MEU MESTRE E EU
Homenagem a Jorge Nassim Vieira
Najjar
Marcelo
Siqueira Maia Vinagre Mocarzel
Universidade Católica de Petrópolis
(UCP)
Petrópolis, RJ, Brasil
Centro Universitário La Salle (UniLasalle)
Niterói, RJ, Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.46370
Em
uma tarde de março, meu telefone tocou. Era Jorge Najjar. Na época eu era um
recém graduado em Pedagogia, aspirante ao mestrado em Educação e ele era
vice-diretor da Faculdade de Educação da UFF, onde eu havia participado do
último processo seletivo do mestrado e meu projeto fora reprovado. Ouvi dizer,
pelos corredores, que para ter mais chances, eu deveria ingressar em um grupo de
pesquisas, para me familiarizar com o linguajar, com as exigências da academia.
Por intermédio da professora Marcia Pessanha,
consegui ser indicado ao professor Jorge, que estava criando seu grupo de
pesquisas. Ele me perguntou, com sua voz ao mesmo tempo firme e doce, o que eu
queria pesquisar. Na minha ingenuidade, eu respondi: “Educação”. Ele retrucou
rindo: “Sim, disso eu sei, mas o que em educação?”. Eu respondi o que me veio à
cabeça: “Gestão!”. Essa ligação, de pouco mais de 2 minutos, mudou
completamente a minha vida e, acredito eu, a de muitas outras pessoas.
Na
quarta-feira seguinte, dia 24 de março, às 2 horas da tarde, me apresentei como
bom calouro na sala da vice-direção da Faculdade de
Educação, no campus do Gragoatá, em Niterói. Eu me
lembro de olhar para aquela paisagem bucólica à beira da Baía e sentir, que de
alguma forma, aquele ali seria meu lugar. Sua sala era pequena e contava com
três mesas, duas retangulares, formando um L e uma mesinha redonda com quatro
cadeiras. Jorge estava de lado, de camisa amarela, digitando no teclado, com os
óculos na ponta do nariz. Ele olhou para mim e abriu um largo sorriso: “Senta
aí filho, vamos esperar os outros chegarem.” Como em uma primeira entrevista de
emprego, fiquei sem saber o que fazer, para onde olhar e o silêncio era
interrompido apenas pelas suas fortes batidas nas teclas do computador. Olhei
aquelas pilhas de folhas, xerox, livros, aquela “desorganização arqueológica”,
como ele chamava, com camadas e mais camadas de trabalho e pensei: “Como alguém
se encontra desse jeito?”.
Logo
depois, para meu alívio, três estudantes de mestrado ingressaram na salinha e
se apresentaram: Lucy, Adriana e Rogério. Já os conhecia por e-mail, mas ali pela
primeira vez os vi pessoalmente. Os três eram recém-ingressados no mestrado e
seriam orientados pelo Najjar. Aquela reunião, em março de 2010, foi a pedra
fundamental da criação do Nugeppe – Núcleo de Estudos
em Gestão e Políticas Públicas em Educação, um grupo de pesquisa, mas antes de tudo,
um grupo de afetos. Naquela primeira reunião, ele havia pedido que eu trouxesse
um anteprojeto, com aquilo que desejava pesquisar. Eu juro que me esforcei.
Passei dias construindo algo que eu acreditava ser realmente bom, repleto de
citações de autores consagrados, seguindo todas as normas que o edital do
mestrado propunha, algo que fosse, como Jorge depois me ensinou, “um cartão de
visitas” para mim naquele espaço almejado. Ele puxou uma cadeira e se sentou
conosco, pedindo que nos apresentássemos. Por fim, pediu que eu distribuísse as
cópias do meu anteprojeto, que seria lido pelos quatro e em seguida, comentado.
Antes, ele fez uma fala – que ao longo dos anos se tornou um clássico – que a
crítica intelectual era um sinal de respeito do colega, que não era pessoal e
que “a massa só cresce quando a gente bate”. Levei aquilo na maior
tranquilidade e fizemos silêncio para que lessem minhas 8 páginas de pretensa genialidade
concentrada.
Após
a leitura, para mim, todo aquele clima de acolhida desapareceu. O céu ficou
nublado. Eles quatro, mas principalmente Jorge Najjar, foram impiedosos com meu
texto: falaram que aquilo não era um projeto, que não tinha objetivo, que a
justificativa não justificava e todo tipo de ofensa impessoal que só o autor do
texto é capaz de enxergar. Fui atropelado por um rolo compressor, mantive meu
sorriso amarelo, agradeci e emudeci. Fiquei contando os minutos para ser
libertado daquela câmara de tortura. Eu me lembro perfeitamente do meu trajeto
em direção ao carro, pensando: “Eu nunca mais vou pisar aqui!”. Saí
envergonhado, triste, decepcionado comigo mesmo, achando que a vida acadêmica
não era para mim. Os dias foram passando e tive coragem de reler o meu projeto
e constatar que eu só havia ouvido verdades. Que aquele projeto era verde como
eu e que nós precisávamos amadurecer. Foi assim que resolvi voltar na
quarta-feira seguinte.
Depois
desse momento-chave, tudo começou a fazer sentido. Jorge me incentivava com seu
jeito carinhoso, atencioso, com seu bom humor e mesmo quando escrevia “Feio!”
ao corrigir meus parágrafos. Nós rapidamente criamos identificações várias:
ambos descendentes de libaneses, gostávamos tanto de ler e estudar, como de
comer uma paçoquinha com café e falar da vida. Fomos, pouco a pouco criando uma
cumplicidade que se refletiu na minha aprovação no mestrado em 2011, quando ele
me ligou depois que o resultado foi homologado e disse: “Parabéns, mestrando!”.
Daí em diante, comecei a construir com ele uma relação simbiótica: escrevíamos
juntos para congressos, eu o ajudava a organizar seu sítio arqueológico e sua
agenda, ele me ajudava revisando meus trabalhos das disciplinas e tirando
minhas dúvidas sobre os autores. Construí minha maneira de dar aulas o vendo
dar aulas, aprendi a analisar criticamente um texto o vendo nas bancas e no
grupo de pesquisa, aprendi muito sobre gestão de pessoas observando sua
serenidade como vice-diretor, diante dos maiores absurdos que lhe eram
relatados. Nunca foi grosseiro com ninguém, nunca deixou a razão de lado, mesmo
colocando emoção em tudo que fazia. E foi ele que me deu todas as oportunidades
iniciais, quando eu era apenas um aspirante, sofrendo certa desconfiança por
ser oriundo da escola privada.
Quando
eu e meus contemporâneos Sheila, Edylane e Simone
estávamos escrevendo nossas metodologias para as dissertações, ele se divertia
ao dizer, com a boca cheia, após ler os manuscritos: “Isto não é uma
metodologia”. Até que eu resolvi armar uma arapuca para ele. Peguei sua tese de
doutorado, fui à metodologia e criei um quadro esquemático, indicando todos os
pontos que ele abordava, ou seja, o trajeto do texto. Espelhei aquele roteiro
para o meu objeto e construí meu texto metodológico com base naquele que tinha
sido o seu. Entreguei o texto e aguardei ele dizer que aquilo não era uma
metodologia, pronto para dar o bote (nem sei se de fato eu teria coragem de
confrontá-lo, é verdade) ... Quando acabou, ele girou o pescoço, passou o
polegar e o indicador na sua barba e disse: “Tem alguns problemas, algumas partes
sem sentido, mas mesmo com tudo isso, posso dizer que isto é uma metodologia!”.
Foi alegria geral, comemoração de gol, enquanto ele ria da nossa cara e se
orgulhava daquele momento heurístico. Tempos depois contei para ele essa
história e ele gargalhava, e passei anos contando para os novos orientandos
dele quando me pedia.
Com
Jorge descobri como o funcionário público, com dedicação exclusiva, pode trabalhar
muito mais do que as horas previstas. Sua generosidade sempre o sobrecarregou
de textos para ler, de orientandos herdados, de projetos para integrar, de
artigos para dar parecer... Nunca soube dizer não! Ao longo dos anos fomos
desenvolvendo uma cumplicidade sem tamanho, que me permitia substituí-lo em
aulas, ajudar na correção dos trabalhos e até na resposta dos e-mails. Ele
dizia que foi se tornando uma pessoa jurídica, nós tínhamos suas senhas de
tudo. Isso se deve muito à entrada de Karine ao grupo, que ocupou um lugar
muito especial ao lado dele, ajudando-o em todas as esferas de sua vida. Eu me
emociono só de me lembrar do esforço que ela empreendeu para que a banca de
titular de Jorge pudesse acontecer em meio à pandemia e à sua doença. Sem
dúvidas, a ascensão profissional que Jorge teve nos últimos dez anos, e nós
dois consequentemente, se deve muito a este triunvirato que constituímos. Ele
brincava que suas próximas tatuagens seriam Marcelo, no braço direito, e Karine
no braço esquerdo, ou vice-versa. Não tivemos tempo para isso, infelizmente.
Após
deixar a direção da Faculdade de Educação, Jorge conseguiu focar em suas
pesquisas e no Nugeppe. Publicou diversos artigos e
organizou mais de uma dezena de obras e dossiês, tendo publicado inclusive sua
tese na íntegra, em um livro editado pela EdUFF.
Tornou-se diretor estadual da ANPAE, depois vice-presidente Sudeste;
coordenador regional da ANFOPE e na sequência seu 1o tesoureiro;
elegeu-se coordenador do Programa de Pós-graduação em Educação da UFF e
conseguiu, com um trabalho belíssimo, trazer a Reunião da ANPEd
para Niterói, sendo Coordenador-geral da Comissão Local até as vésperas do
evento, pouco antes de descobrir sua doença. Para além disso, firmou um
profícuo convênio com a Colômbia, em que pesquisadores brasileiros e
colombianos realizaram diversos intercâmbios. Foi designado Conselheiro Estadual
de Educação, após anos atuando com brilhantismo no Conselho Municipal de
Niterói. Enfim, conquistas dignas de um professor titular de uma das maiores
universidades do país.
Jorge
nos ensinava com amor, mas sempre com verdade. Nunca se privava de nos corrigir,
mesmo que em público, sem o menor receio de constrangimentos. Sabia elevar
nossa autoestima e, ao mesmo tempo, nos dar consciência da realidade e de
nossas limitações. Como gostava de dizer, aprendeu com Gramsci a ser um
pessimista na teoria e um otimista na prática. De longe, foi o melhor marido e
pai que já vi, e olha que conheci milhares em tantos anos de gestão escolar;
Rosana, Alex e Rafa podem atestar isso. Pena que não conseguiu ser avô, pois
seria imbatível nessa função! Era uma fonte inesgotável de conhecimento, de
tiradas geniais, de indicação de livros e risadas gostosas. Gostava de abraçar,
de fofocar, de compartilhar, de conviver, de aglomerar, não era feito para
esses tempos de pandemia. Essa pandemia que nos afastou dele, mas que ao mesmo
tempo possibilitou que sua família ficasse ao lado dele, nessa reta final. Vai
entender as contradições da vida...
Formou
um grupo potente, que começou com trMocarzel”! Também não deu tempo. Jorgito,
nosso Grande Tubarão Branco, que valorizava cada ritual, cada pequeno passo de
cada pessoa que lhe cercava, fique sabendo que o câncer não te venceu. Porque
um verdadeiro professor torna-se imortal em seus alunos. Esse talvez seja o
nosso céu: habitar quem fica, de alguma forma.
Com
você aprendi a fazer citações perfeitas, a beber café sem açúcar, a deixar os
problemas virem até mim, a ajudar sem esperar nada em troca, a não falar “a
nível de”, a não só me indignar, mas a agir contra as injustiças, a buscar
sempre o melhor em mim e no mundo. Você me ensinou que mestrado é formação
intelectual e me obrigava a ler literatura e te acompanhar em exposições de
arte enquanto eu só queria saber da tese! Com você escrevi meu primeiro resumo,
meu primeiro artigo, meu primeiro livro, fui ao meu primeiro congresso nacional
e internacional, integrei a minha primeira banca. Você estava na minha banca de
mestrado, na minha banca de professor substituto, na minha banca de doutorado e
em todos os momentos importantes da minha vida; me viu casar, viu minhas duas
filhas nascerem, viu eu me tornar professor do ensino superior, doutor,
professor da pós, conselheiro... enfim, custo a crer que a vida vai ter a mesma
graça sem você, sem você falando “E aí, filhote?”. Mas como você sempre dizia,
“a vida é dura, rapá”! E como Guimarães Rosa nos
ensinou, o que ela quer da gente é coragem! Obrigado! Te amo para sempre!
SOBRE O AUTOR
MARCELO SIQUEIRA MAIA VINAGRE MOCARZEL é doutor em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC-Rio), mestre em Educação pela Universidade Federal
Fluminense, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Católica de Petrópolis, professor dos cursos de graduação e pós-graduação do Unilasalle-RJ, Conselheiro
do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (CEE/RJ), membro do Fórum
Estadual de Educação do Rio de Janeiro (FEE-RJ), membro do Grupo de Trabalho
para Acompanhamento, Monitoramento e Avaliação do Plano Estadual de Educação
nas Prisões e Articulador dos Conselhos de Educação do Programa de Apoio à
Implementação da Base Nacional Comum Curricular (FNDE/MEC), coordenador da
seção estadual do Rio de Janeiro da Associação Nacional pela Formação dos
Profissionais da Educação (ANFOPE), pesquisador do Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Gestão e Políticas Públicas em Educação (NUGEPPE/UFF) e do JuX-Juventudes Cariocas (PUC-Rio, editor da Revista
Brasileira de Política e Administração da Educação (RBPAE/ANPAE). Possui estágio
pós-doutoral pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
Fluminense.
E-mail: marcelomocarzel@gmail.com
Recebido em: 29.09.2020
Aceito em: 30.09.2020