FORMAÇÃO PARA A REFORMA PSIQUIÁTRICA: A EXPERIÊNCIA DO CURSO DE QUALIFICAÇÃO EM SAÚDE MENTAL PARA PROFISSIONAIS COM FORMAÇÃO DE NÍVEL MÉDIO DA EPSJV/FIOCRUZ.¹


Nina Isabel Soalheiro2 Danúbiah Mendes-Pereira3


Resumo

O artigo apresenta os resultados de um estudo sobre o papel da Educação Profissional em Saúde/EPS no contexto da qualificação do trabalhador com escolarização de nível médio. O nosso campo de pesquisa foi o Curso de Qualificação Profissional em Saúde Mental da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/EPSJV/Fiocruz, onde analisamos o projeto pedagógico e o impacto do processo formativo na prática profissional dos alunos egressos. Os resultados apontam mudanças qualitativas no processo de trabalho, fortalecimento do seu papel na equipe e ampliação da visão política do campo da saúde mental.


Palavras-chave: Educação Profissional; Saúde Mental; Processo de Trabalho.


Abstract

This article presents the results of a study about the role of Professional Education in Health / EPS in the context of the qualification of workers with high school education. Our field of research was the Professional Qualification Course in Mental Health of the Polytechnic School of Health Joaquim Venâncio-EPSJV / Fiocruz, in which we analyzed the pedagogical project and the impact of the formative process on the professional practice of the graduate students. The results point to qualitative changes in the work process, strengthening of its role in the team, and broadening the political vision of the field of mental health.


Keywords: Professional Education; Mental Health; Work Process.


Introdução


A pesquisa que dá origem a este artigo foi realizada no âmbito da iniciação científica, dentro do conjunto de trabalhos acadêmicos do Grupo de Pesquisa


image

1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10096

2 Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Professora Pesquisadora na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV FIOCRUZ/). E-mail: ninasoalheiro@fiocruz.br

3 Bolsista de Iniciação Científica na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRUZ). Graduanda de Psicologia no Centro Universitário UNIABEU. E-

mail: danubiahmendes@gmail.com

“Desinstitucionalização, Políticas Públicas e Cuidado” da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. O grupo reúne pesquisadores com produções inseridas no campo da Educação Profissional em Saúde voltadas para o fortalecimento das políticas públicas, defesa de direitos e cuidado integral em saúde mental.

Somos um grupo de trabalho em saúde mental (GTSM) inserido no Laboratório de Educação Profissional em Atenção em Saúde (LABORAT), que desenvolve atividades de ensino e pesquisa direcionadas à qualificação profissional para a atenção em saúde. Nossos estudos sobre o processo de trabalho, prioritariamente dos trabalhadores de nível médio e técnico, são integrados aos vários processos formativos, sendo um deles o objeto desse artigo.

Apresentamos aqui os resultados de uma pesquisa Pibic-CNPq/Fiocruz que discute o papel estratégico da Educação Profissional em Saúde/EPS na qualificação do trabalhador com escolarização de nível médio para as ações de saúde mental no SUS e na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Nosso campo de pesquisa foi o Curso de Qualificação Profissional em Saúde Mental da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/EPSJV/Fiocruz, onde investigamos o perfil dos alunos e analisamos os efeitos do processo formativo na sua relação com o trabalho, nas abordagens e práticas de atenção psicossocial, e na visão social e política do campo.

O histórico do curso remonta à criação, ainda em 1995, de um curso de saúde mental - Curso Básico de Acompanhamento Domiciliar em Saúde Mental (CEBAD) – que foi pioneiro em seu objetivo de acolhimento a uma demanda crescente de formação para a Reforma Psiquiátrica. O CEBAD tinha como projeto pedagógico a qualificação de acompanhantes domiciliares para atuar como facilitadores na relação entre o paciente com demanda de atenção diária e a família, e entre estes e a comunidade. Uma experiência exitosa de formação desenvolvida regularmente entre os anos de 1995 e 2006 (BELMONTE, 1996).

Após reformulação do currículo e público alvo, a partir de 2009, foi implementado o Curso de Especialização Técnica em Saúde Mental (CETESM), depois renomeado como Curso de Qualificação em Saúde Mental. Este é o foco do nosso estudo: um curso realizado anualmente, com carga horária de 300

horas, e que formou sua oitava turma no ano de 2017. Seu projeto político/ pedagógico é formar trabalhadores de nível médio capazes de atuar e refletir criticamente sobre projetos, redes e instituições de saúde mental, dentro de uma perspectiva de educação profissional pautada pela formação ética, política e técnica (EPSJV, 2012).

A pesquisa investiga o perfil dos alunos, o processo formativo do curso e seus efeitos na prática dos egressos que trabalham na rede de saúde e saúde mental. Sem ter como objetivo formal desenvolver uma pesquisa avaliativa do curso, nosso estudo é direcionado para a visão dos alunos sobre os efeitos do processo formativo, sistematizada a partir da análise de narrativas por escrito. O desenho metodológico inclui a análise documental dos registros do curso para identificar o perfil dos alunos egressos, revisão bibliográfica qualitativa de conceitos básicos do campo da formação para o trabalho em saúde, e uma análise de conteúdo temática de um dos relatórios de final de curso.

Foram sistematizados os dados dos relatórios escritos pelos alunos das cinco turmas estudadas, sendo estes organizados em eixos temáticos e analisados de modo dialógico com os autores de referência. Os resultados encontrados permitem mapear a experiência formativa dos alunos/profissionais de nível médio em termos de mobilização de conhecimentos, efeitos da formação e mudanças nas práticas orientadas para a desinstitucionalização. Esta que continua sendo um dos maiores desafios para a reforma psiquiátrica.

Para isso procuramos caracterizar o contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), relacionando-o com o campo da Educação Profissional em Saúde (EPS) naquilo que concerne aos princípios e conceitos básicos que orientam a formação de trabalhadores. Os resultados trazem reflexões sobre as carências e características pertinentes ao profissional com escolarização de nível médio: o caráter ao mesmo tempo vulnerável e estratégico desse profissional; a necessidade da democratização dos processos formativos e sua adequação à saúde mental como um campo em permanente transformação; a importância de investir em novos cursos e fomentar temas de formação voltados para as novas abordagens e práticas psicossociais.

Metodologia


Na primeira fase da pesquisa foi realizada uma análise documental dos registros escolares para identificar os perfis dos alunos egressos, a partir de um recorte temporal de 2009 a 2013. Foram coletados os dados considerados de relevância para nossa investigação: sexo, idade, função/ocupação, vínculo institucional, município onde trabalham. As informações sistematizadas configuram um perfil dos egressos das cinco turmas, totalizando nesta fase 150 sujeitos da pesquisa.

Para o desenvolvimento da análise proposta realizamos uma revisão bibliográfica qualitativa de conceitos básicos do campo da formação para o trabalho em saúde e saúde mental. A escolha pela revisão narrativa se justifica por ser uma metodologia de busca bibliográfica de característica mais ampla e adequada aos estudos do tipo “estado da arte” de determinado tema. Além disso, sob o ponto de vista teórico e conceitual, permite a inclusão de diferentes tipos de fontes (ROTHER, 2007). Dessa forma, a revisão bibliográfica precede e norteia todo o trabalho de análise, incluindo documentos oficiais, livros e artigos selecionados a partir de obras e autores considerados de referência para os dois campos.

Na última etapa foi realizada a análise de conteúdo temática de um dos relatórios que integra o conjunto das avaliações finais dos alunos, num total de 46 relatos escritos. Os relatórios analisados consistem em textos individuais nos quais o aluno responde voluntariamente a uma questão aberta e de forma discursiva sobre os aspectos do curso que proporcionaram oportunidades de aprendizagem e tiveram impacto na relação com o trabalho, na sua prática profissional e perspectiva de futuro. Os relatórios analisados constituem um conjunto representativo das cinco turmas, sendo incluídos todos aqueles entregues e em condições de serem digitalizados para análise com uso de Software.

No desenvolvimento desse trabalho utilizamos o OpenLogos, um software gerenciador de dados textuais e de acesso aberto. Criado com o objetivo de auxiliar pesquisadores no processo de sistematização de dados, o uso do software se mostrou muito útil para nossas análises do material textual, estas de

natureza essencialmente qualitativas. O OpenLogos tem sido usado basicamente em projetos na área da saúde que utilizam um volume considerável de dados textuais a serem analisados via codificação e categorização temática (CAMARGO JR., 2000).

Foram sistematizadas 5 (cinco) categorias temáticas a partir das narrativas dos alunos, as quais descrevem os principais aspectos identificados por eles como efeitos do processo formativo: qualificação da escuta e construção do vínculo com os usuários; qualificação das abordagens e práticas; empoderamento e tomada de consciência do seu papel estratégico na equipe; projetos de continuidade da formação; ampliação da visão política e social. Os conteúdos organizados por eixos temáticos foram analisados de modo dialógico com os autores de referência, orientando a apresentação e discussão dos resultados.


Apresentação e discussão dos resultados O perfil dos alunos

Conforme apresentado na metodologia iniciamos por uma análise documental dos registros escolares dos alunos egressos para compor seu perfil. É importante ressaltar que o curso trabalha com demanda espontânea e os candidatos passam por um processo de seleção que consiste em análise de currículos e entrevistas em grupo. São formadas turmas anuais de 30 (trinta) alunos em média, sendo que a prioridade absoluta é para trabalhadores da saúde e saúde mental, com escolarização de nível médio. Para a inscrição é exigido como pré-requisito a liberação dos mesmos pelos gestores das suas instituições de origem. As aulas acontecem duas vezes por semana em horário integral, totalizando 300 (trezentas) horas aulas distribuídas em cinco meses.

Uma primeira característica que consideramos relevante no perfil dos alunos é a predominância do sexo feminino, com a porcentagem do sexo masculino nunca ultrapassando 28%, sendo que uma das turmas estudadas foi integralmente composta por mulheres. Encontramos na literatura uma discussão importante sobre a visão tradicional de cuidado identificada a um modelo familista. Baseado no pressuposto de que a família seria responsável por suprir as

necessidades de cuidado dos seus membros vulneráveis, esse modelo pode ser aplicado tanto à crianças e idosos, como a pessoas com algum tipo de dependência. Desse ponto de vista, o cuidado é entendido como um problema da vida privada, próprio do contexto familiar e ligado essencialmente a características encontradas no sexo feminino.

Essa visão da mulher como a cuidadora natural dentro da família sustenta historicamente a divisão sexual do trabalho e vem respaldando a desresponsabilização do Estado na formulação de políticas de cuidado. A problematização dessa concepção se dá a partir das mudanças do papel da mulher e sua entrada no mundo do trabalho, trazendo à tona as relações entre gênero e poder na sociedade. A partir disso iniciamos a lenta construção de uma outra perspectiva, na qual a responsabilidade sobre os cuidados pode e deve ser compartilhada entre indivíduos, família, sociedade e Estado (GROISMAN, 2017 e PASSOS, 2016).

Outro aspecto importante diz respeito ao campo profissional de origem dos alunos que foi progressivamente se ampliando ao longo dos anos. A primeira turma teve 66 % dos alunos oriundos da área da enfermagem, sendo essa porcentagem diminuída lentamente, chegando a 30 % na última turma estudada. Concomitantemente, respeitando o pré-requisito de conclusão do ensino médio, vai se ampliando o espectro de profissões dos alunos: agentes comunitários de saúde, cuidadores, oficineiros, profissionais da área administrativa, e outros tipos de trabalhadores sociais. O número mais expressivo é de agentes comunitários de saúde e cuidadores, o que determina um perfil cada vez menos “técnico”.

Admitimos uma pequena porcentagem de profissionais com formação de nível superior, restrita aos casos que desenvolvam trabalhos estratégicos na rede ou sejam inseridos em áreas de conexão com a saúde mental, como por exemplo a justiça, educação, cultura, dentre outras. A pluralidade das categorias profissionais é uma característica considerada positiva, na medida em que possibilita trocas interdisciplinares, reproduzindo a complexidade do processo de trabalho em saúde, construído histórica e socialmente na interação de diferentes saberes.

Trabalhamos com uma concepção de processo de trabalho em saúde na qual este é estruturado a partir de várias formas de organização dos serviços e

necessitaria sempre da participação de profissionais com múltiplas formações. As ações produzidas no cuidado constituem um trabalho em grande parte coletivo, que envolve diferentes saberes, e onde o mais importante será o compromisso ético efetivo dos profissionais com os usuários e suas necessidades (NOGUEIRA & PONTES, 2017). Essa diversidade presente entre os alunos favorece a percepção por parte dos mesmos da natureza complexa do trabalho em equipe e da potência dessa pluralidade.

Quando trabalhamos especificamente com formação do profissional de nível médio são muitos os desafios para a integração deste no conjunto da equipe. Na realidade do sistema de saúde é comum os profissionais atuarem numa mesma unidade desenvolvendo ações de cuidado de forma não coletivizada, muitas vezes tensionadas pela hierarquização dos diferentes saberes e categorias profissionais. Como veremos adiante essa é uma observação recorrente nas narrativas dos alunos, quando relatam sentir-se submetidos a uma condição inferior no conjunto da equipe. No processo pedagógico do curso procuramos desconstruir um entendimento generalizado de que os profissionais com escolaridade de nível médio devem se restringir à atividades práticas e de apoio, apenas necessitando de processos formativos em serviço para aprendizagem de conteúdos programáticos e atividades prescritivas (MOROSINI, 2010).

As instituições de origem dos nossos alunos são muito diversas, incluindo hospitais psiquiátricos, centros de atenção psicossocial, unidades básicas de saúde e saúde da família, hospitais gerais, unidades de emergências em saúde mental, dentre outras. São unidades de saúde da cidade do rio de janeiro e também de municípios vizinhos, principalmente da região metropolitana. As demandas de outros municípios são acolhidas na medida do possível, sendo que, no período estudado, elas representaram em média 30 por cento dos alunos. Já foram comtemplados trabalhadores de Niterói, Belford Roxo, São João de Meriti, Queimados, Paracambi, Petrópolis, Teresópolis, Mesquita, Magé, dentre outras.

Mesmo os alunos que trabalham na cidade do Rio de Janeiro, por seu perfil de baixa renda, são em sua maioria moradores de bairros periféricos ou cidades do entorno, frequentemente enfrentando dificuldades para custeio do transporte. Quanto à faixa etária variam desde os muito jovens até antigos trabalhadores da

área, sendo comum estarem afastados da experiência escolar há vários anos. Os alunos de faixa etária mais alta costumam apresentar mais dificuldades - especialmente de expressão pela escrita - mas também são aqueles que demonstram especial entusiasmo na vivência de retorno à escola, como veremos mais adiante.

Outro aspecto relevante é uma forte religiosidade manifestada permanentemente no discurso e no contexto acadêmico. Em função disso trabalhamos no curso com a perspectiva que identifica a escola como um lugar de aprendizagem e troca de conhecimentos, sempre reforçando a importância de preservá-la como espaço laico. A forte vulnerabilidade desse grupo social à influência de igrejas fundamentalistas leva-nos a inibir manifestações ou ritos religiosos que possam causar constrangimentos aos outros, mas sempre protegendo a liberdade de crenças.

Ao final dos cinco meses de curso os alunos estabelecem fortes laços afetivos, sendo muito comum ações de solidariedade entre eles diante de dificuldades eventuais. Em todas as turmas há formação de grupos que preservam formas virtuais permanentes de comunicação. Essa característica do prolongamento do contato após o término do curso tem sido favorecida pelo aumento progressivo de acesso aos múltiplos recursos da internet. Durante o desenvolvimento dos cursos, cada vez mais, são criadas formas de comunicação rápidas e eficientes para troca de informações e materiais didáticos disponíveis na rede.

A partir de 2013, passamos a realizar anualmente o Seminário de Saúde Mental da Escola Politécnica/Fiocruz, evento regular criado com o objetivo de reunir alunos egressos, trabalhadores do SUS e a comunidade acadêmica em torno de um debate sempre atualizado sobre os desafios da reforma psiquiátrica.


A proposta político pedagógica


O curso se estrutura a partir da perspectiva de uma Educação Profissional em Saúde/EPS pautada por uma concepção de formação como necessidade e direito do trabalhador, aliada a uma concepção de Saúde Mental entendida como campo teórico/técnico, mas também de luta política. Premissa que se atualiza e

justifica na atual conjuntura política, onde a superação de um modelo asilar violento e excludente operada pelo nosso campo ao longo de décadas, encontra- se ameaçada.

A lei nacional aprovada em 2001 consolidou as conquistas do movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira/RPB, regulamentando a reorientação do modelo assistencial através de uma redução planejada de leitos e da construção de projetos e processos de desinstitucionalização. Foram anos decisivos para a implantação e expansão de uma rede territorial de serviços de atenção psicossocial (RAPS), além da construção de políticas inclusivas no campo do trabalho, moradia, lazer e cultura. Uma política nacional consolidada que se encontra neste momento em risco, diante de um contexto de retrocessos no sistema de saúde como um todo.

A proposta pedagógica do curso se alinha com o conjunto de processos formativos da EPSJV/Fiocruz, dentro de uma perspectiva de educação profissional orientada para uma formação ética, política e técnica de trabalhadores do SUS. Como ressaltam Pereira e Ramos (2006), historicamente, as concepções de educação profissional para os trabalhadores da saúde tem se constituído por projetos contraditórios e conflitantes, estando em permanente disputa os diferentes modos de conceber a saúde e as relações entre trabalho e educação.

Como demonstram Lima e Braga (2006), apesar das grandes conquistas do movimento sanitário na constituinte e seus desdobramentos na construção do SUS, a educação profissional de nível médio no Brasil continuou não sendo prioridade. Num contexto de expansão do modelo de saúde privatista, o lugar destinado aos trabalhadores técnicos na divisão social do trabalho continua sendo aquele do executor de tarefas e objeto de treinamentos.

Saviani (2003), discutindo os fundamentos de uma educação politécnica, ressalta que é uma formação desenvolvida a partir do próprio trabalho social, incorporando a compreensão das suas bases, funcionamento e organização no conjunto da sociedade. Uma proposta pedagógica que necessariamente problematiza as relações entre trabalho intelectual e trabalho manual. Nesse sentido, incluiria uma dimensão teórica, mas seria, sobretudo, um processo em que se aprende praticando. Uma prática na qual é intencionalmente estimulada a

compreensão de forma aprofundada dos princípios científicos implicados nas bases sociais do trabalho.

Dentro desta perspectiva, o curso tem como objetivo atender uma demanda crescente do campo da saúde mental de uma formação qualificada e crítica para seus trabalhadores, diante dos desafios permanentes colocados para o processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A diversidade de estratégias de cuidado e organização de serviços exige um processo de trabalho em equipe, para o qual se torna fundamental uma formação ao mesmo tempo clínica e política. Os alunos egressos do curso devem estar aptos a integrar estas equipes e atuar na rede de serviços de saúde junto às pessoas que sofrem de transtornos mentais, à família e comunidade, incentivando autonomias e promovendo inclusão social. Em suma, uma prática de ensino voltada para o profissional de nível médio, que seja integral e incorpore a diversidade conceitual e temática do campo da atenção psicossocial.

Lobosque (2017) ressalta a importância de uma formação em saúde mental que inclua os principais campos conceituais que dialogam com uma clínica antimanicomial e comprometida com o avanço da luta política. Para a autora, a proximidade com as experiências práticas seria uma condição, por propiciar contato com a riqueza e os desafios desse fazer próprio da atenção psicossocial. Reforça a importância dos alunos serem os protagonistas da sua própria formação, com liberdade para questionar, acrescentar novas perguntas ou formulá-las de maneira diversa, num engajamento que seria indispensável para a formação de novas gerações de trabalhadores.

Coelho et al (2017), ao sistematizar uma experiência de formação em saúde mental a nível de residência trazem reflexões importantes para a educação profissional de trabalhadores do campo da atenção psicossocial. Afirmam que a ampliação das abordagens e convivência com o fenômeno da loucura exigiria um perfil de trabalhador que tenha competência clínica e política, e que também seja articulador entre pessoas, coletivos e instituições. Para isso deve de fato formar para uma atenção integral, oferecendo elementos que desenvolvam a capacidade de diálogo com os subsetores da saúde e também com outros setores como a educação, assistência social e justiça.

Os autores reforçam que a educação de trabalhadores para a atenção psicossocial deve ter como perspectiva intervenções interdisciplinares de caráter crítico, investigativo, criativo e propositivo. A multiplicidade de experiências no campo da saúde mental envolve necessariamente integração e diálogo entre diferentes formas de conhecimento, sem que haja dominação ou hierarquização dos saberes e categorias profissionais.

Ramos (2009), por sua vez, ressalta a relevância das determinações de ordem econômica e política para a saúde, alertando para a importância de não atribuirmos apenas ao trabalhador a responsabilidade pelas transformações das práticas de trabalho. E aponta também para a importância de não esperarmos do trabalhador práticas de integralidade numa realidade em que a divisão social e técnica do trabalho seria determinante. A autora propõe que, ao princípio da integralidade na atenção, teria que corresponder um princípio da integralidade na formação.

A concepção de formação de trabalhadores em saúde como um direito e uma necessidade social implica a ruptura com um modelo dualista de educação, no qual o trabalhador tem acesso apenas a saberes instrumentais que lhe permitam desempenhar tecnicamente suas funções. Buscando essa coerência, o curso se propõe a trabalhar conteúdos e conectar saberes que possibilitem ao aluno construir uma compreensão crítica do campo da saúde mental, entendendo sua história, as políticas, suas práticas e a relevância do seu próprio papel na constituição desse cenário.

Para o desenvolvimento da proposta pedagógica do curso, sua estrutura curricular se divide em quatro módulos. No primeiro módulo abordamos a história da visão social sobre a loucura, cidadania, direitos civis, políticos e sociais. Um conteúdo introdutório para a discussão da Reforma Sanitária e do SUS. No segundo módulo abordamos as bases conceituais e o grande marcos históricos da RPB, além de introduzir as bases do processo de trabalho em saúde, e em especial o papel estratégico dos trabalhadores de nível médio. O terceiro módulo é dedicado aos principais temas clínicos pertinentes ao campo da atenção psicossocial: psicopatologias, estratégias terapêuticas e farmacológicas, práticas de acolhimento e cuidado, estratégias de inclusão social. O último módulo

consiste na prática profissional, a qual será objeto de análise crítica no trabalho de conclusão de curso (TCC).

No decorrer do processo são realizadas algumas oficinas específicas e com diferentes objetivos. A Oficina de informática visa propiciar ao aluno conhecimentos básicos de uso da internet para pesquisa, conhecer fontes de dados e fazer busca bibliográfica. Foi incorporada ao currículo com o objetivo de fornecer ferramentas para estimular a busca de novos conhecimentos. A Oficina de Produção Textual foi criada com o objetivo de trabalhar de forma criativa diferentes tipos de texto, ampliando as habilidades expressivas dos alunos em textos escritos e desenvolvendo o interesse pelo seu aperfeiçoamento. Essa oficina é coordenada por professores da área de letras, que também oferecem um apoio pedagógico na escrita dos relatórios finais e outros trabalhos obrigatórios.

Outra atividade pedagógica importante é a vivência por parte dos alunos de uma roda de Terapia Comunitária, que tem como objetivo facilitar a expressão e elaboração de questões que emergem no grupo, fortalecendo vínculos entre todos. A inclusão da literatura entre os conteúdos curriculares tem sido outra experiência positiva. Ministram as aulas um professor com formação na área de letras em parceria com outro da área de saúde mental. Trabalha-se o tema da literatura e saúde mental, através de obras de referência e autores que dialogam com questões do campo. São lidos e discutidos textos literários, sejam relatos autobiográficos ou ficcionais, que tratam criticamente o tema da loucura, do poder da ciência e do papel social da psiquiatria.

O curso parte da concepção de atenção psicossocial como um campo interdisciplinar que soma diferentes olhares e saberes, conectando aspectos subjetivos e sociais das experiências de sofrimento psíquico. Por isso o corpo docente é muito diversificado incluindo profissionais qualificados tanto da área acadêmica como do campo da assistência. Profissionais com diferentes inserções na rede são convidados a falar de trabalhos relevantes como, por exemplo, projetos de cultura, lazer e geração de renda. Essa diversidade possibilita o acesso a diferentes linguagens como a arte, literatura, psicanálise, e também a diferentes metodologias de ensino.

A coordenação do curso trabalha no sentido do estímulo a essas diversidades temáticas, porém com uma orientação geral ao corpo docente

quanto ao uso de linguagem acessível, mas sem perder a complexidade própria aos temas da saúde mental. Apesar de um perfil alinhado ao campo progressista da reforma psiquiátrica, os professores trazem sempre diferentes inserções e referências, sendo boa parte com longo histórico de militância e/ou exercício de importantes funções públicas.

Durante o curso são realizados trabalhos em grupo, seminários e atividades coletivas com o objetivo de criar uma ambiência que promova a interação e troca de experiências entre os alunos. Uma dessas atividades é a chamada prática profissional coletiva que consiste numa atividade externa, geralmente uma visita à rede de saúde mental de um dos municípios dos alunos participantes do curso naquele ano. A prática coletiva visa proporcionar uma visão geral e contato com profissionais de diferentes instituições, os quais sempre nos recebem nos diferentes serviços e depois em uma roda de conversa onde compartilham dificuldades e desafios.

Finalmente, são também incorporados ao curso os desafios da conjuntura política do momento, a partir dos quais são programadas atividades militantes como participação em debates, manifestações, audiências públicas estratégicas para a saúde mental ou as tradicionais comemorações do Dia Nacional da Luta Antimanicomial.


A visão dos alunos sobre o processo formativo


Conforme descrito na metodologia, através da análise dos relatórios foram identificadas e sistematizadas as seguintes categorias temáticas: qualificação da escuta e construção do vínculo com os usuários; qualificação das abordagens e práticas; empoderamento e tomada de consciência do seu papel estratégico na equipe; projetos de continuidade da formação; ampliação da visão política e social. Dessa forma, os conteúdos organizados por eixos temáticos serão descritos a seguir, de forma a fazer dialogar as falas emblemáticas dos alunos com os autores de referência.


  1. - Qualificação da escuta e construção do vínculo com os usuários: referências feitas pelos alunos à disponibilidade de aproximação e

    reconhecimento do sofrimento psíquico, além de uma melhora na qualidade da escuta e acolhimento.

    Dentro de uma concepção de saúde como direito e defesa da vida torna-se fundamental a compreensão do processo de trabalho como essencialmente relacional e dependente de uma qualidade na escuta e construção de vínculos entre profissionais e usuários. Os alunos referem-se, de forma recorrente, à sua experiência no curso como algo que produziu mudanças nessa relação: “mudou meu modo de ver e agir com os pacientes de saúde mental” (A. 5)3; “comecei a perceber que estava enganado quanto ao meu modo de enxergar o portador de transtornos mentais” (A. 20); “Vi que posso ouvir mais e falar menos” (A.10).

    Amarante e Brasil (2008) ressaltam a importância de uma concepção de formação em saúde mental que inclua reflexões mais amplas e problematizadoras da complexidade da experiência humana. Defendem a necessidade de induzir essas reflexões no trabalhador para fortalecer a sua própria percepção como sujeito no processo e não apenas “técnico”. Para os autores, o protagonismo dos profissionais e outros agentes sociais como os usuários e familiares, resulta na sua consciência como sujeitos coletivos, processo fundamental para que resistam à tendência de anulação de suas identidades.

    As narrativas dos alunos evidenciam esse tipo de reflexão quando trazem relatos de mudanças subjetivas: “... aprendi que os ditos loucos são pessoas complexas e fascinantes, que tem um universo de possibilidades na maioria das vezes latente, necessitando apenas de um olhar desprovido de preconceitos.” (A.12); “Este curso que realizei ao longo desses cinco meses foi de grande importância para maior conhecimento em uma área da saúde muito complexa que é a mente humana”. (A.25); “as aulas provocaram em mim uma transformação radical”. (A.13)

    Santos e Nunes (2017) num estudo sobre os Agentes Comunitários de Saúde ressaltam que, mesmo diante da incipiência de investimento na formação desses profissionais, eles seguem afirmando o desejo de saber lidar com o adoecimento, de abordar o sujeito em sofrimento mental e sua família. Para os autores esse desejo de conhecimento vem diretamente das situações vivenciadas


    image

    3 O conjunto de relatórios foi nomeado com a letra A (aluno) e numerados até o total de 46, obedecendo à uma ordem cronológica (2009 a 2013).

    no trabalho, das quais se origina um saber orientado pelo seu repertório de competências e habilidades, um saber construído no próprio exercício do fazer em saúde mental.

    Os alunos trazem essa questão como fonte de angústia, mas ao final associam a vivência do curso a um processo que possibilita autoconhecimento e mudanças pessoais: “a angústia de atuar em saúde mental deu espaço a maior segurança na realização desse desafio”. (A.21); “Todo conhecimento adquirido foi uma grande experiência de autoconhecimento, com o decorrer dos conteúdos fui me avaliando”. (A.23); “... mudança de crenças e atitudes para que tenhamos maior chance de alcançar melhorias em ações que visem as estratégias de prevenção e reabilitação para usuários.” (A.3);


  2. - Qualificação das abordagens e práticas: referências a mudanças qualitativas no modo de aproximação dos usuários, reflexões críticas sobre o trabalho cotidiano e transformações nas práticas.

    Entendemos que os processos de qualificação na saúde devem partir da problematização do próprio processo de trabalho, visando a transformação das práticas profissionais e da organização do trabalho, sempre tomando como referência as necessidades de saúde das pessoas e das populações. As práticas educativas devem ser construídas a partir da conexão entre os saberes formais dos especialistas e os saberes operadores das realidades. E para que sejam verdadeiramente apropriadas pelos profissionais torna-se essencial que sejam sempre revistas em seu papel de produzir autoanálise e auto-gestão (Ceccim, 2005).

    Os alunos/profissionais falam desse entrecruzamento de saberes: “Precisava ir à procura de novos conhecimentos que pudessem somar com meus conhecimentos práticos, do meu trabalho no Consultório na Rua onde atuo como Redutor de Danos” (A. 46); “Trabalho num Caps como oficineira há quase um ano e desconhecia completamente a saúde mental..., era totalmente preconceituosa, tinha medo de pacientes com transtorno psiquiátrico, era totalmente leiga nesse assunto.” (A.15)

    Dantas Coelho et al (2017) ressaltam a importância para o campo da saúde mental da aprendizagem de atitudes, posicionamentos políticos e habilidades

    para lidar com suas especificidades, e em especial de uma delicadeza necessária para as intervenções na história e nos espaços de vida das pessoas. Amarante e Brasil, por sua vez, apontam para a necessidade de construção de novos saberes e de novas práticas sociais, o que exigiria uma formação complexa e crítica, que supere o modelo de educação baseada em treinamento, adestramento ou otimização de recursos humanos. Afirmam que, para além da visão errônea do processo formativo como transferência de conhecimentos, estes são processos que envolvem emancipação, potências, projetos e perspectiva crítica (Amarante e Brasil, 2008).

    Os alunos relatam a descoberta dessas especificidades do trabalho na saúde mental: “Compreendi através do curso que, diferentemente de outros setores da saúde em que atuei, a saúde mental é definida por paciência, tomada de responsabilidade a fim de garantir assistência integral e continuidade” (A.4). Referem-se a experiências subjetivas e novas aprendizagens: “Após esse curso vou rever muita coisa na minha vida.” (A.52); “Estava aprendendo a olhar para o outro de uma forma mais humana. Aprendi que o mais importante de tudo é ouvir o que o outro tem a dizer” (A.32); “Foi muito importante escutar experiências de diferentes atores... O conhecimento precisa de espaços como esse, democrático.” (A. 29).

    Ao mesmo tempo em que relatam a descoberta de um campo novo, afirmam a expansão de perspectivas para a saúde mental em seu próprio trabalho: “o campo novo em que piso possui trilhas seguras em que a loucura passa a ser um processo tão natural, quanto a diabetes ou a hipertensão, a vida e a morte, passíveis portanto da intervenção de um técnico da Estratégia Saúde da Família.” (A .3)

    Por isso a nossa concepção de saúde mental para formação de trabalhadores inclui compreendê-la não como mais uma especialidade que demanda ações específicas, mas como um campo de saber que pode ajudar as equipes de saúde a ressignificar o que já fazem. A saúde mental nos ensina a compartilhar dificuldades e experiências para lidar com o adoecimento em sua dimensão de sofrimento, mas também de riqueza na relação com o outro (Rotelli, 2008).

    Assim, o curso pretende fomentar a construção de práticas nos mais diversos níveis de atenção, para melhorar as condições de vida e saúde dos usuários que apresentam sofrimento psíquico mais ou menos intenso ou formas muito próprias de viver que desafiam nossos valores culturais e sociais. (SOALHEIRO, 2017).


  3. - Empoderamento e percepção do papel estratégico na equipe: referências ao fortalecimento da participação nas decisões institucionais, autonomia para implementar ações, além do reconhecimento e valorização por parte da equipe.

Santos e Nunes (2014) referem-se a uma carência de ações educativas que efetivamente auxiliem os profissionais da saúde no cuidado integral à pessoa em sofrimento mental. Reforçam a necessidade de valorizar as relações entre Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária e a necessidade de processos formativos que superem a perspectiva dos treinamentos, cursos e jornadas pontuais. Coelho et all (2017), em outro contexto, pontuam a importância de espaços no processo de trabalho que funcionem como lugares de acolhimento para situações de intenso sofrimento psíquico dos trabalhadores, mas também de aprendizagem e empoderamento.

Os alunos relatam de forma recorrente os efeitos da formação relacionados ao aumento da autonomia, maior participação na equipe, e empoderamento através do conhecimento: “Tenho certeza que estou saindo desse curso mais capacitada para contribuir com a equipe do Caps” (A.15); “Espero que no futuro todo esse conhecimento seja colocado em prática, como já iniciei na minha, juntamente com a psicóloga estaremos iniciando um grupo terapêutico”(A.16); “tive a oportunidade de passar conhecimento do que eu aprendi para os profissionais que trabalham comigo”(A.25); “sou cuidadora de idosos domiciliar e me será de extrema importância o aprendizado em Saúde Mental, porque posso não apenas cuidar de idosos e sim cuidar de pessoas”(A.43)

Saviani (2003), referindo-se à educação continuada, aponta riscos e apresenta críticas a uma concepção de ensino focada na formação de trabalhadores para executar com eficiência tarefas demandadas pelo mercado de trabalho. Para o autor tal concepção deve ser superada porque implica no

pressuposto da divisão social do trabalho. Uma separação entre os que concebem e controlam o processo de trabalho, e aqueles que o executam.

No relato dos alunos encontramos a vivência dessa hierarquização: “Percebo que no meu local de trabalho a enfermagem [referindo-se ao técnico de enfermagem] costuma não ocupar o seu lugar nas reuniões de equipe com relação à discussão dos casos dos pacientes, ficando presa aos cuidados de rotina... Agora me sinto com mais responsabilidade e fico encorajado a participar das mesmas, ser mais um a ocupar o meu lugar na equipe.” (A.2); “O curso nos fomenta o protagonismo a todo o momento... permitiu ter outro lugar no meu trabalho diante da minha equipe, ganhando potência” (A.27)Estou vários anos sem estudar e tive algumas dificuldades... Este curso é muito valioso para os profissionais técnicos” (A.26)


IV– Projetos de continuidade da formação: referências à importância da escolarização ou afirmação da necessidade de formação continuada/educação profissional.

Para Saviani (2011), a educação profissional seria, ao mesmo tempo, uma exigência do trabalho e um processo de trabalho. O autor situa essa concepção como uma pedagogia histórico-crítica, cujo ponto de referência e compromisso é a superação da divisão técnica e social do trabalho e, no limite, a transformação da sociedade. Os alunos evidenciam a importância de dar visibilidade às especificidades da sua condição: “O profissional de ensino médio muita das vezes não tem a oportunidade de ter essas informações teóricas como as equipes de trabalho. Vai aprendendo a lidar com os casos no próprio dia a dia, adquirindo a prática.” (A.14); “E apesar de todas as dificuldades que cada um teve, estamos conseguindo realizar mais uma conquista” (A.4); “Vínhamos de plantões cansados e nunca houve uma repreensão... foi muito bom, aprendi muito e se tiver condições não pararei aqui.” (A.6); “Penso que este curso deveria sempre ser prioridade para os profissionais da saúde de nível médio” (A.30);

Pereira e Ramos (2006) ressaltam que as práticas instituídas nunca são neutras, sendo sempre fundamentadas filosófica e ideologicamente por uma concepção de mundo e por um projeto de sociedade. Para as autoras, a perspectiva da pedagogia histórico-crítica rompe com a ideia de formação

pautada pela fragmentação do conhecimento e pelo reducionismo da prática profissional enquanto tarefa a ser executada. A educação tem o papel de possibilitar a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos do trabalho e a educação profissional em saúde não pode ser instrumento de ajustamento dos trabalhadores às condições injustas e desiguais do trabalho na sociedade capitalista.

Os alunos identificam a realização do curso à ideia de conquista, superação, oportunidade, ressaltando seu potencial de estímulo à busca de novos conhecimentos e expansão de horizontes profissionais. “O curso deve ser aberto aos menos favorecidos em conhecimentos... minha perspectiva de futuro é ter oportunidade de crescer nessa área” (A.37); “apesar de já trabalhar na saúde mental há muito tempo, não conhecia como funcionava” (A.19); “O curso surge em um momento de muita reflexão na minha prática profissional, proporcionando- me com os conhecimentos adquiridos a renovação técnica e uma visão ampliada e mais profunda da saúde mental e seus desafios” (A.11).

São recorrentes as falas que se referem à determinação de dar continuidade à formação e a projetos de fazer graduação na área de saúde e saúde mental: “minha perspectiva para o futuro próximo... iniciarei o curso acadêmico de Psicologia” (A 43); “Meu objetivo é me especializar cada vez mais nessa área, e dar prosseguimento na área de Psiquiatria.” (A.10); “Um novo mundo se abriu para mim, é assim que inicio meu relatório final. Tal qual um véu que cobria meus olhos, eu pude me perceber e aos outros”. (A.28). “A saúde mental sensibilizou- me, me tornando um ser humano melhor, o curso me deu base para discussão, ambos entraram na minha vida como um divisor de águas, contribuindo com meu crescimento pessoal e profissional; Saberes que levo para a vida. O curioso é que mesmo assim, continua não sendo o bastante para mim” (A.20);


V - Ampliação da visão política e social: referências a mudanças na percepção da política, críticas ao papel social da saúde mental e das relações da sociedade com a loucura.

Yasui (2010) enfatiza que a reforma psiquiátrica não deve ser entendida apenas como uma reorganização da estrutura dos serviços de saúde ou mudança

nas instituições. A Reforma Psiquiátrica Brasileira transforma a visão social da loucura, amplia a concepção de cuidado em saúde, e, dialogando com a perspectiva histórica, se associa a mudanças ligadas ao próprio processo civilizatório. Parte do encontro cotidiano com o sofrimento para criar novas formas de cuidar, dando visibilidade a diferentes sociabilidades e mantendo viva a utopia de outro mundo possível.

São muitos os relatos dos alunos que evidenciam mudanças na visão das relações entre sociedade e loucura, e uma ampliação na percepção política do lugar social da saúde mental: “Conhecer a evolução e a história da saúde mental no Brasil, os fundamentos da reforma da psiquiatria, ...faz-me pensar o quanto foi importante buscar conhecimentos.” (A.18); “A Reforma Psiquiátrica está acontecendo aos poucos, pois toda mudança requer tempo e disposição. E está ligada a sensibilidade, atenção, saber ouvir o outro e a coragem por parte dos profissionais da área em meio a tantas dificuldades sociais e econômicas” (A.2); “O que eu queria era saber falar sobre a saúde mental, sobre sinais e sintomas, diagnósticos. Não sabia como a política foi importante para o acontecimento da saúde”. (A.20); “foi possível visualizar a partir daí que não são caminhos fáceis”. (A.31)

Rotelli (2008) aponta que, para além do trabalho cotidiano de cuidado, é essencial que os profissionais lutem para que as políticas públicas respondam às necessidades de casa, de sociabilidade, de afetividade e de trabalho dos seus pacientes. Para o autor, a nossa luta deve ser por uma organização social que não seja feita apenas para os fortes.

Uma luta que reconhecemos no relato dos alunos quando falam do seu exercício de autocrítica e a descoberta da política: “Eu não entendia porque havia o movimento antimanicomial...hoje acredito que fora do convívio social os doentes mentais só pioram e deixam de viver mesmo estando vivos”. (A.4); “o meu preconceito existia sim, era involuntário... eu era mais uma vítima de padrões de uma cultura equivocada”. (A.26); “Hoje tenho uma nova visão da saúde no Brasil”. (A.5); “Entendi o quanto posso contribuir para que as internações se tornem uma realidade distante. Conheci a história da psiquiatria no Brasil.” (A.7); “Reforma psiquiátrica e desinstintucionalização já passou a ser minha bandeira de luta, como também um desejo.” (A.28).



Considerações finais


A importância dos trabalhadores como protagonistas dos processos de reforma psiquiátrica no Brasil está presente desde a sua origem. Em 1978, uma série de denúncias de violação dos direitos humanos, incluindo violência e mortes de pacientes nos hospitais psiquiátricos, foram feitas pelos próprios funcionários da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam). A reação imediata do Ministério da Saúde, através da demissão dos trabalhadores envolvidos, suscitou mais protestos e uma greve histórica que daria origem ao Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM).

A partir daí os trabalhadores se tornam agentes de um movimento nacional que conduziu debates e propostas de luta pelas transformações da assistência psiquiátrica. O MTSM desencadeia a mobilização política necessária para a urgente reforma dos hospitais psiquiátricos como produtores de violência. Para além dos muros, fazem também uma crítica contundente à função social da psiquiatria. Dessa forma, o MTSM se amplia como movimento social para dar origem ao Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) que impulsiona as grandes transformações da política nacional de saúde mental nas décadas seguintes (Amarante, 2013).

A narrativa dos alunos egressos do curso e também profissionais inseridos nas ações e serviços de saúde enuncia uma aproximação entre o seu processo de trabalho e a militância política como um dos efeitos da formação. Yasui (2010) ressalta esse aspecto quando afirma que, desde a sua origem, o protagonismo dos trabalhadores na luta pela reforma da assistência vai se ampliando para um movimento pela transformação da sociedade e suas estratégias de exclusão. Para o autor, a reforma psiquiátrica envolve toda a sociedade, sendo sempre articulada ao tempo histórico e dependente de ações políticas para sua continuidade.

Para Lima e Pereira (2008) a educação profissional tem por principal função contribuir para a emancipação e o empoderamento dos trabalhadores em relação a uma ordem social e econômica excludente que transforma a saúde e a educação em mercadoria. Os autores ressaltam a importância da defesa da

escola e do estímulo à escolarização como política pública, em especial para a formação dos trabalhadores técnicos em saúde. A isso se somaria a luta pela democratização dos processos formativos e o estímulo à autonomia do profissional frente ao seu cenário de atuação.

Como vimos, essa é uma questão muito presente nos relatos dos alunos, onde encontramos inúmeras formas de expressão de mudanças na percepção do valor social do trabalho, empoderamento na equipe, planos de formação continuada e projetos pessoais de aumento do grau de escolaridade.

Torrenté (2017), discutindo a formação de trabalhadores em Saúde Mental para a Reforma Psiquiátrica, diz que esta deve ser pautada em uma ética da implicação, construída a partir do exercício crítico. Para a autora atuar na área de Saúde Mental exigiria entusiasmo na forma de trabalhar, coragem no enfrentamento das dificuldades inerentes ao convívio com sofrimentos emocionais intensos, num contexto em que se somam desigualdade social e miséria humana. O que, por sua vez, exigiria uma pedagogia exercitada no cotidiano e que produza processos formativos criativos e flexíveis. Formar para a saúde mental implica estimular posturas sensíveis, dialógicas, acolhedoras dos conflitos e irracionalidades do humano. Mas também contemplar momentos de acolhimento das angústias e desafios do cotidiano, além de espaços de militância integrados aos espaços de produção de conhecimentos científicos.

Como vimos, os alunos trazem essas várias dimensões do processo formativo quando se referem a ele como divisor de águas, disparador de processos reflexivos sobre as suas práticas, espaço de autoconhecimento, compartilhamento de angústias, e também de revisão de valores pessoais. Alguns relatam que antes do curso trabalhavam sem conhecer o campo da saúde mental, outros dizem que achavam que estavam fazendo o que tinha que ser feito, mas descobrem no decorrer do processo que precisam mudar muito. Enfim, são muitas as falas contundentes em relação às mudanças no processo de trabalho.

A nossa perspectiva de formação para a reforma psiquiátrica é, sobretudo, pensada a partir da desinstitucionalização, na verdade um construto teórico que designa um conjunto de estratégias para desconstruir saberes e práticas que estariam institucionalizadas e produzindo novas institucionalizações (SOALHEIRO, 2017). A desinstitucionalização não pode ser entendida como uma

técnica, uma fórmula ou um conjunto de normas, mas sim como uma perspectiva que visa potencializar as energias internas da instituição para desmontá-la e transformá-la. Um trabalho homeopático que visa transformar espaços, técnicas, estruturas administrativas, hábitos e linguagens. E que implica numa ideia de a posteriori, de um futuro a ser construído permanentemente no cotidiano da instituição. (LEONARDIS; MAURI & ROTELLI, 1990).

Concordamos com Rotelli (2008) quando afirma que no contexto de processos formativos não comporta satisfazer a ânsia dos alunos em aprender modelos ou adquirir competências. Para ele, criar novas instituições, espaços e projetos coletivos significa dar respostas as necessidades e intervir na realidade. De fato, encontramos essa expectativa dos alunos em relação ao curso como um espaço de aprendizagem de técnicas, ou mesmo relatos de estranhamento de um suposto excesso de conteúdos referentes à política. Mas, como vimos, são expectativas que se encaminham para uma percepção da importância do estudo das políticas de saúde mental e do SUS e a incorporação destas na sua visão sobre o próprio trabalho.

O cenário atual de desmonte das políticas públicas - em especial da política de saúde mental – num contexto nacional de ameaça à democracia, o caso do Rio de Janeiro torna-se especialmente emblemático. Vasconcelos (2010) ao sistematizar os desafios políticos para a reforma psiquiátrica brasileira já apontava a gravidade da situação local. A precarização dos vínculos de trabalho e a gestão baseada em metas inspiradas no modelo privatista deixam de lado os indicadores associados as políticas sociais universais e ao próprio SUS. Nessa conjuntura, o avanço das conquistas na saúde passa a depender fundamentalmente da potência dos movimentos, atores e forças sociais. O que para nós reafirma a importância da política nos conteúdos curriculares, numa integração necessária entre formação e luta política.

Os resultados da pesquisa evidenciam importantes desafios para o campo da formação de trabalhadores para a reforma psiquiátrica. A experiência dos alunos e as dificuldades inerentes à sua formação nos apontam a necessidade de democratização dos processos formativos. Neste sentido, o nosso estudo pretendeu dar visibilidade às reflexões desses alunos-profissionais com escolarização de nível médio, considerando seu caráter estratégico para o

processo de trabalho em saúde e saúde mental. Narrativas que expressam a importância da formação para a sustentabilidade dos processos e projetos de des institucionalização em saúde mental.


Referências


AMARANTE, Paulo; BRASIL, Leandra (org.). Saúde Mental, Formação e Crítica. Rio de Janeiro: LAPS, 2008.


BELMONTE, Pilar. A reforma psiquiátrica e os novos desafios da formação de recursos humanos. EPSJV (org.). Formação de pessoal de nível médio para a saúde: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996.


CAMARGO JR, Kenneth. Apresentando Logos: um gerenciador de dados textuais. Cadernos de Saúde Pública: Rio de Janeiro, v. 16, n.1, 286-87, 2000.


CECCIM, Ricardo. Educação Permanente em Saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-168, fev. 2005. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script. Acesso em 22 nov. 2017.


COELHO, Maria Thereza Ávila D. et al. Residência em Saúde Mental educando trabalhadores para a Atenção Psicossocial. Salvador: EDUFBA, 2017.


ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO. Plano de Curso.

Curso de Especialização Técnica de Nível Médio em Saúde Mental. Rio de Janeiro: EPSJV, 2012.


GROISMAN, Daniel. O problema do cuidado no Brasil que envelhece: corresponsabilidades e questões para a saúde mental. In: Soalheiro, N. (org.). Saúde Mental para a Atenção Básica. Rio de janeiro: editora Fiocruz, 2017.


LEONARDIS, OTTA; MAURI, D. & ROTELLI, F. Desinstitucionalização: uma outra via. In: Nicácio, F. (org.). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1995.


LOBOSQUE, Ana Marta. Prefácio. In: Residência em Saúde Mental educando trabalhadores para a Atenção Psicossocial. Salvador, EDUFBA, 2017.


LIMA, Julio César França; BRAGA, Ialê Falleiros. Memória da Educação Profissional em Saúde no Brasil – Anos 1980 a 1990. Relatório Final. OTS/ LATEPS/ EPSJV: 2006


MOROSINI. Marcia Valéria. Educação e trabalho em disputa no SUS: a política de formação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro- EPSJV-Fiocruz, 2010.

NOGUEIRA, Mariana; PONTES Ana Lúcia. Trabalho, Saúde e o Processo de Trabalho em Saúde. In: Soalheiro, N. (org.). Saúde Mental para a Atenção Básica. Rio de janeiro: editora Fiocruz, 2017.


PASSOS, R.G. Trabalhadoras do Care na Saúde Mental: Contribuições marxianas para a profissionalização do cuidado feminino. 2016. 256f. Tese (Doutorado em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.


PEREIRA I.B.; LIMA, J.C.F. Educação Profissional e Saúde. Dicionário da Educação Profissional em Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/edupersau.html. Acesso em: 17 out. 2017.


PEREIRA, I. B.; RAMOS, M. N. Educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006.


RAMOS, Marise. Concepções e práticas pedagógicas nas escolas técnicas do sistema único de saúde: fundamentos e contradições. Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, suplemento, p. 153-173, 2009.


ROTHER, E. T. Revisão sistemática X revisão narrativa. Acta Paulista de Enfermagem. São Paulo, v.20, n.2, jun. 2007. Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103002007000200001& lng=en&nrm=iso> Acesso em 29 nov. 2017.


ROTELLI, F. Formação e construção de novas instituições em Saúde Mental. In: Amarante, P. e BRASIL, L. (orgs.). Saúde Mental, Formação e Crítica. Rio de Janeiro: LAPS, 2008.


SANTOS, George Amaral; NUNES, Mônica de Oliveira. O cuidado em saúde mental pelos agentes comunitários de saúde: o que aprendem em seu cotidiano de trabalho? Physis, Rio de Janeiro, v.24, n.1, p.105-125, mar. 2014. Disponível em http://www.scielo.br/scielo. Acesso em 18 jan. 2018.


SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.


O choque teórico da politecnia. Trabalho, Educação e Saúde, 1(1):131- 152, 2003.


TORRENTÉ, Mônica Oliveira Nunes. Residência Multiprofissional como modalidade estratégica para a formação de trabalhadores em Saúde Mental. Salvador: EDUFBA, 2015.


SOALHEIRO, Nina. [Apresentação]. Saúde Mental para a Atenção Básica. Rio de janeiro: Editora Fiocruz, 2017.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão (org.). Desafios políticos da Reforma Psiquiátrica brasileira. São Paulo: Hucitec.


Recebido em: 09 de março de 2018. Aprovado em: 08 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.