METAMORFOSES DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO:

DA “FORMAÇÃO DE ELITES” AO “PRAGMATISMODESENFREADO”

 

Entrevista com Afrânio Mendes Catani

 

 

Marcos Marques de Oliveira

Universidade Federal Fluminense

Niterói, RJ, Brasil

 

 

Nevaldo Leocádia Bastos Júnior

Universidade Federal Fluminense

Niterói, RJ, Brasil

 

DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.45742

 

 

 

No início de 2019, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação da Universidade Federal Fluminense (PROPPI/UFF) lançava mais um edital de professor visitante. Jorge Nassim Vieira Najjar, então Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF, nos procurou animado com a notícia sobre a possibilidade de contarmos com a presença de Afrânio Mendes Catani, Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que estava se aposentando.

Com o aval do colegiado, fizemos a inscrição e ficamos aguardando o resultado do concorrido edital – que costuma trazer importantes pesquisadores das mais diversas áreas para reforçar os cursos de mestrado e doutorado da instituição. A notícia positiva não chegou a ser uma novidade, devido ao extenso e qualitativo currículo do nosso então candidato. Mas corroborava uma das principais características do saudoso professor Jorge Najjar: a dedicação intensa que sempre disponibilizou para honrar os inúmeros cargos que ocupou, dentro e fora da UFF[1].

É em homenagem a ele, portanto, que dedicamos a transcrição desta entrevista realizada com Afrânio Mendes Catani – que, para nossa honra, acaba de ter renovado o seu contrato por mais um ano como Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF.

Nessa conversa, de quase quatro horas duração, o tema central ficou em torno das metamorfoses ocorridas no sistema de ensino superior brasileiro, que segundo o especialista possui quatro marcos institucionais fundamentais: a criação da USP, na década de 1930, voltada à formação das elites paulistanas; a reforma universitária realizada pela Ditadura Militar, no final dos anos 1960, que marcou um primeiro movimento de expansão das chamadas universidades federais brasileiras, com o intuito de adotar o modelo departamental da universidade norte-americana; a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBDEN) de 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que visava atualizar o nosso sistema de ensino superior às prerrogativas privatistas de um projeto de integração do país à globalização transnacional; e, por fim, as políticas educacionais dos governos de Luís Inácio Lula da Silva, que com vistas à configurar um novo movimento de expansão de matrículas no ensino superior brasileiro, buscou combinar iniciativas que atendessem tanto aos interesses dos setores privados de ensino, quanto às prerrogativas dos movimentos da sociedade civil que atuam em defesa da Educação Pública. “Devido à extensão continental do Brasil, assim como aos intensos conflitos resultantes de interesses de agentes tão diversos, todas estas ‘reformas’ não se completaram de forma efetiva – mas, de alguma maneira, produziram como resultado o cenário que nós temos hoje. Cenário, diga-se, que não é dos melhores, já que vivemos atualmente, na sociedade brasileira, uma espécie de ‘contrarreforma’ ultraconservadora, anticientífica e antidemocrática, que vem colocando em cheque os poucos, mas importantes, avanços que conquistamos no campo da educação superior nos últimos anos”, afirmou Afrânio Mendes Catani, que iniciou este diálogo      contando-nos um pouco de sua trajetória profissional.

 

1. Boa tarde, Professor. Antes de tratarmos diretamente do assunto principal desta entrevista, que se articula com a temática da edição da nossa revista Movimento, que diz respeito às transformações ocorridas nas nossas políticas de educação superior, gostaríamos de ouvi-lo sobre a sua trajetória profissional. Como se deu essa transformação de um jovem bacharel em Administração Pública em um exímio e reconhecido sociólogo especializado em questões educacionais e culturais?

 

— Antes de tudo, gostaria de registrar o prazer de retornar a contribuir com a revista Movimento, o que já fiz lá pelos idos dos anos 2000, num artigo com Mario Azevedo, um então orientando que foi Vice-Reitor da Universidade Estadual de Maringá (PR). Especialmente agora que me encontro como Professor Visitante do Programa em Pós-Graduação em Educação da UFF. Sobre a pergunta, início falando que fui criado no interior do Estado de São Paulo, na cidade de Piracicaba, que fica a 150 km da capital. Meu pai, filho de imigrantes italianos, era professor e se tornou catedrático de Química Analítica da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, a famosa Esalq. Criado neste ambiente, na fase de escolhas de continuidade de escolarização, eu vi que não tinha pendências para o campo dito científico – que era o que marcava esta região. De diferente, o mais próximo que a gente tinha era um curso de Ciências Sociais em Rio Claro (SP), que fica a cerca de 50 km, mas, para ser sincero, ninguém sabia muito bem o que era isso – se confundia, inclusive, com o Serviço Social. Enfim, quase todos jovens daqui iam para a área de Agronomia, Engenharia ou Odontologia, que eram áreas fortes por lá. E convenci meu pai, com certa resistência, a sair de casa falando do curso de Administração de Empresas que existia na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) – que ele imaginava, com certa razão, ser alguma coisa próxima à Economia. Desta forma, com dezessete anos de idade, fui morar na capital. Mas ainda não estava matriculado. Fiz alguns cursinhos e prestei o vestibular. Acabei entrando para fazer Administração Pública, um curso gratuito na ocasião. E foi uma sorte, porque ele se assemelha a uma Escola de Estado, de tipo francês ou norte-americano. E, por isso, nele existia um Departamento de Ciências Sociais muito poderoso na área de Sociologia. Eu tive aulas com Maurício Tragtenberg, Sergio Miceli, José Carlos Durand e Vilmar Faria, por exemplo. E não só. Na área jurídica, eu tive aulas com Eros Roberto Grau, que chegou a ser Ministro do Supremo Tribunal Federal, e com Celso Antonio Bandeira de Mello, grande nome do Direito Administrativo. E já no segundo semestre eu comecei a atuar como monitor, o que já demonstrava que o meu caminho não era ser um administrador, mas que atuaria na área pública, mas de outra maneira. Eu era um menininho burguesinho, mas tive um colega que veio dos extratos mais simples da nossa população, e ele me disse uma coisa que traduz bem esta experiência: “Getúlio Vargas nos ensinou a falar”. Já até escrevi um artigo sobre isso. No Ensino Secundário, como se chamava à época, era terrível. Estávamos em plena Ditadura Militar, e a única participação possível era ficar quieto e fazer as provas. Já a FGV-SP seguia o sistema norte-americano que tinha a famosa nota de participação. Tinha as provas e trabalhos, claro, mas todos eram obrigados a fazer seminários e, portanto, obrigados a dar palpites. Quatro anos vivenciando este modelo possibilita um grande traquejo, a gente acaba aprendendo na marra. Um complemento é que nós estávamos em São Paulo, com grande oferta cultural, especialmente os cinemas – hábito que cultivei com o meu pai, ainda no interior, já que Piracicaba, apesar de parecer um ambiente cultural “sufocante” para um perfil como o meu, era uma cidade relativamente desenvolvida. Na capital, claro, este habitus cultural se ampliou, e outros foram desenvolvidos, tal como o aprendizado de línguas estrangeiras. E foi na monitoria, com Sergio Miceli, que iniciei os estudos sobre Pierre Bourdieu. Tive, inclusive, a oportunidade de ser hospedado pelo Miceli na França. Assim, um garoto que quase nunca tinha saído de Piracicaba acabou indo parar em Paris. Ele voltou, e acabei ficando por lá. No meu retorno, finalizando o curso na FGV, iniciei o curso de Mestrado em Sociologia com o professor Gabriel Cohn, na USP. Esse movimento, de pessoas de outros cursos para as Ciências Sociais, não era incomum. Ainda que houvesse alguma resistência dos que faziam o caminho mais tradicional. Interessante notar que a dissertação teve como base a história do cinema brasileiro, tendo discutido muito com Paulo Emílio Salles Gomes, o maior crítico brasileiro de cinema à época. Tive uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que se articulava com uma disciplina da Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP), onde eu cursei algumas disciplinas. E foi por aí que cheguei à Sociologia da USP, com o acolhimento do professor Gabriel Cohn. Depois, já como docente, como era muito comum naquele período, completei, em 1992, a minha formação na área com um doutorado em Sociologia, sob orientação da professora Heloísa Rodrigues Fernandes – novamente com uma pesquisa sobre o cinema brasileiro. Paralelamente a este processo de formação, no que se refere à trajetória profissional, comecei a trabalhar como professor horista da própria FGV-SP, ao mesmo tempo em que comecei a escrever para vários lugares, para complementar renda. E depois, no início dos anos 1980, fui para o campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, na área de Administração Escolar, colaborar com o professor Jorge Nagle. Em meados da mesma década, fiz um concurso para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em que fiquei pouco tempo. Logo a seguir, vim para a Faculdade de Educação da USP, onde me aposentei no ano passado. Um ponto final a considerar, é que os campos do conhecimento não eram tão rígidos. Éramos, na verdade, muito intuitivos e curiosos, já que havia uma pequena divisão intelectual do trabalho – o que possibilitava uma grande interdisciplinaridade. Hoje é diferente, já que a gente não consegue ler nem o que sai na nossa área central de pesquisa – o que denota a necessidade de uma intensa especialização. São eras bens distintas, em que tínhamos mais tempo para a formação, para adquirir um caldo maior de cultura. Nos dias atuais, a exigência de currículo e produção são maiores para o ingresso no mercado de trabalho, em qualquer domínio.

 

2. Pela sua resposta, observamos que você não é apenas um pesquisador das transformações do ensino superior brasileiro, mas também uma testemunha das mutações que a universidade brasileira sofreu nas últimas décadas. E fala, inclusive, de um período muito importante para a estruturação do ensino superior brasileiro, que é logo posterior à chamada Reforma Universitária da Ditadura Militar, ocorrida em 1968. Em um dos seus escritos[2], você afirma que esta reforma, apesar de ter sofrido a influência do modelo departamental da universidade norte-americana, ela não foi plenamente bem-sucedida. O que ela, na verdade, significou?

— Para falar dela, teremos que retroceder um pouco, já que considero que há quatro momentos históricos e institucionais que demarcam as principais metamorfoses ocorridas no sistema de ensino superior brasileiro: a criação da USP, na década de 1930; a reforma universitária que vocês citam, realizada pela Ditadura Militar, no final dos anos 1960; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBDEN) de 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso; e, por fim, as políticas educacionais dos governos de Luís Inácio Lula da Silva. Devido à extensão continental do Brasil, assim como aos intensos conflitos resultantes de interesses de agentes tão diversos, todas estas “reformas” não se completaram de forma efetiva – mas, de alguma maneira, produziram como resultado o cenário que nós temos hoje. Cenário, diga-se, que não é dos melhores, já que vivemos atualmente, na sociedade brasileira, uma espécie de contrarreforma ultraconservadora, anticientífica e antidemocrática, que vem colocando em xeque os poucos, mas importantes, avanços que conquistamos no campo da educação superior nos últimos anos. Mas voltemos a cada uma delas, com base inclusive numa referência bibliográfica que vou utilizar no meu curso deste semestre aqui na UFF, que é a obra do professor Luiz Antonio Cunha, um dos nossos maiores especialistas no assunto. Em resumo, o modelo que a sociedade brasileira tentou seguir é uma mescla predominante de duas vertentes: a napoleônica e a humboldtiana. A primeira vem da experiência francesa pós-revolucionária, com base na desconfiança que Napoleão Bonaparte tinha sobre as universidades do Antigo Regime, tidas como resquícios da antiga ordem estamental que sobreviveu à Revolução Francesa. E o que ele faz? Algo das quais as experiências do tipo FGV são resultantes: a criação de escolas profissionais. Temos, assim, um sistema universitário que persiste, ao lado de um sistema de escolas profissionais – as grandes écoles estudadas por Pierre Bourdieu, que formam as elites profissionais da Nação. Como acontece até hoje, na França e na Alemanha, por exemplo – onde muitos preferem ter poder numa estatal francesa do que maiores salários numa multinacional. Exemplos concretos: a Escola Normal Superior, a Escola de Minas, a Escola de Pontes e Caminhos. Um pouco do que faz a administração portuguesa no Brasil, quando da vinda da Família Real no início do século XIX. São escolas fundamentalmente de ensino, mas em que há também, alguma pesquisa, podemos dizer, mais aplicada. A questão é que, aqui no Brasil, a institucionalização não se deu de forma completa, robusta. A nossa estrutura permaneceu estamental, como comprova a permanência da Cátedra até 1968, que foi extinta pela reforma ditatorial. Extinta, mas de alguma maneira persistente na prática em diversas faculdades, tal como Medicina e Direito, nas quais ainda há domínios muito claros de determinadas pessoas e grupos – que trabalham, nos departamentos, como se fossem Cátedras, onde tudo que sai do “meu laboratório, eu sou o autor”. É o que Charles Wright Mills vai chamar, na década de 1950, nos Estados Unidos, de “Estadistas Acadêmicos” – pessoas que fazem, claro, trabalhos relevantes, mas que, depois disso, tornam-se administradores de verdadeiros complexos de pesquisa. Dando um salto, para depois retornarmos, é o que temos hoje, por exemplo, na área de medicina, com as revistas eletrônicas, com artigos curtos e um número muito grande de autores. Tudo saiu do “meu laboratório”, está lá, mas o que vale é o primeiro e o segundo nome, que foram os que realmente fizeram a pesquisa, e o último – que é o do Estadista. A universidade no Brasil demorou a se consolidar, talvez pelas nossas características culturais. Uma economia tardia, que foi, talvez, a última da América Latina a se preocupar em ter um ensino superior universitário. Esta implantação tardia do espírito universitário acaba por pesar no “frigir dos ovos”. Mesmo a USP, no seu início, era só um prédio, umas salas de aula, uma sala coletiva de professores e uma secretaria. A expansão – com arquitetura e alojamentos adequados, especialmente os laboratórios – vai ocorrendo lentamente, de acordo com o surgimento dos institutos e dos futuros campus. Inclusive, seguindo a tendência norte-americana, de acordo com Jean Baudrillard, de espaços propícios a reflexão e estudos, devido ao afastamento, mas pouco propícios a protestos. Era, ao fim, o esquema de Portugal: a Corte em Lisboa; a universidade em Coimbra. No caso da USP, é bom lembrar, que a premissa inicial era de que todo aluno passasse pela célula mater, que era a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – o que acabou não acontecendo. Medicina, por exemplo, nunca chegou ao campus. Direito permaneceu perto dos tribunais. E, a Engenharia só recentemente veio, a Escola Politécnica. De toda forma, a USP, criada em 1934, foi uma resposta educacional da burguesia paulistana às suas sucessivas derrotas políticas – que não correspondiam ao seu poder econômico. Buscavam afirmar, como já disseram Florestan Fernandes e Claude Lévi-Strauss, que o modelo de dominação com base apenas “no médico, no advogado e no engenheiro”, não estava dando certo. Teríamos que ter um quarto elemento: as Ciências Sociais. E o modelo mais completo deste quarto elemento estava sendo implementado na própria capital paulista, que era a Escola Livre de Sociologia Política (ELSP), criada em 1933 – que se inspirava na sociologia norte-americana, de marca quantitativa, com base nas técnicas de sondagem, tais como o famoso Survey, que seriam, em tese, mais aptas a captar a realidade. Inicialmente, um dos grandes destaques foram as pesquisas de sondagem eleitoral feita por Donald Pierson. No caso da USP, voltando um pouco, tenta-se articular este modelo napoleônico, de profissionalização, com o huboldtiano, de base germânica, que visa articular ensino, pesquisa e extensão – que, no fundo, almeja a consecução de uma universidade integrada à sociedade. É bom lembrar que a USP não foi a única tentativa dessa natureza. Tivemos outras iniciativas no Brasil. E, inclusive, acredito que houve um pouco mais de êxito na Unicamp, que iniciou suas atividades em 1966, por obra do médico Zeferino Vaz, e na Universidade Nacional de Brasília (UNB), criada em 1962, por iniciativa do antropólogo Darcy Ribeiro. O principal sentido, pelo menos inicial delas, era a vinculação com as respectivas comunidades, uma universidade integrada à coletividade. Zeferino tinha uma frase que definia bem este propósito: “O que é universidade? Cérebros, cérebros e cérebros que interagem com a sociedade”. Já a USP, cujo tamanho, em termos de matrículas, é o somatório da Unicamp e da Unesp, acabou por se aproximar mais do modelo norte-americano do que do europeu – inclusive se pensarmos nos tamanhos, diferenciados, das metrópoles de cada região. E o que conseguiu a Unicamp? Ser uma universidade que conjuga bem, inclusive em número de alunos, graduação e pós-graduação. Já a UNB acabou por ser tornar, pode-se dizer, mas inclusiva – seguindo a tendências das federais, inclusive, mais contemporaneamente, com a adoção pioneira das ações afirmativas em formas de cotas. O fato é que, como já disse, o Brasil é um país continental e, ainda que saudemos essa pretensa diversidade de modelos, em termos quantitativos o crescimento foi lento e aquém de nossas necessidades. Na verdade, o que temos é um híbrido, em que as chamadas escolas profissionais funcionam no interior das próprias universidades. E isso se deve, sem dúvida, à reforma universitária realizada durante a Ditadura Militar, que expandiu as unidades federais por diversas regiões do país.

 

3. Sabemos que essa expansão ocorreu vinculada a um projeto de desenvolvimento nacional autoritário, como não poderia deixar de ser num ciclo ditatorial. Porém, parece que esta estrutura de base estatal, ao invés de ganhar uma ressignificação para um período de redemocratização, acabou ficando disfuncional. Do nosso ponto de vista, a universidade pública, depois de ocupar um lugar importante como lócus de resistência democrática, nos anos 1970, manteve certa legitimidade na década seguinte – o que se comprova pelo seu reconhecimento durante o processo Constituinte de 1987-88. Mas, logo a seguir, já no governo de Fernando Collor, eleito ao final de 1989, passou a pairar sobre ela uma constante e radical ameaça liberalizante. O que, no campo educacional, indicava a necessidade de uma atuação mais efetiva do Estado na Educação Básica, enquanto no Ensino Superior se abriria um maior espaço para o setor privado. Faz sentido essa linha de raciocínio?

 

— Sim, faz. Essa questão remonta, inclusive, à perspectiva muito dura que o professor José Goldemberg (ex-Reitor da USP, que ocupou o cargo de Ministro da Educação, entre 1991 e 1992, no governo Collor) tinha do sistema federal de ensino superior. Ele dizia, resumindo, claro, o seguinte: “Nós temos, no Brasil, meia dúzia de universidades. As restantes são grandes escolas. E nós temos, portanto, que centralizar os recursos em quem faz realmente pesquisa”. Paulo Renato de Souza, ministro da Educação do governo Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, levará isso às últimas consequências. Ele, por exemplo, implantou a Gratificação de Estímulo à Docência (GED), que visava estimular uma carga horária maior em sala de aula, em detrimento da pesquisa e da extensão. Um recurso, diga-se, que não iria se incorporar ao salário – e que tinha, ainda, o intuito de desestimular as greves. Diga-se, inclusive, que houve grande adesão, já que há muito não havia reajustes salariais. Mas, o fato importante, é que, de alguma forma, isso descaracterizava o modelo universitário que busca um equilíbrio entre ensino, pesquisa e extensão. Os governos FHC, em verdade, adotaram outras medidas de endurecimento, reduzindo a contratação mesmo em caso de vacância. De alguma forma, é como bem definiu outro importante estudioso da temática, o professor Carlos Roberto Jamil Cury, ao falar do papel da LDBEN de 1996, disse que ela acabava por “atualizar” a estrutura do ensino superior brasileiro ao cenário internacional. Mas, do meu ponto de vista, de uma forma de internacionalização, infelizmente, subordinada e pouco autônoma. Seria uma “autonomia avaliada”.

 

4. No seu texto já citado[3], analisando o que acontecia à época, você chegou a afirmar: “Nos anos 1990 [...] as reformas do Estado e da educação superior tiveram por referencial teórico o liberalismo ortodoxo emulado pelo Banco Mundial”. E que, “no início do século XXI, qualquer movimento de reforma universitária que se pretende implantar no mundo, entre outras inspirações e referenciais, obriga-se a fazer menção ao Processo de Bolonha”. E, ainda, você assim o definia: “A educação superior enquanto bem público, assumindo uma dimensão social e de política pública democrática, surge consideravelmente negligenciada no Processo de Bolonha”. Em linhas gerais, de que forma esse processo[4] atravessou os debates sobre o ensino superior brasileiro nos anos 2000?

 

— O Processo de Bolonha é, sim, um divisor de águas. E, só para constar, esse artigo, escrito com dois amigos, gerou muita polêmica, sendo talvez um dos meus textos mais citados. Mas as tendências, incrementadas por este documento, são anteriores. Alguns anos antes de sua publicação, eu participava de uma mesa, em um congresso, em que estavam Pedro Krotsch, um professor argentino já falecido, o sociólogo Luiz Antonio Cunha, e Juan Carlos Campbell Esquivel, professor aposentado da Universidade Católica de Valparaíso (Chile). O tema era sobre a relação entre o público e o privado na Educação. E o Cunha, à época, escreveu um artigo que tem um título muito feliz: “O público e o privado: uma fronteira em movimento”. Até então a gente sabia os limites dessa fronteira: público, o que era gratuito; privado, o que era pago. E, em geral, no contexto do ensino superior, o público era melhor do que o privado. Em particular, o privado ocupava, não podemos negar, com mais excelência alguns nichos de mercado. A fronteira começa a se mover quando se inicia as avaliações. Inclusive, com a adesão de muitos reitores que, antes, eram contra qualquer proposta de controle. Mas, como os resultados saem bons, eles mudam de postura. O professor Krotsch, que dirigiu uma das mais importantes revistas acadêmicas da Argentina, Pensamiento Universitário, afirmou que a relação entre o público e o privado começou a ficar borrosa – ou seja, borrada. E Campbell apresentou o quadro chileno, em que se encontravam instituições boas tanto no setor privado quanto no setor público. Mas com um agravante: nenhuma com gratuidade. No caso brasileiro, o setor público domina significativamente a pós-graduação – com um grande e complexo sistema de avaliação, que tem por base as agências de financiamento à pesquisa e a regulação feita pelos pares. O que vem garantindo certa qualidade. O que opera neste nível é, na verdade, o controle pela avaliação, através de uma série de indicadores – especialmente os de publicação em periódicos científicos, com uma exigência cada vez maior de internacionalização. E um tipo de internacionalização de mão-única, com base no predomínio da língua inglesa, na ilusão de que os trabalhos serão lidos por um público supostamente maior. E estes critérios acabaram, portanto, atravessando os concursos públicos – com este tipo de publicação ganhando mais relevância do que as competências para o ensino e as atividades de extensão. E, como acontece lá fora, o que passa a prevalecer é o perfil do “Estadista Acadêmico”, como já falava Wright Mills, quando analisava o cenário norte-americano dos anos 1950 – que, atualmente, são verdadeiros gestores de verbas de pesquisa, inclusive, como um caso que conheci na Inglaterra, através da contratação de pós-graduandos para lecionar no lugar do docente, para que este, enfim, pesquise. Se ele não fizer, não sobreviverá no sistema acadêmico. Do outro lado da ponta, há os jovens pós-graduados recém-formados, super titulados, que precisam dar aulas em várias instituições para sobreviver. É como define o sociólogo britânico Michael Burawoy: as universidades norte-americanas passam a ser organizações empresariais, com duas características principais. Primeiro, tudo é cobrado, a começar pelas mensalidades. Segundo, as remunerações variam de acordo com a produtividade docente. Outro efeito são as políticas de corte orçamentário, que achatam a base salarial e os contratos de trabalho passam a ser temporários. Inclusive, como já disse, com a contratação dos pós-graduandos em situações precárias. E os que ainda possuem contratos mais longos, acabam por não ter condições de avançar na carreira. Por fim, como também aconteceu no Brasil, todas as outras atividades periféricas – segurança, transporte e, entre outros, limpeza – passa a ter contratos terceirizados, cujas empresas, em geral, pouco se preocupam com as questões trabalhistas. É isto que estamos observando acontecer aqui, no país. Os orçamentos passam a ser congelados, quando não diminuídos. Assim, a natureza do nosso trabalho (na pesquisa, no ensino e na extensão) vai se transformando. Se você investe, por exemplo, na produção de livros individuais, faz um caminho equivocado. O estímulo é para que você publique em periódicos já qualificados – em algumas áreas, inclusive, tendo que pagar. Se possível, com recursos das agências financiadoras, para se ter mais legitimidade. Outro dado complementar, é que essa organização de tipo empresarial acaba fazendo dos estudantes uma espécie de mão-de-obra subordinada aos docentes mais qualificados, já que seus projetos de pesquisa precisam estar ancorados, numa espécie de guarda-chuva, ao programa de pesquisas do orientador. É, ao fim, um processo de profissionalização que engessa o campo científico, reduzindo-se o espaço para a inovação e o pensamento divergente. Nos programas de pós-graduação, por exemplo, só passa a contar para a avaliação o que se faz com os seus alunos. Deixando-se de lado outras formas de produção que envolve maneiras diversas de articulação e parcerias. Do meu ponto de vista, é um processo violento – que, inclusive, estimula práticas de concorrência que não garantem a qualidade acadêmica, tal como as duvidosas coautorias em textos diversos que, geralmente, são frutos de uma pesquisa individual (ainda que bem orientada).

 

5. Nesse percurso histórico, pela sua análise, parece que a dita autonomia universitária acaba por ficar bastante comprometida. Processo que, também segundo a sua apreciação, expressa no texto já citado, não se modificou substancialmente nos governos petistas. Quais são as continuidades e descontinuidades, no campo do ensino superior, entre os governos FHC e Lula? 

 

— Na verdade, existe muita continuidade, algumas distinções e certas ambiguidades. Por exemplo, o caso do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, que ficou conhecido como Reuni. Se, por um lado, houve grande abertura de universidades sem o devido planejamento, para atender ao clientelismo político e a interesses diversos, por outro não se pode negar a relevância inclusiva de criação de cursos e carreiras em lugares remotos em que não havia oportunidades de acesso qualificado ao ensino superior. Mas uma coisa ainda pouco investigada é o período que antecede ao início do governo petista, quando houve interessantes debates sobre as propostas de políticas públicas que poderiam ser implementadas quando Lula assumisse a Presidência da República. Uma delas, por exemplo, capitaneada pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que representava, salvo engano, o grupo que iria para o Ministério da Ciência e Tecnologia, tinha ideias bem interessantes, com base em cálculos econômicos bastante confiáveis, de fortalecimento da pesquisa realizada nas universidades públicas. Mas, as ideias que prevaleceram foram as do professor Fernando Haddad, que se tornaria, depois de Cristovam Buarque e Tarso Genro, o Ministro da Educação. Em linhas gerais, ele defendia que a maior possibilidade de ampliação de acesso, a baixo custo, se daria pelas instituições privadas, sejam comunitárias ou confessionais. Foi aí que se configurou o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que possibilitou a ampliação de vagas com recursos advindos do mecanismo de renúncia fiscal. Em termos numéricos, não se pode negar que foi, sim, um projeto bem sucedido de inclusão – inclusive com o advento das cotas socioeconômicas e étnico-raciais. Mas, ao cabo, os grandes beneficiários foram as “fábricas de diplomas”, que puderam lucrar muito – ainda que instituições privadas de qualidade, como as pontifícias, as confessionais e as comunitárias de bom nível, também puderam ser incentivadas. Mas, ao fim, acabou-se favorecendo a mercantilização do ensino superior. O próprio Lula não admitia críticas ao PROUNI, mesmo críticas que buscassem melhorar o programa. O que é uma posição questionável, já que, afinal, a função da academia é, sim, fazer críticas às políticas públicas, independente de nossas posições ideológicas e partidárias. É como já disse Max Weber: o intelectual é um profeta desarmado, estipendiado pelo Estado, para fazer crítica ao próprio Estado. Mas nenhum poder gosta muito disso. E eu sempre fui crítico neste sentido, de colaborar para que as políticas se aperfeiçoem. Até porque não dá para negar que, em curto prazo, mecanismos de acesso como esse são importantes para chegar aos desassistidos, especialmente aos que tiveram um ensino básico de baixa qualidade, que podem ali, nessa experiência, melhorar de qualificação e vida. Isso existe em boa parte do mundo, inclusive o desenvolvido, e que geralmente se denomina de ensino pós-secundário. Isso pode e deve existir, assim como a própria Educação à Distância (EAD), também muito estimulada no período. Mas não, do nosso ponto de vista, como política pública prioritária para o ensino superior, como achava o professor Haddad – que, não sem certa razão, considerava que investir recursos, sem a devida contrapartida e sem o devido controle, nas instituições federais de ensino, seria um desperdício de recursos públicos. Ele as considerava como “sacos sem fundo”, pelas excessivas demandas, quase que automáticas, por salários e progressões – que invariavelmente redundava em greves e paralisações. Daí, inclusive, é que nasceu o já citado Reuni, como uma tentativa de encaminhamento desta questão.

 

6. Em um texto de 2005[5], você chega considerar o PROUNI como uma radicalização do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) – uma antiga política pública, criada ainda na Ditadura Militar, que havia sido reformulada por FHC, mas que também foi fortalecida no governo Lula. Você afirmava, inclusive, que ao tentar aliar cidadania e privatização, o então governo acabava por fortalecer as instituições privadas, contrariando até mesmo o Plano Nacional de Educação (PNE) vigente. E completava: “Quebram-se algumas correntes que impediam o acesso à educação superior, mas não se oferece mais do que um arremedo de cidadania de segunda classe aos contemplados. Além da qualidade questionável dos cursos oferecidos, os beneficiários terão acesso a um ensino privatista e pautado pela falta de condições que garantam sua permanência até a obtenção do diploma”. Olhando do presente para o passado, talvez seja mesmo difícil imaginar que qualquer partido, seja qual fosse, tivesse condições de abrir mão de um mecanismo governamental com tamanho poder político, eleitoral e institucional. Neste sentido, cabe-nos destacar outra dimensão de continuidade entre os governos do PSDB e do PT: a pretensão de que seria possível regular este mercado educacional, através do Conselho Nacional de Educação (CNE), por exemplo.

 

— Muitos pesquisadores, à época, inclusive eu, que participei de um grupo na Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd) sobre o assunto, apontavam que esses mecanismos de controle não iriam funcionar.Não negávamos, como já disse, a dimensão inclusiva dessas ações, mas apontávamos que o contingente privado não se satisfaz com os limites. No cenário atual, com a correlação de forças políticas hegemônicas que temos, isso fica ainda mais evidente. Se, lá no início a preocupação ainda era nobre, vinculada à formação de elites, atualmente o que vige é um pragmatismo desenfreado. É só olharmos as propagandas. Vi ontem, na televisão: “Faça o seu curso sem sair de casa. É só R$ 99,00”. É muito difícil, hoje, esse tipo de oferta sofrer algum freio nos organismos de avaliação e controle. Nos governos petistas, a relação de matrículas, na graduação, entre público e privado foram mantidas. Houve uma expansão aguda, pelos mecanismos que já apontamos, mas houve um equilíbrio na relação, fazendo com que o percentual de participação entre público e privado ficasse estacionado. Nos últimos anos, tivemos um decréscimo, inclusive, no número total de alunos – pela crise econômica, que deve se agravar com a pandemia que estamos vivendo. Mas a tendência, na retomada, é de uma maior participação da iniciativa privada. Na atual conjuntura, será muito difícil conter os lobbies privatistas, que representam fortíssimos grupos financeiros – com grande capacidade de influência sobre o atual governo. E minha crítica, recordando o que eu já disse sobre o que penso do papel do intelectual, no sentido apontado por Weber, é que seja o grande gargalo histórico: diversas políticas de governos, muitas até boas, não se transformaram em políticas de Estado. O que demonstra uma grande fragilidade nossa, política e societária.

 

7. Nesse cenário, de pragmatismo desenfreado, como você diz, em um ambiente social cada vez mais anticientífico, há espaço para a sobrevivência de um modelo humboltdiano, ainda que híbrido, de universidade?

 

— Ainda hoje o setor público concentra a grande maioria das carreiras ditas científicas. Já o setor privado investe mais nas carreiras ditas profissionais. A única carreira que possui certo equilíbrio é Medicina – com grandes escolas públicas e caríssimas escolas privadas. A tendência é que os cursos que tenham mercado se fortaleçam, não só pela redução do investimento estatal, mas até porque a concorrência, privada, pelos recursos do fundo público tenderá a aumentar. Na pós-graduação brasileira, que é de excelência, a tendência é de que a gratuidade permaneça, ainda que com uma participação um pouco maior do setor privado – que só poderá cobrar em algumas áreas em que haja demanda efetiva. Na área de Educação é que temos uma relativa exceção, com grande participação da iniciativa particular – forjada, inclusive, com diversos docentes aposentados das universidades estatais. Já na área de cinema, por exemplo, onde também já atuei, a participação privada é mais robusta do que em outras. Ou seja, utilizando a metáfora do professor Cunha, a fronteira entre público e privado continuará a se mover. Terá impactos diferenciados de acordo com as áreas e cursos. Mas a tendência à privatização ganhará cada vez mais força – caso não haja alguma modificação na conjuntura social e política que estamos vivendo. Mas duvido muito que isso possa acontecer num curto prazo, já que as forças conservadoras ou reacionárias, tem se demonstrado muito atuantes – atacando, inclusive, políticas públicas minimamente civilizatórias, tal como as ações afirmativas. E não só atacando o ensino superior público, mas, em alguns casos, adotando estratégias de formação geracional – como demonstram os estudos mais contemporâneos da socióloga Maria Alice Nogueira, com a qual já organizei algumas pesquisas sobre a obra de Pierre Bourdieu – que prescindem do que possa acontecer no ensino superior brasileiro. Esses contingentes de elites, na qual se incluem os professores universitários, estão preparando seus filhos para frequentarem escolas de graduação especialistas em nichos de mercado, tal como a já citada FGV ou o INSPER, famosa escola de negócios paulista. Ou, como complemento, cursarem a pós-graduação fora do país. A tendência, para este público, e também para alguns analistas, é que as universidades públicas fiquem parecidas com as instituições universitárias francesas: continuarão de bom nível; mas não de excelência. Inclusive pela triste suposição de que haverá uma queda de qualidade pelo público que começa a ingressar devido às chamadas políticas de ações afirmativas. O processo, claro, não é irreversível. Vai depender do que consigamos fazer, interna e externamente, para manter a excelência do que temos na pós-graduação e, também, nos ditos cursos menos valorizados – inclusive no campo da Educação, da Pedagogia e das outras licenciaturas. Aproveitando, ao contrário do que acreditam alguns, até mesmo a força dos novos contingentes populacionais que ingressaram e ainda estão ingressando nos nossos cursos, cujo status de professor, apesar do processo de proletarização, é maior do que os mercados de trabalho que antigamente eles poderiam alcançar. Do meu ponto de vista, viveremos a reclassificação de alguns cursos, com um potencial reposicionamento positivo de suas clientelas. Não que eu seja otimista, até porque a nossa carreira permanecerá sob ataque – especialmente pelo tipo de internacionalização, como já disse, subordinada que estamos adotando. E a nossa categoria encontra-se, ainda, numa postura muito mais reativa do que afirmativa. Mas teremos que aprender a lidar com essa situação para encontrar caminhos de resistência e, o que é mais importante, de superação. Um desafio é tornar mais visível o que fazemos aqui dentro e fora da universidade. Não que tenhamos que adotar as visões de senso comum sobre o trabalho docente. Mas explicar as particularidades de nossa profissão. Algumas pessoas mais próximas, que não são da área, me questionam: “Ah! Mas você não aparece no campus”. Eu explico que eu não sou zelador – que é uma profissão nobre, mas diferente, que exige presença física. E que minhas pesquisas se desenvolvem no cotidiano da sociedade, em vários espaços. E que, inclusive, algo incomum em outras áreas, boa parte dos recursos que eu preciso para trabalhar estão fora da universidade – inclusive na minha casa, nas bibliotecas, nos arquivos digitais etc. Talvez os novos meios de comunicação tornem isso mais evidente, fazendo com que o diálogo, que é difícil, torne-se mais proveitoso. De alguma forma, a atual pandemia do coronavírus tem permitido uma divulgação maior do trabalho científico. Veremos se essa tendência se manterá.

 

8. E como poderíamos melhorar o diálogo entre a universidade e o restante da população?

 

— Isso se articula com o que acabamos de falar. É muito difícil, para a nossa população, que tem acesso precário à Educação Básica, a compreensão do modo de trabalho científico e o necessário investimento correspondente. E, também, com o que eu já disse sobre a reclassificação de alguns cursos, com um potencial reposicionamento positivo de suas clientelas. Bourdieu tem uma expressão bem interessante para definir pessoas de origem simples que conseguem, por oportunidade, fibra e competência, adentrar ambientes antes não destinados a elas. São pessoas, e aqui vai numa tradução livre, que são “resultados do esforço plebeu”. E, de alguma forma, essas pessoas acabam por se encaixar, por algum mérito, diga-se, nas “profecias autorrealizadoras” do sistema de ensino – que costumam beneficiar alunos de origens mais “aristocráticas”. O desafio desse contingente é atuar no novo ambiente de maneira mais democrática – fazer como o que a FGV fez com alguns de meus colegas, de origens mais modestas, os ensinando a falar. Afinal, a universidade é uma experiência transformadora. E, assim, cumprindo a função de desnaturalizar a ideologia do dom – dos destinos autorrealizáveis. Questionando, portanto, as contradições e desigualdades existentes nas ofertas educacionais diferenciadas postas às diversas classes sociais. É, ao fim, a síntese da própria sociologia educacional de Bourdieu, quando ele afirmava: mais de um, entre dois jovens da burguesia francesa, vai para a universidade; menos de dois, entre cem jovens da classe operária, consegue chegar à universidade. O que é socialmente terrível, já que estes mecanismos de seleção são pesados. E os jovens de família operária que vão, sofrerão muito. Sendo que a maioria deles, ainda, ingressará em universos profissionais que demandam menor capital cultural. Mas é desse grupo, talvez, no caso brasileiro, que possa vir algumas formas de atuação que faça a melhor defesa da universidade pública – ainda que tenhamos em mente que a mobilidade social é lenta. É mais uma questão geracional do que individual. Na questão de gênero, por exemplo. Talvez os netos da minha filha sejam as reais testemunhas das lutas que estamos travando hoje. Assim como nós somos testemunhas de lutas que nos antecederam. Daí a importância de nos mantermos atentos ao Brasil real que hoje enfrentamos. Uma realidade extremamente dura, em que vige um espírito anticientífico chocante, baseado numa pauta moral retrógada e numa religiosidade pouco republicana, que nos faz perguntar: onde nós vamos parar? Nossa função, nesse cenário, é divulgar o pensamento científico – sem esquecer que, de alguma forma, estamos sempre atrás. E em condições de trabalho cada vez mais difíceis, que nos tolhem porque não faz parte dos cálculos de “rentabilidade acadêmica” vigentes. No caso da pós-graduação, algumas vezes, acabamos sendo mais duros conosco do que o próprio sistema.

 

9. Por falar em Bourdieu, vai aqui uma última pergunta, mas que, além de se articular com a questão da expansão do ensino superior, tema central da entrevista, também se coaduna com os interesses destes entrevistadores que labutam no campo da Sociologia da Educação, na qual o respectivo pensador francês é uma grande referência. De que forma atrair novos leitores para o universo bourdieusiano – que, sabemos, é considerado bastante hermético e difícil?

 

— Essa pergunta me lembrou os tempos em que fui auxiliar de pesquisa de Sergio Miceli. Numa disciplina sobre Durkheim, os alunos recorreram a mim para solicitar ao professor um “novo” caminho para a compreensão do autor – já que o contato direto com os textos dele não estava sendo muito proveito. Daí ele nos recomendou a leitura de Fundamentos empíricos da explicação sociológica, do mestre Florestan Fernandes. Bem, o fato concreto é que os alunos resolveram voltar aos originais do autor francês. Afinal, Florestan tinha diversas qualidades, mas os seus textos sociológicos, podemos dizer, não são tão fáceis, ao primeiro contato. O certo é que essa é uma pergunta de difícil resposta, já que varia muito do tipo de trabalho docente e do repertório do alunado. Pensando nisso, inclusive, fazendo, com a permissão de vocês, uma autopropaganda, é que lançamos o Vocabulário Bourdieu[6]. Foi um tremendo desafio, mas acredito, modestamente, que ele ajuda muito. Bourdieu é um autor que a gente, quando começa a ter contato, não sabe muito bem por onde começar. Quase todos os seus textos são escritos com muitas referências, baseadas numa epistemologia prática que lhe é muito própria – e, portanto, à primeira vista, muito hermética. Por exemplo, você não consegue dialogar com ele se partir de uma premissa genérica muito ampla, tal como a noção de “última instância”. Não, se a descrição de um fenômeno começa já com alguma explicação de “última instância”, é porque não se precisar explicar mais nada. É preciso analisar e compreender as mediações que podem até redundar em alguma coisa que seja a chamada “última instância”. E o nosso Vocabulário ajuda justamente aí, já que tenta identificar certa ordem na constituição dos termos da sociologia bourdiesiana. E usamos uma noção que ele gostava muito, baseada na filosofia de Ludwig Wittengenstein, de usar os conceitos como uma “caixa-de-ferramentas” para a compreensão da realidade social e, ainda, da obra do próprio autor. Há, também, alguns novos comentadores que traçam mapas bem interessantes. Um deles, que indico, é do José Marciano Monteiro[7], lançado ano passado, que é uma bela leitura introdutória. No campo da pesquisa educacional, uma boa dica é um pequeno ensaio de Tomaz Tadeu da Silva, que está no livro Identidades Terminais[8]. E ali ele faz um alerta parecido com o que fiz há pouco. Aqueles que chegam à universidade com uma motivação finalística, tal como não é incomum na Pedagogia, terão uma grande decepção. Bourdieu é, de alguma forma, desencorajador neste sentido, já que ele é muito cético na possibilidade de uma sociologia estritamente militante. Lembro de uma aluna que, no início de um dos meus cursos, disse-me: “Não vou fazer esta disciplina porque eu não gosto do autor”. Eu perguntei a razão. Ela disse: “Eu prefiro [Antonio] Gramsci”. Entendendo já a questão, busquei argumentar que os dois autores – extremamente importantes – são diferentes. Um foi um grande ativista político que produziu reflexões seminais, em um determinado contexto, sem pesquisa empírica – ou seja, tomando a sua prática como próprio objeto. E o outro sempre foi um acadêmico que baseou seus pressupostos epistemológicos em análise de questões concretas, tomando os diversos sujeitos históricos como “objetos” – ainda que com o cuidado de não objetivá-los numa teoria apriorística. São caminhos diferentes de produção de conhecimento, não necessariamente autoanuláveis. Quem sabe possam ser complementares. Dialoguei bastante, mas não adiantou. A moça foi embora. E não só ela. Mas ainda bem que ficou uma boa turma. É que Bourdieu é realmente muito desalentador para a perspectiva, comum em nossa área, que através de um processo longo (às vezes nem tanto) de aprendizagem abre-se o caminho para um processo coletivo, ou mesmo individual, de emancipação. Não dá porque a própria produção do conhecimento, na perspectiva bourdiesiana, precisa ser contraditada, criticada e conhecida. Isso exige uma “fibra” de autocrítica que pode colocar em xeque a nossa confiança militante. Das minhas experiências de ensino com Bourdieu, inclusive em ações de extensão para um público maior de educadores, o que percebo é que a sua obra possibilita, ao fim, uma autoanálise bastante profunda de nossas próprias práticas – e das estruturas que condicionam as nossas subjetividades. Dói muito. Pode ser um início de um processo de emancipação. Mas não o garante. E Bourdieu aplica isto a si próprio, especialmente quando fala de suas origens familiares e de sua própria trajetória – de isolamento e solidão. De perto, quando a gente pára para analisar, percebe que Bourdieu nunca foi uma pessoa feliz. Sempre foi um insatisfeito e esteve sempre deslocado, em conflito consigo e com outros – uma pessoa, isso é conhecido, de difícil convivência, inclusive com os seus colaboradores. Na verdade, ele descortina a ilusão de que o meio acadêmico é um lugar especial, separado do mundo, como lócus exclusivo da virtude. Mas, voltando ao assunto, pode-se começar com seus textos clássicos, mas haverá muita dificuldade, pelo tipo de escrita adotado. Uma boa saída, talvez, é começar com seus últimos textos, os chamados escritos de combate, tal como o Contrafogos[9] – nos quais ele pratica uma postura de divulgação científica mais ajustada ao grande público. De toda forma, isso vai sempre depender do tipo de público, que é o que vai determinar os caminhos que podem amenizar as dificuldades e as resistências. Inclusive levando em conta a qualidade das traduções, que são bastante variadas. Por fim, uma última dica: evitar fazer condenações ao autor – e isso não se resume só a Bourdieu – a partir do contexto atual. Todo autor é uma pessoa do seu tempo. E isso deve ser levado em consideração. E Bourdieu, como todos, tem as suas portas-fechadas. Mas, ao fim, sua obra continua potente para os desvendamentos das contradições dos nossos sistemas de ensino e produção desigual de capitais culturais. Vale, muito, à pena.

 

 

SOBRE OS ENTREVISTADORES

 

MARCOS MARQUES DE OLIVEIRA é pós-doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Professor de Sociologia da Educação do Instituto de Educação de Angra dos Reis (IEAR) e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).

E-mail: marcos_marques@id.uff.br

 

NEVALDO LEOCÁDIA BASTOS JÚNIOR é mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Licenciado em Pedagogia pelo Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (IEAR/UFF).

E-mail: nevaldojunior@id.uff.br

 

 

 

SOBRE O ENTREVISTADO

 

 

AFRÂNIO MENDES CATANI é doutor e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), livre docente pela mesma Universidade, professor titular aposentado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), pesquisador do CNPq (Nível 1A), com estudos na área de Educação, com ênfase em políticas de educação superior, sociologia da educação e cultura; e, de Cinema, com ênfase em história do cinema latino-americano e do cinema português. Foi coordenador dos GTs Estado e Política Educacional (1996-1998) e Política de Educação Superior (2010-2013) da ANPEd e coordenador adjunto do Comitê Científico mesma entidade (2008-2010).

E-mail: amcatani@usp.br

 

 

 

 

 

 

 

Recebido em: 09.09.2020

Aceito em: 12.09.2020

 



[1] Jorge Nassim Vieira Najjar, Professor Titular da UFF, faleceu em 19/08/2020. Além de atuação institucional relevante, como Diretor da Faculdade de Educação e ex-coordenador nosso Programa de Pós-Graduação, Jorge Najjar tinha efetivo reconhecimento por sua significativa produção acadêmica, seu altivo engajamento nas lutas pela educação pública e seu efetivo zelo com as atividades de gestão institucional para além dos muros da universidade – especialmente como membro do Conselho Municipal de Educação de Niterói (RJ) e, mais recentemente, como membro do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Destacam-se, ainda, a sua atuação em diversas entidades da área educacional, tais como a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).

[2] LIMA, Licínio; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes. O Processo de Bolonha, a avaliação da Educação Superior e algumas considerações sobre a Universidade Nova. Avaliação, Campinas; Sorocaba, SP, v. 13, n. 1, pp. 7-36, mar. 2008.

[3] Conferir nota anterior.

[4] Processo de Bolonha é o nome mais conhecido da Declaração de Bolonha, acordo assinado, em 1999, por ministros da Educação de diversos países de Europa, na cidade italiana de mesmo nome. O documento deu início a um processo de articulação que visava facilitar a circulação de graduados entre os países do Espaço Europeu de Educação – o que demandava uma adaptação e uniformização dos conteúdos, dos formatos e dos financiamentos dos cursos universitários. Sobre o assunto, conferir, por exemplo: SILVEIRA, Zuleide Simas. Concepções de educação tecnológica na reforma de educação superior: finalidades, continuidades e rupturas (1995-2010). 445f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminsense, Niterói, 2011.

 

[5] CATANI, Afrânio Mendes; GILIOLI, Renato de Souza Porto. O Prouni na encruzilhada: entre a cidadania e a privatização. Linhas Críticas, Brasília, v. 11, n. 20, p. 55-68, jan./jun. 2005.

[6] CATANI, Afrânio Mendes; NOGUEIRA, Maria Alice; HEY, Ana Paula; MEDEIROS, Cristina Carta Cardoso. Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

[7] MONTEIRO, José Marciano. 10 lições sobre Bourdieu. Petrópolis (RJ): Vozes, 2019.

[8] SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidades Terminais: as transformações na política da pedagogia. Petrópolis (RJ): Vozes, 1996, capítulo “Bourdieu e a educação”

[9] BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.