MEIO SÉCULO DE PÓS-GRADUAÇÃO NO BRASIL: DO PERÍODO HERÓICO AO PRODUTIVISMO PELA MEDIAÇÃO DE UM MODELO SUPERIOR ÀS SUAS MATRIZES

 

 

Dermeval Saviani

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Campinas, SP, Brasil

 

DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.46475

 

 

 

RESUMO

Partindo da caracterização da instituição universitária e de sua manifestação no Brasil, este artigo considera, num primeiro momento, os antecedentes da pós-graduação no Brasil para examinar, em seguida, a estrutura do Parecer                  nº 977/65 que tratou da conceituação da pós-graduação dando início ao processo de sua institucionalização que teve sequência com sua regulamentação normatizada pelo Parecer nº 77/69. No terceiro momento analisa o processo de implantação da pós-graduação no Brasil que se configurou como um novo modelo superior aos dois modelos dos quais se originou: o norte-americano e o europeu. Na sequência levanta o problema dos riscos de descaracterização do modelo brasileiro de pós-graduação representados pelo produtivismo, o que conduz ao exame do dilema produtividade-qualidade na pós-graduação, concluindo com a apresentação de estratégias para evitar a descaracterização da bem sucedida experiência brasileira de pós-graduação.

Palavras-chave: Educação Brasileira. Universidade. Pós-Graduação.

 

 


HALF CENTURY OF GRADUATE STUDIES IN BRAZIL: FROM THE HEROIC PERIOD TO PRODUCTIVISM BY MEDIATING A MODEL SUPERIOR TO ITS MATRIXS

 

ABSCRACT

Starting from the characterization of the university institution and its manifestation in Brazil, this article considers, at first, the antecedents of graduate studies in Brazil, and then examines the structure of the Report 977/65 that dealt with the conceptualization of graduate studies initiating the process of its institutionalization that followed with its regulation standardized by the Report 77/69. In the third moment, it analyses the process of implementing postgraduate studies in Brazil, which has been configured as a new model superior to the two models from which it originated: the North American and the European. Following, it raises the problem of the risks of the disfiguration of the Brazilian postgraduate model represented by productivism, which leads to the examination of the productivity-quality dilemma in graduate studies, concluding with the presentation of strategies to avoid the disfiguration of the successful Brazilian experience post graduate.

Keywords: Brazilian Education. University. Postgraduate studies.

 


MEDIO SIGLO DE POSGRADO EN BRASIL: DEL PERIODO HEROICO AL PRODUCTIVISMO POR LA MEDIACIÓN DE UN MODELO SUPERIOR A SUS MATRICES

 

RESUMEN

A partir de la caracterización de la institución universitaria y su manifestación en Brasil, este artículo considera, en un primer momento, los antecedentes de los estudios de posgrado en Brasil y luego examina la estructura del Parecer 977/65 que abordó la conceptualización de los estudios de posgrado iniciando el proceso de su institucionalización que siguió con su regulación estandarizada por el Parecer 77/69. En el tercer momento, analiza el proceso de implantación de los estudios de posgrado en Brasil, que se configuró como un nuevo modelo superior a los dos modelos de los que se originó: el norteamericano y el europeo. A continuación, plantea el problema de los riesgos de la descaracterización del modelo de posgrado brasileño representados por el productivismo, lo que lleva al examen del dilema productividad-calidad en los estudios de posgrado, concluyendo con la presentación de estrategias para evitar la descaracterización de la experiencia exitosa brasileña de Posgrado.

Palabras clave: Educación brasileña. Universidad. Posgrado.

 

Introdução  

Tendo surgido ao final do século XI de nossa era, a universidade assumiu a condição de corporação destinada à formação dos profissionais das artes intelectuais definindo-se como o espaço principal de desenvolvimento da pesquisa, o que se evidencia desde o século XVII nos seminários constituídos por grupos de estudantes que se reuniam em torno de um professor (SANTONI RUGIU, 1998. p. 109). Entre o final do século XVIII e início do século XIX a universidade se despiu de sua crosta medieval, dando origem à universidade moderna. Isso pode ser ilustrado com o caso da Universidade de Pádua que na última década do século XVIII era ainda “uma universidade medieval numa época moderna”, vindo a se modernizar apenas com o domínio de Napoleão no então reino da Itália, entre 1805 e 1813 (GHETTI, 1982, p. 1-101, 214-312).

É também nesse momento que se configuram os três grandes modelos de universidade que se assentam nos elementos básicos constitutivos das universidades contemporâneas: o Estado, a sociedade civil e a autonomia da comunidade interna à instituição. Conforme prevaleça um ou outro, tem-se um diferente modelo institucional. A prevalência do Estado dá origem ao modelo napoleônico; prevalecendo a sociedade civil tem-se o modelo anglo-saxônico; e sobre a autonomia da comunidade acadêmica se funda o modelo humboldtiano. Este último modelo baseado na autonomia da comunidade interna, isto é, dos professores, propiciou o desenvolvimento mais intenso da pesquisa científica. Com a diáspora de cérebros provocada pelo nazismo, especialmente para os Estados Unidos, pode-se creditar ao modelo universitário dominante na Alemanha o impulso decisivo que se imprimiu ao desenvolvimento científico que se traduziu num sistema de pós-graduação diferenciado na universidade norte-americana. Pode-se, pois, dizer que a universidade, tal como a conhecemos atualmente, teve a sua configuração institucional definida na primeira metade do século XIX.

             É lugar comum o entendimento de que a universidade no Brasil foi instituída tardiamente. Luiz Antônio Cunha (1986) em sua trilogia sobre a universidade no Brasil denomina o primeiro livro, que trata do ensino superior no período que se estende da Colônia à Era de Vargas, A Universidade temporã. Efetivamente "temporão" significa "fora do tempo apropriado".

A institucionalização da educação superior no Brasil, iniciada em 1808 com os cursos superiores criados por D. João VI, teve continuidade no Império com a criação das faculdades de direito. Na Primeira República ocorreu a criação de instituições livres, portanto, não oficiais. A partir da década de 1930 houve a retomada do protagonismo público que se acentuou nas décadas de 1940, 1950 e início dos anos 60 por meio da federalização de instituições estaduais e privadas e com a criação de novas universidades federais. Na fase da ditadura militar, a par do protagonismo público com destaque para a organização da pós-graduação, ocorreu certo estímulo à abertura de instituições privadas em especial na forma de faculdades isoladas. Mas em todo esse período iniciado com D. João VI e que se estendeu até a Constituição de 1988 detecta-se uma continuidade representada pela prevalência do modelo napoleônico de universidade na organização e expansão do ensino superior no Brasil.

          A partir da década de 1990, num processo que está em curso nos dias atuais, emerge nova mudança caracterizada pela diversificação das formas de organização das instituições de ensino superior alterando-se o modelo de universidade na direção do modelo anglo-saxônico na versão norte-americana. Com isso, freou-se o processo de expansão das universidades públicas estimulando-se a expansão de instituições privadas sem e com fins lucrativos. Essa foi a política adotada nos oito anos do governo FHC.

Ao longo do governo Lula, se por um lado se retomou certo nível de investimento nas universidades federais com o Programa “REUNI”, por outro lado deu-se continuidade ao estímulo à iniciativa privada recebendo alento adicional com o Programa “Universidade para todos”, o PROUNI, destinado à compra de vagas em instituições privadas, o que veio a calhar diante do problema de vagas ociosas enfrentado por várias dessas instituições.

O avanço da privatização da educação superior está expresso nos índices quantitativos das instituições e do alunado chegando a uma relação de quatro instituições privadas para uma pública. No caso, porém, da pós-graduação essa relação se inverte manifestando-se uma clara supremacia das instituições públicas. Mas, como veremos, por meio do produtivismo também a pós-graduação vem sendo pressionada a submeter-se à lógica do mercado.

 

1. Antecedentes da Pós-Graduação no Brasil

          Um marco importante na trajetória da educação superior no Brasil é o Decreto Nº 19.851, de 11 de abril de 1931 que, publicado em 15 de abril, colocou em vigência o Estatuto das Universidades Brasileiras. Podemos considerar que é com esse ato que a questão da universidade tem início oficialmente em nosso país. O referido Estatuto não faz referência à Pós-graduação. Mas, entre os "Fins do Ensino Universitário" estabelecidos no Art. 1º incluiu "estimular a investigação científica em quaisquer domínios dos conhecimentos humanos" (FÁVERO, 2000, p. 159); e estabeleceu no Art. 46 que, "[...] os institutos universitários deverão organizar e facilitar os meios para a realização de pesquisas originais, que aproveitem aptidões e inclinações, não só do corpo docente e discente, como de quaisquer outros pesquisadores..." (idem, p. 177). Ao tratar, no Título X, dos "Diplomas e Dignidades Universitárias", o Estatuto estipula, no Art. 90, a atribuição do título de doutor "quando após a conclusão dos cursos normais, técnicos ou científicos, e atendidas outras exigências regulamentares dos respectivos institutos, o candidato defender uma tese de sua autoria", explicitando, no § 1º. "A tese de que trata este artigo, para que seja aceita pelo respectivo instituto, deverá constituir publicação de real valor sobre assunto de natureza técnica ou puramente científica"; e, no § 2º: "defesa de tese será feita perante uma comissão examinadora, cujos membros deverão possuir conhecimentos especializados da matéria" (idem, p. 188).

          Vê-se que a via aberta pelo Estatuto segue a sistemática vigente nas universidades europeias que mantinham atividades de pesquisa, via de regra em seminários dirigidos pelos professores tendo, porém, como único instrumento de reconhecimento formal a concessão do título de doutor mediante defesa de tese sem a organização de cursos ou programas regulares de pós-graduação conducentes à obtenção dos títulos de mestre ou doutor.

Cabe, porém, fazer uma menção diferenciada à Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Criada em 1933, foi incorporada à USP como instituição complementar autônoma em 1939, mesmo ano em que passou a contar em seu quadro docente com o sociólogo norte-americano Donald Pierson que permaneceu até 1952 contribuindo fortemente para a consolidação da instituição. Assim, embora seu Estatuto não se refira a cursos de pós-graduação nem a concessões de títulos acadêmicos, nessas condições favoráveis foi criada, em 1941, a Divisão de Estudos Pós-Graduados que abrigou o primeiro Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Brasil.

Foi nesse Programa que Florestan Fernandes obteve o título de mestre com a pesquisa A organização social dos Tupinambá, publicada em 1949. Referências à Pós-Graduação e ao Doutorado passam a constar, também, nos artigos 71, 76 e 77 do Estatuto da Universidade do Brasil (atual UFRJ), aprovado em 18 de junho de 1946, assim como no artigo 9º da Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961, que criou a Universidade de Brasília (CURY, 2005, p. 8-9).   

          Enfim, nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 20 de dezembro de 1961, ao tratar, no Art. 69, dos cursos a serem ministrados nos estabelecimentos de ensino superior contemplou, na alínea b) os cursos "de pós-graduação, abertos a matrícula de candidatos que hajam concluído o curso de graduação e obtido o respectivo diploma". Eis aí o dispositivo que ensejou ao então Ministro da Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda, o encaminhamento ao Conselho Federal de Educação de um Aviso Ministerial solicitando pronunciamento definindo e verificando a possibilidade de regulamentação dos mencionados cursos de pós-graduação. E a resposta a esse aviso foi a elaboração e aprovação, pelo CFE, do Parecer nº 977/65 relatado pelo Conselheiro Newton Sucupira aprovado em 3 de dezembro de 1965, homologado pelo ministro em 6 de janeiro de 1966 e publicado no Diário Oficial da União em 20 de janeiro de 1966. Tinha início, aí, o processo de institucionalização, em âmbito nacional, dos estudos pós-graduados no Brasil.

 

2. Estrutura do Parecer nº 977/65

          Com o título "Definição dos Cursos de Pós-Graduação" o parecer, após uma introdução em que se reporta ao Aviso do ministro, desenvolve os seguintes tópicos:

 

2.1. Origem histórica da pós-graduação

          Conforme o Parecer tanto o nome "pós-graduação" como o "sistema" se originam na estrutura da universidade norte-americana que compreende o "college" ou "Undergraduate School", que corresponde à nossa Graduação,  e a "Graduate School", correspondente à nossa pós-graduação. E destaca que a pós-graduação nos Estados Unidos é produto da influência alemã representando a culminância da ascendência germânica sobre a universidade norte-americana.

 

2.2. Necessidade da pós-graduação

          A necessidade da pós-graduação decorre do enorme desenvolvimento da ciência em todos os seus ramos tornando impossível seu domínio apenas nos cursos de graduação. Manifesta-se, pois, em todos os países a tendência a introduzir os estudos pós-graduados, observando-se que a França não se refere a graduação e pós-graduação, mas organiza o ensino superior em três ciclos escalonados sendo que o terceiro ciclo é o do doutorado. Por fim, o parecer destaca que no Brasil os cursos de pós-graduação "quase não existem" em funcionamento regular impondo-se, pois, a urgência de sua implantação.

 

2.3. Conceito de pós-graduação

          Para conceituar a pós-graduação o parecer começa por distinguir entre a pós-graduação lato sensu e stricto sensu para concluir que a pós-graduação stricto sensu é de "natureza acadêmica e de pesquisa", enquanto a  lato sensu "tem sentido eminentemente prático-profissional"; a stricto sensu "confere grau acadêmico" e a lato sensu  "concede certificado". E apresenta a seguinte definição da pós-graduação em sentido estrito: "o ciclo de cursos regulares em seguimento à graduação, sistematicamente organizados, visando desenvolver e aprofundar a formação adquirida no âmbito da graduação e conduzindo à obtenção de grau acadêmico".

 

2.4. Um exemplo de pós-graduação: a norte-americana

          Considerando incipiente nossa experiência de pós-graduação o parecer vai buscar orientação na experiência norte-americana constatando a distinção entre mestrado e doutorado como dois níveis que, embora hierarquizados são relativamente autônomos não sendo, pois, o mestrado pré-requisito indispensável para o doutorado. Dessa forma, pode haver carreiras, como a de medicina que, nos Estados Unidos, têm doutorado, mas não têm mestrado. E, obviamente, é possível obter o título de mestre como grau terminal sem ascender ao nível do doutorado. Tanto o mestrado como o doutorado implicam estudos e exames que se estendem num tempo bem mais longo do que a graduação e, para ingresso, há rigorosa seleção intelectual. No doutorado sempre se exige tese. No caso do mestrado pode-se exigir dissertação, memória ou ensaio, ou podem ser considerados suficientes os exames prestados. De qualquer modo, tanto para o mestrado como para o doutorado além da tese ou da dissertação, memória ou ensaio são exigidos certo número de cursos, participação em seminários e pesquisas e uma série de exames, incluído o de suficiência em línguas estrangeiras. Mas em todas as atividades o estudante terá sempre a assistência e orientação de um professor.

 

2.5. A pós-graduação na Lei de Diretrizes e Bases

          Após delinear as características da pós-graduação o parecer passa a tratar do disposto nessa matéria na Lei de Diretrizes e Bases, o que se consubstancia no artigo 69 em que se distinguem três categorias de cursos:

a) graduação, abertos à matrícula de candidatos que hajam concluído o   ciclo colegial ou equivalente, e obtido classificação em concurso de habilitação;

b) pós-graduação, abertos à matrícula de candidatos que hajam concluído o curso de graduação e obtido o respectivo diploma;

c) especialização, aperfeiçoamento e extensão, ou quaisquer outros, a juízo do respectivo instituto de ensino abertos a candidatos com o preparo e os requisitos que vierem a ser exigidos.

 

          Analisando esse ponto Newton Sucupira entende que o disposto na letra b) corresponde à pós-graduação stricto sensu, uma vez que se limita a candidatos que já concluíram a graduação enquanto que os cursos de especialização, aperfeiçoamento e extensão, previstos na alínea c), não necessariamente implicam a conclusão da graduação.

 

2.6. A pós-graduação e o Estatuto do Magistério

          Considerando, por um lado, o Aviso Ministerial que pedia ao CFE a definição dos Cursos de Pós-Graduação previstos pela LDB e também sua regulamentação e, por outro lado, seu próprio entendimento de que a regulamentação  resulta necessária sob pena do "abastardamento inevitável dos graus de Mestre e Doutor"; e tendo em vista que o artigo 70 da LDB limitava a regulamentação aos cursos que conferem privilégio para o exercício de profissão liberal, o relator recorre, então, ao Estatuto do Magistério que, pelo artigo 25, incumbia o CFE de, no prazo de 60 dias, conceituar e fixar as características dos cursos de pós-graduação. Com base nessa incumbência uma certa regulamentação poderia ser estabelecida.

 

2.7. Definição e características do Mestrado e Doutorado

          Por fim, atendendo ao Aviso Ministerial e à determinação do Estatuto do Magistério, Newton Sucupira conclui seu parecer definindo e fixando as características dos cursos de Mestrado e Doutorado. Esclarece que se trata de indicar apenas as balizas mestras para não prejudicar a necessária flexibilidade própria da pós-graduação tendo em vista preservar a margem de iniciativa da instituição e do aluno na organização de seus estudos. E, após algumas considerações, enfeixa o resultado do Parecer em dezesseis conclusões que, a seguir, são integralmente transcritas:

  1) A pós-graduação de que trata a alínea b do art. 69 da Lei de Diretrizes e Bases    é constituída pelo ciclo de cursos regulares em seguimento à graduação e que          visam a desenvolver e aprofundar a formação adquirida nos cursos de   graduação e conduzem à obtenção de grau acadêmico.

  2) A pós-graduação compreenderá dois níveis de formação: Mestrado e   Doutorado. Embora hierarquizados, o mestrado não constitui condição   indispensável à inscrição no curso de doutorado.

  3) O mestrado pode ser encarado como etapa preliminar na obtenção do grau   de doutor ou como grau terminal.

  4) O doutorado tem por fim proporcionar formação científica ou cultural ampla   e aprofundada, desenvolvendo a capacidade de pesquisa e poder criador nos   diferentes ramos do saber.

            5) O doutorado de pesquisa terá a designação das seguintes áreas: Letras,             Ciências Naturais, Ciências Humanas e Filosofia; os doutorados profissionais[1]             denominam-se segundo os cursos de graduação correspondentes. O mestrado             será qualificado pelo curso de graduação, área ou matéria a que se refere.

            6) Os cursos de mestrado e doutorado devem ter a duração mínima de um e             dois anos respectivamente. Além do preparo da dissertação ou tese, o candidato        deverá estudar certo número de matérias relativas à sua área de concentração e ao domínio conexo, submeter-se a exames parciais e gerais, e provas que     verifiquem a capacidade de leitura em línguas estrangeiras. Pelo menos             uma para o mestrado e duas para o doutorado.

            7) Por área de concentração entende-se o campo específico de conhecimento             que constituirá o objeto de estudos escolhido pelo candidato, e por domínio             conexo qualquer matéria não pertencente àquele campo, mas considerada             conveniente ou necessária para completar sua formação.

            8) O estabelecimento deve oferecer um elenco variado de matérias a fim de             que o   candidato possa exercer sua opção. As matérias, de preferência, serão             ministradas sob a forma de cursos monográficos dos quais, seja em preleções,             seja em seminários,   o professor desenvolverá, em profundidade, um assunto             determinado.

            9) Do candidato ao Mestrado exige-se dissertação, sobre a qual será examinado,     em que revele domínio do tema escolhido e capacidade de sistematização; para o grau de Doutor requer-se defesa de tese que represente trabalho de pesquisa importando em real contribuição para o conhecimento do tema.

            10) O programa de estudos do Mestrado e Doutorado se caracterizará por             grande flexibilidade, deixando-se ampla liberdade de iniciativa ao             candidato que receberá assistência e orientação de um diretor de             estudos. Constará o programa, sobretudo, de seminários, trabalhos de             pesquisa, atividades de laboratório com a   participação ativa dos alunos.

            11) O mesmo curso de pós-graduação poderá receber diplomados provenientes   de cursos de graduação diversos, desde que apresentem certa afinidade. Assim,       por exemplo, ao mestrado ou doutorado em Administração Pública poderiam ser             admitidos bacharéis em Direito ou Economia; em Biologia, Médicos ou diplomados em História Natural.

            12) Para matrícula nos cursos de pós-graduação, além do diploma do curso de             graduação exigido por lei, as instituições poderão estabelecer requisitos que             assegurem rigorosa seleção intelectual dos candidatos. Se os cursos de             graduação devem ser abertos ao maior número, por sua natureza, a pós-            graduação há de ser restrita aos mais aptos.

            13) Nas Universidades a pós-graduação de pesquisa ou acadêmica deve ser             objeto de coordenação central, abrangendo toda área das ciências e das letras, inclusive das que fazem parte do ciclo básico das faculdades profissionais.

            14) Conforme o caso, aos candidatos ao doutorado serão confiadas tarefas             docentes, sem prejuízo do tempo destinado aos seus estudos e trabalhos de             pesquisa.

            15) Aconselha-se que a pós-graduação se faça em regime de tempo integral,             pelo     menos no que se refere à duração mínima dos cursos.

            16) Os cursos de pós-graduação devem ser aprovados pelo Conselho federal                         de Educação para que seus diplomas sejam registrados no Ministério da        Educação e possam produzir efeitos legais. Para isso o Conselho baixará             normas fixando os critérios   de aprovação dos cursos (BRASIL, 1965, p. 84-86).

 

            Essas conclusões se configuram, de fato, como balizas mestras indicativas da forma como deve ser regulamentada a implantação da pós-graduação no Brasil. Assim, esse Parecer nº 977/65 é, sem dúvida, o marco inicial da institucionalização da pós-graduação no Brasil. Sua importância é, pois, inegável, a ponto de ser geralmente considerado como o "texto fundador da pós-graduação sistemática no Brasil" (CURY, 2005, p. 18). Mas a regulamentação propriamente dita ocorreu com o Parecer CFE nº 77/69, também de autoria de Newton Sucupira, aprovado em 11 de fevereiro de 1969, que estabeleceu as "Normas do Credenciamento dos Cursos de Pós-Graduação", explicitando no parágrafo único do artigo 1º: "Os cursos de pós-graduação de que tratam as presentes normas são aqueles que conferem os graus de Mestre e Doutor na forma definida pelo Parecer nº 977/65 do C.F.E.". Após indicar a documentação que deve acompanhar o pedido de credenciamento e as condições de edificação, capacidade financeira, a comprovação da alta qualificação do corpo docente, os recursos e equipamentos conforme a natureza dos cursos, a existência de biblioteca atualizada e selecionada, são retomadas com alguma variação e atualização terminológica, no artigo 13, em doze incisos, as conclusões do Parecer nº 977/65. O artigo 15 prevê a constituição de comissão de especialistas para verificação in loco das condições de funcionamento do curso a ser credenciado. E o artigo 17 determina que o credenciamento terá validade de cinco anos, cabendo renovação.

          Vê-se, pois, que o objeto próprio do Parecer nº 977/65 foi a conceituação da pós-graduação enquanto o objeto do Parecer nº 77/69 foi a regulamentação da implantação da pós-graduação. A partir daí e ao longo da década de 1970 desencadeou-se o processo de abertura e expansão dos programas de pós-graduação no Brasil, constituindo-se  no período heroico, pois as condições de infraestrutura e os materiais bibliográficos eram providenciados ao mesmo tempo em que se abriam os programas e se iniciavam as atividades de pós-graduação.

         

3. A pós-graduação e sua configuração no Brasil: um novo modelo[2]?

          Sobre a conceituação da pós-graduação cabe recordar que os cursos de pós-graduação são entendidos, literalmente, como aqueles que se realizam após a graduação. Vê-se, então, que Sucupira, no Parecer nº 977/65, reconheceu a distinção entre pós-graduação lato sensu e stricto sensu e interpretou a alínea c) do artigo 69 da LDB nº 4.024/61 ("cursos de especialização, aperfeiçoamento e extensão ou quaisquer outros")  como correspondendo ao lato sensu que, na norma da LDB, não estaria exigindo a conclusão da graduação. Ora, então não se trataria de cursos de pós-graduação. Cumpre, então, observar que é possível oferecer cursos de especialização, aperfeiçoamento e extensão na forma de pós-graduação ou não. No caso de serem de pós-graduação serão abertos a candidatos que tenham concluído a graduação e incidirão na modalidade lato sensu. No contexto brasileiro tornou-se corrente a distinção entre a pós-graduação lato sensu e a pós-graduação stricto sensu.

Os cursos de pós-graduação lato sensu assumem dominantemente as formas de aperfeiçoamento e especialização e constituem uma espécie de prolongamento da graduação, pois visam a um aprimoramento (aperfeiçoamento) ou aprofundamento (especialização) da formação profissional obtida no curso de graduação correspondente.

A pós-graduação stricto sensu, organizada sob as formas de mestrado e doutorado, possui um objetivo próprio, distinto daquele da graduação sendo, por isso mesmo, considerada como a pós-graduação propriamente dita. Nessa condição, diferentemente dos cursos de graduação que estão voltados para a formação profissional, a pós-graduação stricto sensu se volta para a formação acadêmica voltada ao objetivo da formação de pesquisadores.

Portanto, a pós-graduação lato sensu tem como elemento definidor o ensino, pois é este que determina o objetivo a ser alcançado, entrando a pesquisa como mediação para se atingir o objetivo preconizado. Em contraposição, o elemento definidor da pós-graduação stricto sensu é a pesquisa, a qual determina o objetivo a ser alcançado para o qual o ensino concorre como uma mediação destinada a dispor os requisitos para o desenvolvimento da pesquisa que será a pedra de toque da formação pretendida.

Em razão do acima exposto é que se deu preferência ao termo programa em lugar de curso para a pós-graduação stricto sensu. A razão dessa distinção reside no fato de que o termo curso se liga diretamente ao ensino e seu centro é um elenco de disciplinas que os alunos devem cursar. Ora, essa é a característica específica da pós-graduação lato sensu. Em contrapartida, a pós-graduação stricto sensu, além do ensino envolve, como elemento central, a pesquisa. Daí, a adoção do termo programa para abarcar tanto as atividades de ensino como de pesquisa.

A referida distinção foi também consagrada no texto da nova LDB, de 20/12/1996, que reserva o termo programa para a pós-graduação stricto sensu, utilizando o termo curso para a pós-graduação lato sensu, conforme estipulado no artigo 44:

   A educação superior abrangerá os seguintes cursos e programas: I - cursos   sequenciais...; II - de graduação...; III - de pós-graduação, compreendendo   programas     de mestrado e doutorado, cursos de especialização,   aperfeiçoamento e outros, abertos   a candidatos diplomados em cursos de   graduação e que atendam às exigências das instituições de ensino   (negritos meus). (BRASIL, 1996)

 

Observe-se que nessa LDB já não há a ambiguidade que constava na alínea c) do artigo 69 da LDB anterior, pois na LDB atual, tanto para os "programas de mestrado e doutorado" como para os "cursos de especialização, aperfeiçoamento e outros", consta explicitamente que são abertos a candidatos diplomados em "cursos de graduação".

Entende-se, então, que a proposta de um curso de aperfeiçoamento ou especialização se justifica em consequência do avanço do conhecimento decorrente do desenvolvimento da pesquisa na área em questão, cujos resultados afetam o perfil da profissão correspondente. Nesse caso o curso de pós-graduação lato sensu se proporá a garantir a assimilação dos procedimentos ou resultados do avanço da pesquisa, por parte dos profissionais da área em referência, ajustando o seu perfil às mudanças operadas no perfil da sua profissão. Os programas de pós-graduação stricto sensu, por sua vez, se justificam tendo em vista o próprio avanço do conhecimento, isto é, o desenvolvimento das pesquisas numa área determinada, contribuindo diretamente para essa finalidade.

Esclarecida a questão conceitual resumo, a seguir, o modo como se configurou a pós-graduação no Brasil.

O modelo de pós-graduação adotado no Brasil seguiu deliberadamente a experiência dos Estados Unidos, como foi evidenciado no texto do Parecer 977/65. É com base nessa experiência que se definiu a estrutura organizacional da nossa pós-graduação stricto sensu centrada em dois níveis, o mestrado e o doutorado. Cada um desses níveis compreenderia o estudo de um conjunto de matérias relativas tanto à área de concentração, isto é, o campo de estudos escolhido pelo candidato, como ao domínio conexo, ou seja, a área de conhecimento complementar àquela escolhida pelo aluno. O programa de estudos deveria se completar com a redação de um trabalho resultante de pesquisa, a dissertação, para o mestrado, e a tese, para o doutorado. Assim, a organização dos estudos resulta bastante clara com tarefas bem especificadas prevendo, inclusive, a figura de um orientador para cada um dos alunos.

          Entretanto, se a estrutura organizacional se inspirou no modelo americano, o espírito com que se deu a implantação dos programas foi em grande parte influenciado pela experiência europeia.

          É interessante observar que nos Estados Unidos prevalecia na educação básica, sob a influência do ideário da pedagogia nova, o objetivo de socialização das crianças e jovens justificado pelo discurso do incentivo à autonomia e iniciativa dos alunos, ficando em segundo plano o domínio dos conhecimentos sistematizados; e no nível superior, os alunos tendiam a ser postos diante de uma organização bastante definida com tarefas orientadas pelos docentes. Inversamente, na Europa, os sistemas de educação básica foram organizados sob a concepção tradicional herdada do iluminismo que colocava como objetivo principal o domínio dos conhecimentos sistematizados; em consequência, tendia-se a se esperar dos alunos que ingressavam na universidade um grau de maturidade e de autonomia intelectual que dispensava, por parte dos professores, uma direção ou mesmo uma orientação mais direta. E, especialmente na pós-graduação, que era constituída fundamentalmente pelo doutorado, esperava-se que os candidatos concebessem e realizassem por si mesmos o próprio trabalho sendo o orientador mais um examinador e o presidente das bancas de exame do que alguém que dirigia e interferia diretamente na definição e desenvolvimento do tema de estudo do doutorando. Assim, enquanto a experiência universitária norte-americana põe uma certa ênfase no aspecto técnico-operativo, na experiência europeia a ênfase principal recai sobre o aspecto teórico.

          Sabemos do peso da influência europeia sobre os intelectuais brasileiros, em especial na área das chamadas ciências humanas. E esse dado é importante para entendermos a tendência que acabou por prevalecer na pós-graduação brasileira. Com efeito, a implantação da pós-graduação se deu a partir do mestrado. E, embora os alunos devessem cursar determinadas disciplinas, os professores, via de regra, supunham um razoável grau de autonomia dos mestrandos esperando que eles definissem o próprio objeto de investigação e, ato contínuo, escolhessem o orientador adequado para acompanhá-lo em sua pesquisa. Este é um dos fatores explicativos do longo tempo destinado à realização do mestrado ligado à expectativa de que os alunos deveriam produzir um trabalho de fôlego, na prática equivalente a uma tese de doutorado. Isso não causou grandes problemas na fase inicial quando, diante da demanda reprimida e não existindo ainda o doutorado, acediam ao mestrado professores já com razoável maturidade intelectual e uma boa experiência no magistério superior. Passada, porém, essa primeira fase foi se constatando em escala cada vez mais generalizada que, enquanto o orientador esperava que o próprio aluno escolhesse de modo autônomo o tema de sua dissertação, formulasse o problema, definisse o enfoque teórico, delimitasse o objeto e estabelecesse a metodologia e respectivos procedimentos de análise, o mestrando se sentia sem rumo e despendia muito tempo sem corresponder a essas expectativas do orientador, o que o fazia buscar o socorro de outros professores, enveredar pelas mais desencontradas leituras ou observações de campo até conseguir encontrar, mas após muito dispêndio de energia e de tempo, o objeto de estudo que daria origem à sua dissertação de mestrado.

          É diante desse quadro que surgiram as pressões pela redução do tempo com a tendência a secundarizar o mestrado, dispensar a exigência de dissertação ou, mesmo, eliminar essa etapa da pós-graduação stricto sensu. Entendo que esse encaminhamento pode pôr em risco a particularidade da pós-graduação brasileira que lhe permitiu se constituir numa das mais ricas e consistentes experiências de pós-graduação. E essa riqueza advém, acredito, da fusão entre uma estrutura organizacional bastante articulada, derivada da influência americana, e o empenho em se garantir um grau satisfatório de densidade teórica, decorrente da influência europeia. Para evitar o risco apontado preservando a particularidade da experiência brasileira cumpre manter presente a especificidade da pós-graduação stricto sensu, cujo objetivo é a formação de pesquisadores.

          Ora, se o objetivo precípuo da pós-graduação stricto sensu é a formação do pesquisador, o elemento central em torno do qual ela deve ser organizada é a pesquisa. E como a pós-graduação stricto sensu está organizada em dois níveis, mestrado e doutorado, conclui-se que o primeiro nível tem o sentido de iniciação à formação do pesquisador, reservando-se ao segundo nível a função de consolidação.

          Assim, embora seja desejável que a iniciação se dê já no nível da graduação, não parece razoável inscrevê-la como uma exigência obrigatória já nessa primeira etapa do ensino superior. A chamada iniciação científica nos cursos de graduação tem a finalidade de familiarizar o aluno (o futuro profissional) com a investigação científica, o que não implica a realização, por parte de cada um dos alunos, de um projeto próprio e completo de investigação.

          No caso do mestrado, porém, a iniciação requerida será feita mediante a realização de um trabalho completo de investigação. Para a maioria dos alunos será, de fato, o primeiro trabalho de pesquisa que ele cumpre, abarcando todas as etapas implicadas no tipo de investigação encetada, culminando com a redação da dissertação com uma estrutura lógica adequada à compreensão plena, por parte dos leitores, do assunto tratado.

          Assim entendida, a dissertação de mestrado supõe um trabalho relativamente simples, expresso num texto logicamente articulado dando conta de um determinado tema. Distingue-se de tese, denominação reservada ao trabalho do doutorado, já que tese significa posição, sugerindo que a defesa de uma tese é a defesa de uma posição diante de determinado problema. A tese pressupõe, em consequência, os requisitos de autonomia intelectual e de originalidade, já que estas são condições para que alguém possa expressar uma posição própria sobre determinado assunto. Ora, tais requisitos não são exigidos no caso do mestrado. Supõe-se, antes, que é a conclusão do mestrado que propiciará o preenchimento desses requisitos, uma vez que, tendo realizado, com o apoio do orientador, um trabalho completo de investigação, esse exercício lhe permitirá adquirir um domínio teórico e prático do processo, atingindo, assim, a desejada autonomia intelectual que lhe facultará a formulação original de novos objetos de investigação. Dessa forma, enquanto para o mestrado a autonomia intelectual e a originalidade constituem ponto de chegada, para o doutorado esses requisitos se põem no ponto de partida como condições prévias para a realização da etapa final do processo de formação do pesquisador.

Em suma: considerando-se que a pós-graduação stricto sensu destina-se  à formação do pesquisador; considerando-se que o mestrado tem a incumbência de efetivar a iniciação dos alunos tendo em vista a assunção, por parte deles, da condição de pesquisadores; considerando-se que essa iniciação implica a realização de um trabalho completo de investigação, conclui-se ser inconcebível um mestrado sem dissertação.

À vista do exposto, entendo que pretender a redução do tempo de realização do mestrado abrindo mão da dissertação é obter a redução ao preço da sua descaracterização. É necessário, pois, afastar certas alternativas que, tendo em vista o objetivo de redução do tempo de formação, acenam com a organização de cursos de mestrado sem dissertação, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos. Em verdade, esse tipo de mestrado se descaracterizaria como pós-graduação stricto sensu, sendo assimilado aos cursos de especialização, integrantes da pós-graduação lato sensu, já que tenderia a subordinar a formação acadêmica à formação profissional, abrindo mão do objetivo de formação de pesquisadores. Aliás, ao que parece, é exatamente a admissão de uma distinção entre uma espécie de mestrado profissional e um mestrado acadêmico que explica a existência, nos EEUU, de um mestrado sem dissertação ao lado do mestrado com dissertação. Cabe, pois, considerar que, no caso brasileiro, a alternativa para mestrado com dissertação não seria o mestrado sem dissertação nem mesmo o mestrado profissional, ainda que com dissertação, mas os cursos de especialização.

          Trata-se, então, de definir o tempo necessário à realização do mestrado a partir da compreensão de sua natureza e objetivos e não o contrário. E desde que, como se mostrou, o ponto central do mestrado consiste na dissertação, é a partir do dimensionamento do tempo necessário à realização da dissertação que cabe definir o tempo de duração do mestrado. E esse tempo só poderá ser definido na medida em que se dispuser de algum critério de caracterização da própria dissertação. E foi na busca de tal critério que elaborei o texto A monografia de base como ideia reguladora da dissertação de mestrado (SAVIANI, 1991). A ideia era pensar as dissertações como incidindo sobre temas relevantes ainda não suficientemente explorados, cabendo ao mestrando a tarefa de realizar um levantamento, o mais completo possível, das informações disponíveis, organizá-las segundo critérios lógico-metodológicos adequados e redigir o texto correspondente que permitiria o acesso ágil ao assunto tratado. A existência dessas monografias de base possibilitaria a um pesquisador mais experiente realizar, a partir das informações primárias já devidamente organizadas, sínteses de amplo alcance que seriam inviáveis ou demandariam um tempo excessivo sem esse trabalho preliminar das monografias de base.

            Essa proposta supunha que o corpo docente identificasse os temas, os enfoques e os momentos da educação brasileira que se encontram em aberto, estabelecendo um amplo programa de produção de monografias de base no qual seriam engajados os estudantes de mestrado para efeitos de elaboração de suas dissertações, com o que eles estariam se iniciando como pesquisadores dando, ao mesmo tempo, uma contribuição para o avanço do conhecimento no campo educacional. Como se vê, a proposta implica a existência de linhas de pesquisa nas quais os docentes desenvolvem, de forma articulada, projetos próprios de pesquisa. Como a prática que prevalecia era a de que os docentes, após a realização de sua pesquisa de doutorado passassem a orientar as pesquisas dos alunos sem, porém, desenvolver projetos próprios, resultava difícil a implantação do programa de produção de monografias de base tal como fora proposto. Paradoxalmente, na situação atual quando as referidas condições já vêm sendo preenchidas com a criação, na maioria dos programas, de grupos de pesquisa e o desenvolvimento, pelos docentes, de projetos próprios de pesquisa, aquela proposta está esquecida e é a existência mesma do mestrado, enquanto pós-graduação stricto sensu, que se encontra ameaçada.

          A estratégia da produção de monografias de base em cada programa de pós-graduação seria uma forma simples de assegurar, para a maioria dos alunos, a iniciação de sua formação como pesquisadores já que ofereceria alternativas precisas para a realização das dissertações, poupando-lhes tempo e energia ao envolvê-los de imediato num processo real de investigação. Com o tema da dissertação definido desde o início, resultaria possível dimensionar o tempo de duração do mestrado que em princípio se situaria na faixa dos três anos. Dado o seu caráter de iniciação que envolve a necessidade de cursar disciplinas, considero não ser viável nem desejável reduzir o tempo para aquém do prazo indicado. Entretanto, concluída com êxito essa etapa de iniciação, o doutorado poderia estar concentrado fortemente na realização da pesquisa o que viabilizaria a sua conclusão, como a experiência tem demonstrado, num prazo de 30 a 36 meses. Com isso o tempo total da formação do pesquisador giraria em torno de cinco a seis anos, prazo que fatalmente acabaria sendo destinado ao doutorado se, na hipótese de extinção do mestrado, a ele fosse atribuído todo o processo de formação do pesquisador.

          Equacionando-se a questão do tempo pela via de uma consistente organização dos estudos seria possível preservar e, mesmo, aprofundar e fortalecer a rica experiência da pós-graduação brasileira. Esta, fundindo a estrutura organizacional do modelo americano com a densidade teórica resultante da influência europeia, produziu um modelo novo, com certeza superior àqueles que lhe deram origem. Essa perspectiva, entretanto, não se delineia com clareza no horizonte da nossa pós-graduação. Ao contrário, a situação atual alberga a tendência de desarticulação da experiência bem sucedida de estudos pós-graduados em nosso país que resulta ameaçada pela pressão para a redução dos prazos, exercida de modo especial sobre o mestrado pela exigência de produtividade. Tais pressões nos colocam diante de um verdadeiro dilema quando nos empenhamos na busca de qualidade na pós-graduação. Devemos considerar, pois, em que consiste e como se manifesta esse dilema.

 

4. O dilema produtividade-qualidade na pós-graduação[3]

Considerando-se o caráter da atividade científica e da educação como modalidades de produção não-material cujo produto não se separa do ato de produção; que a pesquisa, enquanto atividade científica, e a formação do pesquisador, enquanto atividade educativa, participam dessa característica; que a compatibilidade entre a busca de produtividade e a busca da qualidade supõe a plena objetivação do processo de trabalho; que a produção não-material não é suscetível de plena objetivação, segue-se que, nas condições próprias da produção não-material, a busca da produtividade entra em contradição com a qualidade dos resultados dessa produção. Está aí a raiz do dilema produtividade-qualidade nos programas de pós-graduação, isto é, no desenvolvimento da pesquisa e na formação do pesquisador.

Dilema é um termo derivado do grego (διλημμα) que tem o sentido de uma argumentação com duas conclusões contraditórias igualmente possíveis logicamente, generalizando-se o significado de dilema como uma situação embaraçosa com duas saídas igualmente difíceis. Vê-se, pois, que, quando falamos do dilema produtividade-qualidade na pós-graduação estamos falando de uma situação embaraçosa, pois o incremento da produtividade interfere negativamente na qualidade e vice-versa. Assim, ambos os caminhos revelam-se igualmente difíceis, pois não se pode abrir mão da qualidade, mas também não se pode descuidar da produtividade. Ocorre que esse sentimento incide naquela “estreiteza mental burguesa”, referida por Marx, que se contenta em considerar produtivo todo trabalho que produz alguma coisa, o que não passa de uma tautologia, pois leva à conclusão que trabalho improdutivo é aquele que nada produz. Assim, resulta evidente que os Programas de Pós-Graduação não podem abrir mão da produtividade, pois isso significaria admitir que ficariam improdutivos, vale dizer, sem produzir coisa alguma. Daí, as classificações tautológicas dos processos de avaliação que chegam a conclusões do seguinte tipo: determinado Programa é muito produtivo porque produz muito; outro é pouco produtivo, pois produz pouco; um terceiro é muito pouco produtivo porque produz muito pouco, e assim sucessivamente. Mas, trabalho produtivo, na sociedade capitalista em que vivemos é aquele que gera mais-valia; e trabalho improdutivo é o que não gera mais-valia o que, evidentemente, não significa que nada produza.

Como esclarece Marx, o trabalho produtivo corresponde ao circuito D-M-D’ (Dinheiro-Mercadoria-Capital), isto é, uma situação em que se troca mercadoria por dinheiro enquanto capital, ou seja, a mercadoria é meio para aumentar o capital, para lhe acrescentar valor; ao passo que o trabalho improdutivo corresponde ao circuito M-D-M (Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria) em que se troca mercadoria por dinheiro enquanto dinheiro, isto é, o dinheiro obtido pela venda de terminada mercadoria é meio para se adquirir outra mercadoria que venha a satisfazer determinada necessidade de consumo do comprador, não entrando no circuito do capital.

À luz das considerações feitas, resulta claro que o manejo do conceito de produtividade no campo da pesquisa e da pós-graduação significa colocá-las sob a órbita do capital. E isto é compreensível, pois “o capital é a força econômica da sociedade burguesa que tudo domina” (MARX, 1973, p. 236) o que faz com que, nesse tipo de sociedade, tudo tende a cair sob a lógica do capital.

Não obstante essa constatação, não se pode desconsiderar o fato de que se trata de um processo contraditório que, no caso em tela, coloca em campos opostos a produtividade e a qualidade da pesquisa e da formação pós-graduada: a exigência de produtividade dificulta a realização da qualidade e a ênfase na qualidade não se enquadra nos critérios de mensuração da produtividade.

O dilema consiste em que se admite que os dois aspectos, a produtividade e a qualidade, devam integrar o processo de pesquisa e de formação de pesquisadores, mas não sabemos como articulá-los nem qual o peso específico que cada um deles deve ter no referido processo. E quando vislumbramos alguma perspectiva de solução em nível institucional, defrontamo-nos com duas saídas igualmente embaraçosas. Com efeito, poderíamos dar precedência ao primeiro aspecto e, nesse caso, nos esforçaríamos em atender aos critérios da CAPES e das agências de apoio à pesquisa e à pós-graduação. Assim procedendo, todas as energias da coordenação e corpo docente dos programas de pós-graduação e dos grupos de pesquisa a eles ligados se dirigiriam, por um lado, a aumentar o número de relatórios de pesquisa, encontrar mecanismos de transformá-los em trabalhos apresentados em eventos científicos ou publicados em artigos, livros e capítulos de livros e, por outro lado, a reduzir o tempo destinado à produção de dissertações e teses. Com isso, passariam para segundo plano a relevância, pertinência e consistência dos trabalhos produzidos.

A consequência seria a queda crescente da qualidade dos Programas de Pós-Graduação. Ou, por outra, poderíamos, dando precedência ao segundo aspecto, voltar todas as atenções e cuidados para o aprimoramento da qualidade, situação em que ficariam em plano subordinado as exigências de produtividade postas pelos órgãos de avaliação e financiamento. Aqui, a consequência seria a redução do apoio financeiro e de bolsas de estudo, o que acarretaria a queda de produtividade refletindo-se, também, na qualidade da pós-graduação.

As duas saídas resultam, portanto, igualmente problemáticas, mantendo-se, assim, embaraçosa a situação. Como resolver o problema? Como sair do dilema? Penso que a argumentação desencadeada ao longo desta exposição já indica, de certo modo, as possíveis saídas.

Em termos radicais, a saída se encontra no rompimento com a lógica do capital. Isso implica a transformação das próprias relações de produção, dando origem a um novo tipo de sociedade. Entretanto, mesmo admitindo que essa seja a meta a ser atingida, sabemos que ela não se faz presente em nosso horizonte imediato. Trata-se, assim, de resistir à lógica dominante reagindo às pressões por meio de ações cujas estratégias devem ser acionadas de acordo com a correlação de forças detectada à luz da análise das situações enfrentadas.

          Nessa direção nós podemos, se concluirmos que a correlação de forças é favorável, contestar as razões alegadas para a modificação do mestrado, mostrar as implicações negativas das mudanças propostas e, virando o jogo, deixar claro que são os órgãos oficiais que dependem dos Programas e não o contrário, uma vez que é nos Programas de Pós-Graduação que se realizam as atividades-fim e é também daí que provêm os membros das comissões de avaliação e os próprios dirigentes dos órgãos oficiais.

Avaliando-se, porém, que a correlação de forças não é favorável à estratégia acima indicada, deve-se procurar acionar outros tipos de estratégia. Por exemplo: se não é viável alterar os critérios que impõem a redução dos prazos para a conclusão das dissertações de mestrado, pode-se articulá-lo com cursos de especialização, entendidos como um aprofundamento de estudos na área em que o aluno realizará o mestrado. Com isso, mesmo atendendo aos limites temporais definidos pelas agências para o mestrado, dispõe-se de um tempo que, somado à especialização, poderá garantir a qualidade que resultava ameaçada pela redução do tempo do mestrado.

Nesse caso é preciso considerar que o que se implantou no Brasil foi a Pós-Graduação stricto sensu. No Parecer nº 977/65 Sucupira reconhece a diferença entre a pós-graduação lato sensu e a stricto sensu, mas não se preocupou com sua regulamentação. Dessa forma, assim como ele considerou que "a regulamentação resulta necessária sob pena do abastardamento inevitável dos graus de Mestre e Doutor", podemos considerar que, não sendo regulamentada, provocou-se o "abastardamento inevitável" da pós lato sensu.   Voltada ao aperfeiçoamento, especialização e atualização profissional, a pós lato sensu foi ocorrendo de forma mais ou menos aleatória, à margem da efetiva política de pós-graduação que se restringiu ao stricto sensu.

          Diante da não regulamentação, as universidades que decidiram atuar no âmbito da pós-graduação lato sensu o fizeram na forma de cursos de especialização, aperfeiçoamento e extensão criando órgãos específicos para sua organização e gestão do tipo das Coordenação Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (COGEAEs). Com isso, aquilo que deveria estar articulado como duas modalidades do mesmo setor acadêmico, a pós-graduação, resultou em duas iniciativas inteiramente apartadas uma da outra, materializadas, inclusive, em dois órgãos totalmente separados.

Considerando, ainda, que o destaque da regulamentação do nível stricto sensu pelo Conselho Federal de Educação levou as instituições já com certa experiência em pesquisa a se dedicarem apenas ao stricto sensu, o lato senso acabou ficando circunscrito à iniciativa de instituições que se dedicavam dominantemente ao ensino sem, ainda, uma estrutura consolidada de pesquisa. Com isso, os cursos lato sensu foram sendo organizados de forma horizontalizada, segundo o modelo prevalecente na graduação, com várias disciplinas cursadas ao mesmo tempo, quando deveriam, como ocorre no caso do stricto sensu, serem organizados na forma verticalizada com duas ou três disciplinas, no máximo, por semestre, possibilitando, assim, o aprofundamento. Tal discrepância resultou tão evidente que mesmo no caso de instituições, como a PUC de São Paulo, que se dedicaram a ambos os níveis, isso ocorreu de forma inteiramente separada, ficando os Programas de Pós-Graduação stricto sensu localizados num Setor de Pós-Graduação inteiramente apartado dos cursos lato sensu alocados na COGEAE.

          Posta essa situação, o papel dos Cursos de Pós-Graduação lato sensu de assegurar, de fato, a especialização, o aperfeiçoamento e a atualização dos profissionais formados nos cursos de graduação resultou prejudicado com o agravante da imagem de um status inferior com que os cursos lato sensu foram estigmatizados diante dos programas stricto sensu.

Diante desse quadro, como indiquei anteriormente, não haveria lugar, no Brasil, para reproduzir a distinção existente nos Estados Unidos entre Mestrados Acadêmicos e Mestrados Profissionais. O que caberia fazer, efetivamente, seria articular o lato sensu com o stricto sensu inserindo os Cursos de Especialização, Aperfeiçoamento e Atualização no próprio Setor de Pós-Graduação, submetendo-os às decisões das Comissões de Pós-Graduação no âmbito das unidades universitárias e à Comissão Central de Pós-Graduação no âmbito da universidade, conferindo-lhes o mesmo status e assegurando-lhes a mesma qualidade. Foi isso o que tentei fazer quando assumi, entre 1989 e 1992, a coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICAMP e formulei uma proposta de organização de Cursos de Especialização articulados com o Mestrado. O fato, entretanto, é que, como atesta o “Processo de Bolonha”, o modelo americano tende a se impor e nós acabamos não tendo alternativa senão assumir, também aqui no Brasil, a distinção entre mestrado acadêmico e profissional, curvando-nos à exigência de criação dos mestrados profissionais.

 

Conclusão

Atentos aos problemas enfrentados, os Programas de Pós-Graduação devem eleger suas prioridades e perseguir firmemente o objetivo que os justifica, isto é, a formação de pesquisadores. A questão da produtividade deverá estar subordinada claramente a esse objetivo e não o inverso, como tem ocorrido atualmente, por efeito da pressão das políticas de investimento e de credenciamento. Ou seja, só vale a pena incrementar a produtividade objetivada em relatórios de pesquisa; nas publicações de artigos e livros; nos trabalhos apresentados nos mais diferentes tipos de eventos que se têm multiplicado na área de educação; e nas dissertações e teses, se os produtos em referência configurarem resultados de pesquisas relevantes sobre os problemas prioritários enfrentados pela educação brasileira.

          Por outro lado, constata-se que a pós-graduação caminhou em direção contraposta à graduação, num divórcio que também se manifestou no interior da pós-graduação entre o lato sensu e o stricto sensu, isto é, entre cursos (ensino) e programas (pesquisa). Esse divórcio se acentuou com as reformas dos anos 1990 e com a nova LDB que se encaminharam para a diversificação de modelos de ensino superior, agravando o fenômeno da fragmentação.

          Em lugar dessa tendência cabe caminhar no sentido inverso, o da integração, articulando a graduação com a pós-graduação lato e stricto sensu, o que outra coisa não é senão a realização da proclamada indissociabilidade entre ensino e pesquisa. Caberia, então, às unidades universitárias acolher os jovens e colocá-los num ambiente de intenso e exigente estímulo intelectual. Sua formação se iniciaria pelo curso de graduação articulando o ensino dos fundamentos teóricos e práticos com a pesquisa propiciada pela inserção dos alunos nos projetos desenvolvidos pelos professores, mediante programas de iniciação científica; prosseguiria com a pós lato sensu, isto é, com cursos de especialização articulados com o mestrado onde, como se mostrou, se daria sua plena iniciação nas lides da pesquisa, completando-se com o doutorado.

          Eis como, enfim, poderemos não apenas preservar o novo modelo de formação de pesquisadores construído no Brasil. As análises efetuadas, ainda que circunscritas ao espaço limitado de um simples artigo, procuraram ir além, propondo estratégias conducentes ao aperfeiçoamento e consolidação da exitosa experiência da pós-graduação brasileira.

 

Referências

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SOBRE O AUTOR

DERMEVAL SAVIANI é Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Pesquisador Emérito do CNPq e Prof. Titular Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICAMP.

E-mail: dermevalsaviani@yahoo.com.br

 

 

 

Recebido em: 10.08.2020

Aceito em: 21.10.2020

 

 



[1] Essa denominação não se refere à especialização profissional como nos atuais mestrados profissionais. Trata-se da produção de pesquisas em áreas de profissões liberais. Os exemplos mencionado no Parecer são:" Doutor em Engenharia, Doutor em Medicina etc.".

[2] Na redação deste tópico retomo aspectos de estudos anteriores (SAVIANI, 2014, p. 134-141).

[3] Na redação deste tópico retomo aspectos de análises anteriores (SAVIANI, 2019, p. 12-15 e 323-325).