PROJETO DE ESCOLA ESPECÍFICA, DIFERENCIADA E INTERCULTURAL: a luta do movimento indígena tupinambá no processo de efetivação dos direitos educacionais



José Carlos Batista Magalhães

Universidade de Brasília (UnB)

Brasília, DF, Brasil


DOI: https://doi.org/10.22409/mov.v7i13.41053



RESUMO

O presente artigo busca compreender, a partir de etnografia realizada entre os Tupinambá de Olivença, como estes têm se apropriado da escola e por que ela se torna central para defesa do território, reconhecimento étnico que se desdobra na afirmação da identidade. Ademais, o interesse foi compreender como esses indígenas construíram uma proposta de educação diferenciada, quais os passos dados para a concretização desse projeto e da proposta de escolarização desses sujeitos e como a escola tornou-se central para ativar algumas categorias de cultura e identidade. Outro aspecto relevante que cabe refletir é sobre a expansão da escola pelo território e quais os seus desdobramentos frente à organização social desse povo. Para os Tupinambá, a escola tornou-se central para mobilizar as famílias no processo de reconhecimento étnico e de luta pela demarcação do território ancestral.

Palavras-Chave: Modos de apropriação. Escola diferenciada. Movimento indígena. Povo Tupinambá.



SPECIFIC, DIFFERENTIATED AND INTERCULTURAL SCHOOL PROJECT: The Struggle of the Tupinambá Indigenous Movement in the Process of Realizing Educational Rights



ABSTRACT

This article seeks to understand from ethnography carried out among the Tupinambá of Olivença, how they have appropriated the school and why it becomes central to the defense of the territory, ethnic recognition that unfolds in the affirmation of identity. In addition, the interest was to understand how these indigenous people constructed a proposal of differentiated education, what are the steps taken to realize this project and the proposal of schooling of these subjects? Another relevant aspect that should be reflected is the expansion of the school by the territory. For the Tupinambá, the school became central to mobilize families in the process of ethnic recognition and struggle for the demarcation of the ancestral territory.

Key-words: Modes of appropriation, Differentiated school, Indigenous movement, Tupinambá people.



PROYECTO DE ESCUELA ESPECÍFICA, DIFERENCIADA E INTERCULTURAL: la Lucha del movimiento indígena Tupinambá en el Proceso de puesta en práctica de los Derechos Educativos




RESUMEN

El presente artículo busca comprender a partir de la etnografía realizada entre los Tupinambá de Olivença, como éstos se han apropiado de la escuela y por qué ésta se vuelve central para la defensa del território y del reconocimiento étnico que se despliega en la afirmación de la identidad. Además, el interés fue entender cómo estos indígenas construyeron una propuesta de educación diferenciada y cuáles fueron los pasos dados para concretar ese proyecto y la propuesta de escolarización de esos sujetos.También discute cómo la escuela se volvió central para activar algunas categorías de cultura e identidad. Otro aspecto relevante que cabe reflexionar es sobre la expansión de la escuela por el territorio, ¿cuáles son sus desdoblamientos frente a la organización social de este pueblo? Para los Tupinambá, la escuela se volvió central para movilizar a las familias en el proceso de reconocimiento étnico y de lucha por la demarcación de su territorio ancestral.

Palabras Clave: Modos de apropiación. Escuela diferenciada. Movimiento indígena. Pueblo Tupinambá.




Introdução


Em nossa dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social ‒ PPGAS, Departamento de Antropologia Social da Universidade de Brasília, resultado de etnografia produzida em 2017, realizamos pesquisa nas comunidades indígenas de Acuípe de baixo, Sapucaieira, Tucum e Santana entre os Tupinambá de Olivença1. A partir de uma abordagem qualitativa, tecida na interlocução com professores indígenas, estudantes, lideranças e pais, buscamos compreender a importância da escola para os Tupinambá de Olivença, os modos e as formas de apropriação da educação escolar e de que forma a escola construída por esse povo tem atuado na defesa do território e na produção e no fortalecimento da identidade.

Para os Tupinambá, a escola, além de ser um instrumento importante no processo de escolarização, constituiu-se também como uma importante ferramenta de luta no processo de reorganização social, tendo como foco principal a luta pela demarcação do território ancestral. A busca pelos direitos à educação diferenciada, à saúde diferenciada e à demarcação do território foi crucial para que este povo se organizasse internamente.

Os primeiros passos dados para a implementação de uma escola indígena no território Tupinambá de Olivença ocorreram em 1996 na comunidade indígena de Sapucaieira, tendo como pioneira no processo de alfabetização a professora indígena Pedrísia Damásio. Motivada pelo desejo de alfabetizar os moradores daquela localidade, a docente instituiu no turno noturno uma turma de alfabetização de jovens e adultos. Essa proposta inicial contou com a participação de Núbia Batista da Silva, indígena e primeira Tupinambá a ingressar em um curso superior em Pedagogia na Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC/Ilhéus ‒ BA.

Núbia Tupinambá ‒ como é conhecida entre os Tupinambá ‒ era ligada à Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Fase, organização não governamental que apoiou a constituição do Coletivo de Alfabetizadores Populares da Região Cacaueira ‒ Caporec2, no qual assessorou pedagógica e financeiramente os trabalhos desenvolvidos na região.


É nesse contexto de mobilização e reorganização interna que a educação escolar indígena começa a ser pensada e construída de modo a atender às necessidades dos Tupinambá, buscando atuar em duas frentes: a luta pelo reconhecimento étnico e a retomada de seus territórios ancestral (SANTANA, 2015, p. 87).



Esse movimento contribuiu sobremaneira para a organização da comunidade no tocante ao reconhecimento étnico pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 2002, e à identificação do território Tupinambá de Olivença, atualmente em processo, com a publicação do relatório preliminar de demarcação das terras pela Funai, em 20 de abril de 2009, com área proposta de 47.376 ha, abrangendo os municípios de Ilhéus, Una e Buerarema (MESSEDER e FERREIRA, 2010). Atualmente, esse processo encontra-se na Fundação Nacional do Índio – Funai, por determinação do ex. Ministro da Justiça para ajustes, “Em 30 de dezembro de 2019, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, devolveu à FUNAI o processo de demarcação de 17 TIs, incluindo a Tupinambá de Olivença” (ALARCON, 2019, p. 60).

O projeto não se limitava, portanto, somente a alfabetizar os moradores de Sapucaieira e de outras comunidades. Tratava-se, antes, do levante3 de uma nação, do despertar de uma luta iniciada no território na década de 1920 pelo indígena Marcelino, conhecida como “Revolta do caboclo Marcelino”. Esse movimento está fortemente presente no imaginário social dos Tupinambá de Olivença, sobretudo dos mais velhos, que guardam na memória a dor, o massacre e o sofrimento vivenciados por Marcelino na defesa do território Tupinambá.

A revolta de Marcelino José Alves, iniciada em 1924, chega ao fim em 1937, após o seu desaparecimento. Autores como Viegas (2007), Couto (2008), Paraíso (2009), Magalhães (2010), Ubinger (2012), Alarcon (2013) e Santana (2015) já fizeram referência a esse episódio e nos atualizam sobre os feitos de Marcelino e a sua representação como líder para aquele povo.

Se tem havido um aumento significativo das pesquisas sobre escolas em contexto indígena nos últimos anos, especialmente entre os povos indígenas localizados nas regiões Norte e Centro-Oeste (pesquisas quase sempre retomadas pelos pesquisadores da temática), a realidade das escolas indígenas do Nordeste do Brasil ainda é pouco conhecida4. Os diálogos e o exercício comparativo com as pesquisas e pesquisadores dessas regiões ainda são muito tímidos. Pretendemos aproximar essas diferentes perspectivas, o que nos levou a produzir comparações e diálogos a partir da realidade do Nordeste brasileiro, tendo como exemplo os Tupinambá de Olivença.

A inserção das primeiras escolas no cotidiano das comunidades indígenas pode ser analisada a partir do conceito de “violência simbólica”, definida por Bourdieu (2004, p. 106) como o ato de dar um significado “a uma ação ou a um discurso de forma que é reconhecida como conveniente, legítima, aprovada”, como uma imposição de determinada cultura tida como universal e única. Ao analisar as contribuições da escola pelas reflexões propostas por Bourdieu, Catani (2012) enfatiza que ela privilegia uma “cultura dominante, ao valorizar relações com os conhecimentos associados aos padrões de elite, ao construir e favorecer modos de avaliação cujos critérios também repousam sobre distinções sociais” (CATANI, 2012, p. 17).

A partir da década de 1980, o debate ganha solidez com o movimento indígena e com as demais organizações indígenas, sobretudo na região Norte do país5, culminando na conquista de alguns direitos na Constituição Federal de 1988. Cabe aqui ressaltar que, nesse período, a educação escolar indígena esteve sob a gerência da Funai, que desenvolve o trabalho a partir da atuação e dos convênios com instituições missionárias. É nesse mesmo período em que ocorrem iniciativas e experiências de Organizações Não Governamentais (ONGs) mediante alternativas que reflitam novos rumos para a Educação Escolar Indígena, em contestação ao modelo integracionista então vigente.

Para tornar esse projeto concreto, o movimento indígena brasileiro, ao longo dos anos, tem consagrado esforços no diálogo com o Estado, na tentativa de construir uma educação escolar indígena específica, diferenciada, intercultural e bilíngue, apostando em um projeto de escola que respeite a organização social dos povos indígenas, os seus conhecimentos tradicionais, o uso de suas línguas maternas, os seus costumes e a sua territorialidade.



1. Os modos de apropriação da escola pelos Tupinambá de Olivença


O projeto de escola indígena dos Tupinambá de Olivença, ao longo desses 23 anos, foi sem dúvida uma ferramenta de luta e de empoderamento, possibilitando a (re)organização sociopolítica do movimento indígena desse povo. Ele permitiu a reelaboração e a afirmação das identidades, a reorganização social, a afirmação e a (re)constituição da cultura. No mais, esse projeto valorizou os conhecimentos tradicionais, os estudos e a pesquisa da língua, além de estimar os costumes tradicionais desse povo, em articulação com a luta pela demarcação do território tradicional. Assim, a escola torna-se central na mobilização e na (re)articulação da indianidade desses sujeitos.

Nas visitas e nas reuniões acompanhadas nas comunidades junto com a cacique Maria Valdelice, com Nádia Batista e com Núbia Batista, sempre vinham à tona as narrativas que faziam referência ao território e aos modos de vida dos antigos, carregadas de um sentimento de perda irreparável. Os discursos firmes e, às vezes, com lágrimas falavam sobre como os Tupinambá, ao longo dos anos, perderam as suas terras e, consequentemente, foram se “espalhando pelo mundo”, como costumam dizer os parentes que tiveram as famílias retiradas das terras.

Esse sentimento de pertença etnossocial tornou-se central e motivacional para mobilizar as famílias a lutar pela defesa e pela retomada do território, despertando e rearticulando sensibilidades e capacidades coletivas que, em algum momento da história, fragilizaram-se a partir dos mais variados tipos de violência física e simbólica vivenciada por esse povo.

Nesse sentido, a escola, com sua expansão pelo território, mostrou-se capaz de produzir uma consciência de indianidade nessas famílias, mobilizando-as por meio de suas experiências de vida para defender o direito e o acesso ao território. Para isso, era necessário acionar sua identidade indígena perante a sociedade local e o Estado.

Cabe aqui os seguintes questionamentos: por que a escola torna-se central para o fortalecimento do movimento indígena, o que seria esse fortalecimento e quais os elementos socioculturais e ideológicos necessários para a constituição de um movimento indígena sólido? Além disso, quais foram os atores fundamentais no processo de disseminação desses elementos pelo Território?

Começamos pelos atores que foram centrais para sensibilizar e para mobilizar as famílias nas comunidades. O professor indígena torna-se um tipo ideal nesse trabalho inicial. Ele congrega capacidades e competências, posto que conhece as histórias e as realidades de sua comunidade, as práticas culturais vivenciadas e experienciadas por ela. No entanto, ele precisa ter disposição para pesquisar, sistematizar e produzir conhecimentos a serem utilizados nas práticas pedagógicas exercidas na docência, visando contribuir com a construção de um currículo específico e diferenciado que norteie o processo de escolarização de toda a aldeia.

Torna-se também fundamental a participação ativa do docente no movimento, exercendo o papel de articulador, mobilizador e defensor das causas indígenas. Ele constitui uma liderança política, um elo entre a escola, a comunidade e as lideranças indígenas, cujo papel principal é manter as famílias, em suas comunidades, informadas e atualizadas das discussões nas reuniões de caciques, lideranças e coletivo de professores, como bem destaca Jandiba Tupinambá,


O professor indígena é como o vento que carrega a semente. Por onde ele passa essa semente é plantada na terra e mais tarde vai dar fruto. Isso se cuidar bem dela, né? Assim começou nossa luta pela educação diferenciada; a gente ia de comunidade em comunidade, falando da educação para o índio, e essa semente foi crescendo. No início os parentes não acreditavam muito, eu acho que era porque os professores eram de lá mesmo da comunidade. Você já ouviu dizer que santo de casa não faz milagre, mas pra gente fez (risos). Também pela necessidade de estudar, começaram a mandar seus filhos para a escola e confiavam no professor da comunidade. Eu mesma parei meus estudos com 12 anos, parei na 3ª série e não tive condições de levar o meu aprendizado à frente porque dependia de ir para a zona urbana e os pais não tinham condição de manter na cidade para estudar, aí eu tive que parar. Depois de meus 29 anos, chegando nos meus 30, nós começamos a luta, e em 97, em busca de uma educação diferenciada, foi que levamos a necessidade ao governo do estado da Bahia, a necessidade que nós tínhamos pela educação diferenciada. A necessidade que muitos jovens tinham, dentro da comunidade, de concluir o ensino médio e não tinham condições porque os pais não tinham condição. Ninguém tinha emprego, ninguém tinha salário, cada um vivia da sobrevivência de renda dos seus pedacinhos de terra, das retomadas, aí fomos à luta. (Entrevista realizada em janeiro de 2019 na comunidade Tucum).



Com essas palavras, Jandiba Tupinambá, liderança e professora de cultura da aldeia Tucum, demonstra a importância dos professores indígenas no movimento e como foi se constituindo essa relação deles com as suas comunidades. Pedrísia Damásio, precursora do processo de escolarização entre os Tupinambá, iniciado na comunidade de Sapucaieira, relata como iniciou a mobilização e a articulação pela educação indígena enquanto professora. Em entrevista, perguntei-lhe sobre o começo do movimento, como se deu sua participação, o que motivou a criação da sala de aula que deu origem ao movimento educacional entre os Tupinambá, em que momento se deu o contato,


[...]. Aí pai conversando com os políticos, Nizan, o pessoal que eles conheciam, aí colocou Ana Azevedo que veio lá de Ilhéus para ensinar e ensinou 3ª e 4ª série em 1992. Quando eu completei a 4ª série, em 1990, dona Nivalda veio com a Pastoral da Criança para aqui, aí eu andando nas reuniões de igreja, andando lá encontrei dona Maria Muniz, dona Maura. Aí eu mostrando as coisas da aldeia, falei nomes, né? Aí ela falou: vocês são parentes da gente lá. Aí dona Maria Muniz se interessou e começou a buscar [...]. Aí começamos a buscar. Dr. Zé Carlos disse: vamos para a reunião; em 95 eu fui para a reunião. Ele era médico de Ilhéus, trabalhava no CESPE e trabalhava como doutor dos Pataxós hahahãe, pela Secretaria da Saúde, porque lá já tinha o Movimento. Aí ele me disse assim: vamos para o conselho e para a reunião de conselho de caciques de conselho de saúde. Foi através do Dr. Zé Carlos e da Pastoral da Criança que me incentivei a entrar no movimento [...].Quando eu fui a Ilhéus, dona Nivalda me pediu para procurar Núbia, aí em 96 eu procurei Núbia. Aí quando encontrei Núbia, ela trabalhava voluntária na Fase, aí Núbia começou a fazer os contatos e entrou no movimento também. Aí eu fui em 97 participar do primeiro curso que aconteceu aqui na Bahia, aí participei de algumas etapas, aí ficou Gersonilda e Valdelice, aí desistimos. [...] antes disso, eu estudei até a 4ª série e comecei a ensinar os alunos que a escola lá do município não pegava, tinha limitação de alunos. [...] Aí quando eu fui para ter a escola diferenciada é que veio o doutor Zé Carlos e o pessoal representando a secretária que veio aqui. Aí viram a forma como eu estava ensinando, eu estava com os alunos dando aula, aí parei a aula, os meninos falaram no idioma e o rapaz da Funai disse: “Aí como é que os índios falam. Vocês entenderam como eles falaram?”. Aí o rapaz respondeu assim: “Não, não entendi foi nada”. Aí foram conversar com pai. Pai disse não, mas aí é a nossa cultura, isso aí ninguém pode mudar a fala deles. É por isso que eu brigo e quero uma escola que fale a nossa cultura, que tenha os professores capacitados, mas que não perca a nossa cultura, porque se a gente perder, depois o que vai ter? Não vai ter cultura nenhuma. [...]. (Entrevista realizada na casa de Pedrísia – Sapucaieira, janeiro de 2019).



As narrativas de Pedrísia demonstram a função social dos professores indígenas nesse processo de fortalecimento do movimento indígena. Suas idas às comunidades para falar do movimento e dos direitos à educação, à saúde e ao território também implicavam convidar atores para multiplicar o movimento, reafirmar a identidade e criar escolas, tudo acionado pelo desejo de ter o território novamente. Desse modo, esses docentes eram formados pelo movimento indígena a partir da orientação das lideranças e da então cacica Jamopoty. Além de desenvolver suas habilidades nas questões pedagógicas, os professores também se tornariam mobilizadores políticos.

Após a proposta de alfabetização se concretizar em Sapucaieira, nos três anos seguintes, em 1999, a tarefa foi assumida por mais duas professoras indígenas, Rosilene Souza de Jesus, da comunidade do Acuípe de Baixo, e Maria Valdelice Amaral de Jesus, das comunidades de Campo São Pedro e Serra Negra.

Nas referidas reuniões pedagógicas, junto ao coletivo de professores, era a oportunidade de socialização e de construção dos planos de aula que seriam executados no exercício da docência. Era o momento de os professores indígenas apresentarem seus trabalhos de pesquisa, suas experiências com a pesquisa em suas comunidades, as experiências em sala de aula e, a partir daí, produzirem coletivamente os conhecimentos e os conteúdos que deveriam ser ensinados na escola e, consequentemente, o Projeto Político-Pedagógico, o currículo diferenciado e um calendário específico.

Os encontros de formação e de estudos aconteciam bimensalmente, em regime de alternância pelo território, na casa de professores, em associações e nos espaços onde aconteciam as aulas, ou em locais improvisados ou construídos pela comunidade, tendo como foco o levantamento histórico para o resgate e para a afirmação étnica. Esses encontros pedagógicos e políticos contavam com a assessoria de Núbiã Tupinambá6, responsável pela área pedagógica da escola, que atuava em outras frentes do movimento com o apoio da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Fase, à qual era vinculada.

Coube a essa Federação as seguintes tarefas: acompanhar e assessorar pedagogicamente as turmas de alfabetização de jovens e adultos na aldeia; contribuir diretamente na organização da comunidade como um todo, fortalecendo o desejo de reconhecimento étnico e a demarcação de suas terras; possibilitar a participação de suas lideranças indígenas em encontros nacionais, estaduais e regionais, no que se refere à afirmação étnica e à articulação do povo Tupinambá de Olivença a outros povos e outras entidades e capacitar as educadoras e os educadores indígenas no que diz respeito ao direito à educação diferenciada (SILVA, 2008, p. 21). As ações desenvolvidas pela Fase davam-se em três dimensões: “âmbito pessoal, profissional e social” (SILVA, 2008, p. 25).

Nessa perspectiva, ser professor indígena implicava uma série de responsabilidades e obrigações naquele momento. Ele precisava ir além, conhecer inicialmente a história do seu povo, as suas comunidades, os processos de luta e de resistência e, além disso, militar no movimento indígena, compreendendo interação e respeito pela luta, visto que mobilizar famílias e conscientizá-las sobre a importância da escola indígena e de ter seus filhos estudando nela também era tarefa sua.

A construção de uma pedagogia indígena Tupinambá passou a ser desenhada nos encontros de formação pedagógica, nos quais se refletia sobre as práticas pedagógicas, o que deveria ser ensinado, quais os conteúdos a serem lecionados, como a cultura seria valorizada e ensinada e como esses conteúdos fariam parte do currículo da escola. Esses questionamentos eram sempre recorrentes nos momentos pedagógicos, como os conhecimentos tradicionais poderiam caminhar junto aos dito universais, uma vez que estava à frente o desafio de pensar uma escola especifica, diferenciada e intercultural? Além disso, era algo novo, para nós professores, que escola era essa? O que seria esse diferenciado, específico, intercultural e bilíngue tão falado por Núbia Tupinambá7?

À medida que fomos conhecendo os conceitos, as experiências de outros povos com educação indígena, fomos reelaborando nosso projeto de escola em uma dinâmica que respeitasse os modos próprios de aprendizagem e da vida desses sujeitos. Isso foi possível através dos encontros pedagógicos e das formações, bem como do estudo sobre política indigenista. Vale lembrar, ainda, a importância do movimento indígena em prol da educação escolar indígena (línguas indígenas – oralidade e escrita, prática pedagógica diferenciada e interculturalidade) que facilitou a criação desse projeto de escola.



  1. A escola diferenciada − o que e como ensinar: reflexões sobre o currículo


Nesses momentos pedagógicos junto ao coletivo de professores, as reflexões e o aprendizado foram muito importantes para pensar que perfil de escola estávamos produzindo, o que seria ensinado sobre o diferenciado, como seria ensinado, como reelaborar um currículo diferenciado que norteasse o processo de ensino-aprendizado nas escolas, respeitando as especificidades das comunidades, o que seria essa escola ideal e adequada para o processo de escolarização dos Tupinambá. Algumas decisões coletivas foram tomadas nesse sentido. Inicialmente, avaliamos as experiências de educação nos Tupinambá, escolas que foram implantadas na década de 90 pelo município de Ilhéus, cujos relatos e experiências dos que passaram por ela demonstravam insatisfação em relação ao ensino e ao respeito às diferenças.

Nessas escolas, os professores que atuavam eram não índios e não tinham preparo algum para lidar com as questões culturais desses sujeitos. Eles eram contratados pelo município e, por não conhecerem a realidade dos alunos, o processo de escolarização acabava sendo traumático na vida desses estudantes, causando descontentamento e desistência. Alguns mais velhos relatavam: “os professores dessa escola eram muito malvados, batiam nos alunos de palmatória quando eles não sabiam falar o abc, não entendiam o que a gente falava, não entendiam a fala dos caboclos de Olivença”.

Autores como Silva (2012), Catani (2012), Grupioni (2008), Cohn (2005), Santana (2015), Meliá (1979) e Magalhães (2018) já demonstraram como essas experiências foram se constituindo. As primeiras escolas indígenas implantadas nas aldeias estiveram a serviço de um projeto colonial, com propostas pedagógicas cuja função era negar as identidades indígenas e toda a vivência tradicional dos povos, em uma tentativa de integrar esses sujeitos à sociedade nacional.

Como bem sabemos, a escola implantada nas aldeias foi uma das ferramentas da colonização, sendo estruturada no Brasil a partir de 1549, por D. João III, a cargo dos jesuítas, a exemplo de Manuel da Nóbrega, representante da Companhia de Jesus. Esse projeto de educação de caráter assimilacionista, fincado nos tempos da colônia, com poucas variações, estende-se para o regime republicano, até a segunda metade do século XX.

Nessa perspectiva, estava posto o desafio de mudar aquela realidade, a luta por um modelo de escola que valorizasse as tradições culturais e os modos próprios de aprendizagem. Tratava-se de uma tentativa de rompimento com as pedagogias coloniais referenciadas por uma epistemologia ocidental e que desprezava os conhecimentos tradicionais e os modos de vida daquele povo.

Em vista disso, a estratégia era produzir um currículo que desse conta desses anseios, sem esquecer que se lidava com 23 comunidades já com escolas implantadas e especificidades múltiplas. Um grande desafio estava posto e, ao mesmo tempo, uma porta se abria no processo de ajuntamento dessas famílias para a escola e o movimento. Esses novos horizontes propiciados pelo campo da educação nos constituíam como sujeitos indígenas pesquisadores do próprio povo, tendo em vista que a pesquisa na aldeia, motivada por Núbia, era central para compor o projeto de educação diferenciada dos Tupinambá, norteado pelas especificidades, pelas realidades e pelo processo histórico daqueles sujeitos, pelos modos próprios de vivência e de aprendizado.

Assim foi se reelaborando o currículo da escola. A sistematização das pesquisas realizadas pelos professores junto às suas bases tornou-se um norte para pensar o currículo, um calendário específico e o Projeto Político-Pedagógico. No bojo dessa discussão, foram criadas as disciplinas de cultura indígena, língua indígena, espiritualidade Tupinambá, arte Tupinambá, museologia e direito indígena, cuja proposta era trabalhar o diferenciado, ou seja, a cosmologia dos Tupinambá de Olivença.

Os conteúdos programáticos que compunham essas disciplinas específicas foram construídos coletivamente pelos professores indígenas, com a participação de lideranças, de caciques, de pais, de alunos e de anciãos, tendo como objetivo levar a educação indígena para dentro da escola. Isso possibilitou uma mobilização da cultura pelo território. Assim, os signos culturais foram aparecendo e, o que antes era guardado, por medo de represália, discriminação e racismo, passou a ser valorizado e usado como ferramenta de luta contra os mais variados tipos de preconceitos sofridos pelos Tupinambá.

Pensar um currículo a partir dos princípios da interculturalidade, da especificidade e do bilinguismo, em que se divide espaço entre os conhecimentos ditos universais e o tradicional, não é tarefa fácil para nenhum povo indígena, ainda mais para os Tupinambá de Olivença, cujo contato com a cidade é intenso. Os processos de escolarização dos professores indígenas se deram em contexto de escolas não indígenas. Isso também gera conflitos, crises existenciais e tensões entre o povo, pois essa metodologia é questionada pelos pais e pelas mães, quando eles dizem que tipo de escola querem para os seus filhos.

Ouvi de muitos pais, inclusive em reuniões, que seus filhos não estavam avançando, não estavam aprendendo a ler e a escrever, e essa era, segundo eles, a função da escola. Não queriam que seus filhos passassem pela mesma situação que eles haviam vivido no passado, sendo enganados por não saberem ler. Desejavam que seus filhos ficassem “sabidos” para transitarem pela cidade sem medo de serem enganados pelo “branco”. Presenciei diversos momentos em que os pais retiravam seus filhos da escola baseando-se nessa reclamação. Chegavam a dizer que “na escola dos índios não se aprendia nada, porque os professores não sabiam ensinar”.

Quando os Tupinambá dizem que a escola é importante porque é uma forma de “ficar mais sabido”, uma defesa contra os brancos, geralmente eles expressam isso em frases assim: “no passado, perdemos nossas terras porque muitos de nossos parentes não sabiam ler e escrever; nossos parentes assinavam um papel e perdiam suas terras; outras vezes, trocavam a terra por qualquer coisa, a exemplo de cachaça”. Parecem assinalar uma compreensão mais alargada da escola no contexto atual, que não se limita somente a querer uma escola para ler e escrever. Nesse sentido, o “tornar-se sabido” implica, através e pela escola, o aprendizado da cultura, da memória e da tradição. Implica tornar-se tupinambá forte, guerreiro. “Tornar-se sabido” é uma relação que envolve diferentes experiências que se potencializam na escola e em tudo o que ela proporciona (SANTANA, 2015, p. 100).



3. “A escola ajuntou o povo, mas também trouxe conflitos entre os nativos”


Como em todo espaço social, as relações são construídas a partir de atravessamentos que envolvem disputas, interesses e conflitos. A instituição escola, nesse sentido, não foi e nem será entre os indígenas um espaço de produção de harmonia e paz, como muitos tendem a imaginar e a romantizar, ainda mais quando os desafios postos implicam ressignificar as velhas práticas pedagógicas, com suas epistemologias ocidentais e colonialistas, “em busca de novas práticas político-pedagógicas verdadeiramente calcadas em relações sociais, étnicas e epistemológicas simétricas” (LUCIANO, 2013, p. 310).

No caso dos Tupinambá, à medida que a escola vai crescendo e se expandindo pelo território, as tensões também vão aumentando e tornando a escola um espaço de disputa e de concorrência pelas vantagens que ela pode oferecer. Essas disputas geraram sérias consequências na organização política do movimento indígena Tupinambá, ao ponto de as lideranças e os seus cacicados não conseguirem mais dialogar e se entender, o que levou à entrada de agentes externos para a tomada de decisões na organização social desse povo. Presenciei diversos conflitos dessa ordem, sobretudo os concernentes à escola. Professores, alunos, familiares e funcionários ligados a determinado cacique, por não concordarem com outros grupos ligados a cacicados distintos, não permitiam a presença desses na escola.

Um dos palcos de conflitos deu-se na escolha e indicação da direção do Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Olivença – Ceito, sempre ocupada por gestores não indígenas, obedecendo às normativas da Secretaria Estadual de Educação. A investidura no cargo de gestor para as escolas indígenas, sobretudo as geridas pelo sistema estadual, tem como prerrogativa ser efetivo do quadro do Magistério Público do Estado da Bahia8. Todos os cinco gestores que passaram pela escola antes de 2009 foram diretores não índios, o que causava uma enorme insatisfação por parte de algumas lideranças.

Os gestores reclamavam à Secretaria de Educação que os conflitos da escola os impediam de fazer o trabalho de gestão. Por uma série de questões que ocorriam no contexto escolar, eles acabavam pedindo exoneração dos cargos, em alguns casos por pressão de lideranças e de caciques, quando os gestores não os favoreciam ou quando havia o entendimento de que um determinado grupo estava sendo favorecido pela gestão escolar.

Diante da situação e dos problemas que cercavam a escola, a fim de resolver os impasses e os conflitos, e por insistência de um determinado grupo, foi concedida, pela Secretaria Estadual de Educação, a administração da escola a um determinado grupo. Ele acompanharia a parte pedagógica e administrativa, mas legalmente a Diretoria Regional de Educação assumiria o papel institucional, sobretudo na gerência dos recursos da merenda escolar e na compra de materiais pedagógicos. Parecia uma solução para diminuir os problemas e para resolver os impasses. No entanto, a proposta não foi aceita pelo grupo opositor, ocasionando diversas ocupações na Diretoria Regional de Educação, o que resultou em um novo acordo entre as partes.

A partir de 2009, após uma série de disputas e conflitos, sobretudo internos, envolvendo a Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença, a Secretaria de Educação do Estado da Bahia, através da ação do Ministério Público, designou um grupo de gestores não indígenas (uma diretora, dois vice-diretores e um secretário escolar) para organizar a escola, visando a restabelecer a ordem (SANTANA, 2015, p. 110).

Esse episódio trazido por Santana ocorreu em um dos períodos mais conflituosos entre os Tupinambá de Olivença, causando a intervenção do Ministério Público a pedido da Secretaria Estadual de Educação. A situação incidia diretamente na qualidade e no processo de escolarização dos alunos, o que começou a gerar diversas reclamações dos pais, dos próprios estudantes e, consequentemente, resultou na migração desses alunos para as escolas não indígenas.

A Lei 12.046, de 4 de janeiro de 2014, “cria a carreira de Professor Indígena, no Grupo Ocupacional Educação, do Quadro do Magistério Público do Estado da Bahia”. Foi então realizado o primeiro concurso público para professores indígenas com o quantitativo de 390 vagas, tendo apenas 109 aprovados. Para a Escola Indígena Tupinambá de Olivença, foram disponibilizadas 56 vagas, das quais 27 foram ocupadas. O concurso provocou uma série de tensões entre professores, caciques e lideranças, tendo em vista a não aprovação de docentes no concurso público. Estes Os não aprovados cobravam de seus líderes providências perante o Estado, alegando que a maioria dos novos concursados não fazia parte do movimento indígena, além de não conhecer a realidade das comunidades e de não participar do processo de criação da escola, temendo, dessa forma, o enfraquecimento dos processos e das práticas culturais da escola.

A realização do primeiro concurso público específico para professor indígena na Bahia, embora tenha provocado nas aldeias uma série de conflitos, é considerada pelos povos indígenas uma conquista do movimento através do Fórum Estadual de Educação9, que vem debatendo desde 2000, em diálogo com o Estado, sobre a criação e a implantação de políticas públicas educacionais, tendo como principal referência a forma como esses povos se organizam, as suas especificidades socioculturais, sociolinguísticas, políticas, históricas, geográficas, e as suas relações intersocietárias atreladas aos seus projetos sociais.

No tocante a essas políticas públicas educacionais, mesmo que algumas delas tenham sido construídas com a participação e a consulta aos povos indígenas, e suas produções tenham como referência normativas e referenciais que buscam compreender os “processos próprios de aprendizagem” bem como as organizações societárias dos povos, ainda é um desafio para o Estado compreender essa diversidade nas aldeias, já que há uma assimetria entre a escola que esses povos pensam para si, com um currículo específico e diferenciado, e aquela que o Estado pensa para eles.

Mesmo diante desses entraves, os povos indígenas acreditam nos seus projetos de escola. O processo de escolarização entre eles tornou-se uma ferramenta de luta e empoderamento, possibilitando a (re)organização política dos movimentos indígenas e permitindo a reelaboração e a afirmação das identidades, a reorganização social, a valorização dos conhecimentos tradicionais, a manutenção/reconstrução de suas línguas, de seus costumes tradicionais, em articulação com a luta pela demarcação dos seus territórios tradicionais.


Conforme Silva (2010, p. 12):


A educação bilíngue e intercultural é, portanto, uma iniciativa inovadora. É uma experiência de educação que deve considerar os projetos dos povos indígenas. De um modo geral, a proposta de educação intercultural foi pensada a partir das próprias expectativas dos indígenas para a obtenção de conhecimentos que garantiriam a posse e o gerenciamento dos seus territórios, conseguindo meios para melhorar as condições de vida de suas comunidades, reforçar a língua materna, os costumes, as tradições do povo e manter sua cultura. Para atingir tais objetivos os professores deveriam criar ou renovar a prática escolar, o currículo, seus livros didáticos, decidir sobre o uso da escrita das línguas na escola e fora dela, sendo eles os principais autores de um inovador processo educativo relacionado às suas culturas, à intercultura e às suas vidas.



No caso dos Tupinambá, o projeto de escola construído a partir da especificidade, do diferenciado e da interculturalidade viabilizou um posicionamento crítico e reflexivo na tomada de decisões sobre os processos e as práticas de ensino-aprendizagem vivenciadas por eles, ao longo dos anos, em seu território, questionando, dessa forma, o modelo de escola cuja pedagogia esteve historicamente influenciada pela hegemonia das elites branca e colonizadora.

Por outro lado, há de se notar que muitas das práticas colonizadoras estão diluídas nesse novo projeto de escola que os Tupinambá pensam para si. Talvez por isso, a escola, por não conseguir dar conta de uma série de questões e anseios sobrepostos a ela, acaba não respondendo satisfatoriamente aos desejos de determinados grupos, causando rupturas entre caciques, professores e lideranças.

O colégio indígena Tupinambá de Olivença, por ser a primeira escola construída na aldeia, torna-se palco de muitas disputas. Destaco, nesse sentido, que tais disputas não ocorriam somente pelo controle da escola. Havia, obviamente, propostas inovadoras que trariam melhoria na qualidade do ensino-aprendizagem e no acesso dos alunos à escola. No entanto, a falta de diálogo entre os atores que demarcavam uma posição política sobre essa instituição os impedia de visualizar tais propostas.

Um dos questionamentos era que a escola de Sapucaieira não comportava mais a extensão do território, dado o crescimento do número de estudantes e o avanço nas etapas educacionais (Educação Infantil, Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio). Os alunos que avançavam para o 5° ano se deslocavam das comunidades para estudar, pois os anexos da escola nessas comunidades ofertavam apenas as etapas que vão da Educação Infantil ao 4º ano do Ensino Fundamental I. Além do trajeto até a escola-sede ser distante, as péssimas estradas, sobretudo em períodos de chuva, impedem o acesso.

Atualmente, o território possui cinco unidades escolares: Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Olivença; Colégio Estadual Indígena Amotara; Colégio Estadual Indígena do Acuípe de Baixo; Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Abaeté e Colégio Estadual Indígena da Serra do Padeiro. Esta última localiza-se na aldeia Serra do Padeiro a aproximadamente 60 quilômetros de Olivença.



Considerações finais


Se eu soubesse ler e escrever eu ia dar aula, queria ensinar a cultura dos antigos, mas papagaio velho não aprende a falar, né?”

(Dona Angelina – in memoriam)


Ouvi de uma liderança a frase acima, que reclamava sobre o aprendizado do seu filho em relação à cultura e às tradições dos antigos. Na sua lógica, a escola não estava mais cumprindo o seu papel de ensinar a cultura, pois havia muitos professores novos que não nasceram na aldeia, “e como vai ensinar o que não sabe, o que não viveu”. Ouvi também de uma docente e líder espiritual a expressão “o que nós queremos é uma escola com o cheiro do nativo”. Na sua compreensão, em uma escola indígena, a tradição deve estar inserida em suas práticas pedagógicas, como bem esclareceu: “porque a gente precisa da leitura, da escrita, da universidade, mas a gente também necessita das nossas verdadeiras identidades. A gente não pode perder nossos costumes, e esses costumes não podem deixar de ser passados para as nossas crianças”.

Ao longo deste trabalho, busquei demonstrar como o projeto de educação escolar indígena entre os Tupinambá de Olivença foi se constituindo e quais os desdobramentos entre os processos de luta na busca por direitos diferenciados. Coube-me também avaliar alguns conceitos sobre educação indígena específica, diferenciada, bilíngue/multilíngue e intercultural e, a partir de narrativas de sujeitos inseridos nesse processo, refletir sobre que tipo de escola os Tupinambá querem para si e como ela se soma à luta do movimento indígena na defesa pela afirmação da identidade, das tradições culturais e do território ancestral.

Como demonstramos na pesquisa, a escola inserida no contexto das aldeias Tupinambá foi acionada para pensar uma série de questões. Inicialmente, levar a escolarização para aqueles sujeitos que por uma série de motivos não tinham acesso à escola, tendo em vista as suas dificuldades de logística e deslocamento aos poucos espaços onde a educação era ofertada. Em segundo lugar, a escola vai se constituindo como instrumento de empoderamento. A sua expansão pelo território possibilitou o acesso às famílias, mobilizando-as e integrando-as ao movimento indígena. A consciência de indianidade veio à tona junto com a luta por direitos diferenciados.

Assim, a escola, como mostramos na pesquisa, foi vital em todos os processos de luta dos Tupinambá de Olivença e me atrevo a dizer que até mesmo para outros povos, servindo de ferramenta para o fortalecimento e a conquista de sonhos, desejos e projetos, por apresentar facilidades e privilégios, inclusive no diálogo com o poder público.

Entre os Tupinambá, a escola juntou os parentes, mobilizou a aldeia, construiu relações e transformou a vida social. Nesses processos, também vieram os conflitos, as tensões e as rupturas. Ocorre que, nas relações interpessoais e intersocietárias, os conflitos são necessários para construir novas relações e novas alianças. No caso dos Tupinambá, serviu para que outros caminhos e outras possibilidades fossem encontrados.

À medida que relações entre cacique e lideranças vão sendo constituídas e a escola vai se expandindo pelo território, ela também é atualizada, mudando os discursos e as narrativas por parte de alguns sujeitos sobre sua função social. Nesse sentido, a escola é atravessada por diferentes perspectivas: a escola pensada por caciques e lideranças tem um perfil idealizado muito parecido com os conceitos sobre educação indígena específica, diferenciada, bilíngue/multilíngue e intercultural, definindo assim o que seria uma escola indígena ideal. Esses discursos são acionados sobretudo perante o Estado, na busca por políticas públicas.

Já a escola pensada pelos pais e pelas mães busca qualificar seus filhos para terem acesso ao mundo externo, garantindo-lhes sucesso na vida social, profissional e acadêmica. Ouvi de muitos pais relatos que queriam que seus filhos desenvolvessem melhor a leitura e a escrita, pois isso possibilitar-lhes-ia acesso fácil à cidade. Para esses pais, as questões sobre cultura e tradição deveriam ser aprendidas com a família.

Um terceiro ponto é a escola pensada pelos próprios estudantes. Em alguns momentos, eles reclamavam das práticas culturais na escola, sobretudo das aulas de Tupi. Questionavam o uso da língua, em qual momento e onde seria utilizada. Ouvia de alguns que o que gostariam de aprender era a língua inglesa, por conta das músicas de que gostavam.

As narrativas apresentadas acima por pais, alunos e lideranças se configuram como desejos e vontades que perpassam a escola com perspectivas diferentes construídas por olhares diversos. É nítido que existem dois pontos de vista em relação à escola: a escola que as lideranças políticas querem para o seu povo e a que o povo quer para si, gerando um conflito de objetivos. Os discursos que defendem que a escola é produtora de cultura e tradição são, geralmente, os das famílias que desempenham alguma função política no movimento indígena e estão ligadas diretamente a uma liderança política do movimento, sobretudo no tocante ao acesso aos privilégios que a escola pode oferecer. Os demais entendem que a escola é um espaço de conhecimento universal e que as tradições e a cultura devem ser passadas de pai para filho em um contexto familiar. “A escola tem de ensinar os meninos a ler o ABC, saber tabuada para quando tiver na feira não passar troco errado” ‒ ouvi de um pai.

Nesse sentido, alguns equívocos foram sendo construídos sobre a escola dos Tupinambá de Olivença. Narrativas demonstram que a instituição escolar se constituiu como espaço de produção de identidade, de tradições e de resolução desses problemas. A escola é utilizada como instrumento de empoderamento e de acesso aos conhecimentos que possibilitem aos indígenas o ingresso ao mundo da cidade, tendo em vista o desempenho de suas funções sociais. Nessa lógica, buscamos demonstrar que a escola dos Tupinambá, a partir das práticas pedagógicas diferenciadas, fortaleceu a identidade étnica, valorizou as práticas culturais e revigorou símbolos que constituem a sua cosmovisão, ajudando na retomada da autonomia indígena perante a sociedade e os seus projetos societários. De acordo com a cacica e professora Maria Jesuína,


A escola, o papel dela nessas questões quando a gente pensou, ela foi utilizada desde então, desde quando se construiu, quando se começou a trabalhar a educação dentro das comunidades, foi utilizada como instrumento de fortalecimento da identidade do povo, através da educação. Então hoje, o papel dela continua nesse sentido, de fortalecer e para que não se perca a questão cultural, porque é o ambiente, é o local que a gente tem acesso a todas as crianças, desde a creche até o Ensino Médio e até os adultos que ensinam na EJA, para estar informando o que é que a gente tem, da nossa cultura que não pode se perder. Então é um processo de aprendizagem que passa de pai para filho, realmente dentro de um ambiente único, que é a escola. Porque a escola é um espaço de fortalecimento [...], de afirmação da nossa história. Que isso não se perca e continue sendo repassado de pai para filho, de neto para avô. (Entrevista, janeiro de 2019).



Esses pontos trazidos pela professora Maria Jesuína demonstram que um dos papéis da escola é fortalecer a identidade indígena e as suas tradições, o que nos leva a refletir que, se a identidade pode ser fortalecida a partir da escola, então ela não se perdeu.



Referências

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SOBRE O AUTOR


JOSÉ CARLOS BATISTA MAGALHÃES é mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), doutorando em Antropologia Social pela mesma universidade e consultor da SECADI para a gestão da educação indígena organizada em territórios etnoeducacionais.

E-mail: jcarlosbatista19@gmail.com





Recebido em: 17.03.2020

Aceito em: 08.07.2020



1O Território Tupinambá de Olivença está localizado na região litorânea e de mata atlântica do sul da Bahia, entre os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, e ainda não demarcado como terra indígena. A extensão territorial reivindicada pelos Tupinambá compreende um limite territorial de 47.376 hectares, fazendo parte desse território 23 comunidades, dentre as quais, Acuípe de Baixo, Acuípe de Cima, Acuípe do Meio, Acuípe do Meio II, Águas de Olivença, Gravatá, Sapucaieira, Santana, Mamão, Curupitanga, Campo São Pedro, Parque de Olivença, Olivença, Santana, Santaninha, Maruim, Serra das Trempes, Serra do Serrote, Lagoa do Mabaço, Serra Negra e Serra do Padeiro. Esta última veio a se constituir como aldeia no início de 2003, liderada pelo cacique Babau.

2O Coletivo de Alfabetizadores Populares da Região Cacaueira ‒ CAPOREC é uma Organização Não Governamental institucionalizada em 5/9/1996, mas que vem atuando no Sul da Bahia com Educação de Jovens e Adultos desde 1992.

3 Trata-se de um termo nativo. O que estou chamando de levante refere-se à retomada do processo de luta pelos Tupinambá de Olivença ao longo da história de contato, na afirmação da identidade indígena e retomada do território ancestral.

4 Fruto, em grande parte, sobretudo nos estudos etnológicos deste país, das “duas tradições” que foram se constituindo de forma apartada: os estudos sobre relações interétnicas (para o Nordeste do Brasil) e os estudos voltados para as Terras Baixas da América do Sul.

5 Uma dessas organizações é a Comissão de Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre – Copiar, que vem desde 1988 discutindo e refletindo com os professores indígenas desses estados sobre a educação escolar de suas aldeias.

6 Núbia Tupinambá ‒ como é conhecida entre os Tupinambá ‒ era ligada à Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Fase, organização não governamental que apoiou a constituição do Coletivo de Alfabetizadores Populares da Região Cacaueira ‒ Caporec, no qual assessorou pedagógica e financeiramente os trabalhos desenvolvidos na região (MAGALHÃES, 2018, p. 59).

7Sobre essas categorias ver GRUPIONI, Luis. D. B. Olhar longe porque o futuro é longe – Cultura, escola e professores indígenas no Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.


8 A Lei nº 8.261, de 29 de maio de 2002, dispõe sobre o Estatuto do Magistério Público do Ensino Fundamental e Médio do Estado da Bahia e dá outras providências. Art. 22 ‒ Na organização administrativa e pedagógica das unidades escolares haverá, de acordo com a categoria da respectiva unidade escolar e o nível de escolaridade do titular do cargo, os cargos em comissão de Diretor, Vice-Diretor e Secretário Escolar, na forma estabelecida no Anexo V desta Lei. Parágrafo único ‒ A classificação dos cargos em comissão de Diretor e Vice-Diretor, de acordo com o nível de escolaridade do titular, é a seguinte: I ‒ Nível 1: ocupante de cargo efetivo classificado nos níveis 1 ou 2; II ‒ Nível 2: ocupante de cargo efetivo classificado nos níveis 3 ou 4. Disponível em <https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10404710/artigo-22-da-lei-n-8261-de-29-de-maio-de-2002-da-bahia> Acesso em janeiro de 2019.


9 O FORUMEIBA constituiu uma importante ferramenta de articulação política e de interlocução com a Secretaria Estadual de Educação na Bahia. É o Fórum Estadual de Educação Indígena. Agrega 22 povos indígenas: Atikun, Fulni-ô, Kaimbé, Kambiwá, Kantaruré, Kapinawá, Kariri-Xokó-Fulni-ô, Kiriri, Pankararé, Pankararu, Pankaru, Pataxó, Pataxó Hãhãhãe, Payayá, Potiguara, Truká, Tumbalalá, Tupinambá, Tuxá, Tuxí, Xakriabá, Xukuru-Kariri, localizados em 25 municípios, nas regiões Sul, Extremo Sul, Norte, Oeste e Centro-Leste, tendo a maior concentração populacional nas regiões Sul e Extremo Sul.


Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 7, n.13, p. 92-117, maio/ago. 2020.