HORTA, Carlos Roberto¹. Mutirão, Trabalho e Formação Humana: forjando novas relações entre o saber e o poder. 2016. p.656. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2016.
O trabalho focalizou práticas de formação profissional e de formação política organizadas e dirigidas por trabalhadores e militantes que se juntavam a eles, em uma trajetória de solidariedade e resistência no chão de fábrica e com uma história conhecida no meio operário.
A pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de compreender e analisar processos de resistência, emancipação e formação de identidade política no movimento operário, nas décadas de 1970 e 1980, na região industrial de Belo Horizonte, Betim e Contagem, em Minas Gerais. Procuramos identificar e analisar as relações entre esse movimento e os moradores dos bairros da região industrial, o envolvimento das comunidades e a sua participação nas mobilizações daquele período.
Mais especificamente, procuramos analisar a experiência de educação/formação desenvolvida por trabalhadores e militantes de movimentos sociais, numa época em que a sociedade brasileira tratava de avançar na redemocratização do país. Objetivamos, ainda, discutir a relação entre formação profissional e formação política nas experiências educacionais dos trabalhadores e identificar o contexto em que as relações entre o movimento dos trabalhadores e a comunidade do bairro se constroem, se desenvolvem e consolidam práticas que se caracterizam como ação de um coletivo que mostra alguma continuidade no aprendizado ou na assimilação do fazer política. Finalmente, pretendemos discutir as relações entre as experiências de formação profissional e política e o movimento
¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10101
sindical com a transição do fordismo e com as mudanças do mundo do trabalho nos anos 1980-90.
Desde o início desse estudo, a nossa intenção foi a de examinar criticamente as relações entre saber e poder, tendo como referência para descrição e análise a experiência desenvolvida pelos trabalhadores e militantes de movimentos sociais em duas escolas profissionalizantes, enquanto protagonistas, em Belo Horizonte e Betim, nos anos 1980. O acompanhamento e a participação que tivemos nessas experiências tornaram possível conhecer como se dava, naquele período, o processo de construção de sujeitos políticos através da aprendizagem para o trabalho. Ao longo de seis anos, do início de 1986 a 1992, realizamos entrevistas, recolhemos e pesquisamos documentação (jornais, cartas, contratos, declarações, atas de reuniões e assembleias, registros em cartórios, anotações de viagens e fotografias) e participamos de ações de capacitação promovidas por essas experiências das duas escolas, enquanto elas aconteciam. Mais de setenta horas de gravação foram realizadas no período. As práticas educativas e os processos de aprendizagem envolvidos nas experiências foram devidamente registrados e discutidos com os seus principais responsáveis. Estivemos, ainda, em reuniões de auto avaliação e entrevistamos ex-alunos e moradores dos bairros em que essas experiências se desenvolveram, uma vez que elas tiveram envolvimento com as comunidades em que se situavam. Essa relação vinha de ações anteriores às experiências de trabalho educativo dos protagonistas, pois eles tiveram participação em movimentos de bairro e nas greves do período de 1978 a 1981. Essas greves tinham notável interação com a Igreja Católica na região, com a Pastoral Operária e com uma imprensa local, como o Jornal dos Bairros e o Boletim da Pastoral, que davam capilaridade aos acontecimentos e visibilidade aos movimentos sociais. Tivemos acesso aos números desses jornais publicados na época daquelas greves e movimentos das comunidades, além de termos realizado levantamento em jornais da chamada grande imprensa, no contexto dos acontecimentos relativos ao movimento sindical e à classe trabalhadora. Os organizadores do CAT (Centro de Aperfeiçoamento do Trabalhador), de Betim, e da AST (Ação Social Técnica Escola de Produção Tio Beijo), no bairro Lindéia, em Belo Horizonte, foram, na sua maioria, trabalhadores que participaram daquelas greves.
Orientamos nossa observação e participação nas experiências através das concepções de hegemonia, do operário como sujeito educador e elaborador de sua própria cultura, além do espaço da fábrica como local de atividade política, de educação e de tomada de consciência. Foi fundamental trabalhar a perspectiva da educação do educador e a noção de práxis inerente à atividade pedagógica no espaço de trabalho. A narrativa de Thompson foi outra marca do trabalho, no sentido de que se tratou de experiências desenvolvidas por sujeitos com uma trajetória historicizada no contexto das lutas e mobilizações contra o regime ditatorial que o Brasil vivia no período.
É muito importante observar que essas experiências educativas, preocupadas com a formação de “sujeitos políticos”, não foram fatos isolados ou limitados à região industrial de Belo Horizonte. Quando realizamos pesquisa para a Organização Internacional do Trabalho, em 1991, registramos a existência de experiências dessa natureza em Recife, São Paulo, Rio de Janeiro além de outras duas em Minas Gerais (Contagem e Teófilo Otoni), bem como a fundação do Conselho de Escolas Operárias, no encontro realizado em 1989, no Rio de Janeiro. O Conselho passou a organizar os seminários subsequentes e a buscar um maior inter-relacionamento entre as experiências, além de buscar uma política de sustentação financeira global para as escolas.
Em 1997, ao coordenarmos pesquisa para o Projeto Integrar Nacional, da CNM/CUT, através da Rede Unitrabalho, sobre a Formação Profissional empresarial, pública e sindical para o setor metalúrgico, foi possível identificar um documento básico deste conselho, que então passava a se chamar Conselho de Escolas de Trabalhadores, a Plataforma de Educação para Cidadãos Trabalhadores, aprovada em 1995, pelo seu quinto seminário. Esse documento consolida uma proposta concreta do conselho, que é a de Centros Públicos para a Educação de Cidadãos Trabalhadores, com base na experiência acumulada em diversas das escolas de trabalhadores. O documento prioriza na educação a discussão do papel da tecnologia nas escolas, definindo parâmetros para a formação política, precisando áreas de conhecimento necessárias para uma educação cidadã, discutindo a questão pedagógica e as condições de sustentação das escolas de trabalhadores.
Consideramos essas experiências mais significativas do que as práticas e ações sindicais de formação profissional, pois a sua atividade revela uma proposta pedagógica mais avançada do que a das organizações patronais, como o SENAI e o SENAC, e mais crítica do que os cursos ministrados através dos sindicatos, que não mostravam uma preocupação que combinasse o desenvolvimento da capacidade criativa e da aprendizagem dos seus alunos com uma formação política voltada para a cidadania dos trabalhadores. O que chama a nossa atenção nessas experiências passa pela sua proposta de uma “educação operária” construindo um saber (e um poder) que se infiltra no processo de trabalho definido e articulado a partir do poder do patronato sobre os trabalhadores. Trata-se de um saber vivenciado pelos trabalhadores no seu cotidiano.
A dimensão político/ideológica presente nas relações de saber/poder que se constroem no cotidiano, no interior do processo produtivo, através da organização do processo de trabalho e da organização do espaço da produção, constitui um tema recorrente nas análises e discussões do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano da UFMG, desde o início de suas atividades. A pesquisa que realizamos na FIAT/MG, em 1982/84, junto com os colegas Michel Le Ven e Magda Neves, em 1984, desenvolveu uma abordagem dirigida ao cotidiano dos trabalhadores. Em entrevistas com operários daquela indústria foi observada a importância do saber do trabalhador no processo de trabalho da produção do automóvel e o quanto essa questão exigia um novo olhar de quem pretende estudar as relações de poder no mundo do trabalho. Naquela pesquisa, chamou nossa atenção o fato de que muitos trabalhadores têm, no seu cotidiano, a percepção das relações entre o saber e o poder e as formas ideológicas das quais essas relações se revestem. Dois anos mais tarde, ao iniciarmos as entrevistas para a realização deste estudo, as informações levantadas reforçaram essa constatação. Havia entrevistados que tinham criado novos mecanismos para acelerar a produção, bem como outros que, em momentos de luta pelos interesses dos operários, tinham sabido desacelerar a produção, utilizando para isto conhecimentos adquiridos no próprio trabalho, como forma de pressão política em defesa de suas posições. O que se consolidava como prática nessa política localizada é um diálogo mais completo, com sujeitos constituídos, onde a classe se afirma como interlocutor e passa a questionar um processo de trabalho e um sistema de produção
que lhe são impostos. Nesta linha de raciocínio, a pesquisa de que tratamos nesta tese procura mostrar uma experiência que trouxe para o cotidiano, tanto na fábrica quanto no bairro e na vida daqueles trabalhadores/educadores um sentido de construção de práxis, na medida em que a consciência de sua situação social se expressou em uma atuação na realidade voltada para a construção e fortalecimento de sua identidade política e de classe.
Quanto às modalidades de construção e aplicação de metodologias que se desenham no marco das formas de investigação-ação-participativa que procuramos utilizar nesta pesquisa, um ponto extremamente significativo a considerar diz respeito à discussão sobre uma referência mais abrangente, nos estudos e na produção de saber sobre a realidade de povos de países como o nosso. A discussão sobre a “colonialidade” do saber e das metodologias tem que se colocar como referência obrigatória, quando se trata de produzir um olhar sobre nossas realidades. Levar em conta que as universidades e demais centros de produção e transmissão de conhecimento desenvolvem uma trajetória de origem e pertencimento de classe que as remete também a relações tradicionais de dependência, a escolhas e inspirações modelares relativas a métodos e a lugares institucionais de organização do trabalho é inevitável, na medida em que a valorização de proposições teórico-metodológicas elaboradas nas tradições europeias e norte-americanas acompanhou sempre a formação dos pesquisadores latino-americanos.
Recebido em: 25 de março de 2018. Aprovado em: 1 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.