PELAS MÃOS DO ORIENTADOR
Homenagem
a Jorge Nassim Vieira Najjar
Faculdade Maria Thereza (FAMATH)
Niterói, RJ, Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.46373
Conheci Jorge Najjar, em 2012, no final do
processo seletivo de acesso ao curso de Mestrado em Educação da Universidade
Federal Fluminense.
Eu estava absolutamente amedrontada com a
rigidez e a crueldade dos professores da Pós-graduação stricto sensu.
Características sobre as quais ouvira falar corriqueiramente nas lendas e
histórias de ex-alunos de programas diversos. Tais relatos incluíam humilhações
públicas, egos inflados e um elitismo acadêmico no qual eu não poderia
enquadrar-me. O Programa era, por mim, visto como o Olimpo, local de onde
Deuses-doutores arbitrariam sobre minha vida e meu futuro.
Revestida de uma coragem não usual à época, fiz
a inscrição. As etapas do processo seletivo foram sendo vencidas até o dia da
entrevista, momento em que conheceria os Deuses os quais temia.
Por receio de que imprevistos pudessem impedir
que uma professora ordinária de um município da Baixada Fluminense chegasse ao
Olimpo, antecipei-me ao horário previsto em algumas horas. Em determinado
momento, Jorge saiu da sala da Direção da Faculdade de Educação da UFF, local
em que ocorriam as sabatinas e perguntou-me se era eu a candidata que seria
entrevistada a seguir. Diante da minha negativa, ele questionou. “Será que ela
não vem?” e eu, em tom de troça, lhe respondi “Tomara!”. Ele riu. Conheci ele e
o riso dele no mesmo momento. E confesso que não achei aquele “velhinho com
cara de Papai Noel” tão malvado assim!!!
Durante a entrevista, da qual também participou
a Professora Flávia Monteiro de Barros Araújo, sua querida Flavinha, ele, percebendo
que meu projeto de entrada era absurdo e irrealizável (eu pretendia fazer
etnografia em 20 escolas!!!), já quase no final da entrevista, perguntou se eu
fazia a mais vaga ideia do que era um estudo etnográfico e eu, depois de
respirar e constatar que eu não conseguiria enganar o velhinho do Olimpo,
respondi um sonoro NÃO. Ele gargalhou. Disse posteriormente que foi naquele
momento que me escolheu para ocupar uma das vagas que abrira naquele ano. Jorge
contou esta história incontáveis vezes: para todas as turmas nas quais lecionou
desde então; para outros professores com os quais convivíamos; em várias bancas
de qualificação e defesa e, finalmente, como exemplo em todos os momentos em
que precisou dizer a alguém que o projeto estava ruim, mas podia melhorar.
E, assim como meu projeto de entrada, melhorei
a cada dia nos 8 anos em que estivemos juntos. Eu, verde como ele dizia,
precisava resgatar saberes aos quais não tivera acesso na graduação e na pós lato sensu. Precisava ouvi-lo, não perdia uma aula, uma
única palestra. Me envolvi e fui envolvida pela vida acadêmica sem ver as
humilhações e nenhum sinal de ego inflado. Pelo contrário, conheci um PROFESSOR
DOUTOR comprometido com sorrisos, leveza e muito rigor acadêmico.
Jorge gostava de formar seus orientandos, por
mim apelidados de seus pintinhos, de maneira integral. Não foram poucos os
momentos em que me presenteava com livros não acadêmicos e me obrigava a
experimentar iguarias diversas. Ele dizia que se soubesse que eu era “chata
para comer”, não teria me escolhido naquele dia. Ouvi milhões de vezes “Quem
não está aberto a experimentar novos sabores, não está aberto a experimentar
novos saberes. E eu não quero um orientando que não experimenta coisas novas.”
E uma vida inteira de coisas novas abriu-se
para mim na convivência com ele. Eu aprendi a apreciar arte, a comer salada e
comida árabe, redescobri a beleza de um café no fim de tarde, intensifiquei meu
fascínio por novos lugares. Conheci, com Jorge, entre eventos científicos e
“turismo pedagógico”, Cuba, Paris, Bogotá, Cartagena, Madrid, Barcelona,
Paraíba, Goiás, Santo Antônio de Pádua...
Apresentava meus trabalhos nos congressos
nacionais e internacionais sob seus olhos atentos, que orientavam não apenas a
dissertação e os artigos que escrevíamos juntos, mas também minha análise e
necessária crítica à educação brasileira. Ao mesmo tempo, a nossa relação de
reciprocidade, amizade e cumplicidade tornava-se cada vez mais firme.
Ele estava lá quando palestrei pela primeira
vez e fez críticas necessárias ao meu discurso e à minha postura; ele também
estava lá quando escrevi meus primeiros artigos e os leu, criticou, corrigiu,
releu e acompanhou cada etapa do processo de publicação; ele ainda estava lá
quando dei minhas primeiras aulas no ensino superior, me orientou, buscou
referências e deu dicas quando eu tinha dúvidas sobre minha prática.
Jorge também me preparou para todos os
processos seletivos para professor do ensino superior que fiz. Ele,
invariavelmente, me ligava na véspera da prova e ao ouvir a ladainha de que eu
não estava preparada, ele perguntava incisivamente: “Qual é o seu nome????” E
eu tinha que responder “KARINE MORGAN”, aos berros para, segundo ele,
demonstrar a confiança naquilo que ele havia me formado para ser.
A formação sólida ‘padrão Jorge Najjar’ que
exigia de seus orientandos e membros do grupo de pesquisa, envolvia
obrigatoriamente a organização de eventos acadêmicos. Dizia ele que estes
momentos representavam oportunidades únicas de network, nos quais
demonstrávamos nossa capacidade de trabalho e a consistência de nossa produção
acadêmica. Os eventos que organizamos juntos são capítulos muito importantes da
minha constituição enquanto professora-pesquisadora. Foram muitos: ANPAEs, ANFOPEs, seminários
discentes e Colóquios Brasil-Colômbia. Por causa dele, aprendi a lidar com os
trâmites da CAPES e do CNPq. Fui bolsista e estagiária docente das disciplinas
que Jorge ministrou por tantos períodos, que nem tenho o número preciso.
No seu exemplo cotidiano, aprendi a ser
exigente teoricamente sem ter uma prática docente pesada. Ele me ensinou que a
aula é um momento de prazer, de deleite. Sempre que tinha que dar uma aula em
que me avaliariam, dizia: Divirta-se.
O Doutorado veio como caminho natural de uma
formação sólida baseada em muito trabalho coletivo e em um amor recíproco
inabalável. A esta altura, Jorge Najjar, Marcelo Mocarzel
e Karine Morgan já eram reconhecidos como o trio ternura da academia. Uma
equipe capaz, comprometida, produtiva e altamente divertida.
As pessoas diziam que Jorge deveria tatuar em
seu braço direito “KARINE” e em seu braço esquerdo “MARCELO” (ou vice-versa).
Fizemos muitas coisas juntos. Crescemos, os três, enquanto intelectuais,
enquanto professores, enquanto orientadores e, principalmente, enquanto seres
humanos.
Quando enviei a versão final da minha Tese para
que ele corrigisse, esperava uma surra, um festival de ‘feios’ escritos ao lado
dos parágrafos (ele costumava escrever FEIO em caixa alta ao lado dos trechos que
precisavam ser revistos) e muitas inconsistências para resolver, mas poucas
alterações foram solicitadas. Naquele momento dei-me conta de que o plano dele
para mim estava sendo concluído. Jorge me ensinou tanto que, ao concluir aquele
trabalho, já não precisava de muitas correções. O orgulho no olhar dele, tanto
naquela tarde de fevereiro quanto na banca de defesa, ocorrida poucos meses
antes de sua partida, será para sempre minha bússola.
Nos dias subsequentes à Defesa da Tese, Jorge
me ligava com frequência e, em tom formal, dizia: “eu gostaria de falar com a
Professora Doutora Karine Morgan”. Eu sabia que era a forma dele celebrar a
pesquisadora que criou a partir do pó. Ríamos e tratávamos da coisa mais
importante que fizemos juntos: Sua progressão a Professor Titular da
Universidade Federal Fluminense. Algo que era um desejo de sua alma e que, em
meio à pandemia e à sua doença já bastante avançada, com a inestimável ajuda de
pessoas queridas (como a Heloísa Huguenin e o Professor
Waldeck Carneiro da Silva), conseguimos fazer acontecer.
Jorge fez a passagem cedo demais! Haverá um
espaço vazio na banca quando meu primeiro orientando de pós graduação stricto
sensu defender a dissertação; ou ao meu lado quando eu assinar a posse de um
concurso para professor do ensino superior. Eu e Marcelo não cumpriremos nossa
promessa de enganá-lo com orientandos fake
quando ele ficasse gagá. Jorge não verá meu filho, que ele segurou em seus
braços com um dia de vida, crescer... Tantos planos, tantas coisas ainda por
fazer. Tudo ficou meio sem cor.
Ouço frequentemente que o professor eterniza-se através de seus alunos. De fato, ao revisitar,
ao longo da escrita deste texto, a formação que dele recebi, ou ao me ver nas
bancas das quais participo, ou ainda ao analisar minhas falas em aulas e
palestras, percebo que há tanto dele em mim, que parte de Jorge Najjar estará
no mundo através das minhas próprias ações.
Nestas últimas considerações, gostaria de
afirmar, ainda mais uma vez: eu sou KARINE MORGAN,
Professora-doutora-pesquisadora formada cuidadosa, amorosa e criteriosamente
pelo melhor orientador de mestrado, de doutorado e de vida que eu poderia ter!
SOBRE
A AUTORA
KARINE VICHIETT MORGAN
é doutora e mestra em educação pela Universidade Federal Fluminense, professora
adjunta das Faculdades Integradas Maria Thereza, professora da educação básica da
rede municipal de ensino de Duque de Caxias, membro do Conselho Diretor do
Fórum de Pedagogia do Estado do Rio de Janeiro, vice-coordenadora da Regional
Sudeste da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE).
E-mail: morgan.uff@gmail.com
Recebido em: 01.10.2020
Aceito
em: 08.10.2020