A DOCÊNCIA NA PÓS-GRADUAÇÃO SOB O SIGNO DE JANO: cultura, conhecimento e cansaço

 

 

Rafael da Cunha Lara

Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSUL)

Palhoça, SC, Brasil 

 

DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.45480

 

 

Resumo  

Neste artigo são analisados aspectos da docência na pós-graduação do Brasil no tempo presente, relacionados à cultura, conhecimento e processos de trabalho. O texto tem por objetivo apreender como se constitui o trabalho docente na pós-graduação, com base na análise de resultados de duas pesquisas qualitativas, empreendidas na forma de estudo de caso múltiplo, envolvendo professores universitários de todo o país. A comparação dos resultados permite evidenciar novos elementos da cultura de trabalho em um contexto de aceleração de ritmos de vida pessoal e laboral, de produção do conhecimento e de imersão em elementos da cultura digital. Neste contexto, a docência na pós-graduação apresenta, tal como o personagem mitológico Jano, ambivalências e ambiguidades.

Palavras-chave: Pós-graduação. Docência. Produção de conhecimento.

 

 

THE TEACHING PRACTICE IN GRADUATE SCHOOL UNDER THE SIGN OF JANUS: Culture, knowledge and tiredness)

 

 

ABSTRACT

In this article, aspects of the teaching practice in graduate school related to culture, knowledge and work processes in Brazil´s present time are analyzed. The text aims to apprehend how the teaching practice in graduate school is constituted, based on the analysis of the results of two qualitative researches, undertaken in the form of multiple case study, entailing university professors from all over the country. The results ´ comparison allows us to highlight new elements of the work culture in a context of accelerating rhythms of personal and professional life, of knowledge production and immersion in elements of digital culture. In this context, the teaching practice in graduate school presents, like the mythological character Janus, ambivalences and ambiguities.

Keywords: Graduate studies. Teaching practice. Knowledge production.

 

 

ENSEÑANZA DE POSGRADO BAJO EL SIGNO DE JANO: Cultura, conocimiento y cansancio

 

 

RESUMEN

En este artículo se analizan aspectos de la docencia en la escuela de posgrado en Brasil en la actualidad, relacionados con la cultura, el conocimiento y los procesos de trabajo. El texto tiene como objetivo aprehender cómo se constituye el trabajo docente en la escuela de posgrado, a partir del análisis de los resultados de dos investigaciones cualitativas, realizadas con profesores universitarios de todo el país. La comparación de resultados nos permite resaltar nuevos elementos de la cultura laboral en un contexto de ritmos acelerados de la vida personal y laboral, de producción de conocimiento e inmersión en elementos de la cultura digital. En este contexto, la docencia en la escuela de posgrado presenta, como el personaje mitológico Jano, ambivalencias y ambigüedades.

Palabras clave: Posgrado. Trabajo docente. Producción de conocimiento.

                                                   

 

Introdução

Um dos principais campos de investigação para a análise da constituição da pós-graduação no Brasil, em especial a stricto sensu, é o campo de estudos do trabalho docente. A revisão de literatura em geral mostra como, historicamente, foi sendo constituído no país um corpo de pesquisadores especializado, desde a criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no início dos anos de 1950, passando pela publicação do Parecer CFE n. 977/65 (BIANCHETTI; SGUISSARDI, 2009; CURY, 2005). Este Parecer, aprovado em 3 de dezembro de 1965, justificava a instauração da pós-graduação no Brasil como um imperativo da formação de professores universitários e de quadros docentes qualificados, em um contexto de ampliação dos cursos superiores no país.

O Parecer CFE n. 977/65 é atualmente reconhecido, por seus aspectos regulatórios e doutrinários, como “texto fundador da pós-graduação sistemática no Brasil” (CURY, 2005, p. 10), todavia, uma série de marcos legais, embora não prescreva nem descreva explicitamente o trabalho docente na pós-graduação, vai moldando as características desse trabalho e as próprias identidades docentes nesse nível de ensino. Bianchetti e Sguissardi (2009), entre outros, mostram como a pós-graduação brasileira – concebida para formar professores universitários – vai gradativa e concomitantemente institucionalizando a formação de pesquisadores no país. E Chauí (1999) e Hostins (2006), entre outros, mostram como a década de 1990 é paradigmática no sentido de novas concepções acerca da sistemática da avaliação (e financiamento) da pós-graduação impingida pela Capes, ao atrelar indicadores de referência de produtividade à qualidade dos programas de pós-graduação.

No plano prático, para o trabalho docente na pós-graduação, essas reconfigurações resultaram em busca incessante pela produtividade, que a vasta literatura especializada consagrou sob a forma de produtivismo acadêmico, não raro, em concomitância com a intensificação do trabalho (SGUISSARDI; SILVA JR., 2009; SGUISSARDI, 2010; BIANCHETTI; VALLE, 2014). Voltaremos a essa questão posteriormente. Por ora, ela ajuda a compor o quadro do trabalho docente em uma sumária e breve perspectiva histórica e nos fornece elementos de contexto, que auxilia a compreender a constituição da docência na pós-graduação no tempo presente a partir da cultura do trabalho e das condições de trabalho.

Tomando por referência esses elementos, analisamos resultados de duas pesquisas com professores de pós-graduação, às quais nos referimos nesse texto como Pesquisa 1 (P1) e Pesquisa 2 (P2). Ambas as pesquisas foram realizadas antes da crise pandêmica de 2020 e ambas se constituem como estudo de caso múltiplo (YIN, 2001), com elementos do universal contidos nos campos de pesquisa particulares. Ambos os estudos foram realizados por meio de online survey (BABBIE, 2016). Não se trata de um estudo comparativo, todavia, nesse texto mobilizarei elementos comuns que aparecem nas respostas dos participantes das duas pesquisas, a fim de que se possa delinear a constituição do trabalho docente na pós-graduação com base nas perspectivas enunciadas anteriormente.

A Pesquisa 1 (P1) advém de uma pesquisa de doutorado que analisou as alterações no trabalho docente na pós-graduação stricto sensu a partir da incorporação de tecnologias digitais. Esse estudo envolveu 1.169 docentes de 48 cursos de Doutorado em Educação, nas cinco regiões geográficas brasileiras. Os participantes da pesquisa são professores de universidades federais (58%), estaduais (23,9%) e privadas (18,1%). Já a Pesquisa 2 (P2) resulta de um estudo sobre o perfil da docência em uma universidade pública federal, envolvendo um universo de 4.141 professores do ensino superior e da educação básica (neste texto recorremos às respostas dos professores que atuam na pós-graduação, em todas as áreas e conhecimento segundo classificação adotada no Brasil). Em ambas as pesquisas, realizadas por meio de questionário, temos questões abertas e fechadas. Os depoimentos, quando utilizados neste texto, serão creditados a nomes fictícios dos participantes das respectivas pesquisas.

Conforme veremos no decorrer do texto, a análise conjunta desses dados, em que pese as especificidades de contexto, nos permite inferir que o trabalho docente na pós-graduação se encontra, por diferentes motivos, sob o signo de Jano – personagem da mitologia romana retratado sempre com duas faces voltadas para direções opostas. E embora classicamente essa representação esteja relacionada à transição entre passado e futuro, a escassez de registros dessa divindade favoreceu o surgimento de versões do mito que expressam que as faces opostas representam também a personalidade ambígua de Jano, ora benevolente, ora punitiva.

Segundo Ménard (1991), as representações das duas faces de Jano são encontradas apenas em moedas antigas, advindo daí diversas interpretações possíveis para a “dupla face” do personagem, incluindo as ambiguidades e ambivalências de suas representações. É sob esta acepção que utilizamos, analogamente, as duas faces de Jano para representar as ambiguidades e ambivalências relacionadas à cultura do trabalho, à produção de conhecimento e às condições de trabalho docente na pós-graduação.

 

1. Condições de trabalho e as múltiplas dimensões do trabalho docente na pós-graduação

Nos estudos do trabalho, Tardif e Lessard (2012), embora não estivessem se referindo especificamente à pós-graduação, propõem elementos para uma teoria do trabalho docente enquanto profissão, abarcando diferentes dimensões desse trabalho. Partindo da noção de trabalho docente como uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja “uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu ‘objeto’ de trabalho, que é justamente um outro ser humano, no modo fundamental da interação humana” (TARDIF, LESSARD, 2012, p. 8), os autores propõem entender o trabalho docente não naquilo que ele deveria ser, mas no que efetivamente se faz.

Nesse sentido, os autores propõem que, para estudar o trabalho docente, não basta considerar apenas os elementos inerentes ao trabalho em si, como as atividades, as tarefas, os ritmos de trabalho, as prescrições vindas do currículo ou das políticas oficiais, o objeto de trabalho, os tempos e os lugares: é necessário levar em conta a totalidade dos componentes desse trabalho. Segundo os autores, uma tendência nas pesquisas sobre o ensino consiste em separar completamente ou avaliar em separado os múltiplos componentes desse trabalho – o que apenas reproduz no plano teórico a decomposição burocrática do trabalho à serviço da racionalização (TARDIF; LESSARD, 2012). Seguindo esta proposta, podemos distinguir dimensões internas e externas do trabalho docente, analiticamente consideradas de modo indissociáveis.

A produção acadêmica acerca do trabalho docente na pós-graduação no Brasil abarca, nesse sentido, diferentes aspectos dessas dimensões internas e externas. Todavia, um recorte temporal importante tem balizado essa produção, a partir dos anos de 1990, com as políticas de regulação e financiamento implementadas pela Capes, e que dão a tônica do trabalho e da identidade docente na pós-graduação.

Em pesquisas anteriores, nos referimos à análise de Tardif e Lessard (2012) acerca da ambiguidade do trabalho docente: ao mesmo tempo em que fica subordinado à esfera da produção, se constitui como chave para a compreensão das reconfigurações das “sociedades dos serviços”, nas quais cresce a importância dos conhecimentos técnicos necessários à inovação, gestão e tomada de decisão, em comparação com a produção de bens materiais. Essas sociedades são marcadas tanto por uma reforma laboral mais ampla (ANTUNES; BRAGA, 2011) quanto por uma reforma educativa que têm se constituído sob a égide da reestruturação neoliberal e que, dentre outros, aprofunda a situação de heterogeneidade e fragmentação do coletivo de trabalhadores e impactam diretamente na identidade docente (MIGLIAVACCA, 2010).

A identidade docente na pós-graduação é uma temática marginal nas produções acadêmicas. Todavia, é possível apreender que há um deslocamento: o de uma identidade sustentada pela indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão para a relação ensino-pesquisa (BATTINI, 2011). Uma das principais razões é que o produtivismo acadêmico – tema ao qual nos dedicaremos mais detalhadamente na próxima seção do texto – compele os professores a produzirem mais, de modo incessante, o que resulta em um certo privilégio da pós-graduação em detrimento a outros níveis de ensino, como apreendemos de Sguissardi e Silva Júnior (2009).

Em nossos estudos também alertamos que os sentidos do trabalho docente analisados por Nogueira (2012) evidenciam como as condições concretas de trabalho são tratadas de forma marginal (ou simplesmente não são tratadas) em documentos oficiais de diferentes instâncias, de organismos internacionais à legislação educacional.

Essa dimensão, importante para a dinâmica que se estabelece entre o trabalho prescrito e o trabalho real, não é meramente esquecida nos documentos oficiais: trata-se muito mais de um mecanismo de “racionalização do trabalho de forma a ocultar as verdadeiras dimensões da atividade humana de trabalho, o predomínio do olhar sobre o trabalho como atividade de simples “execução” e despojada de suas habilidades, ajustes e circunstâncias” (idem, p. 1239). A lógica de ocultação das condições de trabalho dos professores opera para manter veladas questões importantes que têm permeado o trabalho docente em todos os níveis de ensino: a racionalidade meritocrática que propicia deslocamentos remunerativos em função de rendimento e desempenho quantificável; a delegação de tarefas de gestão de recursos que contribuem para aumentar o tempo de trabalho extraclasse (historicamente invisível para fins de remuneração); a introdução de lógicas tecnocráticas na definição de políticas educativas; a perda de direitos trabalhistas históricos; a ampliação das formas de contratação dentro do mesmo sistema de ensino – fruto da privatização de serviços – que tem contribuído para formas precarizadas de contratação de professores, dentre outros aspectos (MIGLIAVACCA, 2010).

A adoção de um ideário neoliberal na pós-graduação no Brasil, a partir do final dos anos de 1990 (CHAUÍ, 1999; MAZZILLI, 2009a) representa uma guinada importante na constituição do trabalho docente na pós-graduação, abarcando suas dimensões internas e externas. A noção de universidade operacional, a qual Chauí se refere, surge no processo de reestruturação produtiva por meio de uma série de regulações que visam, em última instância, subordinar as instituições de ensino às necessidades do mercado e, no limite, às necessidades sociais que impactem nas questões econômicas. Convertida em organização voltada para si, por normas e padrões alheios à formação intelectual e ao conhecimento, a universidade operacional é, nas palavras de Chauí (1999, p. 7) “regida por contratos de gestão, avaliadas por índices de produtividade, calculada para ser flexível [...], estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional, [...] pela particularidade e instabilidade”.

Essa guinada política explica, em parte, segundo Lara (2016) a ocorrência de temáticas frequentes na revisão de literatura sobre a pós-graduação no Brasil. Dentre elas, tem-se: políticas para a educação superior atendendo às demandas do mercado; reformas neoliberais, trabalho flexível e mal-estar docente no ensino superior; precarização do trabalho no ensino superior; mundialização e internacionalização do ensino superior e sua relação com organismos internacionais; e exploração do trabalho docente no ensino superior. Parte dessas temáticas, nas quais o trabalho docente está diretamente envolvido, foi amplamente analisada em obras como as de Sguissardi e Silva Júnior (2009), Mazzilli (2009b), além de uma profícua coleção de artigos, teses e dissertações.

Depreende-se, desses debates, que o modelo de universidade vigente – face a uma crise mundial no ensino superior – tem consagrado o imediatismo empresarial no campo acadêmico-científico, a instrumentalização de alunos e professores, a heteronomia e a subvalorização do conhecimento crítico, ao contrário de se estabelecer a universidade como lócus de referência democrática e ética, de liberdade, conhecimento e autonomia capazes de questionar, dentre outros, a instrumentalização, a mercantilização e a militarização que a lógica neoliberal impõe em escala mundial (GIROUX, 2010). Nesse processo, nas análises sobre o trabalho docente nas universidades no tempo presente, temos um crescente processo de pauperização dos professores, caracterizado pela precarização do trabalho – que diz respeito tanto aos baixos salários evidenciados, sobretudo na iniciativa privada, quanto às formas de contratação precárias, por contratos temporários ou part-time – e pela fragmentação do trabalho e a consequente perda de autonomia, além da intensificação dos regimes de trabalho. (MANCEBO, 2009; SGUISSARDI; SILVA JR., 2009; MAUÉS, 2010).

Esse inventário compõe o campo analítico de investigações acadêmicas acerca do trabalho docente na pós-graduação no Brasil nas últimas duas décadas. E serve de pano de fundo para novos estudos e para a compreensão do trabalho docente no tempo presente. No tocante à perspectiva das condições de trabalho, enunciada no texto introdutório desse artigo, o panorama geral da produção acadêmica comunga com as duas dimensões do trabalho – interna e externa – depreendidas da proposta de Tardif e Lessard (2012).

De um lado, temos uma dimensão na qual se localiza o trabalho docente: um panorama social mais amplo que tem como base o modo de produção vigente e suas contradições, no qual a docência se constitui como ponto central na organização do trabalho geral no Estado. Sob esse aspecto, decisões políticas e contexto econômico mais amplo, bem como o papel que a universidade – sobretudo a universidade pública – desempenha nas representações sociais mais amplas têm repercussões diretas nos contextos de trabalho e, por conseguinte, nas condições de trabalho docente.

De outro lado, temos aquilo que compõe o universo do trabalho docente propriamente dito: o que os/as docentes fazem, a docência como atividade, como trabalho codificado, como experiência, como status e as finalidades desse trabalho (TARDIF, LESSARD, 2012). Nessa dimensão, por assim dizer, interna do trabalho docente, emergem não apenas as tarefas e as atividades, mas as bases materiais nas quais esse trabalho é realizado: as condições de trabalho, a carga de trabalho, os ambientes, os recursos mobilizados, a organização do tempo, as regulações, a cultura de trabalho e outros condicionantes que permeiam a atividade docente.

Sob esses aspectos, os dados levantados nas pesquisas empíricas (P1 e P2, identificadas no início desse texto) dão conta de que o tempo presente, em seus domínios políticos e econômicos, repercutem diretamente na atividade docente propriamente dita e nas preocupações apresentadas pelos professores da pós-graduação brasileira. A situação política do país ameaça o futuro da universidade pública, no tripé que caracteriza sua existência (ensino, pesquisa e extensão) e a falta de recursos, em particular para a pesquisa, é o sinal mais evidente dessa ameaça. Mais especificamente na P2, cerca de 2/3 dos docentes manifestaram suas preocupações com o espectro mais amplo do momento político do país. A análise das respostas evidencia uma preocupação com os riscos futuros da carreira de professor/a universitário/a no país, e com os riscos presentes no que diz respeito ao desmonte da educação superior pública, com os cortes orçamentários, ameaças de privatização da universidade pública e suas consequências sociais.

Para 34,2% dos professores, suas principais preocupações no trabalho docente dizem respeito à insegurança diante da conjuntura política, da desvalorização (sucateamento; desmonte) da educação e das estratégias de privatização da universidade pública. Alguns depoimentos ilustram esses dados: “Destruição da universidade via cortes de verba e Future-se” (Prof. 307). “Desmonte das universidades públicas” (Prof. 291). “Desmonte da educação superior pública; evasão discente de curso de graduação; desvalorização docente; redução de bolsas e demais recursos de permanência estudantil; adoecimento de estudantes e docentes (físicos emocionais/psicológicas)” (Prof. 327). A incerteza sobre futuro (próximo) da Universidade, envolvendo todos os aspectos (ensino, pesquisa, extensão) e a continuidade do nível de excelência da nossa instituição.” (Prof. 281). “Falta de uma perspectiva clara para os próximos anos no que diz respeito à autonomia universitária, autonomia de pesquisa e financiamentos necessários para a ciência e educação como um todo.” (Prof. 373). Preocupo-me se teremos Universidade Pública e Gratuita por muito tempo, como ficará a situação com cortes de bolsas, se existe a possibilidade de ser demitida no futuro.” (Prof. 73).

Para 25,3%, no âmbito da carreira profissional, questões ligadas a perdas de direitos, perdas salariais, progressão, aumento de tempo para aposentadoria são aspectos que tem mais preocupado os/as docentes. Alguns depoimentos ilustram essas preocupações: “Fim da universidade; ameaças à carreira docente; fim da aposentadoria; falta de perspectiva na profissão; corte de bolsas e auxílios; desvalorização da categoria” (Prof. 491). “A perspectiva de continuidades da vida universitária para as futuras gerações e as condições de aposentadoria” (Prof. 354). “As consequências do grave momento político, econômico e institucional: o processo de contínuas perdas de conquistas educacionais, sociais e trabalhistas; os cortes orçamentários; o desmonte das instituições de apoio à pesquisa e ao ensino; o iminente processo de privatização das universidades públicas; a perda da autonomia universitária; o avanço de ações autoritárias e persecutórias; etc.” (Prof. 454).

Para 22,5% dos professores, as preocupações giram em torno das políticas recentes do governo federal e com o consequente corte no financiamento da educação pública: “A manutenção do funcionamento da universidade com excelência, dadas as dificuldades orçamentárias e de avaliação sobre o papel da educação e de uma universidade na sociedade.” (Prof. 63). “O rumo econômico nebuloso atual. Sem dinheiro não se faz "educação" de qualidade.” (Prof. 256). “As ameaças à Educação que vivemos neste momento, especialmente os cortes de investimentos.” (Prof. 290). “A situação universitária no geral está muito preocupante. Falta de recursos para estudantes, pesquisa, infraestrutura que impede a melhoria nos três pilares da uma universidade: ensino, pesquisa e extensão” (Prof. 114).

Há, como se percebe, uma mistura inextrincável das dimensões internas e externas do trabalho docente que repercutem sobre a atuação dos professores, e que se somam a outras condições – essas, de caráter mais interno às dimensões do trabalho – referentes a tempo, espaços e atividades realizadas.

Em ambas as pesquisas (P1 e P2), verificamos que há uma multiplicidade de atividades de trabalho realizadas pelo mesmo docente. São atividades relacionadas ao ensino (de pós-graduação em maior frequência, 96,2%, de graduação, 91%; e supervisão de estágios, 30,2%), à pesquisa (como a orientação de pesquisas de mestrado e doutorado (98,3%) e iniciação científica (81,6%), coordenação de pesquisa (83,6%), participação em bancas de mestrado e doutorado (87%), as funções de líder de grupo de pesquisa (77,5%), de membro de comitê editorial (57%), de editor de revista (22,5%), além daquelas atividades inerentes ao “estar” na pós-graduação, como a submissão de produções acadêmicas para a publicação) e à extensão (como a coordenação de projetos de extensão, realizada por 38,6%).

Mas, além destas, que caracterizam o tripé da universidade, há uma série de outras atividades que, em geral, não aparecem como atividades-fim do trabalho do professor-pesquisador, como atividades de gestão universitária e acadêmica: participação em bancas de seleção de professores (73,4%), membro de conselhos universitários (57%), membro de núcleo docente estruturante (NDE) de graduação (34,5%) coordenação de laboratórios (33,6%) chefia ou sub-chefia de departamentos (22,7%), coordenação de atividades de gestão (20%), coordenação ou vice-coordenação de curso de pós-graduação (13,6%), coordenação ou vice-coordenação de cursos de graduação (5,2%).

Em ambas as pesquisas, respectivamente 23,2% e 18,8% dos participantes indicaram realizar outras atividades, “invisíveis”, mas que demandam tempo e esforço, o que impacta na jornada de trabalho dos professores ou mesmo na consecução de outras atividades-fim da universidade. Identificamos mais de 80 atividades, entre as quais atividades de gestão e de coordenação em monitorias, direção de Centros, comissões nos departamentos, núcleos de formação continuada, convênios de internacionalização, representações de centro, conselhos universitários e outros. Uma síntese dessas atividades diversas, realizadas no cotidiano universitário e nem sempre visíveis, pode ser exemplificada pelo depoimento: “Existem muitas atividades não contempladas aqui, como a redação de propostas de para editais de fomento, gestão financeira desses recursos, organização e participação em eventos, participação em bancas, comissões de para avaliação de processos etc.” (Prof. 500).

Os conjuntos de informações anteriores permitem inferir que os e as docentes exercem uma multiplicidade de atividades inerentes à tríade ensino-pesquisa-extensão, mas outras que extrapolam essa tríade e o senso comum presente nos dispositivos discursivos da sociedade, comumente restrito à ideia de “dar aula”. Além disso, pelos percentuais de respostas, evidencia-se a sobreposição de atividades nem sempre contabilizadas na jornada de trabalho formal contratada. Por isso, mais do que compreender a constituição do trabalho docente na pós-graduação pelas atividades que são desempenhadas pelos professores, é necessário contextualizar os tempos e espaços nos quais o trabalho é realizado.

Em ambas as pesquisas, os docentes afirmam trabalhar para além da jornada formal de trabalho: 71,4% da P1 considera a carga horária de trabalho insuficiente. Apesar desse percentual, 94% dos docentes fazem, sempre ou frequentemente, horas a mais de trabalho. Já na P2, 79,5% afirma que trabalhar além da jornada de trabalho. Além disso, 88,7% dos participantes da P1 levam trabalho para casa com frequência, ao passo que na P2 esse percentual é de 69%. De fato, quando não estão em sala de aula, os professores utilizam mais o espaço “casa” para realizar as suas atividades. Isso ocorre, grosso modo, por duas razões: infraestrutura e tempo.

Observa-se, a esse respeito, que 56,3% dos docentes da P1 considera a infraestrutura disponível em casa melhor do que a que dispõe na universidade. Já na P2, aparecem outros motivos para a realização das atividades em casa: o motivo mais recorrente, citado por 70% entre os/as respondentes, é o de que, em casa, sofrem menos interrupções no trabalho: “Na Universidade somos interrompidos o tempo todo e as condições para produção intelectual ficam comprometidas” (Prof. 613). Questões de infraestrutura também são motivos relevantes: quando comparam os recursos domésticos com os disponíveis na universidade para a realização das atividades, parcelas significativas dos docentes preferem suas casas em termos de espaço físico e mobiliário (37,6%), acústica (27,3%) e tecnologias (25,1%) mais adequados.

Já no tocante à dimensão tempo, para um a cada três docentes da P2, a possibilidade de coordenar e/ou conciliar o trabalho com as atividades domésticas é um importante indicador sobre vida e trabalho de professores e professoras, pois dá indícios de que compromissos domésticos são preocupações que coexistem com os compromissos profissionais que, cada vez mais, passam a coabitar nos espaços domésticos. Ainda na P2, para 20,8% dos participantes evidenciam-se menções à necessidade de dar conta de prazos e demandas e às práticas de prolongar tempos de trabalho (noites e fins de semana) como estratégias de enfrentamento ao acúmulo de atividades concentradas durante o expediente, o que reforça os indícios de sobreposição de prolongamento de tempos e de espaços de trabalho para além daqueles formalmente contratados.

Sob o signo de Jano, em que pese as dimensões externas do trabalho na pós-graduação (o desmonte político e orçamentário, as perseguições ideológicas, as ameaças à carreira), as dificuldades inerentes aos tempos e espaços de trabalho e as menções que dão indícios de intensificação do trabalho, no geral os professores de pós-graduação indicam estarem satisfeitos com a maioria dos aspectos do seu trabalho na Universidade.

Em especial, destacam-se aqueles itens que estão no cerne da identidade profissional docente, como remuneração, plano de carreira, qualidade de vida, experiência de trabalho e relações interpessoais. Somadas as incidências das frequências “satisfeito” e “muito satisfeito”, os aspectos do trabalho docente na P2 considerados mais satisfatórios por professores/as são, respectivamente, a experiência de trabalho (83,9%), as relações interpessoais com estudantes (83,1%), as relações interpessoais com chefias e integrantes de instâncias superiores (68,3%), a quantidade de estudantes por turma (65,5%), e as relações interpessoais com colegas de trabalho (63,6%).

Por sua vez, os dados permitem inferir que questões sobre prestígio social já não são determinantes para o grau de satisfação de professores e no que tange à realização plena da capacidade intelectual, os índices são bastante heterogêneos entre os que se consideram satisfeitos e insatisfeitos. Isso nos permite indagar se o volume de trabalho, relacionado à burocracia e a multiplicidade de tarefas de cunho administrativo, não estão tolhendo as plenas capacidades intelectuais dos docentes na realização de sua atividade-fim. Analiticamente falando, essa configuração da docência na pós-graduação guarda relações com a cultura do trabalho que vem se constituindo e instituindo entre os docentes, mas especificamente, com as ambiguidades entre produtivismo acadêmico e produção de conhecimento, típica do trabalho intelectual nesse nível de ensino.

 

2. Produção de conhecimento versus produtivismo acadêmico: a cultura do trabalho

Sguissardi (2010) e Bianchetti e Valle (2014), dentre muitos outros, tratam da questão do produtivismo acadêmico entre pesquisadores envolvidos com a pós-graduação a partir do modelo de regulação da Capes, no qual a busca pela qualidade converteu-se, a partir do final dos anos de 1990, em busca incessante pela quantidade; e a produtividade se converteu em produtivismo acadêmico, como forma de garantia da sobrevivência do pesquisador no Programa de PG e do próprio programa, visto que a avaliação está diretamente ligada ao financiamento. Em Sguissardi temos que esse fenômeno tem origem ainda na década de 1950, nos EUA, notório pelo lema publish or perish, sob o qual o pesquisador que não publicasse de acordo com o ideal estabelecido pelos órgãos financiadores, pelo mercado e pela burocracia universitária atrelada a elas estaria fadado a perecer.

Dos estudos de Bianchetti e Valle temos a contribuição de que esse ritmo de produtividade está atrelado ao chamado capitalismo acadêmico, no qual se instauram verdadeiros processos de competição entre os pesquisadores, em função dos resultados da avaliação da Capes e suas finalidades – o que corrobora com os depoimentos de envolvidos com a pós-graduação que foram analisados por Sguissardi e Silva Júnior (2009) e Lara (2016). No limite, produtividade virou sinônimo de competitividade sob a lógica de avaliar, regular e financiar a pós-graduação.

A ampla literatura sobre o tema do produtivismo, todavia, apresenta duas características no tempo presente: segundo Lara (2016), em sua revisão de literatura, é um tema recorrente em produções acadêmicas (anais de eventos, artigos, teses e dissertações) de várias áreas do conhecimento, por sua vez, sua incidência tem diminuído em produções mais recentes – o que leva à hipótese de uma possível emergência de resignação entre os envolvidos com a pós-graduação ao modelo Capes de avaliação, na esteira de formação de doutores desde 1997 e que, portanto, vem se cristalizando (SGUISSARDI; SILVA JR., 2009).

Em nossas experiências de pesquisa, esses fatores levam a duas características observáveis na revisão de literatura: a (auto)intensificação (HYPÓLITO; VIEIRA; PIZZI, 2009) e a extensificação do trabalho docente na universidade. A intensificação do trabalho importa ao trabalhador, individual ou coletivo, no que se refere aos processos de trabalho nos quais se exige um empenho maior física, intelectual ou psiquicamente (DAL ROSSO, 2008).

Lara (2016) observa que, embora categorias distintas, produtividade – nesse caso, produtivismo – e intensificação do trabalho caminham lado a lado e permeiam diferentes produções acadêmicas. Battini (2011) coloca em evidência essa relação no âmbito das políticas avaliativas, cujo resultado é a polarização entre professores “produtivos” e “improdutivos”, professores de ensino e professores de pesquisa que, no limite, têm conduzido a uma transformação da identidade docente na universidade, consubstanciada historicamente na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Por sua vez, o fenômeno da extensificação do trabalho já foi apreendido por diversos autores, sob os mais variados ângulos, como extensão ou prolongamento da jornada de trabalho da PG, em função do trabalho intensificado, da busca incessante por produtividade sem que, obviamente, o tempo cronológico se altere. 

Esses dados comungam com os encontrados na P1: 82,6% dos professores avaliam que tempos e espaços de trabalho são estendidos para os momentos originalmente destinados a não trabalho. Além disso, 74% dos professores passou a reservar um tempo do descanso para responder e-mails e antecipar demandas de trabalho; e 70,1% afirma “não desligar” do trabalho em momentos originalmente de não-trabalho. “Trabalho diariamente até às 23h ou 24h, para tentar dar conta de tantas demandas, e trabalho comumente também nos finais de semana em casa e feriados. É muito raro o final de semana e feriados em que eu não trabalhe, pois sempre há demandas para dar conta” (Prof. 619, participante da P2).

O uso das tecnologias digitais e móveis desempenham papel fundamental no que diz respeito a condições de trabalho, sobretudo à fusão de tempos e espaços de trabalho e não trabalho. Respectivamente, na P1  e na P2, 52,8% e 46,6% avaliam que os processos de trabalho ficaram mais intensificados; 73% e 86,7% afirmam serem requisitados mais vezes e a qualquer instante para fins de trabalho, e 47,8% e 80,7% não visualiza mais uma separação clara entre tempos e espaços de trabalho e não-trabalho.

O conceito de trabalho ubíquo (LARA, 2016) tem sido usado, nesses casos, para explicar os impactos das alterações de sentidos de tempos, espaços e onipresença causados por estas tecnologias no cotidiano de trabalho. Nesse contexto, desempenhar várias tarefas concomitantemente tem sido uma estratégia comum para, respectivamente, 48% e 83% dos participantes das pesquisas P1 e P2. Todavia, essa estratégia multitarefa não reverte em mais tempo livre, apenas reforça a condição de intensificação do trabalho, haja vista que o tempo que se economiza se converte em tempo para mais trabalho, em qualquer tempo e lugar (BIANCHETTI; MACHADO, 2007; LARA; QUARTIERO; BIANCHETTI, 2019).

Lara (2016), baseado nas análises da Han (2015) argumenta que a técnica temporal da multitarefa tem ainda outras implicações. Partindo da premissa de os processos criativos pressupõem um tempo de ócio, reflexão e criação, o autor argumenta que realizar várias tarefas ao mesmo tempo impacta sobre a atenção parcial contínua. Dirigida a diferentes fontes informativas e processos concomitantes, a prática da multitarefa gera uma atenção dispersa e rasa, que fragmenta a atenção profunda, indispensável para atividades intelectuais. Sob o signo de Jano, a busca pela técnica temporal de ser multitarefa aparece como um atributo de engenhosidade dos sujeitos produtivos na pós-graduação, mas evidencia a sua face oposta: em vez de desempenho cultural da humanidade, se caracteriza como atributo de animais que, na natureza, são obrigados a dividir sua atenção e diferentes processos e fontes informativas (caçar e não ser caçado, por exemplo), que pouco tem de processo civilizatório (HAN, 2015).

E, nesse sentido, processos comunicacionais e produtivos instaurados e intensificados pelos usos de tecnologias digitais e móveis no âmbito da cultura digital, em termos de processo histórico, coincidem com análises como as de Crary (2014), de que o último reduto de resistência do trabalhador ao capitalismo tardio tem sido o sono, à medida que estamos nos sedimentando enquanto uma sociedade do cansaço (HAN, 2015). Na P1, sobretudo, observa-se várias menções a uma cultura de trabalho que tem se instituído na pós-graduação por meio de práticas comunicativas.

A intensificação de contatos via dispositivos móveis e redes sociais, seja de professores, alunos e orientandos ou mesmo candidatos a orientandos, têm gerado uma sensação de proliferação de demandas urgentes enviadas entre os pares e criam a expectativa de que mensagens enviadas – e visualizadas – por dispositivos móveis sejam respondidas imediatamente, independentemente do horário, estabelecendo uma nova ética de comunicação: “Sei de professores que não respondem, mas vejo a difamação que isso gera na comunidade, especialmente entre os alunos, pois queixas chegam constantemente aos professores e gestores” (Prof. 1086). Mais uma vez, sob o signo de Jano, tecnologias usadas para facilitar a comunicação entre os pares, otimizar tempos e espaços, facilitar a produção e o acesso à produção de conhecimento são convertidas em tecnologias de vigilância e controle, e de autointensificação do trabalho, características da sociedade do cansaço.

Cansaço, aliás, tem sido uma característica da docência na pós-graduação. Sobretudo na P1, dados qualitativos evidenciam que a docência na pós-graduação é marcada por constante atividade, ritmo intenso de trabalho, trabalho em tempo integral, marca de um tempo sem tempo e de discronia temporal característicos de um trabalho em regime 24/7 nas sociedades da performatividade contemporânea (HAN, 2015; CRARY, 2014). Mas não sem consequências psicossociais: “Trabalho docente em tempo integral. Intensificação do trabalho docente. Esgotamento físico e mental” (Prof. 1004). “Estresse; aumento da produtividade e das capacidades de integrar conhecimentos em nível nacional e internacional” (Prof. 1165). E ainda: “intensificação, precarização, ampliação do trabalho” (Prof. 1192).

Dados quantitativos da P2 corroboram os inúmeros depoimentos evidenciados na P1. No que se refere às condições de saúde mental, 63,8% dos docentes afirmam que se sentem estressados no trabalho, embora apenas 35,5% tenham recebido diagnóstico médico de estresse. Quase um em cada cinco (17,1%) dos respondentes já foram diagnosticados com algum transtorno psicológico relacionado ao trabalho. O afastamento do trabalho por motivo de doença relacionada às atividades laborais já alcançou 12,7% da amostra de respondentes da P2. Além das questões relacionadas à saúde mental, 20,1% dos professores participantes da pesquisa confirmam que já receberam diagnóstico de LER e/ou DORT.

Outro importante fator relacionado ao trabalho docente diz respeito às formas de reconhecimento. O fato de a maioria dos professores da P2 (54,6%) considerar que seus esforços não são devidamente reconhecidos guarda relações com o próprio momento que a universidade e a ciência vivenciam: o de recrudescimento do conhecimento científico, desvalorização da ciência, da universidade e da intelectualidade. A gestão da crise pandêmica no Brasil, em 2020, é paradigmática para exemplificar os resultados de um processo que vem sendo gestado há mais de uma década nas práticas culturais via internet e que inverte a lógica da produção do conhecimento: opiniões pessoais e crenças são erigidas como conhecimento socialmente validado, enquanto que resultados de produções cientificas são vistos como mera opinião. Sob o signo de Jano, os professores da pós-graduação se veem compelidos a produzirem academicamente, ao passo que suas produções são, no senso comum, equiparadas com opiniões pessoais, valores e crenças.

 

Considerações finais

No ano em que se celebra 55 anos do Parecer CFE n. 977/65, marco fundador da pós-graduação sistematizada no Brasil, a docência nesse nível de ensino apresenta contradições e ambiguidades típicas do trabalho nas sociedades capitalistas. Não é possível inferir sobre as condições de trabalho na pós-graduação em 1965 e, consequentemente, seria contraproducente analisar comparativamente o trabalho docente  realizado neste ano de 2020 com o de 1965, haja vista as mudanças no mundo do trabalho, no desenvolvimento de forças produtivas e na regulação da própria pós-graduação. Todavia, é politicamente necessário explicitar as condições de trabalho na pós-graduação a fim de gerar subsídios teórico-empíricos para análises, prognósticos e novas pesquisas acadêmicas acerca do futuro, a curto e médio prazo, da pós-graduação stricto sensu no país.

Neste artigo procuramos demonstrar o quão significativo foi a agenda da Capes, no fim dos anos de 1990, para a constituição das condições de trabalho, da cultura do trabalho e da identidade docente na pós-graduação. Os dados empíricos das duas pesquisas apresentadas corroboram a revisão de literatura sobre temas recorrentes acerca da pós-graduação, ao passo que se complementam em termos qualitativos em questões relacionadas às condições de trabalho, dimensões internas e externas que constituem a docência na pós-graduação no tempo presente.

Tal como o personagem mitológico Jano, a docência na pós-graduação é carregada de ambiguidades, sobretudo se comparada ao imaginário coletivo estabelecido sobre o que representa ser um pesquisador, professor de pós-graduação stricto sensu. As políticas governamentais desencadearam uma série de apreensões sobre a carreira, o trabalho propriamente dito e o futuro da universidade.

Em termos de condições objetivas de trabalho na pós-graduação, evidencia-se uma série de atividades e funções realizadas de modo quase que invisível, que se sobrepõe às atividades-fim do trabalho docente. O excesso de trabalho e a falta de infraestrutura ideal para realizar atividades intelectuais na universidade favorece a instauração da cultura de levar trabalho para casa, como agravante de que a fusão de tempos e espaços de trabalho e lazer ganham contornos sistêmicos e irreversíveis. Ainda assim, realizar parte do trabalho em casa, ainda que em horários e com carga horária para além da formalmente contratada, possibilita em muitos casos conciliar atividade profissional e afazeres domésticos.

Ainda que estejamos nos referindo a um importante segmento da intelectualidade brasileira, os professores que participaram da pesquisa se dizem sem tempo. Essa percepção é corroborada pelo número de atividades realizadas, dentro e fora do âmbito profissional. As atividades realizadas com mais frequência por professores fora de seu horário de trabalho não são atividades de lazer, mas de trabalho: afazeres domésticos (36,2%); trabalho acumulado da universidade (36,1%) e outras atividades relacionadas à profissão, como elaboração de projetos, pareceres ou relatórios (36,1%), além de estudos relacionados à atividade profissional (32,2%). Comparados com dados sobre condições de saúde, volume de trabalho e multiplicidade de atividades, estes indicadores reiteram a dinâmica de precarização do trabalho docente na pós-graduação, que repercute diretamente nas condições de saúde e bem-estar dos professores e das professoras. Ainda assim, os professores da pós-graduação dizem-se muito satisfeitos com vários aspectos do seu trabalho.

Engenhosos, professores e professoras da pós-graduação mobilizam estratégias de produtividade para dar conta das demandas de trabalho. Com frequência, realizam várias tarefas concomitantes, ainda que, a longo prazo, a prática temporal de ser multitarefa se constitua como um obstáculo à realização de trabalho intelectual, próprio da docência na pós-graduação. Além disso, a produtividade se confunde com produtivismo acadêmico e, paradoxalmente, a representação social do que se constitui produzir cientificamente se confunde, no tempo presente, com produção de opiniões e crenças. Em temos de recrudescimento da importância atribuída à pesquisa científica, seja na opinião pública, seja por ações dos governos, a desvalorização social dos intelectuais e, mais especificamente, dos professores universitários, aparece como preocupação entre os participantes da pesquisa.

Muitas outras preocupações que aparecem nos depoimentos dos professores, e que não foram cotejadas nas seções anteriores, podem ser assim categorizadas: volume e condições de trabalho (16,2%), falta de valorização à identidade profissional (6%), infraestrutura precária (3,6%), cerceamento da liberdade (3,4%), ataque à ciência e à pesquisa científica (2,2%) e condições de saúde mental decorrente das condições de trabalho (1,6%). Em números menores, aparecem outras preocupações assim identificadas: comprometimento/engajamento dos estudantes; burocracia universitária; instabilidade (em vários aspectos); condições de estudo e de financiamento para a permanência estudantil; impossibilidades de atualização/formação profissional; falta de comprometimento dos pares e de mobilização coletiva; gestão universitária (departamento, campus, reitoria); perda da autonomia universitária; perda da saúde mental; partidarização/ ideologias na universidade; sensação de impotência com a situação da universidade e da ciência; saúde mental dos estudantes; democracia ameaçada e evasão dos alunos.

Em função do momento político e econômico do país, do esvaziamento das políticas educacionais para o ensino público, da manifesta perseguição ideológica às universidades públicas por membros do Governo Federal, do anti-intelectualismo e do movimento de recrudescimento e mesmo de negação do conhecimento científico no próprio âmbito do discurso governamental, fatores aliados à instaurada precarização das condições de trabalho e de infraestrutura, e da fragilização das condições de saúde de docentes (e, mais recentemente, de estudantes), o tempo presente e de realização das pesquisas é profícuo para apreender as preocupações dos professores da pós-graduação. O alento, se pode-se dizer assim, vem de um depoimento quase isolado (Prof. 111), que quase chega a lembrar um verso de Mário Quintana no “Poeminho do Contra”. O depoimento do/a docente diz: “Não tenho preocupações, mesmo com a instabilidade que estamos vivendo. Já tive vários momentos desses ao longo do tempo em que atuo no nível superior”, o que nos dá a esperança de que os desmanches governamentais na educação pública e na carreira docente não sejam permanentes – afinal, “eles passarão, [nós] passarinho”.

 

 

 

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SOBRE O AUTOR

 

RAFAEL DA CUNHA LARA é doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, doutorando em Sociologia e Ciência Política pela (UFSC), professor, pesquisador, pedagogo e supervisor escolar da Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSUL), pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e membro do Grupo de pesquisa Trabalho e Conhecimento na Educação Superior (TRACES/UFSC).

E-mail: rafael_dez@hotmail.com

 

 

 

 

 

 

Recebido em: 20.08.2020

Aceito em: 12.09.2020