MEDICALIZAÇÃO E DISCURSO UNIVERSITÁRIO:
por uma política de cuidado e escuta do sujeito na educação
EDITORIAL
Maria Angélica Augusto de Mello Pisetta
Universidade Federal Fluminense
Niterói, RJ, Brasil
DOI:
https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.47558
RESUMO
Pretendemos discutir a prevalência do discurso médico na educação – da escola à universidade – como dispositivo de controle e exclusão do sujeito - presente nas demandas de medicalização de transtornos mentais e de aprendizagem, bem como os condicionantes econômicos e políticos determinantes desse fenômeno. Para tanto, trataremos da intervenção do discurso médico e da naturalização e medicalização dos fenômenos psíquicos, movidos pelo objetivo de problematizar o sofrimento psíquico na escola. A questão central de nossa discussão diz respeito à dimensão política do sofrimento na escola, esse que encontra como via principal de sustentação a medicalização. Nossa argumentação pontua que, na contramão desse modo de gozar, o sofrimento faz pensar sempre numa história e num enquadramento social e político que precisa ser tematizado no enfrentamento das práticas escolares cotidianas.
Palavras-chave: Medicalização. Discurso Universitário. Sujeito. Educação. Psicanálise em Extensão.
MEDICALIZATION AND UNIVERSITY DISCOURSE:
for a policy of care to the subject in education
ABSTRACT
We intend to discuss the prevalence of medical discourse in education - from school to university - as a device to control and exclude the subject - present in the demands of medicalization of mental and learning disorders, as well as the economic and political conditions that determine this phenomenon. For this, we will deal with the intervention of medical discourse and the naturalization and medicalization of psychic phenomena, driven by the objective of problematizing psychological suffering at school. The central issue of our discussion concerns the political dimension of suffering at school, which finds medicalization as the main means of support. Our argument points out that, in the opposite direction of this way of enjoying, suffering always makes us think of a history and a social and political framework that needs to be addressed in the face of everyday school practices.
Key-words: Medicalization. University Speech. Subject. Education. Psychoanalysis in Extension
MEDICALIZACIÓN Y DISCURSO UNIVERSITARIO:
por una política de atención y escucha del sujeto en la educación
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RESUMEN
Pretendemos discutir la prevalencia del discurso médico en la educación --de la escuela a la universidad-- como dispositivo para controlar y excluir al sujeto, presente en las demandas de medicalización de los trastornos mentales y del aprendizaje, así como las condiciones económicas y políticas que determinan este fenómeno. Para ello, abordaremos la intervención del discurso médico y la naturalización y medicalización de los fenómenos psíquicos, impulsada por el objetivo de problematizar el sufrimiento psicológico en la escuela. El tema central de nuestra discusión se refiere a la dimensión política del sufrimiento en la escuela, que encuentra en la medicalización el principal medio de apoyo. Nuestro argumento señala que, en sentido contrario a esta forma de disfrutar, el sufrimiento siempre nos hace pensar en una historia y un marco social y político que hay que abordar en el enfrentamiento de las prácticas escolares cotidianas.
Palabras clave: Medicalización. Discurso Universitario. Sujeto. Educación. Psicoanálisis en Extensión.
Introdução
“Quem sabe que o tempo está fugindo, descobre subitamente a beleza única do momento que nunca mais será” (Rubem Alves, 2016).
Muitas situações clínicas e escolares podem ser convocadas como auxiliares no encaminhamento das questões que levantaremos aqui, mas vamos nos ater à análise de três encontros realizados por nós com pós-graduandos em Educação, discutindo livremente o sofrimento oriundo da pandemia e do distanciamento social, ocorrido em virtude do novo coronavírus. Propomos, durante os meses de julho e agosto de 2020, como atividade vinculada a projeto de extensão e pesquisa1, uma experiência de condução de dispositivo coletivo2 em que a falta de respostas e de direções temáticas coincidisse com a experiência coletiva de perdas e suspensão do cotidiano que a pandemia convocou. A esse convite responderam cerca de 15 alunas (de um total de mais de 150 alunos e alunas) de mestrado e doutorado em três reuniões livres e por meio remoto, com duração de 1:30 h. cada.
Há muito o que dizer sobre os efeitos desta oferta, mas vamos nos ater ao predomínio do discurso medicalizante que eclodiu no primeiro encontro, quando encontramos logo no início do encontro, de modo contundente e sem rodeios, angústia e uma certa desesperança, como respostas ao impacto da suspensão do tempo e da rotina sobre a produção acadêmica (já enviesada pela sensação de impropriedade e impostura, segundo nos contam alguns participantes). A essa experiência comumente angustiante de produção acadêmica se soma a surpresa e o alvoroço que a pandemia impôs a todos nós. Narrando uma "vontade de desistir”, uma das pós-graduandas não disfarça seu sofrimento, logo na partida das associações do coletivo em torno da oferta, que a partir dessa angústia revelada girará em torno da pandemia e seus efeitos na produtividade, impactando a escrita acadêmica. Outros relatos revelam ainda, essa mesma sensação de impostura e o contágio imaginário que se sucede toma a angústia como principal motor. O que o Outro vai pensar de mim é referido como pergunta direta no seio do discurso e tomamos o Outro aqui em questão, para além das experiências reais desses sujeitos (em suas orientações e em suas experiências de sala de aula na pós-graduação) que nos falam sobre suas experiências. O Outro, a Universidade, a pós-graduação, os professores, o governo (em suas múltiplas representações) em tempos de pandemia, os avaliadores; todos esses outros estão questionados, nos mostrando que o sintoma é sempre social (VANIER, 2012) indagando qual real está aludido no sofrimento aparentemente individual.
Nesse sentido, a patologização e a medicalização são, antes de mais nada, uma questão de discurso e dada a prevalência do discurso universitário aliado ao discurso do capitalista nas relações universitárias, os manuais de classificação das doenças mentais são o termômetro dessa força discursiva. Como salientou Eliane Brum (2013) “acordamos mais doente” após a nova atualização do DSM-V. A anormalidade passou a ser a regra e todo tipo de experiência humana (ou as que conhecemos) se tornaram passíveis de catalogação como patologias. Lembra ainda a jornalista um fato esquecido em nome da pretensa naturalização da doença mental: decidir sobre o que é normal e o que não o é consagra uma posição de grande poder social a um grupo ou a organizações e movimenta uma quantia inimaginável de capital, já que: “para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica” (BRUM, Idem).
Num segundo momento, já no segundo encontro, as participantes vêm falar da melhora que estão experimentando por ouvir e falar neste coletivo, e pelas iniciativas que tiveram na semana transcorrida. Várias participantes narraram atividades novas, reorganização da agenda e experiências nunca vividas por força da reclusão em casa e da proximidade física com familiares. O “clima” no encontro e o fluxo no discurso era de concordância e identificação. No entanto, na contracorrente discursiva (ou, num giro no discurso), se mantém firme a representação alusiva ao sofrimento. O fluxo discursivo seguia direção oposta, e os significantes referidos à superação estavam bem representados em identificações. O destaque ao sofrimento, que resiste mesmo em tentativas de adaptação às condições que se apresentam para todos nós durante a quarentena, nos mostra que o sujeito está sempre em vias de advir, furando o discurso estabelecido e resgatando um lugar de diferença radical. Não tardam a aparecer, ainda no coletivo, referências à medicalização psiquiátrica, além de outras providências de tratamento, e o significante “depressão” é chamado para a conversa. Assim, a tendência a tornar médico um discurso descritivo da vida comum (que se tornou mais complexo e devastador com a proximidade da morte, coletivamente experimentada pela prevalência da pandemia no Brasil) e a abordagem desse sofrimento como sintoma, com consequente medicalização, aparece com força no trabalho com esse grupo, indicando um caminho de resolução individualizada. Uma tensão permanente entre a individualização do sofrimento mental (através dos diagnósticos) e o questionamento dos condicionantes sócio históricos do sofrimento podem também ser encontrados na tendência à psiquiatrização da infância (por exemplo na prevalência do diagnóstico de déficit de atenção, que tem alcançado níveis maiores nos últimos anos, aumentando também o uso de antidepressivos para crianças em todo o mundo; notadamente no Brasil (CRUZ et al, 2016).
De que sofrimento se trata, enunciado no seio de uma atividade proposta num coletivo universitário? Poderíamos tomá-lo como um sintoma? Poderíamos pensá-lo como um sintoma social, que localiza o Outro em um momento de destituição?
1. Sofrimento, sujeito e o Outro: diagnósticos são ferramentas potentes na escola.
Em outra oportunidade (PISETTA et al, 2009) discutimos como o empuxo à medicalização do sofrimento, em especial das crianças em idade escolar, bem como a demanda específica por tratamentos de saúde, confina a complexidade causal dos fenômenos abordados como sintomas (no artigo em questão discutimos o que se classifica comumente por transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). Na oportunidade, trabalhamos com dados de levantamento realizado junto ao Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Católica de Petrópolis, que catalogaram a frequência da incidência de sintomas agrupados sob a rubrica diagnóstica de TDAH, tanto na demanda de tratamento, quanto na vigência de tratamento de psicoterapia naquela instituição, em 2008/2.
À época considerávamos que “a amplitude causal envolvida na aprendizagem e em seus impasses tem sido, [no entanto], negada atualmente pela crescente patologização do fracasso escolar, que tem na aliança estabelecida historicamente entre a medicina e a educação seu maior motor” (Idem, p. 2), já atentos ao forte predomínio do discurso universitário aliado ao discurso do capitalista no universo escolar. Lidar com os destinos de uma escolarização sempre desperta uma série de desafios e impasses para o campo educacional e as diferenças encontradas nesse percurso são comumente nomeadas como respostas deficitárias. Muitas áreas concorrem para a construção do processo educativo (políticas públicas para a educação, diferenças socioculturais, diversidade e linguagens, formação de professores etc. para dizer o mínimo) mas são cotidianamente submetidas a uma perspectiva totalitária, que tem numa visão biologicista sua maior expressão e que se presentifica através dos códigos de diagnóstico; tomados como dispositivos de controle social.
A primazia do discurso biologizante se faz notar na perspectiva segundo a qual as diferenças são tecidas como organicamente determinadas e assim as múltiplas condições envolvidas no fenômeno humano são pensadas e tratadas como delimitações genéticas. Assim, condições socioeconômicas e históricas são pensadas como predisposições biológicas para determinados transtornos e não como contingências existenciais e políticas do fenômeno social. Nesse sentido, o termo medicalizar diz mais do que prescrever o uso de determinado medicamento para uma patologia específica, mas se revela com uma abrangência discursiva capaz de reger comportamentos sociais, políticos, econômicos e históricos (CRP, 2012).
A força econômica capitalista não pode ser desconsiderada em uma discussão ampla sobre determinações causais. O discurso capitalista se acentua nesse ponto, propondo patologias e tratamentos, tanto no “esclarecimento” das condições psicopatológicas, quanto na proposição de drogas e terapêuticas adequadas a esse fim. O que faz girar a roda dos diagnósticos como dispositivo de controle social é também o interesse econômico e o monopólio da indústria farmacêutica, que no Brasil tem grande penetração, como sabemos (BRASIL, 2011). Mas não há apenas a proposição do que é patológico nessa discussão. O que é definido como normal encontra aqui uma delimitação clara. O normal em muito equivale àquilo que é demandado pela norma – por múltiplas razões; e o patológico o que não responde a isso (logo, precisa ser tratado, medicado e excluído). Discursos totalitários se afinam bem a essa premissa e são bem defendidos pelas instituições (FOUCAULT, 2002), tendo a escola ainda muito caminho a trilhar para se separar consistentemente dessa posição homogeneizante. Como aponta Zucolotto, (2007) não apenas as dificuldades de rendimento escolar são tomadas como sintomas orgânicos (e pensadas como déficits de aprendizagem), mas também as comportamentais, que carregam, ainda, a carga e a tendência históricas da escola como lugar de segregação das diferenças sociais, desde a Idade Média (BARROS, 1997).
Assim, quem não responde suficientemente às expectativas escolares (e por que não, discursivas?) “porta” um sintoma individual, organicamente abordado e organicamente tratado. Não se trata apenas de um modelo médico, transposto para uma instituição que tem na sua história as marcas da segregação social e da violência (FOUCAULT, 2002), mas de um discurso que se perpetua na formação dos professores e toma fôlego com o recrudescimento do capitalismo. Para pensarmos o sofrimento de que se trata (aludido de modo tão contundente nas enunciações do coletivo de alunos de pós-graduação, com o qual trabalhamos nessa experiência) precisaremos ainda discutir o Outro presente no sintoma e nesse sentido, promover uma crítica de leitura dos sintomas como fenômenos que não se apresentem sem a tematização do Outro. Nesse sentido, o desafio dessa leitura é não apenas problematizar um sujeito que goza e sofre, alienado aos discursos que regem a universidade (para além de sua dimensão comportamental, na presença do inconsciente e das determinações singulares do sujeito) mas, sobretudo com Lacan (1992), pensar que Outro está representado nesse sofrimento. Nestes termos, tomar o sintoma em análise a partir do mal-estar é uma via possível para ampliar a compreensão do mesmo, para além do individual e do fenomenológico.
Dunker (2020) defende que trabalhemos a partir de uma diagnóstica que tenha a ver com o ser, em suas relações com o outro no laço social e não através apenas de uma visão medicalizante, que penseo diagnóstico como algo apartado do mundo, confinado em unidades biológicas e baseado em comportamentos idealmente construídos como parâmetros. Na visão medicalizante, largamente difundida pelos manuais de classificação dos transtornos mentais (como o DSM e o CID), o fundamento do sofrimento (compreendido como um sintoma) reside no biológico estanque, diferenciado do mundo e das relações sociais e políticas. Nessa perspectiva, sofrer não é sofrer com o mundo, a partir das relações construídas e em construção. Sofrer é, nesse contexto, sofrer em virtude de um corpo que padece organicamente e que pode (e deve!) ser moldado através da medicação (tão somente) ou de tratamentos clínicos (individuais e individualizantes) associados a ela. Freud já havia salientado uma contrapartida com a proposição da chave de leitura do mal-estar (1930), quando supõe o sofrimento como medida de perda (singular e coletiva), decorrente dos laços sócio-históricos que construímos ao longo do tempo (e que destruímos também). Nesse sentido, Dunker (Idem) propõe que ao falarmos de sintoma, sublinhemos o sofrimento psíquico, que convoca sempre os motivos fantasmáticos do sofrimento (e históricos, através de narrativas que se constróem na composição de um novo sofrimento, agora mais próprio) para além das categorias biologizantes e situadas individualmente em comportamentos desviantes da norma.
Sublinhar o sofrimento no sintoma foi um trabalho elaborado por Freud, de certo modo, quando pontua o sentido do sintoma como referido à satisfação substitutiva e ao recalcamento. Lembremos que num primeiro momento Freud (1916-17) articula o sintoma ao conteúdo do sintoma, mas não deixa de o articular à angústia (1926), perlaborando essa relação por alguns anos. A esse respeito, assevera Vanier (2002) que Lacan promove uma articulação estrutural do sintoma com o sujeito, a partir da concepção de que o sujeito e o Outro se articulam a partir da constituição do primeiro, à medida em que deixa de frisar apenas o sentido dos sintomas na sua leitura da obra freudiana (a partir do seminário X), delimitando, de modo decisivo, as relações entre o sintoma e a angústia, na obra freudiana. Nestes termos, já em Freud (1926) o sintoma representa uma resposta estrutural de enfrentamento à angústia de castração, que lhe é logicamente anterior (PISETTA, 2008). A virada conceitual freudiana em torno do sentido do sintoma e de suas relações com o recalcamento é fundamental para indagarmos o valor estrutural do sintoma e seu “valor fundamental, não como traço de um acidente da psicogênese, e sim como testemunha radical da constituição do sujeito e do eu” (VANIER, 2002, p. 206).
Nestes termos, pensar o sofrimento não se reduz a nomear um termo (e estabelecer categorias diagnósticas), mas considerar o desenrolar de uma história singular e que não se articula sem o Outro e a cultura. É trabalho da psicanálise fazer uma travessia do nome (termos diagnósticos redutores da experiência) à trama narrativa (que situa o sofrimento ao Outro, construindo uma teia onde o sujeito pode se situar. Nestes termos, Dunker (Idem) sublinha que a experiência da narrativa do sofrimento é “coletivizante” (Idem), porque toca diferentemente a cada um de nós, de modo muito diverso do comumente experimentado em tratamentos individuais. Tanto o diagnóstico de sintomas psicopatológicos quanto os tratamentos clássicos, nesse sentido, situam indivíduos em lugares estanques, com os quais os outros se identificam, quando muito, por exclusão.
Nestes termos, o trabalho da psicanálise em extensão favorece a escrita do reconhecimento de sofrimentos, através da construção de coletivos, que estão silenciados na cultura, em virtude de fragilidades sociais politicamente sustentadas (VOLTOLINI, 2018). É preciso então estar sempre atento aos meandros da questão sobre o que é o objeto do diagnóstico e do tratamento (no estabelecimento de uma metadiagnóstica (DUNKER, 2020), para não cairmos na malha alienante de uma condução estereotipada em torno de intervenções (pedagógicas e clínicas)) que perpetuam discursos excludentes e identificados com normatizações.
2. Sobre o Outro e o sujeito no discurso universitário
Sobre essa ruptura com a linguagem dos saberes, seu preço é ser excluído da confraria que a fala. O que define uma confraria – acadêmica, religiosa ou política – é sua linguagem. O uso ortodoxo dessa linguagem tem, como função primeira, não a comunicação de conhecimento novo, mas a função de confirmar que o falante ‘pertence’ ao conjunto (ALVES, R. 2011. p. 27).
O trabalho com o coletivo de alunos da pós-graduação nos coloca uma questão importante no enfrentamento do mal-estar na universidade: qual é o lugar do sujeito na produção escrita no discurso universitário? A quem se destina a produção acadêmica no discurso universitário, para quem ela se constitui como objeto? Que sofrimentos psíquicos estão aí de antemão anunciados?
Lacan (1992) delimita a importância de pensarmos sobre os limites do enquadramento dos discursos e da maleabilidade dos significantes, convocados diferentemente na contingência de cada um dos quatro modos sociais de laço em torno do gozo3. No que diz respeito ao discurso universitário, tomamos aqui a escrita, que marca a adesão à confraria (ALVES, R. 2011) e a filiação ao poder institucional acadêmico.
No discurso universitário o ponto de partida é o saber como agente, convocando um outro no lugar daquele que não tem o saber, situado numa posição de falta, complementar em relação ao lugar do saber. Dessa relação discursiva, há um produto, produção esperada a partir dos modos de controle em torno do saber. Lacan situa nesse lugar o sujeito barrado em seu gozo, cifrado por Lacan como $. Assim, o produto carrega a incompletude e a divisão em sua essência. Tal discurso, assim constituído reserva (de modo oculto) uma verdade:o mestre no lugar da verdade (S1), com a proposição de um saber sem limite, que toma a subjetividade como produto. Nesse sentido, a partir da prevalência desse discurso, temos uma subjetividade excluída, expurgada, não considerada e submetida. Essa é a verdade oculta no trabalho universitário, artificializando a produção acadêmica.
Nestes termos, os quatro lugares marcados em todo discurso - o lugar do agente; o lugar do outro (daquele que fala); o lugar da produção e o lugar da verdade - se revelam aqui em práticas universitárias bem demarcadas, muitas vezes excludentes e penosas do ponto de vista subjetivo. As queixas de nossas participantes indicam uma prevalência dessa realidade em suas produções.
Nesses termos, como produzir algo próprio no seio de um gênero de discurso (BAKHTIN, 2010) que situa aquele que fala no lugar da falta de saber, da incompletude e da insuficiência (LACAN, 1992)? Esse produto, a escrita, é diretamente marcado pelo efeito do discurso anterior a ele. A angústia conta essa relação, especialmente quando os laços sociais são suspensos, em virtude de um trauma sem precedentes, como está sendo a pandemia. As possibilidades de suportar o peso da escrita, coletivamente partilhado em situações escolares, foram suspensas ou muito reduzidas, em virtude do distanciamento social, ampliando a solidão e a angústia ante a tarefa. Na fala livre de alguém que fala sobre seu trabalho acadêmico, um discurso pode ser ouvido e as alienações e os sofrimentos que marcam um sujeito aparecem. Impasses e alcances na escrita podem ser pensados, assim, como sintomas sociais e nesses termos contam também sobre as condições desse laço social. Assim tomamos algumas falas de nosso coletivo. Aparece uma vontade de desistir, e algumas indagações enviesadas de angústia: “será que estou tirando a vaga de alguém?”, “será que sou fraca?
É impossível deixar de obedecer ao mandamento que esta aí, no lugar do que é a verdade da ciência – Vai, continua. Não pára. Continua a saber, sempre mais. Precisamente por este signo, pelo fato de o signo do mestre ocupar este lugar, toda pergunta sobre a verdade é, falando propriamente, esmagada, silenciada, toda pergunta precisamente sobre o que este signo – o S1 do mandamento Continua a saber – pode velar, sobre o que este signo, por ocupar esse lugar, contém de enigma, sobre o que é este signo que ocupa tal lugar (LACAN, 1969-1970/1992, p. 98).
Como discutimos, Lacan situa o discurso universitário como o discurso em que o agente é o saber científico, que está posto como vetor das trocas e ordenador do discurso. Dele se parte para qualquer interação. Nesse lugar, o saber demanda um outro que se coloque no lugar da falta de saber, expropriado de qualquer poder, baseado em algum saber prévio. Nestes termos, o saber como agente demanda falta de saber, que o sustente como saber. Interessante aqui pensarmos na definição do objeto a, onde Lacan situa o outro no discurso universitário. Segundo Dunker (2020) o objeto a é aquilo que faz furo na totalidade (e ao nosso afã pela totalidade). Nesse sentido, o objeto a é “aquilo que você tira de uma totalidade para que ela possa aparecer como um todo uniforme, coerente e acessível”. Desse agenciamento do outro como aquele que porta a falta de saber, os sujeitos são produtos, indicando ainda a força discursiva do capitalismo aliado à ciência. Qual é o lugar da marca subjetiva na produção acadêmica? Como pensar uma escrita que não seja própria e que não traga algo particular, puro encaixe de um saber totalitário?
3. Implicações políticas da psicanálise: Sobre o empuxo à produtividade e a escrita acadêmica.
O trabalho com o coletivo de alunos da pós-graduação que realizamos aponta para um impasse comumente experimentado na pós-graduação (Machado, 2020): o obstáculo de escrever de modo consistente e autoral um texto acadêmico, largamente queixado em nosso coletivo como uma tarefa muito difícil e produtor de importante sofrimento subjetivo. Machado (Idem) elenca alguns pontos para ampliar essa discussão, dentre eles, a falta de tradição escolar (e universitária, em particular) de desenvolvimento da escrita como forma de expressão. A tradição oral, desde a educação infantil, como forma privilegiada de transmissão e relação escolar, também precisa ser levada em conta nessa questão. Assim, mesmo na graduação, as aulas são basicamente assentadas no modelo em que o professor fala por muito tempo, de modo recitativo. Em outra oportunidade (PISETTA, 2013), quando discutimos os impactos na docência das mudanças sociais em torno da queda da autoridade institucional na pós-modernidade (BAUMAN, 1998) e da desautorização docente, recordamos que:
Articulando discurso e realidade, Bakhtin (1983) acentua que ali onde se constroem conhecimentos, constroem-se também papéis sociais e modos de relacionamentos, já que a palavra carrega consigo significados prévios ao ato de dizê-las. Modos discursivos do professor e atos corriqueiros como recitar conteúdos transmitem expectativas sociais e determinações inconscientes que produzem possibilidades de ser (PISETTA, 2013, p. 38).
Nesses termos, passar do lugar do ouvinte para o lugar do autor não é tarefa simples nem automática, tendo em vista que escrever é um ato ético de autorização; ato que se desdobra numa série de pequenos atos de aproximação com a elaboração pessoal (inconsciente, sobretudo) das questões que se apresentam em forma de “objeto de estudo”.
Machado (Idem) destaca ainda que o alcance do aprendizado da língua portuguesa na escola não inclui a escrita acadêmica (tampouco a literária, muitas vezes), sobretudo em virtude da distância cotidiana que se interpõe entre os sujeitos (alunos) e sua própria expressão escrita. Nesse sentido, a expressão oral também não alcança muito espaço escolar, e podemos assim ter uma dimensão mais ampliada do que enfrenta um aluno de pós-graduação, localizado agora como autor. A “vontade de desistir” narrada no nosso coletivo também diz respeito ao enfrentamento desse sintoma social incrustado nas condições em que os laços sociais se estabelecem na escola (discurso do mestre). O que se espera de um texto acadêmico, pelo menos no mínimo necessário à transmissão de uma pesquisa concluída (aspectos como clareza na exposição das ideias, descrição da metodologia, exposição de hipóteses prévias e objetivos no trabalho mais geral com um objeto de pesquisa), bem como a demonstração do afastamento das ideologias e do senso comum que se opõem ao trabalho acadêmico é, em muitos casos, concomitante com a primeira experiência de escrita pessoal. Não raras vezes essas experiências são acompanhadas por angústia e temor. No coletivo que se constituiu como resposta ao nosso convite, todas as participantes falaram do impasse diante da escrita, e da angústia ante a demanda. Entendemos que isso revela muito mais do que uma questão individual em relação à escrita e escapa à qualquer perspectiva patologizante.
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SOBRE A AUTORA
MARIA ANGÉLICA AUGUSTO DE MELLO PISETTA é doutora e mestre (1999) em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em Psicologia clínico-institucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ), professora de Psicologia da Educação da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Grupo de Pesquisa Psicanálise, Educação e Laço Social (Lapse), pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ), do Observatório Internacional de Inclusão, interculturalidade e inovação pedagógica (OIIIIPE). Realizou estudo pós-doutoral em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
E-mail: angelicapisetta@yahoo.com.br
Recebido em: 09.12.2020
Aceito em: 15.12.2020
1 Trata-se de projeto de extensão Da escola à universidade: escutando o mal-estar e o sofrimento psíquico, coordenado pela professora Luciana Gageiro Coutinho, a quem agradeço o trabalho conjunto. O projeto em questão procura agrupar iniciativas de realização de novos dispositivos oriundos de intervenções psicanalíticas no ambiente escolar. A atividade que discutiremos aqui foi nomeada como Encontros com a palavra: política de cuidado e escuta do sujeito na pós-graduação. Nesta atividade pretendíamos verificar a importância de viabilizar a construção coletiva de um espaço de escuta e cuidado acerca do sofrimento psíquico vivido pelos interessados. Partindo da expectativa de que tal sofrimento psíquico pode ser potencializado pela experiência da produção acadêmica e da relação com a universidade, estudamos os efeitos dessa iniciativa frente a isso. Trata-se de iniciativa de trabalho vetorizado pelo “discurso do analista” em formações grupais não tradicionais, tendo em vista ainda o meio remoto. As participantes receberam e assinaram o Termo de Livre Consentimento Esclarecido, conforme as orientações do Comitê de Ética em Pesquisa da UFF e foram informadas previamente sobre o trabalho de pesquisa que se somava à atividade de extensão.
2 Como adverte Agamben (2005) um dispositivo é uma rede que se constitui enquanto uma estratégia de poder e que inclui em suas malhas modos de compreensão e de validação do mundo. A própria linguagem, nesse sentido, é um dispositivo; aqui tomado nessa oportunidade, para pensar os fluxos e contrafluxos do discurso que tensionamos ao ofertar, nos domínios universitários do discurso, uma proposta de circulação livre da palavra.
3 Cabe destacar que Lacan (1992) discute nesse seminário quatro formas de laço social, inconscientemente mantidos e em circulação, convocando sujeitos a ocupar determinados lugares; mobilizando atos e produtos e ocultando uma verdade incômoda. O autor sustenta que os discursos são também tratamentos do gozo, no sentido de que compõem modos de contenção do gozo no laço social (VANIER, 2012). São eles: o discurso universitário, o discurso do mestre, o discurso da histérica e o discurso do analista. A composição desses discursos requer tomarmos como medidas de análise quatro lugares demarcados em todo discurso (a saber: o lugar de agente, o lugar do outro, o lugar da produção e o lugar da verdade) e quatro operadores, que representam elementos fundamentais dos discursos; a saber, o sujeito barrado ($) (ou a subjetividade constitutiva); S1 ou os significantes mestres; S2 ou o saber e objeto a que marca a falta simbólica (Lacan, 1992). O objeto a demarca o sujeito estruturado e o convoca na relação com a falta constitutiva (PISETTA, 2009).