O PROBLEMA DA FORMAÇÃO PRÉ-PROFISSIONAL

DAS CONDIÇÕES SUBJETIVAS DOS PROFESSORES

PARA A PRÁTICA PROFISSIONAL- Contribuições de José Barata-Moura[1]

 

 

Elza Margarida de Mendonça Peixoto

Universidade Federal da Bahia

Salvador, BA, Brasil

 

DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.4603

 

 

 

Resumo

O artigo explora a questão radical subjacente à prática do ensino e ao estágio enquanto momentos da formação pré-profissional das condições subjetivas dos professores para a prática profissional. Defende-se que prática de ensino e o estágio referem-se ao problema da formação com verdade, ou seja, de uma formação que possibilite uma consciência/subjetividade que reflita adequadamente aquilo que é a realidade. Esta é a questão de fundo da produção do conhecimento sobre a formação de professores. E é por esta razão que o pensar a prática do ensino e o estágio demandam uma adequada investigação acerca do problema do conhecimento. Delimitando esta investigação à matriz materialista e dialética, discutimos as condições subjetivas que os professores em formação precisam desenvolver para conquistar a correspondência entre consciência e realidade objetiva.

Palavras-chave: Formação. Prática. Professores. Verdade.

 

 

THE PROBLEM OF PRE-PROFESSIONAL TRAINING

OF THE SUBJECTIVE CONDITIONS OF TEACHERS

FOR PROFESSIONAL PRACTICE - Contributions by José Barata-Moura

 

 

ABSTRACT

The article explores the radical question underlying the practice of teaching and internship as moments of pre-professional training in the subjective conditions of teachers for professional practice. It is defended that teaching practice and the internship refer to the problem of training with truth, that is, of a training that allows an awareness / subjectivity that adequately reflects what is reality. This is the fundamental issue of the production of knowledge about teacher education. And it is for this reason that thinking about the teaching practice and the internship demand an adequate investigation about the problem of knowledge. Delimiting this investigation to the materialistic and dialectical matrix, we discuss the subjective conditions that teachers in training need to develop in order to achieve the correspondence between consciousness and objective reality.

Keywords: Formation. Practice. Teachers. Truth.

 

 

EL PROBLEMA DE LA FORMACIÓN PREPROFESIONAL

DE LAS CONDICIONES SUBJETIVAS DE PROFESORES

PARA LA PRÁCTICA PROFESIONAL-Contribuciones de José Barata-Moura

 

 

RESUMEN

El artículo explora la cuestión radical que subyace a la práctica de la docencia y el internado como momentos de formación preprofesional en las condiciones subjetivas del profesorado para la práctica profesional. Se argumenta que la práctica docente y el internado se refieren al problema de la formación con la verdad, es decir, de una formación que posibilite una conciencia / subjetividad que refleje adecuadamente lo que es la realidad. Este es el tema fundamental de la producción de conocimiento sobre la formación del profesorado. Y es por ello que pensar en la práctica docente y el internado exigen una adecuada investigación sobre el problema del conocimiento. Delimitando esta investigación a la matriz materialista y dialéctica, se discuten las condiciones subjetivas que los docentes en formación necesitan desarrollar para lograr la correspondencia entre conciencia y realidad objetiva.

Palabras clave: Formación. Práctica. Maestros. Verdad.

 

 

Introdução

Antes de tudo, cabe retomar o contexto significativo do tema da prática a que estamos buscando nos remeter. Tratamos da prática dos professores (o trabalho pedagógico na educação formal básica e superior) e da expectativa (que consideramos procedente) de que esta prática pedagógica transcorra em correspondência com aquilo que é a realidade do trabalho pedagógico nas diferentes instâncias da educação escolar. A prática de ensino e o estágio respondem, portanto, à expectativa de antecipação daquilo que é a verdade do trabalho pedagógico. Procuram responder àquela expectativa de uma formação subjetiva (formação das condições intelectuais do professor) que corresponda, que reflita adequadamente àquilo que é a realidade na qual ele vai atuar e com a qual vai se confrontar. A verdade do trabalho pedagógico, é, portanto, a condição prévia, anterior à existência dos professores em formação, na qual pretendemos que se encontrem – com verdade, com correspondência entre consciência e realidadea subjetividade do professor e a realidade objetiva exterior, anterior e independente da consciência mais ou menos correta que o professor faça desta realidade. A prática de ensino e o estágio referem-se, portanto, ao problema da formação com verdade, ou seja, de uma formação que possibilite uma consciência/subjetividade que reflita adequadamente aquilo que é a realidade. Esta é a questão de fundo por traz do debate honesto que a produção do conhecimento sobre a formação de professores tenta realizar. E é por esta razão que o pensar a prática do ensino e o estágio demandam uma adequada investigação acerca do problema do conhecimento. Como podem os professores em formação conhecer com verdade àquilo que é a realidade? Quais os instrumentos que os professores em formação têm que por em movimento para uma adequada investigação acerca daquilo que é a realidade e acerca de como nela podemos intervir?

Delimitando esta investigação à matriz materialista e dialética, quais as condições subjetivas os professores em formação precisam desenvolver para conquistar a correspondência entre consciência e realidade objetiva? Em que medida a ida a campo (o experienciar – na condição de formação – aquilo que é a realidade) possibilita produzir esta correspondência entre consciência e realidade? Em que medida esta ida a campo pode ser rigorosamente nominada prática? Temos buscado a resposta a estas questões nas investigações do filósofo português José Barata-Moura[2] acerca do tema da prática.

 

1. A dialética do concreto e do abstrato na compreensão

Em Ideologia e Prática, obra de 1978, Barata-Moura dedica-se à análise da função eminentemente prática da ideologia[3]. Neste processo, na análise da “dialética do concreto e do abstrato na compreensão”, explica:

A compreensão em geral – a própria ciência, o saber objetivamente fundado e sistemático – nunca  se apresentam como conhecimentos etéreos, superiores aos tempos e às sociedades, mas sim como formas determinadas – adequadas ou não, e segundo medidas e graus diversos – de concretamente refletirem a realidade objetiva em que se inscrevem, porque perguntam e sobre a qual exercem também, a seu modo, um dado tipo de intervenção. Aqui se inscreve, como procurávamos fazer ver, o lugar estrutural – mas não ultimamente determinante – da ideologia em geral (BARATA-MOURA, 1978, p. 71).

 

Desenvolve, e, então, delimita-se a “missão” da compreensão (“[...] acolher a realidade objetiva por que pergunta e dentro da qual pergunta e [...] intentar reflecti-la adequadamente”) e àquilo que em perspectiva materialista-dialética é o concreto (“[...] partindo do concreto (o processo histórico objetivo) e visando o concreto (uma compreensão adequada da realidade objectiva”):

A compreensão terá, por conseguinte, que acolher a realidade objetiva por que pergunta e dentro da qual pergunta e que intentar reflecti-la adequadamente. É precisamente para o desempenho dessa missão que, embora partindo do concreto (o processo histórico objetivo) e visando o concreto (uma compreensão adequada da realidade objectiva), o conhecimento não pode deixar de recorrer à abstracção e às formas de precisão e de unificação que ela permite introduzir e apurar no próprio processo real objetivo (BARATA-MOURA, 1978, p. 71).

 

Enquanto o concreto assoma como o próprio “processo histórico objetivo” (aquilo que é fora da consciência) e uma “compreensão adequada da realidade objectiva” (podemos dizer um reflexo que espelha corretamente na consciência o movimento daquilo que é o real), o abstrato assoma como fragmentos provisórios e necessários ao entendimento:

A necessidade de “decompor” o movimento – razão de ser destes parêntesis metodológicos – deriva daqui e exige, como vemos, uma interpretação dialéctica, sob pena de, em vez dos referidos efeitos de adequação inteligível à realidade dos processos, se saldar por uma forma de os mistificar e falsificar. A abstracção, a fixação de momentos, é indispensável à prossecução de uma qualquer teoria. Simplesmente, jamais ela poderá deixar de ter em vista a fidelidade à realidade objectiva de que parte e, consequentemente, a totalidade – material e até de sentido – em que se insere. A definição de momentos e de etapas de um processo é uma forma necessária para o poder compreender na sua complexidade e, sobretudo, nas contradições em que se resolve. Esses momentos, porém, não podem ser tomados como algo de autónomo ou de independente, mas como momentos de um processo real em devir, que necessariamente os transcende na determinada fixação ou unilateralidade em que consistem (BARATA-MOURA, 1978, p. 71).

 

Anotemos que o conhecimento demanda abstrações definidas como “[...] fixação de momentos, [...] indispensável à prossecução de uma qualquer teoria”. É a abstração que proporciona “[...] formas de precisão e de unificação” que permitem “[...] introduzir e apurar no próprio processo real objetivo”. A compreensão de um processo demanda necessariamente “[...] a definição de momento e de etapas”[4]. Mas, alerta: “Esses momentos, porém, não podem ser tomados como algo de autónomo ou de independente”. Pelo contrário, são “momentos de um processo real em devir, que necessariamente os transcende na determinada fixação ou unilateralidade em que consistem” (BARATA-MOURA, 1978, p. 71).

Os momentos que a abstração – dialeticamente considerada – delimita num processo estão objetivamente fundados e constituem uma mediação indispensável para o apuramento da realidade objectiva ao nível da inteligibilidade. A dialéctica subjectiva, própria dos processos do conhecimento que se estabelecem segundo instâncias e níveis diversos de determinação, tem de velar para que a dialética objectiva seja correctamente reflectida (BARATA-MOURA, 1978, p. 72).

 

Mas como chegamos a estes “momentos” ou “abstrações”? A pista está no Prefácio da 1ª educação de “O Capital”: pela análise das minuciosidades (MARX, 1989, p. 4), que possibilita o “apanhar das múltiplas determinações” (MARX, 1977, p. 218). A implicação objetiva em termos da estrutura dos processos de formação de professores refere-se à delimitação das múltiplas determinações do trabalho pedagógico que necessitamos reconhecer e analisar para conhecer cientificamente aquilo que é o trabalho pedagógico dos professores na educação básica (e também na educação superior).

 

2. Objetividade e subjetividade do conhecimento

Qual “a maneira por que ela [a ideologia] se articula com a prática? Primeiro: “[...] a ideologia radica na prática”:

 

No seu sentido amplo, a ideologia corresponde a um dado sistema de representações sociais, isto é, ao conjunto das produções da consciência social. Por conseguinte, de um ponto de vista estritamente gnosiológico, a ideologia afirma-se como reflexo (social) subjectivo da realidade objectiva. Esta sua condição estrutural é decisiva para que seja possível determinar e clarificar toda uma série de problemas e questões derivadas que de uma maneira imediatamente desconexa se nos costuma apresentar ou oferecer à consideração (BARATA-MOURA, 1976, p. 72-73).

 

Subjetivo aqui refere-se “àquilo que é próprio, conforme ou respeitante aos sujeitos que conhecem e à sua maneira de conhecer”. Complementa: “Toda a produção da consciência em geral é necessariamente subjectiva, no sentido de que se processa por intermédio de formas “ideais”” (BARATA-MOURA, 1978, p. 73). Esta condição, entretanto, nem significa que “[...] pelo facto de o conhecimento ser um reflexo subjectivo tenha de ser arbitrário”, ou não levar em conta “[...] a realidade objectiva como seu real primordial fundamento”; nem significa que “o conhecimento não possa ser verdadeiro ou adequado”. Prossegue destacando que “[...] o conhecimento em geral é reflexo subjetivo da realidade objectiva”. Isto significa que “[...] o carácter necessariamente subjectivo do reflexo não anula nem afasta o lugar determinante que à realidade objectiva pertence no acto de conhecer”. Ao contrário, o carácter subjectivo do conhecimento “[...] reclama e supõe indispensavelmente” a realidade objectiva (BARATA-MOURA, 1978, p. 73).

Na consciência, é a realidade objectiva – existente independentemente do sujeito, com propriedades e características determinadas – que é reflectida e apercebida, segundo as formas próprias do sujeito que conhece, as quais, por sua vez, ao longo de todo um processo de formação, difusão e assimilação foram sendo determinadas e apuradas igualmente a partir do real (BARATAMOURA, 1978, p. 73).

 

A consciência reflecte a realidade objetiva, mas este reflexo corresponde às “formas próprias do sujeito que conhece” que também “foram sendo determinadas e apuradas a partir do real”. Se todo o conhecimento remete à realidade objetiva, todo o conhecimento é verdadeiro? À pergunta implícita na correta relação entre realidade objetiva e consci6encia, Barata-Moura responde:

Uma correcta compreensão da relação cognoscitiva do “objetivo” e do “subjetivo” revela-se como da maior importância para quem quer que pretenda penetrar nestes problemas da Teoria do Conhecimento sem vir, por outro lado, a cair tanto no idealismo tradicional ou rejuvenescido como nessa outra forma de idealismo que são as visões simplistas e mecanicistas do materialismo dialético que a ideologia burguesa tanto gosta de propagandear e de fazer passar por genuínas (BARATA-MOURA, 1976, p. 73-74).

 

A “correcta compreensão da relação cognoscitiva do “objetivo” e do “subjetivo”, de que depende? Essencialmente, em distinguir a objectividade pensada e a objectivamente materialmente existente (BARATA-MOURA, 1978, p. 74). Para isto, é necessário reconhecer: que o primado do objetivo, o primado do ser, da realidade objectiva (natural e social), “[...] não anula a especificidade do subjectivo e das formas por que este se expressa”, pelo contrário, “sob certas condições”, “incorpora-as”. O professor destaca a necessidade de considerar que “há uma objectividade do pensamento”. Isto porque:

O pensamento verdadeiro é subjectivo, no que respeita à sua forma ou modo necessário de estruturação, e objetivo no que respeita à sua matéria (BARATA-MOURA, 1976, p. 74).

 

Prossegue:

O conhecimento remete sempre para as formas “ideais” (subjectivas) porque e em que reflecte a realidade objectiva. Estas imagens cognoscitivas, indispensáveis à determinação de um qualquer conhecimento, reflectem porém – ao nível e segundo as formas que lhe são próprias –, a materialidade do objeto (BARATA-MOURA, 1976, p. 74).

 

Um “[...] justo reconhecimento deste carácter objetivo e subjectivo do pensamento em geral não nos deve, todavia, fazer incorrer em determinadas precipitações teóricas manifestamente ilegítimas” (BARATA-MOURA, 1976, p. 74).

A teoria pensada mesmo quando verdadeira, mesmo quando adequada ao real, mesmo quando o reflecte corretamente, não é a prática que materializando transforma. Esta diferença é decisiva em ordem a que todas as questões – teóricas e práticas – decorrentes do idealismo possam ser devidamente apreciadas. O objetivo, do mesmo modo que o prático, ocupam o polo determinante das contradições em que intervêm. É pelo seu lado que em última análise se definem e resolvem as situações em exame. No entanto, eles não desterram nem votam ao ostracismo o subjectivo e o teórico que em unidade dialéctica com eles concretamente se manifestam e desenvolvem (BARATA-MOURA, 1976, p. 74).

 

Um primeiro conjunto de supostos precisa que um conhecimento correto da realidade, uma teoria pensada acerca daquilo que é a realidade, mesmo que correta, não é a realidade, mas um reflexo na consciência daquilo que a realidade é. Um segundo conjunto de supostos relevante para apreender daqui é que não há relação de identidade entre teoria e prática. Isto porque, a teoria é um reflexo na consciência daquilo que é a realidade e “mesmo quando reflecte corretamente o real, não é a prática que materialmente transforma”. Ou seja, a prática é ação transformadora da realidade, e, adiantamos, demanda certo grau de engajamento do sujeito na relação com o objeto da transformação.

 

3. Subjetividade e verdade

Aprofundando-se nos problemas e na Teoria do Conhecimento, Barata-Moura destaca que “[...] o primado da realidade objectiva não destrói o lugar próprio das estruturas da subjectividade”, pelo contrário “[...] reclama-o sempre que de questões de índole gnosiológica se trata”, assim como “[...] o reconhecimento do carácter subjectivo do reflexo cognoscitivo não o condena inexoravelmente à não verdade, à arbitrariedade, ao relativismo ou ao agnosticismo” (BARATA-MOURA, 1978, p. 75). Prossegue:

Apesar de necessariamente subjectivo, o reflexo cognoscitivo pode, ou não, ser adequado à realidade objectiva que visa apreender e conhecer. Neste sentido em que aqui estamos a empregar esta categoria do “subjetivo”, ele não se apresenta como um adversário ou um opositor da verdade. A bem dizer, trata-se de conceitos que funcionalmente se encontram a significar em planos diversos, a que correspondem, como facilmente se depreende, problemas diversos. O “subjetivo” caracteriza aqui as estruturas “ideais” do conhecimento. A verdade concerne a adequação do conhecimento com a realidade objectiva. O carácter de verdadeiro é, por conseguinte, não algo que elimina a condição subjetiva do reflexo cognoscitivo mas sim algo que, na vigência de determinadas condições – nomeadamente, a adequação com o processo real objetivo –, o qualifica convenientemente. O verdadeiro elimina, sim, ou é incompatível com uma outra acepção para o “subjectivo”, que o dá como algo de referente ao “subjectivismo”. Nesta outra utilização possível do vocábulo, o carácter de subjectividade de um conhecimento prende-se não com a forma necessária (estrutural) do seu processamento mas, justamente, com a falsificação da sua natureza própria, que impõe o primado da realidade objectiva. O subjetivismo é uma forma de idealismo que subleva e absolutiza os elementos subjectivos do acto de conhecer, desprezando ou destorcendo o modo próprio da relação dialética do objetivo e do subjectivo, em que ao objectivo compete o papel determinante (BARATA-MOURA, 1978, p. 75).

 

O problema da incompatibilidade entre a verdade e o subjetivismo entendido como “a falsificação da sua natureza própria que impõe o primado da realidade objectivatem particular importância para nós (BARATA-MOURA, 1978, p. 75). Isto por que o subjetivismo “[...] subleva e absolutiza os elementos subjectivos do acto de conhecer”, rompendo a necessária “[...] relação dialéctica do objetivo e do subjectivo, em que ao objetivo compete o papel determinante” (BARATA-MOURA, 1978, p. 75).

Desta observação teórica resultam duas questões relevantes para nós, no processo de pensar a prática pré-profissional: (a) em que medida a ênfase na experiência presente nas proposições de prática de ensino e estágio estariam contribuindo para uma sublevação e absolutização dos “[...] elementos subjectivos do acto de conhecer”, quando estas proposições consideram ser suficiente o sujeito cognoscente entrar em contato com a realidade da prática de ensino, e pela experiência do contato com a realidade, conhecer aquilo que é a verdade sobre o trabalho pedagógico?, (b) a experimentação é suficiente para produzir as estruturais ideais do conhecimento, a subjetividade necessária ao adequado entendimento daquilo que é a realidade? Quais os requisitos, quais estruturas ideais do conhecimento necessárias para que a subjetividade conheça a realidade objetiva?

 

4. Radicação prática do conhecimento: reflexo de um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas

 

As demandas por apreensão das relações em que se inscreve o trabalho pedagógico do professor, prosseguimos nas pistas deixadas por Barata-Moura (Ideologia e Prática, 1978) acerca da relação sujeito objeto na perspectiva da Concepção Materialista e Dialética da História. Neste aspecto, no que se refere à tese da radicação prática do conhecimento, diz-nos o autor:

[...] as produções da consciência social em geral não aparecem, não se precisam, nem se expressam, por mero acaso, pelo desenvolvimento de quaisquer virtualidades inerentes à constituição originária do espírito ou pela genial decisão voluntarista de instaurar ou de instalar um objeto ou um correlato para a capacidade des-vendadora da Humanidade indagante. Os produtos da consciência social em geral correspondem à realidade de um determinado viver, que os transcende e sustenta, e que eles de alguma maneira reproduzem, quer quando simplesmente visam apreendê-la que mesmo quando, lançando-se na órbita do possível, aspiram superá-la (BARATA-MOURA, 1978, p. 76).

 

Enquanto produto da consciência social, a produção do conhecimento social em geral corresponde a um determinado estágio de desenvolvimento da produção da existência, que compreende as relações que os homens estabelecem entre si no processo de produção da vida condicionada por determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas. Como bem dito: “correspondem à realidade de um dado viver”.

Este é o fundamento primeiro de tudo que ao nível da consciência aparece como representação. Este é o fundamento primeiro de tudo quanto ao nível da existência humana, de algum modo, aparece como “experiência”, como “vivência”, como “saber”. A condição humana (social) é a de seres mergulhados no mundo – natural e social – possuidor de uma realidade objectiva bem determinada. O mundo em que estamos imersos e de onde emergimos ou de onde nos destacamos – já  que a individualidade não é uma ilusão, mas apresenta igualmente um fundamento objetivo – não é um mero universo de fantasmas ou de sonhos, de simples projeções “ideais” de uma qualquer imaginação que, à força, se pretende hipostasiar em correlato de consciência. O ser nunca é “puro”; é sempre concreto (BARATA-MOURA, 1978, p. 77).

 

A consciência é possibilidade de um ser consciente. Ou, com Marx, “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência” (MARX, 1977, p. 24).

Barata-Moura desenvolve: “Em que consiste, porém, este ser concreto que à consciência a cada momento se oferece como objecto a reflectir e ao trabalho como campo ou horizonte de exercício?” (BARATA-MOURA, 1978, p. 77).

É o ser da Natureza e da Sociedade, é o ser da História, o ser do processo de desenvolvimento universal da matéria que nos últimos milhares de anos assume a forma decisiva da prática, da transformação social da Natureza por intermédio do trabalho, nos seus diferentes modos, graus e níveis (BARATA-MOURA, 1978, p. 77).

 

Também à consciência dos professores – aqueles que empreendem o trabalho pedagógico em contínuo movimento e transfrormação – se oferece como objeto a reflectir aquilo que é o ser em sua totalidade. De que está a falar Barata-Moura? Da totalidade das relações em que se inscreve aquilo que é o ser humano: “ser da Natureza e da Sociedade, é o ser da História, o ser do processo de desenvolvimento universal da matéria que nos últimos milhares de anos assume a forma decisiva da prática, da transformação social da Natureza por intermédio do trabalho, nos seus diferentes modos, graus e níveis” (BARATA-MOURA, 1978, p. 77). Esta dimensão de totalidade rege o trabalho pedagógico e deve reger a formação para o trabalho pedagógico, na qual se inscreve a experimentação pedagógica pré-profissional. Prática?

 

5. Implicações da prática no reflexo sensorial

 

Ainda tomando como base para a nossa reflexão, a obra Ideologia e Prática (1978), encontramos que: “o reflexo da realidade objectiva na consciência dos homens não é um reflexo simplesmente mecânico ou linear” (BARATA-MOURA, 1978, p. 78). Aqui chegamos ao cerne das questões que nos inquietam: “[...] o processo do conhecimento não se apresenta como pura receptividade ou pura passividade perante o objecto”. Contrariamente às teses empiristas, não é possível reduzir “o fenómeno sensitivo, mesmo o elementar, ao aspecto aferente, inicial, da estimulação exterior dos órgõs receptivos”. Não é possível separar o conhecimento sensível da “atividade, da prática, com a qual constitui uma indissociável totalidade dialética” (BARATA-MOURA, 1978, p. 78).

Apoiado nas investigações da psicologia contemporânea, especialmente em Leontive[5], defende que “o cabal desvelamento do reflexo sensorial”, possibilita a “plena confirmação experimental” do “papel verdadeiramente central desempenhado pelo primado prático da realidade material” (BARATA-MOURA, 1978, p. 79-80):

A sensação não se limita a uma mera recepção, passiva, decorrente de um processo exclusivamente centrípeto. O nascimento de uma sensação exige, igual e constitutivamente, a existência de determinadas conexões de retorno que vão do centro à periferia. A actividade do receptor é, deste modo, também, um elemento fundamental na determinação da totalidade concreta de que a percepção ou a experiência imediata em geral vêm resultar (BARATA-MOURA, 1978, p. 79).

 

Destacando que “os resultados mais significativos das investigações de Sétchénov” – relatados por Leontiev – se revestem “da maior importância para uma teoria materialista do conhecimento”, Barata-Moura cita:

Antes de “ser dada” na sensação, a realidade concreta manifesta-se como condição da existência prática, como objeto da adaptação do organismo que se realiza nos seus contatos reais com ela. [...] Sem a participação do movimento, as nossas sensações e as nossas percepções não teriam a qualidade de objectividade, isto é, de relação aos objetos do mundo exterior, a qual somente faz deles fenómenos psíquicos (LEONTIEV, citado por BARATA-MOURA, 1978, p. 80).

 

Na “relação dialética do objectivo e do subjectivo”, destaca o autor, “o papel determinante e o fundamento material das qualidades objectivas das coisas não anulam nem a actividade do sujeito [...] nem a contribuição unificadora de diferentes elementos formais”. O reflexo cognoscitivo não é linear (BARATA-MOURA, 1978, p. 81).

 

7. Unidade do sensível e do racional

 

Na “atividade cognoscitiva concreta”, “o conhecimento é sempre um fenómeno de síntese” e “processa-se sempre numa órbita de concreto”, e é só sob este “ponto de vista de concreção” que o pensamento se pode manifestar naquilo que propriamente é”. Explica que “o conhecer se desenvolve sempre no quadro de uma unidade do sensível e do racional”, que “não são dois graus (independentes ou não) do conhecimento, mas dois momentos constitutivos presentes em todas as formas e etapas do processo cognoscitivo”, participando “ambos, necessária e concretamente, no nosso conhecimento” (BARATA-MOURA, 1978, p. 82).

É então que Barata-Moura nos fornece elementos que nos possibilitam avançar para a apreensão de uma perspectiva materialista e dialética do processo da formação de professores para a prática do trabalho pedagógico. Recorda que “O sensível diz efetivamente respeito ao reflexo imediato da realidade objectiva”, que “aparece-nos sempre enquadrado por elementos racionais”. Estes elementos racionais “também tiveram a sua génese (quer no plano material social quer no plano subjectivo individual)” que “sempre remetem para uma filiação prática, a partir da qual foram sendo constituídos” (BARATA-MOURA, 1978, p. 82).

A qualquer nível em que seja considerado o conhecimento envolve sempre um apuramento racional de dados dos sentidos, a que, nomeadamente, a prática e a linguagem não são estranhas. É justamente nesta medida que o conhecimento sensível se manifesta formalmente como pensamento, atendendo a que o homem exprime sob a forma de juízo (os juízos de percepção) os resultados do conhecimento da realidade objectiva que os sentidos lhe fornecem.

 

Destaca “A mediação linguística e conceptual” que “revela-se sempre [...] muito importante”, entretanto “apesar de interveniente, não costuma ser tematizada”. Justamente “a não tematização do papel da prática e da linguagem, em geral, conduz ou reforça a tomada de posições imediatistas relativamente ao carácter “directo” e passivo da experiência” no processo do conhecimento (BARATA-MOURA, 1978, p. 82). Explica:

A sensação corresponde a uma dada determinação cognoscitiva que apenas no quadro de uma totalidade concreta de elementos se verifica. O objectivo e o subjectivo, o activo e o passivo, o social e o individual, etc., encontram-se necessariamente na referida totalidade, nos termos da unidades dialéctica em e por que se manifestam enquanto modalidades reais da contradição que atravessa e constitui a própria realidade objectiva (BARATA-MOURA, 1978, p. 82).

 

É esta totalidade concreta de elementos que entram em movimento no processo da prática a que devemos ter atenção.

 

 8. Conhecimento, viver concreto dos homens, caráter prático da existência social e trabalho

 

Entre estes elementos, os “dispositivos conceituais, a linguagem, a prática influem efetivamente no apuramento do reflexo cognoscitivo em termos concretos”. Operam como “estruturas de mediação que desempenham um papel relevante ao nível da formulação e da expressão da própria experiência” (BARATA-MOURA, 1978, p. 84).

Sobre a experiência, nos diz:

[...] Esta nunca é um acto puro de mera transparência perante um objeto que univocamente se nos oferece e des-venda. A experiência é eminentemente sintética, mesmo nos seus níveis elementares, e nessa síntese intervêm, decisiva e determinantemente, os factores materiais que definem a implementação social e histórica (concreta) de todo o acto cognoscitivo (BARATA-MOURA, 1978, p. 85).

 

Mas quais são estes “[...] factores materiais que definem a implementação social e histórica (concreta) de todo o acto cognoscitivo”? As relações estabelecidas pelo sujeito cognoscente com o mundo com o qual se encontra no processo do conhecimento:

O conhecimento nunca é desvelamento do real por parte de uma consciência etérea, mas função totalizante de um ser concreto que o assume e protagoniza. A consciência é sempre consciência de alguma coisa – o seu termo intencional – mas também consciência de alguém, isto é, de um ser determinadamente situado no mundo, o mesmo é dizer, num dado tempo e lugar, ocupando um determinado posto na estrutura geral do modo de produção de uma dada sociedade (BARATA-MOURA, 1978, p. 85).

 

Estas relações objetivas estabelecidas pelo sujeito cognoscente (alguém) com aquilo que é o foco da atenção (alguma coisa), não paira etéria, mas é o movimento de um ser concreto (no nosso caso, o professor em formação), “um ser determinadamente situado no mundo”, “ocupando um determinado posto na estrutura geral do modo de produção de uma dada sociedade”. Estes elementos objetivos condicionam aquilo que é a experimentação pedagógica no processo de formação. Desenvolveremos mais esta questão adiante.

Continuando, Barata-Moura expõe os nexos entre o gnosiológico e o ontológico:

Esta unidade fundamental do gnosiológico e do ontológico, esta radical implantação ontológica do gnosiológico, esta emergência dos fenómenos da consciência do seio de uma matéria complexamente organizada, este mergulhar originário do conhecimento no viver concreto dos homens, das classes e das sociedades, definem uma perspectiva fundamental para podermos equacionar convenientemente todos estes problemas do reflexo subjetivo da realidade objectiva em que o conhecimento consiste (BARATA-MOURA, 1978, p. 85).

 

Esta “perspectiva fundamental” possibilita “compreender adequadamente a relação existente entre os domínios do gnosiológico e do ontológico, bem como a instância que nela se apresenta como estruturalmente determinante” (BARATA-MOURA, 1978, p. 85). Qual é esta perspectiva? Barata-Moura desenvolve recordando que “[...] A existência social é sempre e também intervenção, transformação da Natureza, é sempre prática”. Aqui, “[...] o trabalho se apresenta como um fator indispensável à plena determinação e compreensão do concreto em cujo horizonte todo e qualquer conhecimento se define e materializa” (BARATA-MOURA, 1978, p. 85). Pois,

[...] A existência social é sempre e também intervenção, transformação da Natureza, é sempre prática. É neste contexto que o trabalho se apresenta como um fator indispensável à plena determinação e compreensão do concreto em cujo horizonte todo e qualquer conhecimento se define e materializa. [...] Pelo trabalho o homem actua socialmente sobre a Natureza e transforma-a, ao longo de um processo em que a produção dos meios necessários para a subsistência social se vai desenvolvendo de acordo com uma dialética que lhe é própria e que, em última análise, é determinada pelas diferentes formas que a contradição entre o estádio de desenvolvimento das forças produtivas e o sistema das relações de produção vigente numa dada sociedade vai assumindo. Ao transformar a natureza o homem está igualmente a transformar-se a si próprio, tanto de um ponto de vista social como de um ponto de vista individual. O progresso social, as condições históricas concretas da existência social – tanto a um nível propriamente material como espiritual – não são adequadamente compreensíveis fora desses parâmetros (BARATA-MOURA, 1978, p. 86).

 

Este movimento prático de transformação da natureza com a finalidade de manter-se vivo, “leva o homem a transformar-se enquanto ser que reflecte a realidade objectiva”, afetando decisivamente e determinando “[...] a maneira por que esse reflexo se processa e exprime” (BARATA-MOURA, 1978, p. 86).

Esta transformação do mundo e de si próprio que o homem em sociedade leva à cabo reflete-se ela própria também ao nível de suas estruturas históricas cognoscitivas. O trabalho, a prática, em que o viver concretamente consiste, interferem com os aparelhos e dispositivos que a humanidade tem ao se dispor para conhecer e transformar a realidade objectiva em que ativa e socialmente se inscreve (BARATA-MOURA, 1978, p. 86).

 

Remetendo-se a citação de Todor Pavlov, “sobre a base do desenvolvimento dos instrumentos de trabalho”, a humanidade “transforma (desenvolve e aperfeiçoa) os órgãos que lhe servem para a percepção sensível e para reagir objectivo-sensível e as suas [respectivas] funções” (BARATA-MOURA, 1978, p. 86). Explica que

As modificações ao nível dos próprios dispositivos intervenientes na elaboração cognoscitiva da experiência, que ao longo do processo histórico global se vão verificando, representam alterações significativas nos quadros formais do conhecimento. Estas alterações vêm, aliás, a trazer para primeiro plano de consideração, o papel que cabe ao estatuto objectivo – prático social – dos sujeitos que conhecem na determinação final dos produtos de sua consciência. A posição que se ocupa no aparelho produtivo, em termos singulares e de classe, reveste-se da maior importância para o apuramento concreto das formas ideológicas que povoam a consciência dos homens e constituem elemento e fator de mediação nas relações que estabelecem, tanto entre si como com a realidade material (BARATA-MOURA, 1978, p. 86-87).

 

9. O primado da realidade objetiva no conhecimento

 

Barata-Moura enfatiza que

[...] no horizonte das relações fundamentais que a consciência guarda com o ser humano concreto (individual e social), o conhecimento, em geral, é sempre um fenómeno que se desenrola em estreita articulação com a existência social real, com o viver concreto dos homens. Não se trata, pois, de modo algum, de processos puramente formais, de estruturas funcionais abstractas comportando-se indefinidamente no quadro de um esquema meramente repetitivo, em inteira independência e autonomia relativamente à realidade material (BARATA-MOURA, 1978, p. 230).

 

 

O primado da realidade objetiva na problemática da gnosiologia implica reconhecer “as condições concretas em que o próprio processo do conhecimento tem lugar”, integrado “no processo da realidade objetiva – natural e social – em que constitutiva e estruturalmente se encontra integrado (BARATA-MOURA, 1978, p. 230).

A expectativa de que a inclusão da “prática” na formação dos professores possibilite conhecer efetivamente aquilo o que é a realidade do trabalho pedagógico carece do reconhecimento alargado daquilo que é a realidade objetiva na qual se encontram com passado e no presente professores em formação, professores já formados, estudantes e instituições  escolares com a finalidade prática de formação pré-profissional.

Pensamos ser interessante, ainda, aprofundar acerca daquilo que é a prática.

 

10. A categoria marxista da prática

Barata-Moura recupera – na obra que estamos utilizando como base das questões que levantamos neste trabalho – a “[...] acepção marxista-leninista” segundo a qual a prática “[...] modifica, transforma ela própria a realidade objetiva”. O autor destaca que “não é suficiente determinar a prática como uma transformação de “uma matéria-prima” (cuja natureza não se esclarece devidamente), mediante um “trabalho” (cujo carcácter não é igualmente e inequivocamente definido)”. O aspecto decisivo é a “determinação do carácter objetivo da prática” (BARATA-MOURA, 1978, p. 251). Recorrendo a Heinrich Opitz:

O conceito marxista de práxis relaciona-se com o conjunto do processo, no qual a humanidade transforma a realidade objectiva. A práxis é o processo de vida material da sociedade, em que a humanidade a humanidade permanentemente se mantém e desenvolve. À práxis pertencem, por exemplo, a produção, o trabalho, assim como a luta de classes, a atividade política, a formação de condições de vida e de trabalho socialistas e outras actividades (OPITZ, citado por BARATA-MOURA, 1978, p. 252).

 

É por esta razão que o “trabalho em que a prática consiste não é, por conseguinte, um trabalho espiritual ou especulativo”, pelo contrário, é “um trabalho que “objectivamente, materialmente, transforma a própria realidade objectiva” (BARATA-MOURA, 1978, p. 252). Não está a falar de “um projeto, um plano, uma ideia ou uma concepção”, mas do “próprio processo social de transformação da natureza”. Defende:

É pela e na prática que, dia a dia, se vão materializando grande parte dos processos que constituem e integram a história concreta da manifestação real. A prática é, efetivamente, um momento e uma componente essenciais do devir contraditório da matéria. Identifica-se com a mediação social objectiva do real (BARATA-MOURA, 1978, p. 253).

 

Considerações provisórias

 

“Só há fronteiras, porque mais terra há para além da raia”

(José Barata-Moura, 1994)

 

Em primeiro lugar, é fundamental reconhecer que não há formação fora da prática, no sentido “[...] dos processos que constituem e integram a história concreta da manifestação real” que são movidos “pela e na prática” (BARATA-MOURA, 1978, p. 253). Professores em formação não pairam soltos no ar! Na formação social brasileira, se tornam professores em formação em um contato contínuo com aquilo que é a “manifestação real” da política educacional brasileira desde a educação básica até o ensino superior – entretanto, formam-se alienados “dos processos que constituem e integram a história concreta da manifestação real”.

Realizamos a inserção dos jovens professores na realidade da política educacional brasileira, quando os colocamos inteiramente a par (por processos que incluem rigorosos estudo teóricos das fontes de crítica à realidade) e em perspectiva materialista e dialética destes processos históricos e de sua objetividade concreta. Compõem certamente esta formação as disciplinas que buscam retratar em perspectiva materialista e dialética a história da política educacional brasileira, considerando a luta de classes e a disputa pela direção da formação dos professores (por prolongamento, o controle ideológico da classe trabalhadora que frequenta a escola) em um modo de produção marcado pela acumulação privada e pela luta de classes em disputa pelo controle das forças produtivas. Mas está absolutamente correta a máxima do movimento docente que diz “professores lutando, também estão ensinado”!

Os professores em formação aproximam-se do trabalho pedagógico quando são chamados a reconhecer as lutas travadas pelos professores da educação básica e do ensino superior por carreira, salário e condições de trabalho e mais verbas públicas para a educação pública. Quando são chamados a participar das organizações estudantis em todos os níveis para organizar-se em luta por acesso e permanência a uma escola e a uma universidade pública e gratuita!! Aqui encontra-se a dimensão política da prática – na qual nenhum de nós está em estado de espera, sobre a qual nenhum de nós pode reivindicar neutralidade – que de forma alguma depende da experiência de estar na escola básica, de onde, aliás, os professores em formação já vieram. Aqui, o movimento de ocupação das escolas é expressão objetiva de um processo prático de intervenção com vistas a operar transformação material na luta de classes em disputa pela educação da classe trabalhadora brasileira. Planejar a formação durante estes processos de luta tem que ter em vista garantir a fundamentação teórica e histórica que permita aclarar o que está em questão numa determinada conjuntura de lutas.

Pela prática de ensino e pelo estágio supervisionado, os professores em formação estão em prática quando experimentam o trabalho pedagógico em suas múltiplas determinações. Esta experimentação passa sim (a) pela aprendizagem crítica de proposições pedagógicas (apanhadas em seus pressupostos ontológicos, gnosiológicos, axiológicos e teleológicos); (b) pelo exercício do planejamento do ensino que ponha em movimento as contradições entre (i) as possibilidades e os limites de uma proposição, (ii) o efetivo experimento pedagógico (supervisionado) de seleção do conhecimento e sistematização metodológica dentro de determinadas condições objetivas presentes na escola em termos de espaço e tempo disponíveis para o ensino; mas, essencialmente, (c) passa pelo efetivo encontro com os sujeitos da aprendizagem – indivíduos realmente existentes, inseridos em realidades profundamente contraditórias, em relações tão mais complexas quão mais periféricas se encontram – e os sujeito coletivo do trabalho pedagógico (composto pela equipe de professores e todo o pessoal que atua praticamente no chão das escolas). Neste momento têm que entrar em movimento a constatação daquilo que é a realidade da política educacional no chão da escola enquanto campo do trabalho pedagógico dos professores, tendo em vista a crítica daquilo que a escola vem sendo nos limites das relações de produção capitalistas. Aqui, a dimensão prática enquanto experimento só pode ser rigorosamente transformação material quando garantir o efetivo encontro entre a comunidade escolar e a instituição formadora promovendo movimento e mudança em ambas as instituições envolvidas no processo, coletivamente orientadas para uma atividade consciente direcionada à finalidade de aprimorar a formação da classe trabalhadora. Falamos de um processo marcado por contradições e conflitos que demandam enraizamento efetivo da instituição formadora na realidade.

Por fim, no âmbito da formação de professores, a dimensão da prática como trabalho é efetivamente expressão máxima do trabalho alienado e estranhado que urge fazer esclarecer no processo da formação e derrubar no âmbito das disputas de uma política educacional a serviço dos interesses dos trabalhadores. Aqui, encontramos a expressão máxima de uma política educacional que antecipa a exploração do trabalho dos professores em formação, na medida em que, respondendo a uma perspectiva liberal e ultraliberal de políticas sociais e educacionais, exclui do acesso ao trabalho milhares de especialistas no trabalho educativo e impõe a estudantes em formação o trabalho precário na ausência de direitos trabalhistas, incluindo estabilidade, salário, condições de trabalho. É a face mais dura da prática a que são submetidos os professores em formação e deve ser amplamente refutada e recusada por toda a categoria docente e instituições educacionais.

Nossa abordagem do problema da prática visa evidenciar que a experiência de campo, por si, não é suficiente para garantir aos professores este entendimento e este movimento. Há uma realidade exterior objetiva que é exigente quanto aos recursos subjetivos necessários para apreendê-la de forma conscientemente ativa, como totalidade concreta. Para nós, o desenvolvimento dos instrumentos e processos necessárias à conquista de uma consciência de classe revolucionária são absolutamente necessários, mas são constitutivos e demandam que esteja em processo uma revolução dirigida por uma classe com consciência das cadeias radicais que necessita superar. Isto ficou interditado nos períodos de conciliação de classe e é em mares tempestuosos que emergimos em luta pelo futuro que este desafio se coloca.

Esperamos ter desenvolvido argumentos suficientes para evidenciar que a perspectiva materialista e dialética da prática (A) não autoriza o enfoque pragmático e o empirismo que fundamentam a perspectiva que hegemoniza a legislação brasileira, ao mesmo tempo em que (B) oferece fundamentos para a adequada e correta reflexão sobre (a) aquilo que é a prática; (b) aquilo que a prática de ensino e o estágio demandam como processos em formação quando está em questão a perspectiva materialista e dialética.

Nesta direção, estamos chamados a estabelecer um programa para a prática de ensino e o estágio supervisionado que considere – em rigorosa crítica à tese da prática como experiência (que oculta e sustenta as políticas neoliberais de fragilização da formação e do trabalho dos professores) – as possibilidades e os limites dos experimentos nestes componentes curriculares. Sim, porque no sentido rigoroso, é de experimentos de trabalho pedagógico que a prática pré-profissional na formação de professores trata. Mas são experimentos que compõem efetivamente os processos de transformação material (a) daquilo que é o ser em  relações de formação; ( b) daquilo que são as relações nas quais estas relações de formação se movimentam; (c) dos espaços nos quais estas relações se movimentam; (d) das teorias, dos instrumentos, dos métodos e das técnicas de formação.

A tarefa dos materialistas dialéticos é garantir que este movimento ocorra como atividade consciente direcionada à finalidade previamente determinada, que põe no centro da formação pré-profissional o próprio sujeito que é chamado a ver as lutas que estão em processo na conjuntura. Trata-se de reconhecer que as condições objetivas vividas por todos aqueles que participam das relações de formação encontram-se determinadas pelas relações de produção capitalistas – meta que demanda o domínio dos fundamentos explicativos das demandas e lutas travadas nestas relações de produção, que incidem diretamente na vida escolar em seu amplo espectro. Trata-se de reconhecer que as classes dominantes que controlam estas relações de produção vão fazer todo o possível para ocultar o seu domínio e impedir que se desenvolvam possibilidades de superação destas relações. Este reconhecimento demanda consistente base teórica que, mais que uma bandeira, refere-se ao efetivo exercício de apropriação das estruturas subjetivas que possibilitam a atividade consciente direcionada a uma dada finalidade. Atividade consciente para o trabalho pedagógico assentado em projeto histórico revolucionário de superação das relações de produção capitalistas a serviço dos interesses da classe trabalhadora.

 

Referências

 

BARATA-MOURA, José. Ideologia e Prática. Lisboa, Pt,: Caminho, 1978.

 

BARATA-MOURA, José. Ontologias da “práxis” e idealismo. Lisboa, Pt: Caminho, 1986a.

 

BARATA-MOURA, José. Da representação à “Práxis”. Lisboa, Pt: Caminho, 1986b.

 

BARATA-MOURA, José. “Pensar aquilo que é” tarefa e problema da filosofia. Vértice, Lisboa, II Séria, n. 59, mar. abr., p. 77-81, 1994.

 

BARATA-MOURA, José. Materialismo e subjetividade – estudos em torno de Marx. Lisboa, Pt.: Avante, 1997.

 

BARATA-MOURA, José. Das “ontologias da práxis” a uma radicação ontológica da prática. In: OLIVEIRA SILVA, C. J. C. (org.) PRAXIS – Seminário Ibérico de Filosofia. Lisboa, Pt.: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 13-32., 2000.

 

BARATA-MOURA, José Materialismo e dialética, ou da ontologia em Marx. Vértice, n. 145, março-abril, p. 5-16, 2009.

 

BARATA-MOURA, José. Estudos sobre a ontologia de Hegel – ser, verdade, contradição. Lisboa, Pt: Avante!, 2010.

 

BARATA-MOURA, José. Prática: para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica. Lisboa, Pt: Colibri, 1994.

 

BARATA-MOURA, José. (Re) Pensar a dimensão científica do conhecimento, Revista HISTEDBR Online, Campinas, n. 65, p. 3-16, 2015. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8642692/10171 Acesso em: 29.06.2018.

 

BARATA-MOURA, José. O outro Kant. Lisboa, Portugal: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

 

ELZA MARGARIDA DE MENDONÇA PEIXOTO é doutora em Filosofia e História da Educação e mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR), líder do Grupo de Estudo e Investigação em Marxismo e Educação (UFBA/FACED), e editora da Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate. Realizou estudos pós-doutoral em Filosofia na Educação na Universidade de Lisboa, e na Universidade Federal do rio Grande do Sul (UFRGS).

 

E-mail: elza.peixoto@ufba.br

 

 

 

 

Recebido em: 20.10.2020

Aceito em: 12.11.2020

 

 



[1] Este artigo é o conjunto de estudos de pós-doutorado realizados na UFRGS, sob a supervisão do Prof. Dr. Alberto Reinaldo Reppold Filho.

[2] BARATA-MOURA, José. A “práxis” para Kant. In: COLÓQUIO KANT, 1981, Lisboa. Anais [...]. Lisboa: Departamento de Filosofia da Fac. de Letras da Universidade, 1982. p. 135-177; BARATA-MOURA, José. A demanda da prática: a concepção de práxis em Feuerbach. História das ideias, Coimbra, Portugal, Faculdade de Letras, v. 8, p. 399-455, 1986; BARATA-MOURA, José. Da representação à “práxis”: Itinerários do Idealismo Contemporâneo. Lisboa: Caminho, SARL, 1986b; BARATA-MOURA, José. Das “ontologias da práxis” a uma radicação ontológica da prática. In: CORREIA, Carlos João; SILVA, Paula Oliveira (org.). Seminário Ibérico de Filosofia. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2000. p. 13-32; BARATA-MOURA, José. Ideologia e Prática. Lisboa: Caminho, 1978; BARATA-MOURA, José. O horizonte prático de um ócio trabalhado. Subsídios para um estudo da “prática” em Descartes. In: SANTOS, L. R. dos; ALVES, P. M. S.; CARDOSO, A. (coord.) Descartes, Leibniz e a Modernidade. Lisboa: Colibri, 1998. p. 2-45; BARATA-MOURA, José. Ontologias da “Práxis” e idealismo. Lisboa: Caminho, 1986a; BARATA-MOURA, José. Prática: para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica. Lisboa: Colibri, 1994; BARATA-MOURA, José. Uma nota sobre a práxis em Aristóteles. In: MIRANDA, Jorge (coord.). Estudos em homenagem ao professor doutor Martim de Albuquerque: Volume I. Coimbra: FDUL/Coimbra Editora, 2010. p. 951-974.

[3] “Apesar de lidar com manifestações e representações da consciência social, a ideologia visa sempre objectivos de natureza prática”, relativos “[...] os interesses do capitalismo e do imperialismo” (BARATA-MOURA, 1978, p. 27).

[4] Em Marx: o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações. As abstrações são, portanto, conhecimentos parcelares de uma totalidade concreta.

[5] LEONTIEV, Alexis. Le mécanisme du reflet sensoriel. In: LEONTIEV, Alexis. Le développement du psychisme. Problèmes. Paris: Editions Sociales, 1976.