainda outras implicações.
Partindo da premissa de os processos criativos pressupõem um tempo de ócio,
reflexão e criação, o autor argumenta que realizar várias tarefas ao mesmo
tempo impacta sobre a atenção parcial contínua. Dirigida a diferentes fontes
informativas e processos concomitantes, a prática da multitarefa gera uma
atenção dispersa e rasa, que fragmenta a atenção profunda, indispensável para
atividades intelectuais. Sob o signo de Jano, a busca
pela técnica temporal de ser multitarefa aparece como um atributo de
engenhosidade dos sujeitos produtivos na pós-graduação, mas evidencia a sua
face oposta: em vez de desempenho cultural da humanidade, se caracteriza como
atributo de animais que, na natureza, são obrigados a dividir sua atenção e
diferentes processos e fontes informativas (caçar e não ser caçado, por
exemplo), que pouco tem de processo civilizatório (HAN, 2015).
E, nesse sentido, processos comunicacionais e
produtivos instaurados e intensificados pelos usos de tecnologias digitais e
móveis no âmbito da cultura digital, em termos de processo histórico, coincidem
com análises como as de Crary (2014), de que o último
reduto de resistência do trabalhador ao capitalismo tardio tem sido o sono, à
medida que estamos nos sedimentando enquanto uma sociedade do cansaço (HAN,
2015). Na P1, sobretudo, observa-se várias menções a uma cultura de trabalho
que tem se instituído na pós-graduação por meio de práticas comunicativas.
A intensificação de contatos via dispositivos móveis
e redes sociais, seja de professores, alunos e orientandos ou mesmo candidatos
a orientandos, têm gerado uma sensação de proliferação de demandas urgentes
enviadas entre os pares e criam a expectativa de que mensagens enviadas – e
visualizadas – por dispositivos móveis sejam respondidas imediatamente,
independentemente do horário, estabelecendo uma nova ética de comunicação: “Sei
de professores que não respondem, mas vejo a difamação que isso gera na comunidade,
especialmente entre os alunos, pois queixas chegam constantemente aos
professores e gestores” (Prof. 1086). Mais uma vez, sob o signo de Jano, tecnologias usadas para facilitar a comunicação entre
os pares, otimizar tempos e espaços, facilitar a produção e o acesso à produção
de conhecimento são convertidas em tecnologias de vigilância e controle, e de autointensificação do trabalho, características da
sociedade do cansaço.
Cansaço, aliás, tem sido uma característica da
docência na pós-graduação. Sobretudo na P1, dados qualitativos evidenciam que a
docência na pós-graduação é marcada por constante atividade, ritmo intenso de
trabalho, trabalho em tempo integral, marca de um tempo sem tempo e de discronia temporal característicos de um trabalho em regime
24/7 nas sociedades da performatividade contemporânea
(HAN, 2015; CRARY, 2014). Mas não sem consequências psicossociais: “Trabalho
docente em tempo integral. Intensificação do trabalho docente. Esgotamento
físico e mental” (Prof. 1004). “Estresse; aumento da produtividade e das
capacidades de integrar conhecimentos em nível nacional e internacional” (Prof.
1165). E ainda: “intensificação, precarização, ampliação do trabalho” (Prof. 1192).
Dados quantitativos da P2 corroboram os inúmeros
depoimentos evidenciados na P1. No que se refere às condições de saúde mental, 63,8%
dos docentes afirmam que se sentem estressados no trabalho, embora apenas 35,5%
tenham recebido diagnóstico médico de estresse. Quase um em cada cinco (17,1%)
dos respondentes já foram diagnosticados com algum transtorno psicológico
relacionado ao trabalho. O afastamento do trabalho por motivo de doença
relacionada às atividades laborais já alcançou 12,7% da amostra de respondentes
da P2. Além das questões relacionadas à saúde mental, 20,1% dos professores
participantes da pesquisa confirmam que já receberam diagnóstico de LER e/ou
DORT.
Outro importante fator relacionado ao trabalho
docente diz respeito às formas de reconhecimento. O fato de a maioria dos
professores da P2 (54,6%) considerar que seus esforços não são devidamente
reconhecidos guarda relações com o próprio momento que a universidade e a
ciência vivenciam: o de recrudescimento do conhecimento científico,
desvalorização da ciência, da universidade e da intelectualidade. A gestão da
crise pandêmica no Brasil, em 2020, é paradigmática para exemplificar os
resultados de um processo que vem sendo gestado há mais de uma década nas
práticas culturais via internet e que inverte a lógica da produção do
conhecimento: opiniões pessoais e crenças são erigidas como conhecimento
socialmente validado, enquanto que resultados de produções cientificas são
vistos como mera opinião. Sob o signo de Jano, os
professores da pós-graduação se veem compelidos a produzirem academicamente, ao
passo que suas produções são, no senso comum, equiparadas com opiniões
pessoais, valores e crenças.
Considerações finais
No ano em que se celebra 55 anos do Parecer CFE n. 977/65, marco fundador da pós-graduação
sistematizada no Brasil, a docência nesse nível de
ensino apresenta contradições e ambiguidades típicas do trabalho nas sociedades
capitalistas. Não é possível inferir sobre as condições de trabalho na
pós-graduação em 1965 e, consequentemente, seria contraproducente analisar
comparativamente o trabalho docente realizado neste ano de 2020 com o de 1965,
haja vista as mudanças no mundo do trabalho, no desenvolvimento de forças
produtivas e na regulação da própria pós-graduação. Todavia, é politicamente
necessário explicitar as condições de trabalho na pós-graduação a fim de gerar
subsídios teórico-empíricos para análises, prognósticos e novas pesquisas
acadêmicas acerca do futuro, a curto e médio prazo, da pós-graduação stricto
sensu no país.
Neste artigo procuramos demonstrar o quão significativo foi a
agenda da Capes, no fim dos anos de 1990, para a constituição das condições de
trabalho, da cultura do trabalho e da identidade docente na pós-graduação. Os
dados empíricos das duas pesquisas apresentadas corroboram a revisão de
literatura sobre temas recorrentes acerca da pós-graduação, ao passo que se
complementam em termos qualitativos em questões relacionadas às condições de
trabalho, dimensões internas e externas que constituem a docência na
pós-graduação no tempo presente.
Tal como o personagem mitológico Jano, a docência na pós-graduação é carregada de ambiguidades,
sobretudo se comparada ao imaginário coletivo estabelecido sobre o que
representa ser um pesquisador, professor de pós-graduação stricto sensu.
As políticas governamentais desencadearam uma série de apreensões sobre a
carreira, o trabalho propriamente dito e o futuro da universidade.
Em termos de condições objetivas de trabalho na pós-graduação,
evidencia-se uma série de atividades e funções realizadas de modo quase que
invisível, que se sobrepõe às atividades-fim do trabalho docente. O excesso de
trabalho e a falta de infraestrutura ideal para realizar atividades
intelectuais na universidade favorece a instauração da cultura de levar
trabalho para casa, como agravante de que a fusão de tempos e espaços de
trabalho e lazer ganham contornos sistêmicos e irreversíveis. Ainda assim,
realizar parte do trabalho em casa, ainda que em horários e com carga horária
para além da formalmente contratada, possibilita em muitos casos conciliar
atividade profissional e afazeres domésticos.
Ainda que estejamos nos referindo a um importante segmento da
intelectualidade brasileira, os professores que participaram da pesquisa se
dizem sem tempo. Essa percepção é corroborada pelo número de atividades
realizadas, dentro e fora do âmbito profissional. As atividades realizadas com
mais frequência por professores fora de seu horário de trabalho não são
atividades de lazer, mas de trabalho: afazeres domésticos (36,2%); trabalho
acumulado da universidade (36,1%) e outras atividades relacionadas à profissão,
como elaboração de projetos, pareceres ou relatórios (36,1%), além de estudos
relacionados à atividade profissional (32,2%). Comparados com dados sobre
condições de saúde, volume de trabalho e multiplicidade de atividades, estes
indicadores reiteram a dinâmica de precarização do trabalho docente na
pós-graduação, que repercute diretamente nas condições de saúde e bem-estar dos
professores e das professoras. Ainda assim, os professores da pós-graduação
dizem-se muito satisfeitos com vários aspectos do seu trabalho.
Engenhosos, professores e professoras da pós-graduação mobilizam
estratégias de produtividade para dar conta das demandas de trabalho. Com
frequência, realizam várias tarefas concomitantes, ainda que, a longo prazo, a
prática temporal de ser multitarefa se constitua como um obstáculo à realização
de trabalho intelectual, próprio da docência na pós-graduação. Além disso, a
produtividade se confunde com produtivismo acadêmico e, paradoxalmente, a
representação social do que se constitui produzir cientificamente se confunde,
no tempo presente, com produção de opiniões e crenças. Em temos de
recrudescimento da importância atribuída à pesquisa científica, seja na opinião
pública, seja por ações dos governos, a desvalorização social dos intelectuais
e, mais especificamente, dos professores universitários, aparece como
preocupação entre os participantes da pesquisa.
Muitas outras preocupações que aparecem nos
depoimentos dos professores, e que não foram cotejadas nas seções anteriores,
podem ser assim categorizadas: volume e condições de trabalho (16,2%), falta de
valorização à identidade profissional (6%), infraestrutura precária (3,6%),
cerceamento da liberdade (3,4%), ataque à ciência e à pesquisa científica
(2,2%) e condições de saúde mental decorrente das condições de trabalho (1,6%).
Em números menores, aparecem outras preocupações assim identificadas:
comprometimento/engajamento dos estudantes; burocracia universitária;
instabilidade (em vários aspectos); condições de estudo e de financiamento para
a permanência estudantil; impossibilidades de atualização/formação
profissional; falta de comprometimento dos pares e de mobilização coletiva;
gestão universitária (departamento, campus, reitoria); perda da autonomia
universitária; perda da saúde mental; partidarização/ ideologias na universidade;
sensação de impotência com a situação da universidade e da ciência; saúde
mental dos estudantes; democracia ameaçada e evasão dos alunos.
Em função do momento político e econômico do país,
do esvaziamento das políticas educacionais para o ensino público, da manifesta
perseguição ideológica às universidades públicas por membros do Governo
Federal, do anti-intelectualismo e do movimento de recrudescimento e mesmo de
negação do conhecimento científico no próprio âmbito do discurso governamental,
fatores aliados à instaurada precarização das condições de trabalho e de
infraestrutura, e da fragilização das condições de saúde de docentes (e, mais
recentemente, de estudantes), o tempo presente e de realização das pesquisas é
profícuo para apreender as preocupações dos professores da pós-graduação. O
alento, se pode-se dizer assim, vem de um depoimento quase isolado (Prof. 111),
que quase chega a lembrar um verso de Mário Quintana no “Poeminho
do Contra”. O depoimento do/a docente diz: “Não tenho preocupações, mesmo com a
instabilidade que estamos vivendo. Já tive vários momentos desses ao longo do
tempo em que atuo no nível superior”, o que nos dá a esperança de que os
desmanches governamentais na educação pública e na carreira docente não sejam
permanentes – afinal, “eles passarão, [nós] passarinho”.
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SOBRE O AUTOR
RAFAEL DA
CUNHA LARA é doutor
em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em
Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, doutorando em
Sociologia e Ciência Política pela (UFSC), professor, pesquisador, pedagogo e
supervisor escolar da Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSUL), pesquisador do Laboratório de Sociologia do
Trabalho (LASTRO/UFSC) e membro do Grupo de pesquisa Trabalho e Conhecimento na
Educação Superior (TRACES/UFSC).
E-mail: rafael_dez@hotmail.com
Recebido em: 20.08.2020
Aceito em: 12.09.2020