O PROBLEMA DA
FORMAÇÃO PRÉ-PROFISSIONAL
DAS CONDIÇÕES SUBJETIVAS DOS
PROFESSORES
PARA A PRÁTICA PROFISSIONAL- Contribuições de José Barata-Moura[1]
Elza Margarida de
Mendonça Peixoto
Universidade Federal da Bahia
Salvador, BA, Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i14.4603
O artigo explora a questão radical
subjacente à prática do ensino e ao estágio enquanto momentos da formação
pré-profissional das condições subjetivas dos professores para a prática
profissional. Defende-se que prática de ensino e o estágio
referem-se ao problema da formação com verdade, ou seja, de uma
formação que possibilite uma consciência/subjetividade que reflita
adequadamente aquilo que é a realidade. Esta é a questão de fundo da
produção do conhecimento sobre a formação de professores. E é por esta razão
que o pensar a prática do ensino e o estágio demandam uma
adequada investigação acerca do problema do conhecimento. Delimitando esta
investigação à matriz materialista e dialética, discutimos as condições
subjetivas que os professores em formação precisam desenvolver para conquistar
a correspondência entre consciência e realidade objetiva.
Palavras-chave: Formação. Prática. Professores. Verdade.
THE
PROBLEM OF PRE-PROFESSIONAL TRAINING
OF
THE SUBJECTIVE CONDITIONS OF TEACHERS
FOR
PROFESSIONAL PRACTICE - Contributions by José Barata-Moura
ABSTRACT
The
article explores the radical question underlying the practice of teaching and
internship as moments of pre-professional training in the subjective conditions
of teachers for professional practice. It is defended that teaching practice
and the internship refer to the problem of training with truth, that is, of a
training that allows an awareness / subjectivity that adequately reflects what
is reality. This is the fundamental issue of the production of knowledge about
teacher education. And it is for this reason that thinking about the teaching
practice and the internship demand an adequate investigation about the problem
of knowledge. Delimiting this investigation to the materialistic and
dialectical matrix, we discuss the subjective conditions that teachers in
training need to develop in order to achieve the
correspondence between consciousness and objective reality.
Keywords: Formation. Practice. Teachers. Truth.
EL PROBLEMA DE LA FORMACIÓN PREPROFESIONAL
DE LAS CONDICIONES SUBJETIVAS DE PROFESORES
PARA LA PRÁCTICA PROFESIONAL-Contribuciones de José Barata-Moura
El artículo explora la cuestión radical que
subyace a la práctica de la docencia y el internado como momentos de formación
preprofesional en las condiciones subjetivas del profesorado para la práctica
profesional. Se argumenta que la práctica docente y el internado se refieren al
problema de la formación con la verdad, es decir, de una formación que
posibilite una conciencia / subjetividad que refleje adecuadamente lo que es la
realidad. Este es el tema fundamental de la producción de conocimiento sobre la
formación del profesorado. Y es por ello que pensar en
la práctica docente y el internado exigen una adecuada investigación sobre el
problema del conocimiento. Delimitando esta investigación a la matriz materialista
y dialéctica, se discuten las condiciones subjetivas que los docentes en
formación necesitan desarrollar para lograr la correspondencia entre conciencia
y realidad objetiva.
Palabras clave: Formación. Práctica. Maestros. Verdad.
Introdução
Antes de tudo, cabe retomar o contexto
significativo do tema da prática a que estamos buscando nos remeter.
Tratamos da prática dos professores (o trabalho pedagógico na educação
formal básica e superior) e da expectativa (que consideramos procedente) de que
esta prática pedagógica transcorra em correspondência com aquilo
que é a realidade do trabalho pedagógico nas diferentes instâncias da
educação escolar. A prática de ensino e o estágio respondem,
portanto, à expectativa de antecipação daquilo que é a verdade do
trabalho pedagógico. Procuram responder àquela expectativa de uma formação
subjetiva (formação das condições intelectuais do professor) que corresponda,
que reflita adequadamente àquilo que é a realidade na qual ele vai atuar e com
a qual vai se confrontar. A verdade do trabalho pedagógico, é, portanto,
a condição prévia, anterior à existência dos professores em formação, na qual
pretendemos que se encontrem – com verdade, com correspondência entre consciência
e realidade – a subjetividade do professor e a realidade objetiva
exterior, anterior e independente da consciência mais ou menos correta que
o professor faça desta realidade. A prática de ensino e o estágio
referem-se, portanto, ao problema da formação com verdade, ou
seja, de uma formação que possibilite uma consciência/subjetividade que
reflita adequadamente aquilo que é a realidade. Esta é a questão de
fundo por traz do debate honesto que a produção do conhecimento sobre a
formação de professores tenta realizar. E é por esta razão que o pensar a prática
do ensino e o estágio demandam uma adequada investigação
acerca do problema do conhecimento. Como podem os professores em formação
conhecer com verdade àquilo que é a realidade? Quais os instrumentos que
os professores em formação têm que por em movimento
para uma adequada investigação acerca daquilo que é a realidade e acerca de
como nela podemos intervir?
Delimitando esta investigação à matriz
materialista e dialética, quais as condições subjetivas os professores em
formação precisam desenvolver para conquistar a correspondência entre
consciência e realidade objetiva? Em que medida a ida a campo (o experienciar –
na condição de formação – aquilo que é a realidade) possibilita produzir esta
correspondência entre consciência e realidade? Em que medida esta ida a campo pode ser rigorosamente nominada prática?
Temos buscado a resposta a estas questões nas investigações do filósofo
português José Barata-Moura[2]
acerca do tema da prática.
1. A dialética do concreto e do abstrato na compreensão
Em Ideologia e Prática, obra de
1978, Barata-Moura dedica-se à análise da função eminentemente prática da
ideologia[3].
Neste processo, na análise da “dialética do concreto e do abstrato na
compreensão”, explica:
A compreensão em geral – a própria ciência, o saber
objetivamente fundado e sistemático – nunca
se apresentam como conhecimentos etéreos, superiores aos tempos e às
sociedades, mas sim como formas determinadas – adequadas ou não, e segundo medidas
e graus diversos – de concretamente refletirem a realidade objetiva em que se
inscrevem, porque perguntam e sobre a qual exercem também, a seu modo, um dado
tipo de intervenção. Aqui se inscreve, como procurávamos fazer ver, o lugar
estrutural – mas não ultimamente determinante – da ideologia em geral
(BARATA-MOURA, 1978, p. 71).
Desenvolve, e, então, delimita-se a “missão” da
compreensão (“[...] acolher a realidade objetiva por que pergunta e
dentro da qual pergunta e [...] intentar reflecti-la
adequadamente”) e àquilo que em perspectiva materialista-dialética é o
concreto (“[...] partindo do concreto (o processo histórico objetivo) e
visando o concreto (uma compreensão adequada da realidade objectiva”):
A compreensão terá, por conseguinte, que acolher a
realidade objetiva por que pergunta e dentro da
qual pergunta e que intentar reflecti-la
adequadamente. É precisamente para o desempenho dessa missão que,
embora partindo do concreto (o processo histórico objetivo) e visando o concreto
(uma compreensão adequada da realidade objectiva), o
conhecimento não pode deixar de recorrer à abstracção
e às formas de precisão e de unificação que ela permite introduzir e apurar no
próprio processo real objetivo (BARATA-MOURA, 1978, p. 71).
Enquanto o concreto assoma como o próprio
“processo histórico objetivo” (aquilo que é fora da consciência) e uma
“compreensão adequada da realidade objectiva”
(podemos dizer um reflexo que espelha corretamente na consciência o
movimento daquilo que é o real), o abstrato assoma como
fragmentos provisórios e necessários ao entendimento:
A necessidade de “decompor” o movimento – razão de ser
destes parêntesis metodológicos – deriva daqui e exige, como vemos, uma
interpretação dialéctica, sob pena de, em vez dos
referidos efeitos de adequação inteligível à realidade dos processos, se
saldar por uma forma de os mistificar e falsificar. A abstracção,
a fixação de momentos, é indispensável à prossecução de uma qualquer teoria.
Simplesmente, jamais ela poderá deixar de ter em vista a fidelidade à
realidade objectiva de que parte e,
consequentemente, a totalidade – material e até de sentido – em que se insere. A
definição de momentos e de etapas de um processo é uma forma
necessária para o poder compreender na sua complexidade e, sobretudo, nas
contradições em que se resolve. Esses momentos, porém, não podem ser tomados
como algo de autónomo ou de independente, mas como momentos de um processo
real em devir, que necessariamente os transcende na determinada fixação ou
unilateralidade em que consistem (BARATA-MOURA, 1978, p. 71).
Anotemos que o conhecimento demanda abstrações
definidas como “[...] fixação de momentos, [...] indispensável à prossecução de
uma qualquer teoria”. É a abstração que proporciona “[...] formas de
precisão e de unificação” que permitem “[...] introduzir e apurar no próprio
processo real objetivo”. A compreensão de um processo demanda necessariamente
“[...] a definição de momento e de etapas”[4].
Mas, alerta: “Esses momentos, porém, não podem ser tomados como algo de
autónomo ou de independente”. Pelo contrário, são “momentos de um processo
real em devir, que necessariamente os transcende na determinada fixação ou
unilateralidade em que consistem” (BARATA-MOURA, 1978, p. 71).
Os momentos que a abstração – dialeticamente considerada –
delimita num processo estão objetivamente fundados e constituem uma
mediação indispensável para o apuramento da realidade objectiva ao nível da inteligibilidade. A dialéctica subjectiva,
própria dos processos do conhecimento que se estabelecem segundo instâncias
e níveis diversos de determinação, tem de velar para que a dialética objectiva seja correctamente reflectida (BARATA-MOURA, 1978, p. 72).
Mas como chegamos a estes “momentos” ou “abstrações”? A
pista está no Prefácio da 1ª educação de “O Capital”: pela análise das
minuciosidades (MARX, 1989, p. 4), que possibilita o “apanhar das múltiplas
determinações” (MARX, 1977, p. 218). A implicação objetiva em termos da
estrutura dos processos de formação de professores refere-se à delimitação das
múltiplas determinações do trabalho pedagógico que necessitamos reconhecer e
analisar para conhecer cientificamente aquilo que é o trabalho pedagógico dos
professores na educação básica (e também na educação superior).
2. Objetividade e subjetividade do conhecimento
Qual “a maneira por que ela [a ideologia] se articula com a
prática? Primeiro: “[...] a ideologia radica na prática”:
No seu sentido amplo, a ideologia corresponde a um dado
sistema de representações sociais, isto é, ao conjunto das produções da
consciência social. Por conseguinte, de um ponto de vista estritamente
gnosiológico, a ideologia afirma-se como reflexo (social) subjectivo da realidade objectiva.
Esta sua condição estrutural é decisiva para que seja possível
determinar e clarificar toda uma série de problemas e questões derivadas que de
uma maneira imediatamente desconexa se nos costuma apresentar ou oferecer à
consideração (BARATA-MOURA, 1976, p. 72-73).
Subjetivo aqui refere-se “àquilo que é próprio, conforme ou
respeitante aos sujeitos que conhecem e à sua maneira de conhecer”.
Complementa: “Toda a produção da consciência em geral é necessariamente subjectiva, no sentido de que se processa por intermédio de
formas “ideais”” (BARATA-MOURA, 1978, p. 73). Esta condição, entretanto, nem
significa que “[...] pelo facto de o conhecimento ser um reflexo subjectivo tenha de ser arbitrário”, ou não levar em conta
“[...] a realidade objectiva como seu real primordial
fundamento”; nem significa que “o conhecimento não possa ser verdadeiro
ou adequado”. Prossegue destacando que “[...] o conhecimento em geral é reflexo
subjetivo da realidade objectiva”. Isto
significa que “[...] o carácter necessariamente subjectivo
do reflexo não anula nem afasta o lugar determinante que à realidade objectiva pertence no acto de
conhecer”. Ao contrário, o carácter subjectivo do
conhecimento “[...] reclama e supõe indispensavelmente” a realidade objectiva (BARATA-MOURA, 1978, p. 73).
Na consciência, é a realidade objectiva
– existente independentemente do sujeito, com propriedades e características
determinadas – que é reflectida e apercebida, segundo
as formas próprias do sujeito que conhece, as quais, por sua vez, ao longo de
todo um processo de formação, difusão e assimilação foram sendo determinadas e
apuradas igualmente a partir do real (BARATAMOURA, 1978, p. 73).
A consciência reflecte a
realidade objetiva, mas este reflexo corresponde às “formas próprias do sujeito
que conhece” que também “foram sendo determinadas e apuradas a partir do real”.
Se todo o conhecimento remete à realidade objetiva, todo o conhecimento é
verdadeiro? À pergunta implícita na correta relação entre realidade objetiva e
consci6encia, Barata-Moura responde:
Uma correcta compreensão da relação
cognoscitiva do “objetivo” e do “subjetivo” revela-se como da maior
importância para quem quer que pretenda penetrar nestes problemas da Teoria do
Conhecimento sem vir, por outro lado, a cair tanto no idealismo tradicional ou
rejuvenescido como nessa outra forma de idealismo que são as visões
simplistas e mecanicistas do materialismo dialético que a ideologia
burguesa tanto gosta de propagandear e de fazer passar por genuínas
(BARATA-MOURA, 1976, p. 73-74).
A “correcta compreensão da
relação cognoscitiva do “objetivo” e do “subjetivo”, de que depende?
Essencialmente, em distinguir a objectividade
pensada e a objectivamente
materialmente existente (BARATA-MOURA, 1978, p. 74). Para isto, é
necessário reconhecer: que o primado do objetivo, o primado do ser,
da realidade objectiva (natural e social),
“[...] não anula a especificidade do subjectivo e das
formas por que este se expressa”, pelo contrário, “sob certas condições”,
“incorpora-as”. O professor destaca a necessidade de considerar que “há uma objectividade do pensamento”. Isto porque:
O pensamento verdadeiro é subjectivo,
no que respeita à sua forma ou modo necessário de estruturação, e
objetivo no que respeita à sua matéria (BARATA-MOURA, 1976, p.
74).
Prossegue:
O conhecimento remete sempre para as formas
“ideais” (subjectivas) porque e em que reflecte a realidade objectiva.
Estas imagens cognoscitivas, indispensáveis à determinação de um
qualquer conhecimento, reflectem
porém – ao nível e segundo as formas que lhe são próprias –, a materialidade
do objeto (BARATA-MOURA, 1976, p. 74).
Um “[...] justo reconhecimento deste carácter objetivo
e subjectivo do pensamento em geral não
nos deve, todavia, fazer incorrer em determinadas precipitações teóricas
manifestamente ilegítimas” (BARATA-MOURA, 1976, p. 74).
A teoria pensada mesmo quando verdadeira,
mesmo quando adequada ao real, mesmo quando o reflecte
corretamente, não é a prática que materializando transforma. Esta diferença
é decisiva em ordem a que todas as questões – teóricas e práticas
– decorrentes do idealismo possam ser devidamente apreciadas. O
objetivo, do mesmo modo que o prático, ocupam o polo determinante das contradições
em que intervêm. É pelo seu lado que em última análise se definem e resolvem as
situações em exame. No entanto, eles não desterram nem votam ao ostracismo o subjectivo e o teórico que em unidade dialéctica
com eles concretamente se manifestam e desenvolvem (BARATA-MOURA, 1976, p. 74).
Um primeiro conjunto de supostos precisa que um conhecimento
correto da realidade, uma teoria pensada acerca daquilo que é a
realidade, mesmo que correta, não é a realidade, mas um reflexo
na consciência daquilo que a realidade é. Um segundo conjunto de supostos
relevante para apreender daqui é que não há relação de identidade entre teoria
e prática. Isto porque, a teoria é um reflexo na consciência
daquilo que é a realidade e “mesmo quando reflecte
corretamente o real, não é a prática que materialmente transforma”. Ou
seja, a prática é ação transformadora da realidade, e,
adiantamos, demanda certo grau de engajamento do sujeito na relação com
o objeto da transformação.
3. Subjetividade
e verdade
Aprofundando-se nos problemas e na Teoria do Conhecimento,
Barata-Moura destaca que “[...] o primado da realidade objectiva
não destrói o lugar próprio das estruturas da subjectividade”,
pelo contrário “[...] reclama-o sempre que de questões de índole gnosiológica
se trata”, assim como “[...] o reconhecimento do carácter subjectivo
do reflexo cognoscitivo não o condena inexoravelmente à não verdade, à
arbitrariedade, ao relativismo ou ao agnosticismo” (BARATA-MOURA, 1978, p. 75).
Prossegue:
Apesar de necessariamente subjectivo,
o reflexo cognoscitivo pode, ou não, ser adequado à realidade objectiva que visa apreender e conhecer. Neste sentido
em que aqui estamos a empregar esta categoria do “subjetivo”, ele não se
apresenta como um adversário ou um opositor da verdade. A bem dizer, trata-se
de conceitos que funcionalmente se encontram a significar em planos diversos, a
que correspondem, como facilmente se depreende, problemas diversos. O
“subjetivo” caracteriza aqui as estruturas “ideais” do conhecimento. A verdade
concerne a adequação do conhecimento com a realidade objectiva. O carácter de verdadeiro é, por conseguinte, não
algo que elimina a condição subjetiva do reflexo cognoscitivo
mas sim algo que, na vigência de determinadas condições – nomeadamente, a adequação
com o processo real objetivo –, o qualifica convenientemente. O verdadeiro
elimina, sim, ou é incompatível com uma outra acepção para o “subjectivo”, que o dá como algo de referente ao “subjectivismo”. Nesta outra utilização possível do
vocábulo, o carácter de subjectividade de um
conhecimento prende-se não com a forma necessária (estrutural) do seu processamento mas, justamente, com a falsificação da
sua natureza própria, que impõe o primado da realidade objectiva. O subjetivismo é uma forma de idealismo que subleva
e absolutiza os elementos subjectivos
do acto de conhecer, desprezando ou destorcendo
o modo próprio da relação dialética do objetivo e do subjectivo,
em que ao objectivo compete o papel determinante
(BARATA-MOURA, 1978, p. 75).
O problema da incompatibilidade entre a verdade e o
subjetivismo entendido como “a falsificação da sua natureza própria que
impõe o primado da realidade objectiva” tem
particular importância para nós (BARATA-MOURA, 1978, p. 75). Isto
por que o subjetivismo “[...] subleva e absolutiza
os elementos subjectivos do acto
de conhecer”, rompendo a necessária “[...] relação dialéctica
do objetivo e do subjectivo, em que ao objetivo
compete o papel determinante” (BARATA-MOURA, 1978, p. 75).
Desta observação teórica resultam duas questões relevantes
para nós, no processo de pensar a prática pré-profissional: (a) em que
medida a ênfase na experiência presente nas proposições de prática de ensino
e estágio estariam contribuindo para uma sublevação e absolutização dos
“[...] elementos subjectivos do acto
de conhecer”, quando estas proposições consideram ser suficiente o sujeito
cognoscente entrar em contato com a realidade da prática de ensino,
e pela experiência do contato com a realidade, conhecer aquilo que é a
verdade sobre o trabalho pedagógico?, (b) a experimentação é suficiente para
produzir as estruturais ideais do conhecimento, a subjetividade necessária ao
adequado entendimento daquilo que é a realidade? Quais os requisitos, quais
estruturas ideais do conhecimento necessárias para que a subjetividade conheça
a realidade objetiva?
4. Radicação prática do conhecimento: reflexo de
um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas
As demandas por apreensão das relações em que se inscreve o
trabalho pedagógico do professor, prosseguimos nas pistas deixadas por
Barata-Moura (Ideologia e Prática, 1978) acerca da relação sujeito
objeto na perspectiva da Concepção Materialista e Dialética da História. Neste
aspecto, no que se refere à tese da radicação prática do conhecimento, diz-nos
o autor:
[...] as produções da consciência social em geral não
aparecem, não se precisam, nem se expressam, por mero acaso, pelo
desenvolvimento de quaisquer virtualidades inerentes à constituição originária
do espírito ou pela genial decisão voluntarista de instaurar ou de instalar um
objeto ou um correlato para a capacidade des-vendadora
da Humanidade indagante. Os produtos da
consciência social em geral correspondem à realidade de um determinado viver, que
os transcende e sustenta, e que eles de alguma maneira reproduzem, quer
quando simplesmente visam apreendê-la que mesmo quando, lançando-se na órbita
do possível, aspiram superá-la (BARATA-MOURA, 1978, p. 76).
Enquanto produto da consciência social, a produção do
conhecimento social em geral corresponde a um determinado estágio de
desenvolvimento da produção da existência, que compreende as relações que os
homens estabelecem entre si no processo de produção da vida condicionada por
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas. Como bem dito:
“correspondem à realidade de um dado viver”.
Este é o fundamento primeiro de tudo que ao nível da
consciência aparece como representação. Este é o fundamento primeiro de tudo
quanto ao nível da existência humana, de algum modo, aparece como
“experiência”, como “vivência”, como “saber”. A condição humana (social) é a de
seres mergulhados no mundo – natural e social – possuidor de uma realidade objectiva bem determinada. O mundo em que estamos imersos e
de onde emergimos ou de onde nos destacamos – já que a individualidade não é uma ilusão, mas
apresenta igualmente um fundamento objetivo – não é um mero universo de
fantasmas ou de sonhos, de simples projeções “ideais” de uma qualquer
imaginação que, à força, se pretende hipostasiar em
correlato de consciência. O ser nunca é “puro”; é sempre concreto
(BARATA-MOURA, 1978, p. 77).
A consciência é possibilidade de um ser consciente. Ou, com
Marx, “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser
social que, inversamente, determina a sua consciência” (MARX, 1977, p. 24).
Barata-Moura desenvolve: “Em que consiste, porém, este ser
concreto que à consciência a cada momento se oferece como objecto
a reflectir e ao trabalho como campo ou horizonte de
exercício?” (BARATA-MOURA, 1978, p. 77).
É o ser da Natureza e da Sociedade, é o ser da História, o
ser do processo de desenvolvimento universal da matéria que nos últimos
milhares de anos assume a forma decisiva da prática, da transformação
social da Natureza por intermédio do trabalho, nos seus diferentes modos, graus
e níveis (BARATA-MOURA, 1978, p. 77).
Também à consciência dos professores – aqueles que
empreendem o trabalho pedagógico em contínuo movimento e transfrormação
– se oferece como objeto a reflectir aquilo que é
o ser em sua totalidade. De que está a falar Barata-Moura? Da totalidade
das relações em que se inscreve aquilo que é o ser humano: “ser da Natureza e
da Sociedade, é o ser da História, o ser do processo de desenvolvimento universal
da matéria que nos últimos milhares de anos assume a forma decisiva da prática,
da transformação social da Natureza por intermédio do trabalho, nos seus
diferentes modos, graus e níveis” (BARATA-MOURA, 1978, p. 77). Esta dimensão de
totalidade rege o trabalho pedagógico e deve reger a formação para o trabalho
pedagógico, na qual se inscreve a experimentação pedagógica
pré-profissional. Prática?
5. Implicações da prática no reflexo sensorial
Ainda tomando como base para a nossa reflexão, a obra Ideologia
e Prática (1978), encontramos que: “o reflexo da realidade objectiva na consciência dos homens não é um reflexo
simplesmente mecânico ou linear” (BARATA-MOURA, 1978, p. 78). Aqui chegamos ao
cerne das questões que nos inquietam: “[...] o processo do conhecimento não se
apresenta como pura receptividade ou pura passividade perante o objecto”. Contrariamente às teses empiristas, não é
possível reduzir “o fenómeno sensitivo, mesmo o elementar, ao aspecto aferente,
inicial, da estimulação exterior dos órgõs
receptivos”. Não é possível separar o conhecimento sensível da “atividade, da
prática, com a qual constitui uma indissociável totalidade dialética”
(BARATA-MOURA, 1978, p. 78).
Apoiado nas investigações da psicologia contemporânea,
especialmente em Leontive[5],
defende que “o cabal desvelamento do reflexo sensorial”, possibilita a “plena
confirmação experimental” do “papel verdadeiramente central desempenhado pelo
primado prático da realidade material” (BARATA-MOURA, 1978, p. 79-80):
A sensação não se limita a uma mera recepção, passiva,
decorrente de um processo exclusivamente centrípeto. O nascimento de uma
sensação exige, igual e constitutivamente, a existência de determinadas conexões
de retorno que vão do centro à periferia. A actividade
do receptor é, deste modo, também, um elemento fundamental na
determinação da totalidade concreta de que a percepção ou a experiência
imediata em geral vêm resultar (BARATA-MOURA, 1978, p. 79).
Destacando que “os resultados mais significativos das
investigações de Sétchénov” – relatados por Leontiev
– se revestem “da maior importância para uma teoria materialista do
conhecimento”, Barata-Moura cita:
Antes de “ser dada” na sensação, a realidade concreta
manifesta-se como condição da existência prática, como objeto da adaptação do
organismo que se realiza nos seus contatos reais com ela. [...] Sem a
participação do movimento, as nossas sensações e as nossas percepções não
teriam a qualidade de objectividade, isto é,
de relação aos objetos do mundo exterior, a qual somente faz deles fenómenos
psíquicos (LEONTIEV, citado por BARATA-MOURA, 1978, p. 80).
Na “relação dialética do objectivo
e do subjectivo”, destaca o autor, “o papel
determinante e o fundamento material das qualidades objectivas
das coisas não anulam nem a actividade do sujeito
[...] nem a contribuição unificadora de diferentes elementos formais”. O
reflexo cognoscitivo não é linear (BARATA-MOURA, 1978, p. 81).
7. Unidade do sensível e do racional
Na “atividade cognoscitiva concreta”, “o conhecimento é
sempre um fenómeno de síntese” e “processa-se sempre numa órbita de concreto”,
e é só sob este “ponto de vista de concreção” que o pensamento se pode
manifestar naquilo que propriamente é”. Explica que “o conhecer se desenvolve
sempre no quadro de uma unidade do sensível e do racional”, que “não são
dois graus (independentes ou não) do conhecimento, mas dois momentos
constitutivos presentes em todas as formas e etapas do processo cognoscitivo”,
participando “ambos, necessária e concretamente, no nosso conhecimento”
(BARATA-MOURA, 1978, p. 82).
É então que Barata-Moura nos fornece elementos que nos
possibilitam avançar para a apreensão de uma perspectiva materialista e
dialética do processo da formação de professores para a prática do trabalho
pedagógico. Recorda que “O sensível diz efetivamente respeito ao reflexo
imediato da realidade objectiva”, que
“aparece-nos sempre enquadrado por elementos racionais”. Estes elementos
racionais “também tiveram a sua génese (quer no plano material social quer no
plano subjectivo individual)” que “sempre remetem
para uma filiação prática, a partir da qual foram sendo constituídos” (BARATA-MOURA,
1978, p. 82).
A qualquer nível em que seja considerado o conhecimento
envolve sempre um apuramento racional de dados dos sentidos, a que,
nomeadamente, a prática e a linguagem não são estranhas. É justamente
nesta medida que o conhecimento sensível se manifesta formalmente como
pensamento, atendendo a que o homem exprime sob a forma de juízo (os juízos de
percepção) os resultados do conhecimento da realidade objectiva
que os sentidos lhe fornecem.
Destaca “A mediação linguística e conceptual” que
“revela-se sempre [...] muito importante”, entretanto “apesar de interveniente,
não costuma ser tematizada”. Justamente “a não tematização do papel da prática
e da linguagem, em geral, conduz ou reforça a tomada de posições imediatistas
relativamente ao carácter “directo” e passivo da
experiência” no processo do conhecimento (BARATA-MOURA, 1978, p. 82).
Explica:
A sensação corresponde a uma dada determinação
cognoscitiva que apenas no quadro de uma totalidade concreta de
elementos se verifica. O objectivo e o subjectivo, o activo e o passivo,
o social e o individual, etc., encontram-se necessariamente na referida
totalidade, nos termos da unidades dialéctica em
e por que se manifestam enquanto modalidades reais da contradição que atravessa
e constitui a própria realidade objectiva
(BARATA-MOURA, 1978, p. 82).
É esta totalidade concreta de elementos que entram em
movimento no processo da prática a que devemos ter atenção.
8. Conhecimento,
viver concreto dos homens, caráter prático da existência social e trabalho
Entre estes elementos, os “dispositivos conceituais, a
linguagem, a prática influem efetivamente no apuramento do reflexo cognoscitivo
em termos concretos”. Operam como “estruturas de mediação que desempenham um
papel relevante ao nível da formulação e da expressão da própria experiência”
(BARATA-MOURA, 1978, p. 84).
Sobre a experiência, nos diz:
[...] Esta nunca é um acto puro
de mera transparência perante um objeto que univocamente se nos oferece e des-venda. A experiência é eminentemente sintética, mesmo
nos seus níveis elementares, e nessa síntese intervêm, decisiva e
determinantemente, os factores materiais que
definem a implementação social e histórica (concreta) de todo o acto cognoscitivo (BARATA-MOURA, 1978, p. 85).
Mas quais são estes “[...] factores
materiais que definem a implementação social e histórica (concreta) de todo o acto cognoscitivo”? As relações estabelecidas pelo
sujeito cognoscente com o mundo com o qual se encontra no processo do
conhecimento:
O conhecimento nunca é desvelamento do real por parte de
uma consciência etérea, mas função totalizante de um ser concreto que
o assume e protagoniza. A consciência é sempre consciência de alguma
coisa – o seu termo intencional – mas também consciência de alguém,
isto é, de um ser determinadamente situado no mundo, o mesmo é dizer,
num dado tempo e lugar, ocupando um determinado posto na estrutura geral do
modo de produção de uma dada sociedade (BARATA-MOURA, 1978, p. 85).
Estas relações objetivas estabelecidas pelo sujeito
cognoscente (alguém) com aquilo que é o foco da atenção (alguma coisa), não
paira etéria, mas é o movimento de um ser concreto
(no nosso caso, o professor em formação), “um ser determinadamente situado
no mundo”, “ocupando um determinado posto na estrutura geral do modo de
produção de uma dada sociedade”. Estes elementos objetivos condicionam
aquilo que é a experimentação pedagógica no processo de formação.
Desenvolveremos mais esta questão adiante.
Continuando, Barata-Moura expõe os nexos entre o
gnosiológico e o ontológico:
Esta unidade fundamental do gnosiológico e do ontológico,
esta radical implantação ontológica do gnosiológico, esta emergência dos
fenómenos da consciência do seio de uma matéria complexamente organizada,
este mergulhar originário do conhecimento no viver concreto dos homens, das
classes e das sociedades, definem uma perspectiva fundamental para
podermos equacionar convenientemente todos estes problemas do reflexo subjetivo
da realidade objectiva em que o conhecimento consiste
(BARATA-MOURA, 1978, p. 85).
Esta “perspectiva fundamental” possibilita “compreender
adequadamente a relação existente entre os domínios do gnosiológico e do
ontológico, bem como a instância que nela se apresenta como
estruturalmente determinante” (BARATA-MOURA, 1978, p. 85). Qual é esta
perspectiva? Barata-Moura desenvolve recordando que “[...] A existência social
é sempre e também intervenção, transformação da
Natureza, é sempre prática”. Aqui, “[...] o trabalho se apresenta como um fator
indispensável à plena determinação e compreensão do concreto em cujo horizonte
todo e qualquer conhecimento se define e materializa” (BARATA-MOURA, 1978, p.
85). Pois,
[...] A existência social é sempre e
também intervenção, transformação da Natureza, é sempre prática. É neste
contexto que o trabalho se apresenta como um fator indispensável à plena
determinação e compreensão do concreto em cujo horizonte todo e qualquer
conhecimento se define e materializa. [...] Pelo trabalho o homem actua socialmente sobre a Natureza e transforma-a, ao longo
de um processo em que a produção dos meios necessários para a subsistência
social se vai desenvolvendo de acordo com uma dialética que lhe é própria e
que, em última análise, é determinada pelas diferentes formas que a contradição
entre o estádio de desenvolvimento das forças produtivas e o sistema das
relações de produção vigente numa dada sociedade vai assumindo. Ao transformar
a natureza o homem está igualmente a transformar-se a si próprio, tanto de um
ponto de vista social como de um ponto de vista individual. O progresso social,
as condições históricas concretas da existência social – tanto a um nível
propriamente material como espiritual – não são adequadamente compreensíveis
fora desses parâmetros (BARATA-MOURA, 1978, p. 86).
Este movimento prático de transformação da natureza com a
finalidade de manter-se vivo, “leva o homem a transformar-se enquanto ser que reflecte a realidade objectiva”,
afetando decisivamente e determinando “[...] a maneira por que esse reflexo se
processa e exprime” (BARATA-MOURA, 1978, p. 86).
Esta transformação do mundo e de si próprio que o homem em
sociedade leva à cabo reflete-se ela própria também ao
nível de suas estruturas históricas cognoscitivas. O trabalho, a prática, em
que o viver concretamente consiste, interferem com os aparelhos e
dispositivos que a humanidade tem ao se dispor para conhecer e transformar
a realidade objectiva em que ativa e socialmente se
inscreve (BARATA-MOURA, 1978, p. 86).
Remetendo-se a citação de Todor
Pavlov, “sobre a base do desenvolvimento dos instrumentos de trabalho”,
a humanidade “transforma (desenvolve e aperfeiçoa) os órgãos que lhe servem
para a percepção sensível e para reagir objectivo-sensível
e as suas [respectivas] funções” (BARATA-MOURA, 1978, p. 86). Explica
que
As modificações ao nível dos próprios dispositivos
intervenientes na elaboração cognoscitiva da experiência, que ao longo do
processo histórico global se vão verificando, representam alterações
significativas nos quadros formais do conhecimento. Estas alterações
vêm, aliás, a trazer para primeiro plano de consideração, o papel que cabe ao
estatuto objectivo – prático social – dos sujeitos
que conhecem na determinação final dos produtos de sua consciência. A posição
que se ocupa no aparelho produtivo, em termos singulares e de classe,
reveste-se da maior importância para o apuramento concreto das formas
ideológicas que povoam a consciência dos homens e constituem elemento e fator
de mediação nas relações que estabelecem, tanto entre si como com a realidade
material (BARATA-MOURA, 1978, p. 86-87).
9. O primado da realidade objetiva no
conhecimento
Barata-Moura enfatiza que
[...] no horizonte das relações fundamentais que a
consciência guarda com o ser humano concreto (individual e social), o conhecimento,
em geral, é sempre um fenómeno que se desenrola em estreita articulação com a
existência social real, com o viver concreto dos homens. Não se trata, pois, de
modo algum, de processos puramente formais, de estruturas funcionais abstractas comportando-se indefinidamente no quadro de um
esquema meramente repetitivo, em inteira independência e autonomia
relativamente à realidade material (BARATA-MOURA, 1978, p. 230).
O primado da realidade objetiva na problemática da
gnosiologia implica reconhecer “as condições concretas em que o próprio
processo do conhecimento tem lugar”, integrado “no processo da realidade
objetiva – natural e social – em que constitutiva e estruturalmente se encontra
integrado (BARATA-MOURA, 1978, p. 230).
A expectativa de que a inclusão da “prática” na formação
dos professores possibilite conhecer efetivamente aquilo o que é a realidade do
trabalho pedagógico carece do reconhecimento alargado daquilo que é a realidade
objetiva na qual se encontram com passado e no presente professores em
formação, professores já formados, estudantes e instituições escolares com a finalidade prática de
formação pré-profissional.
Pensamos ser interessante, ainda, aprofundar acerca daquilo
que é a prática.
10. A categoria marxista da prática
Barata-Moura recupera – na obra que estamos utilizando como
base das questões que levantamos neste trabalho – a “[...] acepção
marxista-leninista” segundo a qual a prática “[...] modifica, transforma ela
própria a realidade objetiva”. O autor destaca que “não é suficiente
determinar a prática como uma transformação de “uma matéria-prima” (cuja
natureza não se esclarece devidamente), mediante um “trabalho” (cujo carcácter não é igualmente e inequivocamente definido)”. O
aspecto decisivo é a “determinação do carácter objetivo da prática”
(BARATA-MOURA, 1978, p. 251). Recorrendo a Heinrich Opitz:
O conceito marxista de práxis relaciona-se com o
conjunto do processo, no qual a humanidade transforma a realidade objectiva. A práxis é o processo de vida material da
sociedade, em que a humanidade a humanidade permanentemente se mantém e
desenvolve. À práxis pertencem, por exemplo, a produção, o trabalho,
assim como a luta de classes, a atividade política, a formação de condições de
vida e de trabalho socialistas e outras actividades
(OPITZ, citado por BARATA-MOURA, 1978, p. 252).
É por esta razão que o “trabalho em que a prática consiste
não é, por conseguinte, um trabalho espiritual ou especulativo”, pelo
contrário, é “um trabalho que “objectivamente,
materialmente, transforma a própria realidade objectiva”
(BARATA-MOURA, 1978, p. 252). Não está a falar de “um projeto, um plano, uma
ideia ou uma concepção”, mas do “próprio processo social de transformação da
natureza”. Defende:
É pela e na prática que, dia a dia, se vão materializando
grande parte dos processos que constituem e integram a história concreta da
manifestação real. A prática é, efetivamente, um momento e uma componente essenciais do devir contraditório da matéria.
Identifica-se com a mediação social objectiva do real
(BARATA-MOURA, 1978, p. 253).
“Só há fronteiras, porque mais terra há para
além da raia”
(José Barata-Moura, 1994)
Em primeiro lugar, é fundamental reconhecer que não há
formação fora da prática, no sentido “[...] dos processos que constituem e
integram a história concreta da manifestação real” que são movidos “pela
e na prática” (BARATA-MOURA, 1978, p. 253). Professores em formação não
pairam soltos no ar! Na formação social brasileira, se tornam professores em
formação em um contato contínuo com aquilo que é a “manifestação real” da
política educacional brasileira desde a educação básica até o ensino superior –
entretanto, formam-se alienados “dos processos que constituem e integram a
história concreta da manifestação real”.
Realizamos a inserção dos jovens professores na realidade
da política educacional brasileira, quando os colocamos inteiramente a par (por
processos que incluem rigorosos estudo teóricos das fontes de crítica à
realidade) e em perspectiva materialista e dialética destes processos
históricos e de sua objetividade concreta. Compõem certamente esta formação as
disciplinas que buscam retratar em perspectiva materialista e dialética a
história da política educacional brasileira, considerando a luta de classes e a
disputa pela direção da formação dos professores (por prolongamento, o controle
ideológico da classe trabalhadora que frequenta a escola) em um modo de
produção marcado pela acumulação privada e pela luta de classes em disputa pelo
controle das forças produtivas. Mas está absolutamente correta a máxima do
movimento docente que diz “professores lutando, também estão ensinado”!
Os professores em formação aproximam-se do trabalho
pedagógico quando são chamados a reconhecer as lutas travadas pelos professores
da educação básica e do ensino superior por carreira, salário e condições de
trabalho e mais verbas públicas para a educação pública. Quando são chamados a
participar das organizações estudantis em todos os níveis para organizar-se em
luta por acesso e permanência a uma escola e a uma universidade pública e
gratuita!! Aqui encontra-se a dimensão política da prática – na qual nenhum de
nós está em estado de espera, sobre a qual nenhum de nós pode reivindicar
neutralidade – que de forma alguma depende da experiência de estar na escola
básica, de onde, aliás, os professores em formação já vieram. Aqui, o movimento
de ocupação das escolas é expressão objetiva de um processo prático de
intervenção com vistas a operar transformação material na luta de classes em
disputa pela educação da classe trabalhadora brasileira. Planejar a formação
durante estes processos de luta tem que ter em vista garantir a fundamentação
teórica e histórica que permita aclarar o que está em questão numa determinada
conjuntura de lutas.
Pela prática de ensino e pelo estágio supervisionado, os
professores em formação estão em prática quando experimentam o trabalho
pedagógico em suas múltiplas determinações. Esta experimentação passa sim (a)
pela aprendizagem crítica de proposições pedagógicas (apanhadas em seus
pressupostos ontológicos, gnosiológicos, axiológicos e teleológicos); (b) pelo
exercício do planejamento do ensino que ponha em movimento as contradições
entre (i) as possibilidades e os limites de uma proposição, (ii) o efetivo experimento pedagógico (supervisionado) de
seleção do conhecimento e sistematização metodológica dentro de determinadas
condições objetivas presentes na escola em termos de espaço e tempo disponíveis
para o ensino; mas, essencialmente, (c) passa pelo efetivo encontro com os
sujeitos da aprendizagem – indivíduos realmente existentes, inseridos em
realidades profundamente contraditórias, em relações tão mais complexas quão
mais periféricas se encontram – e os sujeito coletivo do trabalho pedagógico
(composto pela equipe de professores e todo o pessoal que atua praticamente no
chão das escolas). Neste momento têm que entrar em movimento a constatação
daquilo que é a realidade da política educacional no chão da escola enquanto
campo do trabalho pedagógico dos professores, tendo em vista a crítica daquilo
que a escola vem sendo nos limites das relações de produção capitalistas. Aqui,
a dimensão prática enquanto experimento só pode ser rigorosamente transformação
material quando garantir o efetivo encontro entre a comunidade escolar e a
instituição formadora promovendo movimento e mudança em ambas as instituições
envolvidas no processo, coletivamente orientadas para uma atividade consciente
direcionada à finalidade de aprimorar a formação da classe trabalhadora.
Falamos de um processo marcado por contradições e conflitos que demandam
enraizamento efetivo da instituição formadora na realidade.
Por fim, no âmbito da formação de professores, a dimensão
da prática como trabalho é efetivamente expressão máxima do trabalho
alienado e estranhado que urge fazer esclarecer no processo da formação e
derrubar no âmbito das disputas de uma política educacional a serviço dos interesses
dos trabalhadores. Aqui, encontramos a expressão máxima de uma política
educacional que antecipa a exploração do trabalho dos professores em formação,
na medida em que, respondendo a uma perspectiva liberal e ultraliberal de
políticas sociais e educacionais, exclui do acesso ao trabalho milhares de
especialistas no trabalho educativo e impõe a estudantes em formação o trabalho
precário na ausência de direitos trabalhistas, incluindo estabilidade, salário,
condições de trabalho. É a face mais dura da prática a que são submetidos os
professores em formação e deve ser amplamente refutada e recusada por toda a
categoria docente e instituições educacionais.
Nossa abordagem do problema da prática visa evidenciar que
a experiência de campo, por si, não é suficiente para garantir aos professores
este entendimento e este movimento. Há uma realidade exterior objetiva que é
exigente quanto aos recursos subjetivos necessários para apreendê-la de forma
conscientemente ativa, como totalidade concreta. Para nós, o desenvolvimento
dos instrumentos e processos necessárias à conquista de uma consciência de
classe revolucionária são absolutamente necessários, mas são constitutivos e
demandam que esteja em processo uma revolução dirigida por uma classe com
consciência das cadeias radicais que necessita superar. Isto ficou interditado
nos períodos de conciliação de classe e é em mares tempestuosos que emergimos
em luta pelo futuro que este desafio se coloca.
Esperamos ter desenvolvido argumentos suficientes para
evidenciar que a perspectiva materialista e dialética da prática (A) não
autoriza o enfoque pragmático e o empirismo que fundamentam a perspectiva que
hegemoniza a legislação brasileira, ao mesmo tempo em que (B) oferece
fundamentos para a adequada e correta reflexão sobre (a) aquilo que é a
prática; (b) aquilo que a prática de ensino e o estágio demandam como processos
em formação quando está em questão a perspectiva materialista e dialética.
Nesta direção, estamos chamados a estabelecer um programa
para a prática de ensino e o estágio supervisionado que considere – em rigorosa
crítica à tese da prática como experiência (que oculta e sustenta as políticas
neoliberais de fragilização da formação e do trabalho dos professores) – as
possibilidades e os limites dos experimentos nestes componentes curriculares.
Sim, porque no sentido rigoroso, é de experimentos de trabalho pedagógico que a
prática pré-profissional na formação de professores trata. Mas são experimentos
que compõem efetivamente os processos de transformação material (a) daquilo que
é o ser em relações de formação; ( b)
daquilo que são as relações nas quais estas relações de formação se movimentam;
(c) dos espaços nos quais estas relações se movimentam; (d) das teorias, dos
instrumentos, dos métodos e das técnicas de formação.
A tarefa dos materialistas dialéticos é garantir que este
movimento ocorra como atividade consciente direcionada à finalidade previamente
determinada, que põe no centro da formação pré-profissional o próprio sujeito
que é chamado a ver as lutas que estão em processo na conjuntura. Trata-se de
reconhecer que as condições objetivas vividas por todos aqueles que participam
das relações de formação encontram-se determinadas pelas relações de produção
capitalistas – meta que demanda o domínio dos fundamentos explicativos das
demandas e lutas travadas nestas relações de produção, que incidem diretamente
na vida escolar em seu amplo espectro. Trata-se de reconhecer que as classes
dominantes que controlam estas relações de produção vão fazer todo o possível
para ocultar o seu domínio e impedir que se desenvolvam possibilidades de
superação destas relações. Este reconhecimento demanda consistente base teórica
que, mais que uma bandeira, refere-se ao efetivo exercício de apropriação das
estruturas subjetivas que possibilitam a atividade consciente direcionada a uma
dada finalidade. Atividade consciente para o trabalho pedagógico assentado em
projeto histórico revolucionário de superação das relações de produção
capitalistas a serviço dos interesses da classe trabalhadora.
BARATA-MOURA, José. Ideologia e Prática. Lisboa, Pt,:
Caminho, 1978.
BARATA-MOURA, José. Ontologias da “práxis”
e idealismo. Lisboa, Pt: Caminho, 1986a.
BARATA-MOURA, José. Da representação à “Práxis”. Lisboa, Pt: Caminho, 1986b.
BARATA-MOURA, José. “Pensar
aquilo que é” tarefa e problema da filosofia. Vértice, Lisboa, II Séria, n. 59, mar. abr., p. 77-81, 1994.
BARATA-MOURA, José. Materialismo e subjetividade – estudos
em torno de Marx. Lisboa, Pt.: Avante, 1997.
BARATA-MOURA, José. Das “ontologias da práxis” a uma
radicação ontológica da prática. In: OLIVEIRA SILVA, C. J. C. (org.) PRAXIS –
Seminário Ibérico de Filosofia. Lisboa, Pt.: Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 13-32., 2000.
BARATA-MOURA, José Materialismo e dialética, ou da
ontologia em Marx. Vértice, n. 145, março-abril, p. 5-16, 2009.
BARATA-MOURA, José. Estudos sobre a ontologia de Hegel –
ser, verdade, contradição. Lisboa, Pt: Avante!, 2010.
BARATA-MOURA, José. Prática: para uma aclaração do seu
sentido como categoria filosófica. Lisboa, Pt: Colibri,
1994.
BARATA-MOURA, José. (Re)
Pensar a dimensão científica do conhecimento, Revista HISTEDBR Online,
Campinas, n. 65, p. 3-16, 2015. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8642692/10171 Acesso em: 29.06.2018.
BARATA-MOURA, José. O
outro Kant. Lisboa, Portugal: Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa, 2007.
ELZA MARGARIDA DE MENDONÇA PEIXOTO é doutora
em Filosofia e História da Educação e mestre em Educação Física pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), professora da Faculdade de Educação e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR),
líder do Grupo de Estudo e Investigação em Marxismo e Educação (UFBA/FACED), e
editora da Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate. Realizou estudos pós-doutoral
em Filosofia na Educação na Universidade de Lisboa, e na Universidade Federal
do rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail:
elza.peixoto@ufba.br
Recebido em: 20.10.2020
Aceito em: 12.11.2020
[1] Este artigo é o conjunto de estudos de pós-doutorado realizados na UFRGS, sob a supervisão do Prof. Dr. Alberto Reinaldo Reppold Filho.
[2] BARATA-MOURA, José.
A “práxis” para Kant. In: COLÓQUIO KANT, 1981, Lisboa. Anais
[...]. Lisboa: Departamento de Filosofia da Fac. de Letras da
Universidade, 1982. p. 135-177; BARATA-MOURA, José. A demanda da prática: a concepção de práxis em Feuerbach. História das ideias, Coimbra, Portugal,
Faculdade de Letras, v. 8, p. 399-455, 1986; BARATA-MOURA,
José. Da representação à “práxis”: Itinerários
do Idealismo Contemporâneo. Lisboa: Caminho, SARL, 1986b; BARATA-MOURA,
José. Das “ontologias da práxis” a uma radicação ontológica da prática. In:
CORREIA, Carlos João; SILVA, Paula Oliveira (org.). Seminário Ibérico de
Filosofia. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2000. p.
13-32; BARATA-MOURA, José. Ideologia e Prática. Lisboa: Caminho, 1978; BARATA-MOURA,
José. O horizonte prático de um ócio trabalhado. Subsídios para um estudo da
“prática” em Descartes. In: SANTOS, L. R. dos; ALVES, P. M. S.; CARDOSO,
A. (coord.) Descartes, Leibniz e a Modernidade. Lisboa: Colibri, 1998.
p. 2-45; BARATA-MOURA, José. Ontologias da “Práxis” e idealismo. Lisboa:
Caminho, 1986a; BARATA-MOURA, José. Prática: para uma aclaração do seu
sentido como categoria filosófica. Lisboa: Colibri, 1994; BARATA-MOURA, José.
Uma nota sobre a práxis em Aristóteles. In: MIRANDA, Jorge (coord.). Estudos
em homenagem ao professor doutor Martim de Albuquerque: Volume I. Coimbra:
FDUL/Coimbra Editora, 2010. p. 951-974.
[3] “Apesar de lidar com manifestações e representações da consciência
social, a ideologia visa sempre objectivos de
natureza prática”, relativos “[...] os interesses do capitalismo e do imperialismo”
(BARATA-MOURA, 1978, p. 27).
[4] Em Marx: o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas
determinações. As abstrações são, portanto, conhecimentos parcelares de uma
totalidade concreta.
[5] LEONTIEV, Alexis. Le mécanisme du reflet sensoriel.
In:
LEONTIEV, Alexis. Le développement du psychisme. Problèmes. Paris: Editions Sociales, 1976.