Edna Castro de Oliveira2 Maria José de Resende Ferreira3
O texto explora algumas reflexões sobre a contrarreforma do ensino médio e suas implicações para a oferta da EJA, tomando como base a pesquisa documental com destaque para as tensões e historicidade de projetos societários distintos. A partir de dados de registros das práticas de construção coletiva, analisa o cotidiano escolar dos cursos do Proeja no campus Vitória com foco na escuta dos estudantes. Os resultados indicam que mesmo num contexto adverso à oferta da EJA na instituição, a ocupação dos cursos pelos trabalhadores evidencia marcas de resistência na manutenção da oferta e o exercício coletivo dos sujeitos na luta pelo direito à educação.
This article explores some reflections on the high school´s counter-reform and its implications to EJA´s offering, using documentary research it highlights the tensions and historicity of different projects for society. Based on data from the notes taken on the collective construction practice, it analysis the school daily routine of the courses offered by Proeja at campus Vitoria, focusing on students´perspectives. The results indicate that even in the adverse context of EJA´s offering at the institute, the occupation of the courses by workers from popular classes shows signs of resistance that have sustained the maintenance of the offer and the collective exercise of the subjects in favor of the fight for the right to education.
Pensar hoje acerca dos rumos da educação no Brasil, implica, necessariamente, considerar a crise estrutural do capitalismo que se impõe, cada vez mais de forma avassaladora e contrária aos direitos universais básicos da saúde, educação, habitação etc.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10086
2 Professora associada do Centro de Educação da Ufes. e-mail:oliveiraedna@yahoo.com.br
3 Professora titular do Ifes. e-mail: majoresende@yahoo.com.br
É por meio da reflexão sobre os atrelamentos dessa crise que intentamos explicitar as implicações da atual contrarreforma 3 da educação (LOMBARDI, 2017). Os setores mais conservadores da sociedade brasileira, por meio de um movimento jurídico e midiático, impuseram à nação um golpe de Estado em 2016 que liquidou com o Estado democrático de Direito e em ato contínuo, iniciou a implementação de uma nova ordem social excludente que vem desmontando os direitos sociais e trabalhistas e colocando a soberania do país à mercê das nações centrais da ordem capitalista.
Esse conjunto de medidas de austeridades e supressão de direitos, nefastas à população brasileira, orquestrada por uma nova investida do receituário neoliberal – acrescido do avanço da onda conservadora neofascista que se vem se alastrando por todo o país, nos impulsionam a repensar elementos fundantes da formação sócio histórica brasileira para o entendimento da realidade que se processa nesse nosso acontecer histórico (HELLER, 2004).
Ao considerar a importância da nossa historicidade, recuperamos as teses de Fernandes (1979; 2006) que reiteram as persistentes heranças fundantes que caracterizam a opção da classe dominante brasileira ao aderir ao projeto societário asssociado de forma subordinada aos centros hegemônicos, delineando assim, uma sociedade de capitalismo dependente nos marcos do desenvolvimento desigual da economia mundial4: “O que distingue a situação brasileira da situação existente em outros países [...] não é a natureza dos processos econômicos, mas o modo pelo qual a sociedade regula a sua manifestação e a seleção de seus efeitos construtivos” (FERNANDES, 1979, p. 89).
Essas análises históricas, embora com um distanciamento de algumas décadas entre elas, trazem similaridades quanto à perspectiva da burguesia e seu descompromisso com o Estado brasileiro no cenário atual. Presenciamos o desmonte arbitrário de um projeto societário inclusivo para favorecer o capitalismo
3 Tomamos de empréstimos a ideia defendida por Ferreira (2017a) a partir dos estudos de Behring (2003) que problematiza o conceito de reforma a processos regressivos. Ferreira (2017a) pauta como retrocesso as mudanças empreendidas na legislação do ensino médio em vigor desde fevereiro de 2017.
4 A teoria do desenvolvimento desigual e combinado explicita a dinâmica das contradições econômicas e sociais dos países periféricos. A esse respeito consultar Lowy (1995).
transnacional com implicações político-econômicas e socioculturais perversas para a maioria do povo brasileiro.
O texto explora, preliminarmente, as políticas educacionais destinadas aos trabalhadores com ênfase na oferta do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica de Nível Médio na Modalidade de Educação e Jovens e Adultos (Proeja) no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) Campus Vitória. Na sua conformação para a inserção dos jovens e adultos no mundo do trabalho, este programa assumiu contornos próprios, a partir das mediações construídas no processo de composição e de consolidação da sociedade e do Estado brasileiro, subordinadas às diretrizes do capitalismo hegemônico. Em sequência, situa possíveis implicações da contrarreforma do ensino médio, materializada na Lei nº 13.415/2017, para a modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Metodologicamente, tomamos de empréstimos as concepções defendidas por André (2008) que reitera a importância da pesquisa no e do cotidiano escolar onde se desvelam inúmeras circunstâncias que cercam aspectos de toda ordem e que refletem nas relações sociais. A partir desse opção metodológica, nos apropriamos de dados de registros das práticas de construção coletiva que desenvolvemos no campus por meio das reuniões pedagógicas e pelos diários de campo das pesquisadoras e intentamos analisar o cotidiano escolar dos cursos ofertados pelo Proeja no Campus Vitória privilegiando a escuta dos estudantes.
Sinalizamos, nas considerações finais, que mesmo num contexto adverso à oferta da EJA na instituição desde a sua implementação, a ocupação dos cursos pelos sujeitos jovens e adultos trabalhadores evidencia marcas de resistência que vêm sustentando a manutenção da oferta do Programa no Ifes e o exercício coletivo em favor da luta pelo direito à educação por parte dos docentes e profissionais envolvidos.
O percurso das lutas pela constituição da modalidade EJA como política pública de Estado, ao longo de sua recente história, caracteriza-se pela busca de inserção de suas pautas no âmbito da agenda das políticas educativas no Brasil.
Uma análise deste percurso, na esteira da educação assumida tardiamente como direito de todos e dever do Estado pela Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) e, em específico, a afirmação da EJA como direito público subjetivo pela LDB 9394/96 (BRASIL, 1996), nos remete à consideração da produção do campo que tem se ocupado desta temática.
Os estudos desenvolvidos por Machado (2017), Pierro et al (2001), Pierro e Haddad (2015), Rummert et al (2013) dentre outros, indicam que as conquistas obtidas do ponto de vista jurídico, a partir da década de 1990, não resultaram significativas para se permitir avançar na consolidação de uma política de Estado. Simultaneamente às conquistas alcançadas evidenciam-se, nesse mesmo contexto o avanço do neoliberalismo, a integração subalterna do Brasil à lógica do capital e, consequentemente, o esgarçamento das desigualdades sociais que, de forma estrutural, se constitui e segue sendo uma ameaça à plena realização dos direitos dos sujeitos jovens, adultos e idosos.
Dessa forma, a EJA, no âmbito das políticas educativas, subordinadas às diretrizes do capitalismo financeiro que se tornou hegemônico (VIEIRA, 2011) não escapa de ser pautada por uma agenda global que se impõe, a partir da redefinição do papel do Estado que se volta para atender as demandas impositivas do mercado. Como consequência, instaura-se o controle do financiamento destinado a responder pela concretização ou não dos direitos sociais. Nesta perspectiva, é que seguindo o curso das políticas públicas, desde o Consenso de Washington 5, a definição sobre o que priorizar se tornou a orientação, o que no caso brasileiro incidiu diretamente na priorização do financiamento da educação de crianças em detrimento da educação de jovens e adultos.
No entanto, contraditoriamente, é neste mesmo contexto de subalternidade das políticas locais à uma agenda internacional, que a dinâmica de acumulação do capital acirra a competitividade do mercado de trabalho passando a demandar a necessidade de qualificação profissional (DI PIERRO et al, 2001), ao mesmo
5 Para mais detalhes ver Paulo Nogueira Batista (1994). O consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. Disponivel em: http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/17973/material/Consenso%20 de%20Washing.
tempo em que políticas educacionais passam a ser pensadas para a formação da classe trabalhadora, numa clara correlação de forças entre capital e trabalho.
No que se refere à ênfase da inserção da EJA no Ifes, essa não pode ser pensada de forma desconexa em relação aos objetos de pesquisa no campo da política educativa (TELLO, 2015), quando o que está em jogo é a democratização do acesso na Rede Federal de Educação, Ciência e Tecnologia para os jovens e adultos trabalhadores6. Não podemos deixar de considerar a investida assumida pelo Ifes - Campus Vitória ao insistir na abertura da oferta e na democratização da escola pública para esse segmento ao propor, mesmo no contexto controverso da reforma da Educação Profissional da década de 1990, o ensino médio para os jovens e adultos trabalhadores (EMJAT).
Essa experiência se fez simultânea a algumas poucas em outros Estados (FERREIRA; RAGGI; FERREIRA, 2011) como antecedentes da experimentação com a oferta da EJA, não obstante as origens da Rede Federal que nos remetem ao seu atendimento na formação dos “desvalidos da sorte”. Nesse sentido, o encontro da EJA e da Educação Profissioanal na sua historicidade, guarda as marcas de uma educação desde sempre reservada às classes menos favorecidas.
O Proeja como sabemos emerge das lutas históricas dos trabalhadores e dos segmentos acadêmicos e profissionais na defesa de uma formação que objetivasse romper com a ênfase dual da escola brasileira. Essa, a partir de uma perspectiva de classe, tem reproduzido uma formação para o trabalho manual e por consequência percursos formativos voltados para o mercado de trabalho em oposição a uma formação intelectual de base propedêutica com vistas à buscas do ensino superior (RAMOS, 2017).
Portanto, como parte de uma disputa permanente, por um projeto de formação para o segmento dos trabalhadores e por um projeto de nação, e face aos desafios de um diagnóstico que evidenciava a grave situação educacional de jovens da classe trabalhadora fora da escola e com percursos escolares interrompidos, conforme o Documento Base (BRASIL, 2007), o Proeja passa a ser
6 A esse respeito ver estudos desenvolvidos durante a formulação e acompanhamento da política no âmbito da rede Proeja/Capes/Setec/Ufes/Ifes (OLIVEIRA; PINTO; FERREIRA, 2012).
formulado como política, embalada pelo sonho de uma política pública perene para formação dos trabalhadores.
Neste movimento, diferentes segmentos da sociedade civil foram envolvidos num diálogo tenso com o governo, sobre uma proposição que buscava superar a dicotomia entre educação profissional e educação básica imposta pelo Decreto nº 2.208/97. Segundo Rummert et al (2013, p. 736),
o acúmulo de reflexões e propostas acerca da educação da classe trabalhadora, construído em conjunto com intelectuais comprometidos com a educação politécnica, unitária e capaz de assegurar uma formação integral aos trabalhadores, constituiu elemento fundamental para a [...] existência do PROEJA.
Nesse cenário de disputas e tensões para a imposição do projeto mercadológico de educação, uma releitura da proposição do Proeja, numa possibilidade de elevação de escolaridade e de formação humana integral, nos permite situar os embates de projetos já tensionados a partir de interesses privatistas que se evidenciam na dispersão de cursos, programas e projetos direcionados à escolarização de jovens e adultos trabalhadores, conforme problematizado por Rummert et al (2013).
Assim, somos atravessadas por uma outra lógica e política de formação que têm disputado de forma permanente no Campus Vitória, tentativas de esvaziamento do Proeja e de negação de direitos. A demanda inicial para que a oferta fosse assumida pela Rede Federal, não logrou o êxito esperado em função da não assunção política pelos gestores no interior do sistema. Após os 10 anos de indução dessa política (OLIVEIRA; SCOPEL, 2016) podemos reafirmar, a partir das pesquisas desenvolvidas pelas Redes Capes/Proeja e pelo Observatório da Educação UFG/Ufes/UnB7, a não consolidação do Proeja como política pública (VITORETTE, 2014).
Prevalece como hegemônica uma cultura política cuja perspectiva de oferta, voltada para a perspectiva mercantil, que reserva para segmentos da classe dirigente o acesso a uma formação propedêutica como privilégio que
7 Rede interinstitucional de pesquisa UFG/Ufes/UnB do Observatório da Educação (Obeduc/Capes) que objetivava dar prosseguimento às ações realizadas pelo Grupo de Pesquisa Proeja/Capes/Setec/ES.
viabiliza o acesso ao ensino superior, ao tempo em que o direito de acesso, permanência e conclusão com êxito da escolarização pelos trabalhadores vem sofrendo ofensivas, tal como evidenciada na proposição do Pronatec que foi assumido pela Rede Federal na perspectiva de “uma formação funcionalista, subordinada à lógica do mercado e formadora de trabalhadores aos quais se busca destituir a possibilidade de crítica ativa e organização coletiva” (RUMMERT et al, 2013, p. 736).
Em nível local, entretanto, podemos dizer que o Proeja resiste e vem promovendo a inserção orgânica da EJA na instituição. Essa inserção tem se materializado em várias ações e práticas, tais como: a oferta de um curso de qualificação profissional em Cadista para Construção Civil para manter o número de vagas para a EJA e a proposição do curso técnico integrado Guia de Turismo são ações que se juntam entre outras, para a ressignificação dos espaços e tempos e das práticas pedagógicas exploradas por Scopel (2012; 2107) e Scopel, Oliveira e Ferreira (2014).
Em relação ao curso integrado Guia de Turismo, Scopel (2017) já anunciara a estratégia da Coordenadoria do Proeja, nos seus embates, tensões e conflitos internos de apresentar a nova oferta do curso, utilizando como argumentos a extinção do curso de Edificações e a ameaça também feita pelo curso de Metalurgia. Essa nova oferta, a partir de 2015, representou uma vitória para o colegiado diante dos acontecimentos enunciados por nós.
O desafio que se impôs (e que ainda tenciona) foi organizar um curso que atendesse aos preceitos e às concepções educacionais que defendidas diante da experiência acumulada pela equipe, embora contando com poucos profissionais qualificados nessa área de turismo. Uma preocupação que também perpassava a equipe gestora era a tendência mercadológica que se buscava se afirmar na abordagem do curso de Guia de Turismo (SCOPEL, 2017).
Das muitas experiências em andamento no Proeja do Ifes Campus Vitória, importa destacar o esforço do coletivo dos educadores desse curso, para ações
que trazem possibilidades de integração entre ensino, pesquisa e extensão como desafios da práxis docente.
As experiências pontuais apresentadas por Moura, Rezende e Ferreira (2018) fazem parte de um dinâmico processo de resistência explorado nesse texto. O projeto de extensão denominado Coletivo pela base: educação e mobilização para o exercício da cidadania, possibilitam o diálogo entre escola e comunidade sob a intermediação e participação direta dos estudantes.
Outra experiência diz respeito ao projeto de extensão – Mobiliza Proeja, que problematiza as condições de acesso dos jovens e adultos aos cursos do Proeja com perspectiva de ações de incursão nas comunidades com parcerias estabelecidas entre movimentos sociais, sindicatos, ONGs e prefeituras da Grande Vitória, para divulgar e criar ações efetivas de acesso aos cursos do Programa.
Seguem ainda como ações na dimensão do ensino, pesquisa e extensão, os projetos de pesquisa em nível de iniciação científica júnior voltados para a identificação e caracterização dos espaços e de grupos afrodescendentes; e a identificação e caracterização das comunidades populares da cidade de Vitória. Esses projetos anunciam variadas possibilidades para o exercício do diálogo, na perspectiva da integração curricular, entre conteúdos das mais diversas disciplinas do núcleo comum e do núcleo técnico do referido curso.
Resta destacar inclusive, o protagonismo dos estudantes do curso Guia do Turismo na idealização, organização e realização da I e II Semana de Turismo e da I Feira de Turismo do Ifes Campus Vitória, realizadas nos anos de 2016 e 2017, respectivamente. Assim articulados com os projetos citados, no campo das relações entre o ensino, a pesquisa e a extensão, esses eventos apresentam um exercício à concretude dessa relação e ainda revelam sua consonância com o projeto político pedagógico proposto que almeja reduzir as tensões presentes na estrutura do ensino médio integrado em suas contradições historicamente determinadas e traz possibilidades para
nós educadores, de usar a criatividade, os saberes e o conhecimento, a astúcia e o rigor científico do pensar para saber fazer, de forma participativa e compartilhada, promovendo assim o protagonismo de nossos estudantes na condição de sujeitos engajados em experiências didático-pedagógicas possíveis,
principalmente no exercício do diálogo permanente e nas possibilidades das práticas de integração (MOURA; REZENDE; FERREIRA, 2018, p. 12).
Como já abordado acima, a indução do Proeja como uma política de formação para os jovens e adultos trabalhadores foi movida pelos desafios postos à educação brasileira para a democratização do acesso ao ensino médio para esse segmento da população, o que segue sendo algo ainda interditado, se considerarmos
[...] que o número de ausentes do sistema educacional - entre 18 a 29 anos - que não concluíram a educação básica representa 34,8% entre os que possuem de 18 a 24 anos, e chega a 40,7% entre os que estão entre 25 e 29 anos. De um total de 40.976.703 entre 18 a 29 anos, 15.268.965 estão fora da escola (MACHADO; RODRIGUES, 2014, p. 385).
Esses dados indicam os desafios postos para a EJA, no sentido de que há um potencial público a ser atendido em relação ao qual a lei 13.415/17 da contrarreforma do ensino médio é quase omissa, postergando assim as condições do exercício do direito à educação por esses sujeitos, para acesso, permanência e conclusão dos seus percursos de escolarização, com sucesso. A partir dessa reflexão algumas inquietações nos interpelam no que se refere ao quase silenciamento da EJA no texto da referida lei. Nela, encontramos apenas uma menção aos jovens e adultos com a alteração do Art. 24 da LDB: “§ 2o Os sistemas de ensino disporão sobre a oferta de educação de jovens e adultos e de ensino noturno regular, adequado às condições do educando, conforme o inciso VI do art. 4o”.
A maneira como a EJA é inserida no texto da lei, de certa forma reitera a lógica de desresponsabilização do Estado com a educação pública e, historicamente o trato das políticas educacionais para as camadas populares. Ao determinar que os sistemas de ensino disporão sobre a oferta de EJA, coloca-se em questão a garantia de sua obrigatoriedade pelos entes federados, tendo em vista as implicações do ajuste fiscal imposto pela Emenda Constitucional 95/2016. Como uma das implicações, o que se explicita no parágrafo 2º da lei 13.415/17 é
que a não disponibilidade dos sistemas de ensino em cumpri-la, só reforçará a redução que sofreu, nos últimos anos, as matrículas na modalidade EJA (BRASIL, 2016).
O contexto do ajuste fiscal, nos permite observar uma tendência da intensificação da precariedade das condições materiais, de trabalho, bem como de estrutura da oferta no campo da educação, que reserva para jovens e adultos uma posição praticamente invisibilizada nos sistemas, uma vez que não se prevê nenhuma ação específica para esses sujeitos.
Numa reconstrução do percurso da contrarreforma, observamos que embora a Medida Provisória 746/2016, se constitua um retrocesso, como mecanismo de destituição de direitos, no seu texto encontramos indicação de alterações no Art. 2º com relação à Lei nº 11.494/20078 nos seguntes termos:
Art. 10. [...]
- formação técnica e profissional prevista no inciso V do caput do art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996;
- segunda opção formativa de ensino médio, nos termos do § 10 do caput do art. 36 da Lei nº 9.394, de 1996;
– educação especial;
- educação indígena e quilombola;
-educação de jovens e adultos com avaliação no processo; e XIX -educação de jovens e adultos integrada à educação profissional de nível médio, com avaliação no processo (BRASIL, 2016).
Ou seja, a menção aos sujeitos da EJA nas suas diversidades culturais e etnicorraciais é varrida do texto pela Lei 13.415/2017, bem como a ênfase da formação integrada à educação profissional de nível médio. Assim, mais uma vez nos deparamos com a forma como os jovens e adultos das camadas populares, historicamente esquecidos, são secundarizados nas políticas educacionais. Podemos dizer que a restrição imposta pela nova diretriz praticamente os torna invizibilizados, o que acaba por se constituir um dos impactos da contrarreforma do ensino médio na EJA.
Essa é uma das questões que nos mobilizam a afirmar algumas aproximações entre o acúmulo que tem sido produzido sobre o ensino médio
8 Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB.
integrado e currículo integrado. O que nos leva a operar com a hipótese de que a forma como o Proeja, como proposição de política tem sido traduzida no Campus Vitória, nos aproxima dos estudos sobre o ensino médio integrado hoje ameaçado por essse marco legal.
Ainda no intuito de compreender algumas das implicações da contrarreforma para educação de jovens e adultos e para a educação pública, faz- se necessário situar seu contexto e algumas reflexões que vêm sendo produzidas pelos que se ocupam da temática do ensino médio e da Educação Profissional.
No rastreamento da literatura, ainda são poucas as ferramentas que podemos lançar mão para uma leitura crítica e substantiva das implicações da contrarreforma do ensino médio na EJA, o que se coloca como desafio para os pesquisadores do campo. Isto nos leva a dialogar com as manifestações do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio (MNDEM) e mais diretamente com Ramos (2017) para quem esse novo marco legal é a
[...] expressão da hegemonia do pensamento burgês, conservador e retrógrado, que se revelou em seu método e em seu contéudo [...] voltada mais uma vez para a classe trabalhadora no sentido de restringir seu acesso à educação básica pública e de qualidade social (RAMOS, 2017, p. 43).
A legislação em discussão, antes mesmo de entrar em vigor, despertou forte rejeição pelos mais diversos movimentos sociais, sindicatos, associações acadêmicas e científicas, entre outros representantes da sociedade civil organizada em várias partes do país. Vale destacar a reação estudantil que protagonizou a “primavera secundarista” que ecoou de norte a sul com as ocupações em 2015 e 2016, reiventando formas de organizar a escola e denunciando as consequências da contrarreforma do ensino médio, as medidas de austeridade e a supressão dos direitos sociais que vêm se processando após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Nesse mesmo movimento, a comunidade acadêmica, com destaque para estudiosos do campo Trabalho e Educação 9 , tem reforçado as denúncias debruçando em suas análises e enfatizando como a atual legislação, imposta
9 Com efeito, Ramos e Frigotto (2017), Ferreira (2017) e Ramos (2017) discorrem sobre os retrocessos da legislação ao apontarem as similaridades dessas políticas educacionais.
arbitrariamente, além de desconsiderar os acúmulos dos estudos relativos ao ensino médio, retoma dispositivos de reformas educacionais, que, no nosso entendimento, teriam sido superadas, a exemplos da reforma Capanema, da Lei nº 5.692/1971 e do Decreto nº 2.208/97. Importante situar no contexto do governo Lula a revogação desse dispositivo de 1997, pelo Decreto nº 5.154/2004, “a partir do qual se retoma a formação integrada inspirada pela concepção politécnica, debatida na década de 1980” (RAMOS, 2017, p. 32).
Apontamos, nessas análises, o que foi reiterado pelo MNDEM com respeito à proposição da nova diretriz. Esse problematizou o disposto na Medida Provisória 746/2016 no que se refere ao direito ao acesso e permanência da população de 15 a 17 anos na escola, que além, de se propor como integral em todo o período diurno, incide na proibição da oferta noturna para jovens de 17 anos. Essa proibição constitui “em cerceamento de direitos, além de configurar-se em uma superposição de ensino médio na modalidade EJA e ensino médio regular noturno” (ANPED, 2016, p. 1). Temos nesta problematização, questões que requerem o adentramento da pesquisa, principlamente quando consideramos a imposição da escola de tempo integral no Espírito Santo, e suas relações com a proposta da chamada “Nova EJA” pela rede estadual (ESPIRITO SANTO, 2017).
Do ponto de vista curricular, somos confrontadas com a proposta de itinerários formativos que anuncia a perspectiva de escolha por parte de estudantes, na tentativa de torná-los protagonistas do seu percurso de escolarização. O que vemos numa análise prospectiva é que as possíveis “escolhas” esbarram nas condições dos sistemas e de suas opções de oferta que, observando a lógica mercantil tendem a se restringir aos interesses e subordinação às demandas de um mercado de trabalho que, como nos aponta Morrow e Torres (2003) se caracteriza como mercado de trabalho marginal. Nesse caso, a não possibilidade de escolhas determinada pela opção e condições da oferta dos sistemas tendem à responsabilização dos sujeitos pelo sucesso ou insucesso nos seus percursos formativos.
No nosso entendimento o que se vislumbra como parte de interesses camuflados (BONETTI, 2015) é o esvaziamento do papel do Estado em prover condições efetivas para o “desenvolvimento de uma formação sólida, crítica e
contextualizada socialmente para todos os estudantes do Ensino Médio” (ANPED, 2018, p. 1).
A contrarreforma, nesse sentido, vem acentuar as desigualdades educacionais que marcam, notadamente, as juventudes brasileiras, e retira, desse segmento, o direito a uma formação “plena, de qualidade como requer e estabelece a Constituição Federal de 1988 consolidando o processo de apartheid social dos mais pobres” (ANPED, 2018, p. 1).
Assim, as aproximações do ensino médo integrado e do currículo integrado na EJA se reafirmam, quando temos a proposta do Proeja sob as mesmas bases “de uma formação omnilateral voltada para o desenvolvimento dos sujeitos em todas as direções” (RAMOS, 2017, p. 36). Como elemento fundamental de integração entre EJA e Educação Profissional ressalta-se, para essa autora, que “a luta pelo ensino médio integrado é a luta pelo direito a uma formação humana, plena, tendo o trabalho como princípio educativo em um currículo centrado nas dimensões fundamentais da vida: o trabalho, a ciência e a cultura” (RAMOS, 2017, p. 47).
Os impactos da presença dos sujeitos da EJA e os embates de cunho político e ideológico, a respeito da implementação do Programa no Ifes já foram problematizados por diversas abordagens teóricas e metodológicas da produção acadêmica (ZANETTI NETO, 2016; ZEN, 2016; SCOPEL 2017; FERREIRA, 2017b).
Ao se apropriarem de diferentes fontes documentais, escritas e orais, esses autores expuseram, por um lado, evidências e relatos marcantes que desqualificam os estudantes da EJA nesta unidade de ensino e marcas de discriminação à presença deles na escola tanto no início de sua oferta em 2001, por meio do EMJAT quanto nas ofertas mais recentes pelo Proeja. E por outro, desvelaram todo o movimento de resistência empreendido pelo coletivo de profissionais para a garantia do direito à educação pública e de qualidade socialmente reconhecida para esse público estudantil.
A inserção dos representantes dos segmentos da população de baixa renda, nesta escola, não se deu por iniciativa de uma filosofia institucional, mesmo considerando as suas origens e objetivo nos primórdios de sua criação. Na atualidade, essa inserção é decorrente das prescrições legislativas e da ação indutora e contestatória de grupos sociais envolvidos com a modalidade e por programas de inclusão social do governo federal. Cotidianamente, de forma velada e sutil e outras vezes, de forma devastadora e escancarada, as marcas do “não lugar” desses estudantes são expostas (FERREIRA, 2017b).
Os diferentes cursos ofertados e a cultura escolar estão ainda sedimentadas na concepção de formação do trabalhador pelo modelo tecnicista mercadológico (OLIVEIRA; PINTO, 2012), agravada pela expansão da Rede Federal desde 2008 e pela consequente necessidade de ampliação dos quadros de profissionais, com a contratação de um número elevado de profissionais. Desses, muitos são bacharéis não licenciados, têm ingressado na carreira docente sem a formação pedagógica adequada e sem perspectiva de uma formação continuada desenvolvida pela instituição.
Esse panorama, de acordo com Scopel (2017), torna a situação ainda mais latente e complexa, quando se trata da formação pedagógica dos educadores para o trabalho com jovens e adultos. Não restam dúvidas que temos um grupo de docentes que avança em suas práticas pedagógicas como bem discorreram Zen (2016) e Scopel (2017). Entretanto, reconhecemos que ainda temos caminhos a serem trilhados na garantia desses processos educativos para os sujeitos da EJA na instituição.
Ao nos atentarmos para os sujeitos trabalhadores-estudantes em suas lutas de sobreviência e em seus percursos de escolarização voltados para a ampliação de horizontes na realização de sonhos, para se afirmarem com dignidade humana no seio da nossa sociedade, encontramos nas reflexões de Freire, elementos que nutrem essa busca quando chama a atenção para a importância do não se acomodar, do não desistir. “A acomodação é a expressão da resistência da luta pela mudança que falta a quem se acomoda ou quem se acomoda e fraqueja, a capacidade de resistir” (FREIRE, 2000, p. 41).
A resistência em Paulo Freire pressupõe “[...] uma briga permanente e quase sempre desigual em favor da justiça e da ética” (FREIRE, 2000, p. 41).
Portanto, constitui “Uma briga entre desiguais onde a boniteza de ser gente se acha entre outras coisas nessa possibilidade e nesse dever de brigar” (FREIRE, 1996, p. 67).
Essa ideia de resistência trazida de Freire, contraria a visão e a cultura escolar dominantes e nos chama a refletir sobre a importância de que não basta apenas reconhecer programas como Proeja, como política de formação e de inclusão para as camadas populares. Torna-se necessário empreender, permanentemente, ações políticas de vigilância para a garantia do direito e de problematização da organização cristalizada da escola, no sentido de promover mudanças nessa realidade que não está dada, mas que deve ser transformada pela ação conjunta de todas as instâncias e sujeitos envolvidos.
Foi com esse propósito que o coletivo de professores e pedagogos do Proeja ressignificaram as reuniões pedagógicas (SCOPEL, 2012)10. Esse espaço e tempo escolares tornaram-se ímpares para esse coletivo e para os estudantes do Proeja porque possibilita, não só a concretização e efetivação da participação discente na organização do trabalho escolar, como também constituem espaços de dialógo para o protagonismo dos estudantes quanto aos direcionamentos políticos e administrativos da instituição.
A reunião pedagógica das turmas do Proeja diferencia-se da dinâmica organizacional dos conselhos de classe vigentes hoje em todos os cursos técnicos de nível médio do Instituto. Nas reuniões desses cursos, apenas o representante da turma tem participação. Vale destacar que essa é limitada somente nos primeiros momentos do encontro para a exposição de uma visão geral da turma sobre cada disciplina. Configura-se em uma ação meramente burocrática do papel da escola, onde se reforçam e legitimam os resultados dos desempenhos de cada estudante.
Esse encontro pedagógico dos cursos do Proeja acontecem semestralmente durante o período letivo e conta com a presença obrigatória dos docentes e estudantes, mediados pela equipe pedagógica e coordenação do curso técnico e do Proeja. Após orientações da condução da reunião pelos
10 Os cursos técnicos integrados ofertados para o público da EJA são semestrais. São organizadas duas reuniões pedagógicas no periodo letivo. A reunião intermediária e a reunião do Conselho final que objetiva discutir a situação de cada estudante para aprovação ou retenção dos discentes (SCOPEL, 2012).
representantes do corpo pedagógico, ocorre assim, nesse momento, a avaliação coletiva do processo educativo e avaliativo, dos serviços prestados pelos servidores nos diversos âmbitos do apoio ao ensino e da infraestrutura escolar.
Inicia-se a reunião com a avaliação da turma por cada professor. Esses fazem apontamentos gerais sobre os seus planejamentos e suas percepções sobre encaminhamento das suas disciplinas. Em seguida, discorrem sobre a atuação dos estudantes de uma forma geral e quando necessário, vão pontuando o desempenho da turma e formas de participação individual de cada estudante, se detendo em momentos importantes do processo ensino aprendizagem, com destaque para as dificuldades dos estudantes no que diz respeito à aprendizagem, assiduidade e pontualidade às aulas11.
No sequenciamento da reunião, os estudantes relatam as suas percepções acerca do planejamento das aulas, dos conhecimentos trabalhados, os aspectos que facilitam e/ou dificultam sua aprendizagem, relacionando as dinâmicas das aulas teóricas e práticas e os diversos processos avaliativos a que são submetidos. Além da avaliação das práticas pedagógicas vivenciadas, fazem referências ainda a outros serviços e setores da escola, tais como as monitorias ofertadas, as dependências, o apoio da assistência estudantil, as condições dos ambientes físicos, materiais e equipamentos de estudos12.
Uma primeira leitura desse encontro pedagógico diz respeito ao posicionamento mais cuidadoso e criterioso dos professores acerca de suas narrativas de desqualificação dos discentes, práticas correntes na instituição desde as primeiras experiências com os estudantes da EJA. Devido a dinâmica dessas reuniões, as narrativas de desqualificação dos estudantes do Programa são mais sutis uma vez que nesse espaço, processa-se uma escuta e o movimento de ”falar com ele” e “não para ele”, conforme nos alertava Freire (1996) sobre a necessidade da escuta como requisito para o diálogo e para a compreensão do conhecimento que os estudantes trazem à situação de ensino e aprendizagem.
11 Essas questões apontadas são correntes nas atas examinadas dos cursos do Proeja desde 2010 até 2017.
12 As atas apontam também reclamações acerca dos horários das monitorias muitas vezes inacessíveis pelos estudantes do noturno e da falta de monitores em diversas áreas de conhecimento das disciplinas técnicas. Também foram encontrados relatos sobre a pouca
manutenção dos serviços gerais (limpeza, lâmpadas quebradas, poucos ventiladores, aparelhos de ar condicionado quebrados e sem manutenção) nas salas de aulas das turmas do Proeja.
Assim, problematizações como o rendimento escolar, a pontualidade e a assiduidade são feitas a partir do contexto de vivências de cada estudante da EJA. Isso exige do corpo docente e técnico administrativo, reflexão e reavaliação do planejamento pedagógico e busca de soluções concretas dos serviços prestados aos estudantes e da melhoria da infraestrutura escolar para minimizar as questões postas que têm comprometido o processo escolar.
Ponderamos outra leitura possibilitada por esse encontro semestral dos sujeitos do Proeja no Ifes. Não restam dúvidas acerca das leituras positivas que os discentes fazem a respeito dos cursos, do reconhecimento e pertencimento ao Proeja, mesmo quando apontam questões que têm interferido no seus percursos educativos.
Porém, há de se ter cuidado no que diz respeito a culpabilização pelo “fracasso escolar” que se consubstancia em justificavas em “não aprender”, “por tirar nota baixa” ou “fazer as avaliações de recuperação” ou “atrasar” ou “por faltar” às aulas ou “por estar em dependência” que ainda são frequentes nos seus discursos ou até mesmo nos silêncios empreendidos por eles, como se tivessem concordando, diante das exposições dos docentes. São momentos em que percebemos que reproduzem, concordam e internalizam as exposições feitas pelos professores durante a reunião. Depreendemos que são manifestações com conotações negativas, são apreciações que não apontam condições ou superações das dificuldades dos estudantes (MARIN, 2006).
Ponderamos ainda que, mesmo as que têm um tom positivo, são considerações genéricas e todas chamam a atenção pela ausência de referências propriamente ditas sobre o processo de ensinar e de aprender, de práticas pedagógicas e avaliativas na perspectiva defendida por Freire (1996). São raros os docentes que avançam nessa análise, centram-se mais no que os estudantes não fizeram e nas “chances” dadas pelo educador que os discentes perderam; raros são os relatos que problematizam como esses estudantes avançaram no processo educativo.
Marin (2006) alerta também que essas avaliações tratam de
[...] denúncias estereotipadas, transmitidas de uma geração de professores a outra [...]. E se referem fundamentalmente a qualidades morais ou condições pessoais em detrimento dos
saberes dos alunos, dos saberes escolares e do domínio técnico de sua condição cognitiva [...] (MARIN, 2006, p. 292-293).
Uma última leitura possível a respeito desses encontros retoma experiências e processos de formação vividos na relação pedagógica entre gestores, educadores e educandos, levando-nos a reafirmar a potência dessas reuniões uma vez que temos constatado que
contribuem para a afirmação do direito que têm jovens e adultos ao conhecimento; b) possibilitam compreender o contexto em que os alunos vivem; c) atendem às condições intelectuais e sociopedagógicas dos estudantes; d) produzem nexos e sentidos;
e) permitem o exercício de uma pedagogia problematizadora e crítica por parte dos docentes e f) privilegiem o aprofundamento e a ampliação do conhecimento do discente (SCOPEL et al, 2012, p. 161).
Com efeito, esses encontros pedagógios contituem-se em espaços – tempos que mobilizam saberes e experiências dos sujeitos do Proeja – estudantes e professores e permitem vislumbrar as possibilidades do diálogo interdisciplinar para concretização e materialização da integração curricular, conforme preconiza o Documento Base do Programa (BRASIL, 2007) e explorado por Scopel (2017).
O percurso das lutas pela afirmação da educação de jovens e adultos como direito tem se caracterizado nas práticas cotidianas do Campus Vitória como um exercício de permanente vigilância epistemológica (TELLO, 2012), na defesa dos princípios ético-políticos que fundamentam a proposição do ensino médio integrado do qual a EJA compartilha pelo Proeja, como fruto de conquistas no âmbito do direito à escolarização pelos trabalhadores. Essa proposição, caracterizada pela defesa de uma formação humana plena e pelo trabalho como princípio educativo, segue em disputa, com vistas a superar a dualidade da formação para o trabalho manual e para o trabalho intelectual, o que se confronta com o retrocesso que caracteriza a contrarreforma do ensino médio (à qual os Institutos Federais resistem) e sua perspectiva de “restrição do acesso da classe
trabalhadora à educação básica pública e de qualidade social”, como nos alerta Ramos (2017, p. 43).
Com efeito, no contexto adverso do pós Golpe de 2016, e por consequência da reafirmação e acirramento de uma nova ordem social excludente e perversa que vem se impondo como destituidora de direitos conquistados pela classe trabalhadora, nos defrontamos, mais uma vez, com a disputa de projetos societários distintos. A partir da indução dos centros hegemônicos temos a opção da classe dominante brasileira pela integração subordinada à logica do capital financeiro com suas implicações para o aumento das desigualdades que ameaçam a plena realização dos direitos sociais. Neste embate, compartilhamos das lutas por um projeto contra-hegemônico que vislumbra a construção de uma outra sociedade, fundada na justiça social, que se nutre das lutas de resistências em defesa da vida em detrimento do capital.
Nesta perspectiva, não obstante o cenário desolador que nos embaça a visão de novos horizontes, podemos dizer que os percursos e práticas de escolarização vividos, por discentes e docentes da EJA no Proeja Campus Vitória têm desencadeado práticas de resistência possibilitando o avanço da inserção orgânica da modalidade no âmbito da Instituição. A ocupação dos cursos do Proeja, pelos jovens e adultos trabalhadores no Ifes, evidencia marcas de resistência que têm sustentado a manutenção da oferta do Programa neste Campus, tendo em vista a ausência desta oferta nos demais Campi da instituição. Retomando Paulo Freire (2000) essas práticas de resistência requerem defesa permanente em favor da justiça e da ética.
A partir da escuta dos sujeitos no interior das reuniões intermediárias encontramos a relevância dessas ideias presentes nas formas de resistências expressas diariamente pelos estudantes, quando enfrentam as condições objetivas a que estão expostos no meio familiar e no cotidiano escolar, diante das quais são impulsionados a não desistir, a não se acomodar e avançar nos seus processos educacionais. Dessa forma, a resistência produzida por esses estudantes deixa de ser “[...] um movimento só de reação de autodefesa e passa a ser uma ação política ou política ofensiva” (FREIRE, 2000, p. 41)
Chama atenção na análise das produções acadêmicas o silenciamento em relação ao que significou e, no nosso entendimento continua significando a oferta
do Proeja para os jovens e adultos trabalhadores, uma vez que essa oferta resiste no contexto em que temos nos envolvido. Sua não consolidação como política pública de Estado para jovens e adultos trabalhadores, não nos impede de prosseguir nos ocupando da pesquisa sobre os efeitos desta política (MAINARDES, 2006) que se pretendeu perene, sobre a inserção orgânica da EJA nos Institutos Federais e o que se tem avançado nas proposições. Fica para nós o desafio da continuidade das pesquisas e reflexões sobre as práticas compartilhadas neste estudo, que indicam as formas de resistências no exercício coletivo em favor da luta pelo direito à educação por parte dos docentes e profissionais envolvidos.
Cabe destacar finalmente, a despeito da não assunção do Proeja pela Rede Federal, que os Institutos continuam a ser espaços de disputas e de tensionamentos para que o direito fundamental à educação dos jovens e adultos trabalhadores seja concretizado, nos contextos em que a oferta do ensino médio integrado à EJA continua sendo parte dos embates permanentes.
A questão passa pela dimensão ético-política na defesa de entender o Proeja enquanto política educativa que retoma a luta dos trabalhadores pela defesa de uma educação pública e de uma formação que intente superar as históricas dualidades, sociais e educacionais.
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Recebido em: 28 de abril de 2018. Aprovado em: 06 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.