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PROCESSOS EDUCATIVOS EM EXPERIÊNCIAS DE TRABALHO DE COMUNIDADES RIBEIRINHAS NA AMAZÔNIA¹


Maria das Graças da Silva2


Resumo

Trata-se de experiências de trabalho de comunidades ribeirinhas na relação direta com a natureza no contexto das quais produzem saberes que informam processos educativos. Analisa-se a contribuição desses processos para uma concepção epistemológica ampliada de educação. Utiliza como referência teórico-metodológica o materialismo histórico-dialético. Os resultados da pesquisa indicam possibilidades de reconhecimento dessas comunidades como sujeitos históricos portadores de conhecimentos, que engendram ações educativas e de aprendizagem, em contextos diferentes da pedagogia escolar.

Palavras-chaves: Experiências de Trabalho; Processo Educativo; Natureza.


EDUCATIONAL PROCESSES IN WORK EXPERIENCES IN THE AMAZON RIVERSIDE COMMUNITIES


Abstract

These are work experiences of riverside communities in the direct relationship with nature in the context of which they produce knowledge that inform educational processes. Here, the contribution of these processes to an expanded epistemological conception of education is analyzed. It uses as a theoretical- methodological reference, historical-dialectical materialism. The results resource indicate possibilities for the recognition of these communities as historical subjects that bear knowledge, which engender educational and learning actions, in contexts other than school pedagogy.

Keywords: Work Experiences; Educational Process; Nature.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27374

2Professora adjunto IV, Universidade do Estado do Pará (UEPA), vinculada ao Departamento de Ciências Sociais e Educação e ao Programa Pós-Graduação em Educação, Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Meio Ambiente – GRUPEMA. Email: magrass@gmail.com.

Introdução


Este artigo tem como objeto de reflexão e análise saberes e processos educativos inscritos em experiências de trabalho que dinamizam modo de vida e o cotidiano social de comunidades ribeirinhas, enquanto realidades concretas, sínteses de múltiplas determinações, em um dos municípios do baixo Tocantins, na Amazônia Paraense.

Visa o conhecimento, a compreensão e explicação de experiências que informam condições e formas de reprodução material em contextos de relação ser humano e natureza, com a perspectiva de sistematizar conhecimentos que possam contribuir para dar visibilidade àqueles espaços educativos e práticas pedagógicas que se efetivam em experiências de trabalho e contribuem para a resistência local. Origina-se da questão: Que saberes estão inscritos em experiências de trabalho protagonizadas por comunidades ribeirinhas por meio de processos de apropriação e usos de materiais e produtos dos rios e das matas?

O texto decorre e se sustenta em achados de pesquisas realizadas com comunidades ribeirinhas do município de Igarapé Mirim, com o objetivo de compreender as formas por meio das quais, homens mulheres e jovens dinamizam suas experiências de trabalho, produzem conhecimentos, enquanto práticas voltadas para a transformação de condições de vida local.

Na Amazônia, as comunidades ribeirinhas configuram-se como grupos sociais heterogêneo, cujo modo de vida e práticas socioculturais está pautado na relação simbiose com a natureza e seus ecossistemas. Uma relação que movimenta um sentimento de pertencimento, que na prática, nem sempre equivale à ideia de propriedade, mas de uma identidade tributária de afeto e respeito; como um lugar de vida. Essas comunidades têm sido reconhecidas por suas territorialidades, que se configuram como lugares concretos de vida, como espaços de resistência e luta.

Metodologicamente a realidade de algumas comunidades ribeirinhas do rio Anapú, no município de Igarapé Miri foi contextualizada como lócus da pesquisa e referencias das observações locais e das narrativas dos sujeitos: as comunidades do rio Mamangal Grande; rio Mamangalzinho; rio Miriú-Açú; rio Maiauatá; rio Santo Antonio e rio Igarapé Santana, nos anos de 2010 e 2011. Insere-se em uma trajetória de pesquisas realizadas pelo Grupo de Pesquisa Educação e Meio Ambiente

(GRUPEMA) voltada para práticas culturais e experiências cotidianas de trabalho na relação direta com a natureza.

No contexto do Baixo Tocantins, essas comunidades, a partir do final da década de 1980 em diante, até aproximadamente a primeira década dos anos 2000, sofreram de forma acentuada mudanças na organização e dinâmica dos seus territórios em face do barramento do rio Tocantins, com a construção da Hidrelétrica Tucuruí (UHE Tucuruí) nas décadas de 1980 e 1990. A pesca artesanal, como prática de trabalho predominante na região nas décadas anteriores à construção, passou por um processo de refluxo acentuado, sendo necessária a incorporação de outras práticas produtivas no contexto da reprodução social.

Grande parte dos grupos sociais ribeirinhos que moram nessa região, por dependerem do regime fluvial dos rios para a se reproduzirem material e simbolicamente, enfrentaram, durante várias décadas, as consequências da implantação de dois grandes projetos, saber: a Albrás/Alunorte e a UHE Tucuruí.

No caso da realidade ribeirinha no rio Anapú, formada por pequenas comunidades que vivem das atividades de pesca e do extrativismo vegetal, por estarem situadas ao longo das margens de rios e igarapés, elas têm enfrentado, no tempo e no espaço, um mix de situações que impuseram restrições às suas experiências de trabalho. Situações que repercutiram desfavoravelmente sobre as condições de existência de grupos sociais locais, uma vez que foram comprometidos muitos dos seus processos socioculturais associados às especificidades dos seus territórios e dos recursos naturais, em diversos casos apropriados de forma comunal. O debate teórico-epistemológico contemporâneo acerca das práticas das populações tradicionais, referido numa abordagem histórico-crítica, tem buscado valer, por meio do confronto de ideias e análise das determinações, outra percepção. Na realidade trata-se de grupos que diante das desestruturações socioambientais que experimentaram com o barramento do rio e com a convivência de constantes situações de poluição do rio e do ar por parte da Albrás/Alunorte, situada no município de Barcarena, na confluência com Igarapé Miri, frequentemente anunciadas nos meios de comunicação, na ausência de políticas públicas básicas efetivas e eficazes, como saneamento, saúde e educação, têm, por meio de uma diversidade de saberes e desenvolvimento de técnicas, buscado garantir a sua reprodução social,

apropriando-se de recursos da natureza e conformando-os por meio de ações de trabalho às suas necessidades.

Essa breve contextualização mostra o quanto situações que informam conflitos de interesses territoriais, experiências de trabalho, de luta e resistência dessas comunidades ainda precisam ser estudadas. Estudar saberes práticos que informam e conformam experiências de trabalho das denominadas populações tradicionais, é construir possibilidades de por meio da promoção de diálogos entre saberes, colocar no debate decolonial novas epistemologias. Essa é uma das perspectivas desse artigo.

É relevante estudar o cotidiano desses grupos locais para mapear e compreender saberes que orientam suas experiências cotidianas de trabalho. Optou- se pela abordagem teórico-metodológica, referida no método histórico-dialético por considerar a possibilidade da reconstrução da totalidade sócio-histórica, e sistematizá- la enquanto abstração do concreto; da reflexão da práxis dos atores locais no contexto da relação trabalho e educação; por fim, trazer para o debate práticas e saberes que, historicamente, têm sido invisibilizadas em grande parte nas políticas públicas e nos saberes sistematizados, e potencializar as possibilidades de revelação de outros conhecimentos alternativos à ciência, consubstanciados em princípios como: conhecer para incluir, saber para transformar, e que tem sua legitimidade intelectual no reconhecimento da existência de sistemas de saberes plurais, nas ideias de pluralidade cultural, respeito aos direitos do outro e igualdade de oportunidades, ou seja, numa epistemologia multicultural (VEIGA-NETO, 2003).

Portanto, referenciado em “O Capital”, no qual Marx (1983) se deslocou por entre um vasto mundo de experiências, para realizar “uma crítica da economia política”, este artigo analisa processos educativos que orientam saberes de uma diversidade de experiências de trabalho, que informam o cotidiano social de comunidades ribeirinhas mirienses.


A relação ser humano natureza orienta processos de produção


A história da humanidade mostra que sociedades e/ou grupos sociais buscam construir seus territórios na relação direta com a natureza como forma de garantir às suas condições de existência e/ou seu desenvolvimento. Neste item, analisam-se de narrativas que dão conta de relações socioambientais, práticas produtivas que as

comunidades ribeirinhas já identificadas no sibitem anterior, constroem no contexto de suas experiências de trabalho. A ideia é examinar evidências relevantes e fatores que informam práticas de apropriação e uso de matérias da natureza nessas experiências de trabalho, voltadas à satisfação de suas necessidades.

Por meio da relação que estabelecem com a natureza e suas matérias, essas comunidades constroem uma interdependência mútua, que conformam uma totalidade. Essa interdependência, dialeticamente pode ser considerada quando Marx (1983, p.149), indica que, ao “atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele [o ser humano] e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”. Ou no dizer de David Harvey (2013, p. 114): “não podemos transformar o que se passa ao nosso redor sem transformar a nós mesmos. Inversamente, não podemos transformar a nós mesmos sem transformar o que se passa ao nosso redor”.

A natureza disponibiliza para essas comunidades, uma série de matérias, de produtos que lhe são nativos, para que elas, por meio do trabalho, transformem qualitativamente essas matérias, em uma diversidade de produtos, que assumem prioritariamente no contexto de suas necessidades “valor de uso”.


Olha, eu acho que a gente não pode ter as árvores só pra olhar, a gente precisa também de sobreviver. Então hoje, por exemplo, dá pra gente ter o açaí como uma árvore e colher os frutos e o cacau, cupuaçu, andiroba, tantas outras árvores que derem alguma renda pra gente e o mesmo tempo preservar a floresta. (Entrevista Liderança 2, Mamangal, 2011).


Os produtos coletados por meio da matéria disponível na natureza, assumem a configuração de uma natureza heterogênea, ao serem transformados por meio do trabalho “concreto”, ou seja, do trabalho humano útil. Nesse movimento molecular de uma economia de subsistência, os arranjos produtivos vêm da criatividade familiar, de saberes ancestrais, da participação de mulheres e de jovens, das condições e determinações que lhe são dadas historicamente.

Aqueles produtos naturais, orientados por saberes e práticas criativas das comunidades, são incorporados nos seus processos de produção: açaí, palhas e cipós (cestarias e outros artefatos), capoeiras ou terras virgens (roças, roçados), mandioca (farinha, tucupi), peixes, caranguejos, camarão, copaíba (óleo), castanhas de andiroba (óleo), mel de abelha (nativo), pequenas toras de madeiras (canoas,

trapiches), criação de pequenos animais, por meio da utilização de uma diversidade de formas de trabalho concreto.

Trata-se de produtos físicos que assumem “valor de uso”, ou seja, atende uma determinada necessidade específica, que Marx (1983, p.50) denomina de trabalho útil: “o trabalho cuja utilidade representa-se, assim, no valor de uso de seu produto ou no fato de que seu produto é um valor de uso, chamamos, em resumo de trabalho útil”. Assim, ao assimilar elementos específicos da natureza às necessidades humanas específicas, como “trabalho útil”, Marx (1983, p.50) atribui ao trabalho a condição de “existência do homem, independente de todas as formas da sociedade, “eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana”.

Esses produtos passam a ser configurados como produto do trabalho humano, mesmo no caso daquelas práticas de coleta de produtos nativos das matas, há nessas práticas um esforço, um dispêndio de energia. Daí incorporarem um determinado valor, que de acordo com Harvey (2013, p.35), “Marx chega ao conceito unitário de valor, que tem a ver com o trabalho humano”, no caso em análise, decorre do trabalho que homens mulheres e jovens realizam na coleta dos produtos.

Nessa perspectiva, o trabalho ontologicamente configura-se em mediação entre a existência humana e a natureza.


Rios e matas: territorialidades de práticas produtivas úteis e de aprendizagens


Para além da produção mercantil, o trabalho, nessas comunidades ribeirinhas pesquisadas está pautado em práticas produtivas que se sustentam na relação direta com a natureza. Assume, portanto, uma concepção ontológica por ser inerente à essência do ser humano, pois é por meio dele que essas comunidades garantem a existência humana do seu grupo familiar.

Ao situar epistemologicamente as experiências de trabalho das comunidades estudadas no contexto do materialismo histórico-dialético, busca-se, mesmo de forma localizada, entender as possibilidades que essas experiências têm de informar as categorias principais desse método: totalidade, historicidade das práticas sociais e relação entre teoria e práxis; e dar sustentação às análises e reflexões sobre práticas produtivas que se materializam em outros contextos, diferentes daqueles que tratam dos processos de mercantilização das mercadorias.

Trata-se de experiências de trabalho que mesmo ainda recorrendo a arranjos pré-capitalistas, incorporam também inovações tecnologias que informam a modernidade ocidental.

Essas comunidades denominadas de “tradicionais”2 e suas condições de existências, ficaram, por muito tempo, eclipsadas pela matriz colonialista, cujo pensamento hegemônico tem deixado de reconhecer sua contribuição à auto reprodução de suas condições materiais e culturais, e até mesmo para a conservação da biodiversidade, por que em grande parte sempre estiveram excluídas de programas que anunciam compromissos com o desenvolvimento regional.

Vários estudos e pesquisas têm dado conta do silenciamento que esses sujeitos, portadores de saberes, têm sido submetidos pela cultura hegemônica, universalista, de matriz colonizadora. Essa cultura além de não os considerar como produtores de conhecimentos, os invisibilizam como sujeitos de direitos e protagonistas de lutas voltadas para as transformações de suas condições de vida. Em movimentos contra hegemônicos, eles são vigilantes em prol de suas naturezas, ou seja, atuam em contraposição às forças capitalistas.

Os determinantes sociopolíticos e culturais que informam as realidades ribeirinhas mirienses são muitos e particulares, mas não se configuram como realidades alheias ou fora da totalidade social, pois dialeticamente fazem parte da dinâmica de um todo social maior. A totalidade do ponto de vista marxista não se configura como a soma das partes, tampouco de fragmentos assistemáticos, que “hipostária o todo em parte” (KOSIK, 2010, p.74).

Lukács (2003, p. 6-12) ao criticar a fragmentação, dicotomização e diferenciação das esferas da vida social, que no contexto teórico da ideologia burguesa, demandam conhecimentos próprios e específicos, considerou que “a dialética afirma a unidade concreta do todo”, chamando a atenção, contudo, para o cuidado de não se reduzir “seus vários elementos a uma uniformidade indiferenciada, à identidade”.


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2 Trata-se de uma categoria que tem sido objeto de muita disputa no campo ideológico e epistemológico, uma vez que ela é acionada em diferentes contextos (políticos, econômicos e sociais), quer como autodenominação, quer como categoria de classificação social. Neste texto, não trataremos desse debate, apenas estamos usando o termo para atender a chamada do Dossiê Temático da Revista Trabalho Necessário.

Como sujeitos históricos, essas comunidades, sustentando-se em suas experiências cotidianas, produzem e reproduzem suas condições materiais de existência, ou seja, “reproduzem-se” por meio de um processo concreto de trabalho. Processo que se materializa em contextos de relações geracionais, de vizinhança e de ajuda mútua.

Sendo assim, configuram-se como experiências de trabalho que se diferem daquelas protagonizadas pelo capital, dado que a natureza dessas experiências está pautada na lógica do trabalho humano concreto (MARX, 2008). Os ribeirinhos retiram dos rios e das matas cotidianamente o que necessitam.


O trabalho é um processo entre homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. (MARX, 1983, p149).


Neste sentido, por meio do uso de suas forças úteis de trabalho, ou seja, de um trabalho não mercantilizado e de seus saberes, esses sujeitos históricos se apropriam das matérias da natureza, incorporando-as à reprodução da existência humana.

Essa compreensão nos coloca diante da impossibilidade de considerar a relação ser humano e natureza de forma dicotomizada, por trata-se de experiências que decorrem de múltiplas determinações: das relações que estabelecem com a natureza e suas diferentes formas de apropriação e uso, com os outros seres humanos e também não humanos; decorrem de suas crenças, aprendizados e saberes ancestrais, que ao final, indica a totalidade de processos que movimentam cotidianamente para garantir a sua reprodução social. Neste contexto, é preciso considerar que a realidade é portadora de contradições.


Experiências de trabalho na mediação entre rios e matas


As análises e reflexões indicam que o rio Anapú e seus afluentes se configuram como um espaço social, cujas territorialidades servem de lugar para a realização de suas práticas de trabalho e, consequentemente, dinamização da vida das várias comunidades ribeirinhas que ali vivem.

Embora não tenha sido possível tratar de todas as práticas produtivas que informam o cotidiano dessas comunidades, neste artigo são mencionadas algumas atividades que possibilitam construir aproximações em relação à práticas educativas,

e assim buscar compreender os saberes que orientam sustentam e/ou que são produzidos, no contexto das experiências de trabalho que são realizadas nas práticas de apropriação e uso dos rios e das matas.

Algumas lideranças mostraram em suas narrativas que, embora suas práticas já não se efetivem da mesma forma que os seus ancestrais realizavam, elas se fazem no sentido de buscar solução para os seus problemas e garantir a reprodução das suas condições de vida. Informaram que têm procurado desenvolver suas atividades, de uma forma renovadora, na medida em que buscam outros domínios de saberes que têm sido construídos a partir de experiências e convivências do cotidiano social.

Essas experiências de trabalho pautados em logicas próprias, fruto de suas observações, vivências, experimentos, oralidades e heranças da ancestralidade, engendram domínios de saberes que estão inscritos em artefatos produzidos, na medicina popular, nos rituais de trabalho, nas práticas da caça, da pesca, na relação que estabelecem, enfim, nas diversas formas de relações com a natureza. Trata-se de conhecimentos que vai na contramão do processo colonizador, que só reconhece do ponto de vista pedagógico e epistemológicos conhecimentos pautados em experiências da ciência moderna ocidental.

No caso da pesca artesanal, além de se configurar como uma prática produtiva no contexto das experiências de trabalho dessas comunidades, também se associa aos movimentos de luta e resistência no contexto territorial do Baixo Tocantins.

Assim como a pesca, a coleta de produtos da mata, o manejo do açaí, a produção de artefatos relacionados à suas atividades, são fontes de realização do trabalho concreto nas comunidades pesquisadas. Como um processo dinâmico, o desenvolvimento dessas e de outras atividades não está pautado em uma prática estática e rotineira, mas em um movimento ininterrupto de associação de práticas que guardam relação com a dinâmica da natureza, por meio dos seus fluxos (maré, safra, ciclo lunar...).

Assim, tal como em Marx (1983), o trabalho que informa essas atividades que se realizam no cotidiano ribeirinho se configura como um “processo” em movimento. Daí a necessidade e opção do método dialético, por considerar que “a dialética tem de ser capaz de entender e representar processos em movimento, mudança, transformação” (HARVEY, 2013, p.21).

Ainda que não esteja associada diretamente à dinâmica do capital, a produção dessas comunidades locais está associada à outra dinâmica, a outros fluxos: o da natureza, que tem um dinamismo transformador. Basta perceber as mudanças que o fluxo das marés promove na paisagem ribeirinha, na altura dos trapiches, na largura dos rios, furos e igarapés, na velocidade de barcos e canoas, no deslocamento dos cardumes, nos mangues. As paisagens se diferenciam quando a maré está “seca”, de quando está “cheia”; quando é inverno de quando é verão.

O cotidiano social ribeirinho não pode ser considerado uma mesmice, uma rotina, que exclui o ritmo natural e cósmico, tão caro para o modo de vida ribeirinho, que não se dinamiza pela lógica da acumulação. Esse cotidiano carrega em seu movimento as contradições dos seus processos históricos, pautados em tempo natural, cósmico e histórico, que se difere do tempo linear que orienta o trabalho mercantilizado (LEFEVBRE, 1991).

Sendo assim, esse cotidiano tem uma dinâmica e um movimento que lhe é próprio, que precisa ser compreendido e interpretado enquanto tal. Esse movimento acaba sendo transformador, porque exige que seus sujeitos introduzam mudanças em suas práticas, atualizem suas experiências. Muitas vezes, essas comunidades enfrentam situações que impõe necessidades de reformular, ressignificar suas práticas. Como movimento, como processo suas “ideias têm de mudar ou se reconfigurar à medida que as circunstâncias mudam” (HARVEY, 2013, p.23).

Mesmo não produzindo uma “coleção de mercadorias”, tal qual na produção capitalista, foi possível constatar nesse trabalho não mercantilizado, desenvolvido diretamente na relação com a natureza, que existe excedente, não no sentido capitalista do termo, porque muitas vezes o excedente decorre do “sacrifício” do grupo familiar, que abre mão de determinadas porções da produção em face da necessidade premente de sua comercialização, cujo preço não gera lucro, mas tão somente o necessário para a compra de outros produtos, que mesmo não produzindo fazem parte da dieta básica cotidiana, como é o caso do café, do sal, do querosene, de alguns remédios, dentre outros.

É possível então afirmar que se trata de uma troca monetizada? Na realidade assume diversas formas: escambo, comercialização em pequenas quantidades na “feira” local, na mercearia ou pequena venda da própria comunidade, também na rede de parentesco e/ou vizinhança. Assim a pequena produção “excedente” não é levada

necessariamente para um “mercado”, mas como a mercadoria em Marx (1983), ela atende duplamente a uma necessidade: daquele que compra e daquele que vende.

A qualidade do material que é colocada à venda é quase sempre na sua forma in natura. No processo de comercialização, os sujeitos locais adotam suas próprias medidas: litro de camarão, cambada de peixes; litro ou rasa de açaí. Há, portanto, uma diversidade de formas de apresentação da produção, que em “O Capital”, Marx (1983) não teve como objeto de preocupação.

As múltiplas formas de apresentação e/ou medidas para a comercialização dos produtos que decorrem cotidiana das suas práticas produtivas guardam relação com os seus processos culturais de reprodução da vida, e com processos de aprendizagem baseados na ancestralidade, ou na pedagogia da oralidade ou “da atenção” (INGOLD, 2010). O que indica que suas experiências são perpassadas por dimensões educativas, que não se constituem de acordo com a lógica escolar. A sua materialidade se diferencia dos processos cognitivos formalizados para a escola.

Sendo assim, é possível afirmar que o ato fundador das experiências pedagógicas que engendram processos educativos é o trabalho, que por meio de suas práticas, homens, mulheres e jovens satisfazem suas carências naturais e simbólicas, como também ensinam e aprendem um com os outros, e com a própria dinâmica da natureza.

Figura 1- Vista parcial de uma moradia localizada no rio Miriú-açu, no municipio de Igarapé-Miri/Pa .

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Fonte: Arquivo pessoal do Aux. de pesquisa, Rodrigo Cardoso, out.2011

Na fala dos entrevistados sobressai a relevância que é atribuída ao trabalho enquanto questão transversal às relações que estabelecem com o rio e com a mata; a mobilização de saberes necessários para o desenvolvimento de suas atividades produtivas, associadas à mata, que são qualitativamente diferentes:


roça, a gente faz para plantar mandioca, e o milho e as outras coisas que a gente planta e árvores de açaí. Também a gente faz outra atividade na mata: carvão, tanque para peixe, coleta de sementes, extração do açaí, plantação de pimenta do reino ou outra atividade. O trabalho na roça é de roçar, derrubar, queimar, plantar, capina é esse tipo que a gente trabalha. Na várzea, a gente planta a mandioca, milho, o feijão, o arroz, a banana, o maxixe. (Entrevista Liderança 1, Rio Maiauatá, 2010).


a gente planta, colhe açaí, colhe fruta, também existe a questão de pequenos tanquezinhos pra criar peixe, como forma de sobrevivência. Olha o roçado aqui, praticamente não existe mais, porque já passou a era de engenho de cana de açúcar, que se fazia roçado e tocava fogo, hoje é mais a vida de colheita de açaí e de outras produções. A gente não faz roçado, então essa atividade nós não exercemos. (Entrevista Liderança 3, Mamangal- zinho, 2010).


Essas atividades não são exclusivas dos homens, também foi destaca a participação de jovens e das mulheres no trabalho com a roça: “as atividades principais que as mulheres participam? Elas capinam, quando está madura a mandioca a elas arrancam, fazem farinha”. Outra liderança informou que “as mulheres fazem tudo, igual como os homens, fazem colheita, plantio, a organização, a venda, tudo, tudo, que os homens faz as mulheres ajudam também”. (Liderança 3, 2010).


Saberes inscritos nas relações e atividades com uso dos rios e das matas


o saber é sempre o saber de alguém que trabalha alguma coisa no intuito de realizar um objetivo qualquer. [...], o saber não é uma coisa que flutua no espaço (TARDIF, 2014, p. 11).


Com base nas reflexões e análises dos itens anteriores, o cotidiano social das comunidades ribeirinhas é dinamizado por um mosaico de atividades que decorrem do trabalho concreto. Trata-se de atividades produtivas qualitativamente diferentes, mas que se somam, se associam, se complementam, se consomem, se sanzonalizam.

No esforço para o desenvolvimento desse trabalho humano, homens, mulheres e jovens mobilizam e até mesmo produzem uma série de saberes, conhecimentos, que são repassados de geração em geração, por meio de uma série de procedimentos

de ensino aprendizagens. Por meio desses saberes, esses sujeitos históricos realizam suas experiências de trabalho concreto e útil.

Qual a natureza desses saberes? Trata-se de saberes da experiência, construídos ao longo de suas histórias geracionais, que nas últimas décadas têm sido reconhecidos como marcadores de processos educativos, ainda que circulem e se façam, portanto, fora do mundo escolar. Há nesses saberes um conteúdo social e político por tratar-se de construção histórica pautada na ancestralidade.

Na perspectiva dos saberes da experiência, é possível compreender o sentido que os rios e igarapés Merium, Muatá, Mamangal e seus afluentes assumem no cotidiano social local. Eles são significados pelo uso social que suas comunidades fazem dos seus recursos hídricos. Assume no imaginário local o sentido de territórios de vida, porque deles retiram, juntamente com as matas, o necessário à sua reprodução material e simbólica. Consequentemente, a água também assume sentido de vida; este sentido de vida transcende a dimensão material de provimento de necessidades básicas, porque assume ao mesmo tempo uma significação cosmológica.

Dessa forma, é em torno dela que as comunidades constroem suas territorialidades, que alimentam seus imaginários pautados em suas lendas e mitos, realizam seus rituais religiosos, fazem seus deslocamentos. É ela que alimenta e fertiliza seus ambientes terrestres.


Olha eu entendo que os rios e igarapés eles são os meios de ajudar a gente a sobreviver. Nossos rios são melhores do que as ruas. Porque além dele fazer a gente viajar, transportar ele ainda traz benefício. Porque ele traz, tem peixe, tem seres vivos embaixo que precisa deles, a gente precisa da água, tão têm uma importância muito grande pra gente. (Liderança 1- Rio Mamangal Grande: Projeto Mutirão, 11/2012).


A narrativa indica que as formas de utilização dos recursos hídricos feitas por essas comunidades se dão por sistemas tradicionais de acesso, apropriação e uso desses recursos. A apropriação e utilização comunitária não são exclusivas, existem formas de apropriação individualizadas em espaços das habitações e de terrenos. O certo é que existe forte dependência no uso desses recursos dada sua produtividade natural.

Os usos das águas estão associados às suas práticas cotidianas, ou seja, práticas comuns em diferentes espaços de vida: nas práticas de higiene, no consumo diário e em outras “maneiras de fazer” esse cotidiano.


Tipo de atividade que desenvolvo utilizando as águas dos rios e dos igarapés? São de todas, pra tomar banho, lavar roupas, pra lazer, tudo isso são utilizadoa água. Só que umas águas são muito barrentas! (Entrevista Liderança 1, Mamangal, 2011).


Utilizo as águas dos rios e dos igarapés. Há, são milhões de forma, né! a gente precisa pra viajar, a gente precisa pra tirar água pra viver, a gente precisa tirar dele pra tomar banho, a gente precisa dele porque têm seres vivos que moram nele vivem nele, e a gente precisa desses seres então há milhões de objetividades (Entrevista Liderança 2, 2011).


Tipo de atividade que desenvolvo utilizando as águas dos rios e dos igarapés? Hum! A gente põe o matapi, né nos rios e igarapés, a gente tapa os igarapés pequenos para colher peixe, a gente pesca, e têm muita forma de sobrevivência que vêm da água, é, inclusive até, tirar peixe. (Entrevista Liderança 3, 2010).


As narrativas destacam um conjunto de formas de uso da água, que estão associadas às suas práticas de vida e experiências de trabalho: a pesca em suas diversas modalidades, a coleta do camarão, as atividades domésticas, que se constituem práticas multiformes por meio das quais essas comunidades se apropriam dos recursos dos rios ou das matas, que assumem valor de uso. Como ponto de partida ou de chegada, de travessia, ou de navegação, o deslocamento pelas águas assume um sentido de viagem, conforme indica um dos entrevistados – “a gente precisa pra viajar” (Entrevista Liderança 1, 2011).

A pesca associada ao uso das águas tem sido uma das atividades de trabalho voltada para a reprodução material, não como uma prática econômica de configuração capitalista, porque tem uma inscrição cultural muito forte graças à mediação de hábitos de consumir peixe.

Quanto à qualidade das águas, embora considere que essa matéria é fundamental à vida local, e sua total dependência, a percepção de algumas lideranças locais é de que a qualidade da água é ruim. Alguns argumentos são utilizados para justificar essa avaliação. O primeiro se baseia na ideia da invisibilidade das comunidades ribeirinhas frente às políticas públicas, quase sempre voltadas para a capital [cidade].

No imaginário local, a qualidade da água poderia ser assegurada às comunidades ribeirinhas se à supremacia da cidade fosse contraposto o entendimento dialético de um continuum urbano/rural; cidade/campo, como espaços de vida, de cidadania.


Avaliação da qualidade da água dos rios e dos igarapés dessa área daqui? É, são ruins, porque até então a sociedade não toma nada para facilitar as coisas para que possa ter uma água limpa e sadia. A sociedade até hoje, não têm feito nada para manter a água de boa qualidade! Por que ainda não se preocuparam com os ribeirinhos, só com as capitais e os ribeirinhos ficam jogados fora. (Entrevista Liderança 1, 2011).


Além dos fluxos e das correntes das marés, fenômeno natural, outros fatores também são atribuídos para que a qualidade da água fique comprometida. “A qualidade da água dos rios e igarapés, infelizmente ela não esta como deveria ser porque existe muito barro, de viagem com óleo diesel, têm pessoas que joga tudo, ela não está com uma boa qualidade como devia ser!” (Entrevista Liderança 2, 2011). O saber local associa a qualidade das águas, às temporalidades das marés, quando ressaltam que “o período do ano em que a água fica mais ruim é de janeiro à maio” (Entrevista Liderança 2, 2011).

Figura 1 - Vista parcial do rio Miriú-açu, no municipio de Igarapé-Miri. Data: 07 de outubro de 2018.

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Fonte: Arquivo Pessoal do Aux. de Pesquisa, Rodrigo Cardoso, out.2011.

Quanto ao trabalho que a comunidade realiza para manter a água de boa qualidade para além de explicações de causa e efeitos, os relatos indicam que existem experiências locais, que em parte demonstra uma preocupação em torno dessa questão. Trata-se de uma atuação mais pedagógica, ainda que embrionária, dispersa, silenciosa, quase invisível até mesmo para os olhares locais, inscrita em algumas práticas de lideranças:


O que a comunidade tem feito para manter a água de boa qualidade? Olha, a comunidade de um modo geral, nem todo mundo faz, mas pelo menos nós temos feito esse movimento que tem mais de 2 anos quase 3 anos, e ele tem dado bons resultados. A gente tem feito palestras, a gente tem feito oficinas, a gente tem feito, assembleias, a gente têm feito é seminários como nos realizamos agora, o II seminário. (Entrevista Liderança 2, 2010).


O uso comum dos espaços aquáticos é ressaltado como outro diferencial significativo no cotidiano social dessas comunidades.


Os rios e os igarapés são utilizados de forma comum. São de tudo à comunidade [...]. Os rios de maiores portes que são utilizados como comum: Merium, Moatá ou Muatá, esses rios que são utilizados (Entrevistado - Agricultor e também presidente da Ilha Mamangal, 2010, Rio Mamangal Grande).


O termo “comum” refere-se a recursos de propriedade comum. Recursos de propriedade comum é um conceito utilizado por Hardin (1968 apud FEENY et.al, 2001) e incorpora peixes, vida selvagem, águas (superficiais e subterrâneas, pastagens e florestas).

Em relação ao acesso e uso dos rios e igarapés, que por se configurarem, neste caso, como “recursos de propriedade comum”, os entrevistados indicam problemas em relação à questão da exclusividade (controle de acesso), dada as características compartilhadas desses recursos. Ressaltam dificuldades que enfrentam para garantirem sua conservação na medida em que:


Olha, quase todos os rios eles são usados por todo mundo, todo mundo precisa direta ou indiretamente, precisa deles! Olha nem todo mundo usa do mesmo jeito, né tem gente que usa de maneira mal usada prejudicando, jogando tudo que acha que deve jogar, mas também têm pessoas que têm preocupação, no nosso caso, aqui no Mamangal, nós temos o maior movimento de preservação do meio ambiente, de muito mais voltado ao rio, preservar, cuidar, a valorização o que o nosso rio tem! (Entrevista Liderança 2, 2011).


Todas essas práticas, percepções e/ou preocupações expressas nas narrativas dos sujeitos entrevistados podem ser associadas à conjuntura atual em que cada vez se amplia o debate acerca da questão da conservação e proteção da natureza. Trata- se de saberes que têm despertado interesses de diferentes setores da comunidade nacional e internacional, particularmente dos estudiosos da questão ambiental. E tem sido objeto de conflitos de interesses, uma vez que graças ao conhecimento acerca dos ecossistemas que esses grupos detêm, tem sido possível conservar recursos em seus territórios de trabalho, e garantir, assim, ainda que minimamente a reprodução dos seus sistemas culturais e sociais.

Recorre-se a ideia de território usada por Castro (2000), enquanto espaço por meio do qual, grupos sociais garantem aos seus membros direitos estáveis de acesso, de uso e de controle dos recursos e sua disponibilidade no tempo.


O saber que informa o trabalho na Várzea


A várzea configura-se como um dos elementos fundamentais na dinâmica do cotidiano social ecológico e cultural de comunidades ribeirinhas. Trata-se da terra florestada, integrada em grande pluviosidade e alagamentos sazonais cujo aproveitamento permite o surgimento de espécies diversas e culturas particulares. Daí o significado e a importância desse recurso nas suas atividades de trabalho. A dinamização dessas diferentes dimensões é que formata a diferenciação dos territórios ribeirinhos.

Conformadas como territórios de vida, as várzeas têm sido historicamente apropriadas por grupos sociais denominadas de populações tradicionais, com sua diversidade interna. É por meio do trabalho e da cultura que esses grupos têm significado os espaços das várzeas. Enquanto produto da intervenção humana esses territórios não se reduzem a sua dimensão material, mas expressam teias de relações sociais e religiosas que configuram o plano simbólico nos seus diferentes contextos.

Do ponto de vista das experiências de trabalho, as várzeas têm servido de suporte para formas de organização dos processos sociais de produção das comunidades estudadas, é o que infere o depoimento de uma das lideranças entrevistada: “costumamos aproveitar a várzea para plantar açaí, banana, o limão, a laranja, e o coco é esses tipos de plantas” (Entrevista Liderança1).

Esses lugares particulares também são representados como expressão de vida. Nas várzeas as comunidades locais coletam e plantam, porque também reconhecidas pelo saber local, como um território de trabalho, capaz de assegurar a sua reprodução material e cultural.

É da área de várzea que a gente vive, né! Inclusive é só isso que a gente tem! É! De plantação? Olha a gente tem tudo, quase a gente tem cocô, tem cacau, cupuaçú, abacaxi, laranja, limão, e, principalmente o açaí que é a maior cultura, que a gente.... Quem pratica essa atividade somos nós mesmos! (Entrevista Liderança 2, 2011).


Esse modo singular de organizar-se a vida em torno várzea, por meio de processos de valorização e apropriação dos recursos do rio e da mata, revela uma diversidade de saberes que conformam modos de vida e definem configurações sociais dos amazônidas3 ribeirinhos, que na sua materialidade histórica, sociocultural guardam diferenças no seu interior.


A natureza como objetivações entre saberes e sociabilidade


As lideranças locais, por reconhecerem que é por meio das matérias ou produtos dos rios e das matas, que as comunidades através de seus “processos” de apropriações e trabalho, atendem suas necessidades, ao transformarem essas matérias e produtos em objetos, bens de consumo, enquanto capacidade humana objetivada, de modo geral, voltam-se cotidianamente suas preocupações para esses bens comuns.

Quando entrevistadas, lideranças comunitárias ressaltaram suas preocupações com a questão da preservação dos recursos naturais de uso comum, indicando a estruturação de mecanismos de ordenamento para acesso e uso desses recursos. Trata-se de práticas socioeducativas locais, voltadas para a elaboração e utilização de mecanismos nativos voltados para a ordenação dos direitos de uso dos recursos de propriedade comum, buscando, ao mesmo tempo, o controle da utilização e sensibilização das unidades familiares em ser consciente em seus esforços de apropriação e uso desses recursos.


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3 Precisamos considerar que essas configurações sociais que sustentam a relação entre as visões de mundo e as práticas ribeirinhas, incorporam às práticas interesses, capacidade de organização social, ao trabalho múltiplas dimensões, que modificam o projeto das comunidades na práxis; da mesma forma que não podemos ignorar unicidades socioculturais entre elas.

Quando questionados sobre os cuidados que tinham com os rios e igarapés, as lideranças, associando esses ecossistemas aos seus territórios de trabalho, informaram que hoje [ocasião da pesquisa] “a gente já tem uns certos cuidados para não deixar derribar os paus da beira dos igarapés porque se a gente derrubar tudo isso ai vem secar os rios e igarapés” (Entrevista Liderança 1, 2011). Dando continuidade às entrevistas, outras lideranças assim se manifestaram:

Tipo de preocupação que a gente tem hoje em relação o tratamento dos rios e igarapés? Hoje já existem alguns tratamentos porque a gente tem mais cuidado. Antigamente os rios e igarapés desses lugares eram muito mais bonitos. Porque os nossos antepassados eles cuidavam mais porque não deixavam os igarapés ser maltratados, eles tinham muito cuidado com isso (Entrevista Liderança 3, 2010).


Antigamente os rios e igarapés desses nossos lugares tinham dois lados, quando conheci tinha dois lados: de um lado havia reserva, muito peixe, não tinha barco pra poluir; do outro lado, também havia outra situação, onde não tinha higiene, plantavam só cana, jogava poluição no ar, jogava bagaço no rio, mas havia sempre dois lados, o que não existia era preocupação por que as pessoas naturalmente faziam isso, por que não havia necessidade de agredir o rio. (Entrevista Liderança 2, 2011).


Informaram ainda que em algumas áreas, “tem gente que utiliza veneno para pescar. Eles usam timbó e veneno de madeira” (E1). “Se nos tomar conhecimento que alguém joga veneno, a gente vai tomar preucação. No passado já tomei, já fizeram isso” (E2).

Ao serem perguntados se percebiam algum tipo de mudança, de diferença no conhecimento que as pessoas mais idosas tinham em relação ao uso dos rios e das matas, os entrevistados, depois de uma breve pausa, assim se manifestaram:


O conhecimento das pessoas de antigamente em relação aos usos dos rios e da mata era diferente. Eles tinham mais cuidado, não deixavam cortar as árvores de ucúuba, andiroba, essas coisas, tudo, eles não deixavam cortar, por que daí, eles tiravam a alimentação deles, agora tudo eles cortam, por causa, para plantar, fazer plantio do açaí, que é monocultura, e daí dá mais dinheiro, aí é cortado todo esses tipos de árvores.(Entrevista Liderança 1, 2011).


É, tinha menos gente, era mais fácil de preservarem, tinham mais cuidado, eles conseguiam, talvez, quem sabe já gostavam do rio valorizavam mais, depois é que veio pessoas que já tem o capitalismo na cabeça, acabam pensando mais no dinheiro do que nos valores naturais. Então tem esse lado de prejudicar por falta de consciência. Naquela época também havia paixão pela natureza, hoje existem só algumas pessoas que tem consciência de cuidado, mais existem pessoas que é por causa do dinheiro, da vaidade também prejudica. (Entrevista Liderança 2, 2011).


No contexto atual, em face do reconhecimento da problemática socioambiental que está presente em seus territórios de trabalho, as lideranças locais mostraram que

têm buscado orientar e promover ações educativas voltadas para mudanças na relação com a natureza.


Existem novos conhecimentos que são utilizados aqui na comunidade. Existem e muito! Bastante conhecimento: várias pessoas que estudam trazem conhecimento, a participação da gente na comunidade, a participação de gente nas associações, nos sindicatos tudo isso vai gerando conhecimento, que ajuda. Por exemplo, se hoje tivesse alguém que fosse jogar veneno, a gente ia tomar punição a gente não ia deixar. (Entrevista Liderança 2, 2011).


Existe novos conhecimento que são utilizados aqui na comunidade. O conhecimento sobre o manejo do açaí. A gente tem mais um conhecimento e faz por conta própria, mesmo. (Entrevista Liderança 3, 2010).


As narrativas revelam uma preocupação voltada para práticas educativas que tratem dos recursos naturais de uso coletivo, como é o rio e a mata. Na defesa dos interesses do coletivo, as lideranças buscam, por meio de parcerias, dar conta de práticas educativas socioambientais, voltadas para práticas predatórias, visando garantir sustentabilidade de seus territórios de trabalho, consequentemente, a reprodução material.

Na dinâmica do cotidiano ribeirinho, e em meio a tantas dificuldades no desenvolvimento de suas práticas produtivas, sobressai a vitalidade intelectual e política de agentes educadores que atuam nas comunidades. Esses agentes recorrem à práticas educativas, cuja formação e continuidade se propagam e se fazem por meio de outras pedagogias (ARROYO, 2012). Mesmo sem livros e sem escolas, tem o compromisso da aprendizagem de todos, conforme indica uma das narrativas: “eu acredito que se a gente sabe de alguma coisa é porque alguém também ajudou a repassar isso pra gente, né! e a gente tem a função de repassar para os outros” (Entrevista Liderança 2, 2011).


O conhecimento das pessoas mais velhas da comunidade tem sido repassado para os mais jovens, forma muito lenta, por que as pessoas ainda, hoje não tem aquele conhecimento do passado. Antes, no passado tinha mais cuidado com as matas virgens, hoje em dia, as pessoas não têm aquele cuidado que tinham. E por isso, ainda, há uma coisa, ainda muito que devemos fazer muito para as pessoas possam se conscientizar da natureza. (Entrevista Liderança 3, 2010).

Assim, os rios e matas como lugar/substrato das objetivações de práticas e experiências de trabalho, do agir histórico da vida cotidiana, configuram-se como espaço de produção e circulação de saberes.


Considerações finais


Os discursos educativos que informam as experiências de trabalho no cotidiano ribeirinho, materializadas nas relações diretas que as comunidades estabelecem com os rios e as matas, têm se constituídos em um conjunto de saberes que são construídos e/o dinamizam essas experiências.

Esses saberes, ainda que produzidos em contextos ribeirinhos, diferem de acordo com suas territorialidades, dos sujeitos que os constroem e/ou dinamizam e da materialidade das experiências que conformam as práticas produtivas.

Dessa forma, é possível considerar as experiências de trabalho dessas comunidades como espaços de realização de processos pedagógicos de aprendizagens, portanto, de circulação de saberes.

A episteme que preside os processos de aprendizagem e de transmissão de saberes por serem de ordem prática traz a possibilidade de se pensar a educação em suas formas de materialização a partir de uma perspectiva ampliada. Na região Amazônica, uma diversidade experiências de grupos sociais têm oportunizado essas reflexões.

Essas experiências mostram que a educação não pode ser reduzida ao espaço escolar (BRANDÃO, 2002), porque na prática ela se efetiva de forma ampliada. Nessas experiências estão evidenciados os diferentes perfis que assumem os agentes educadores (pescadores, agricultores familiares, coletores, pequenos artesãos, carpinteiros navais, dentre outros), o que indica que os processos educativos não podem ficar restritos ao contexto educacional formal e sob a responsabilidade dos professores, mesmo reconhecendo o papel relevante que eles têm no contexto educacional.

Por meio das narrativas dos agentes educadores, foi possível identificar uma preocupação pedagógica com as gerações, no contexto de suas experiências de trabalho, expressas na valorização e continuidade das atividades e com os elementos da natureza, por meios dos quais eles engendram seus arranjos produtivos. Essa

preocupação está materializada em “estratégias pedagógicas”, que pode ser o exemplo, a chamada de atenção, o desafio: “Tu garante” (MEDAETS, p. 2011).

Essas preocupações educativas e estratégias pedagógicas oferecem uma possibilidade de contribuir para o pensamento epistemológico voltado para o debate de uma concepção ampliada de educação. Neste sentido, é possível argumentar em favor de uma concepção de educação como cultura (BRANDÃO, 2002), educação como diálogo entre saberes (CHARLOT, 2002), o que se configura como um referencial teórico-epistemológico abrangente, capaz de dar conta daqueles processos educativos que se fazem em contextos do cotidiano social de uma diversidade de grupos sociais. Assim, é possível afirmar que por recorrerem à atenção, ao exemplo, esses “outros sujeitos educadores”, recorrem ao diálogo para a efetivação de suas práticas pedagógicas.

Dialeticamente, essa concepção ampliada de educação contrapõe-se àquelas concepções educacionais que estão assentadas em um prospecto de educação escolar, que acaba colocando à disposição da estrutura escolar uma concepção reduzida de educação, na maioria das vezes fechada em seu universo formal, fechada, portanto, para o diálogo com os contextos locais e outras experiências educativas que se fazem no cotidiano em que estão inseridos alunos que frequentam essas escolas, como é o caso dos grupos sociais ribeirinhos estudados.

A superação da dimensão educacional restrita ao ambiente escolar pode se fazer pela incorporação do conhecimento que dinamiza o cotidiano dessa diversidade de grupos sociais, dentre eles, os ribeirinhos mirienses. Mesmo porque esses saberes que sustentam suas experiências de trabalho decorrem e estão articulados à suas práticas culturais cotidianas.

A base de formação pedagógica é a práxis, no contexto da qual as experiências de trabalho têm um papel fundamental, e precisam ser compreendidas na relação ser humano/ natureza.

Portanto, a ideia de uma educação ampliada está presente em várias dimensões das experiências de trabalho, que se configuram como espaços por meio dos quais ocorrem processos de formação das comunidades estudadas. Os processos educativos integram, informam e fazem parte da dinâmica e do percurso cotidiano dos sujeitos ribeirinhos, no seu devir histórico. Neste sentido, ontologicamente estão ligados a sua reprodução material.

Epistemologicamente, é possível afirmar que esses saberes que as denominadas populações tradicionais (índios, quilombolas, ribeirinhos e outros grupos locais) detêm tradicionalmente em relação aos recursos dos rios e das matas, têm possibilitado que esses grupos contribuam efetivamente para a preservação da biodiversidade, pela forma como têm se apropriado da matéria natural na sua reprodução material e simbólica, portanto, reconhecidos como fundamentais aos seus modos de vida.

Daí a necessidade de se reconhecer que homens, mulheres e jovens que dinamizam essas experiências de trabalho são sujeitos históricos, portadores de conhecimentos.


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Recebido em: 05 de novembro de 2018. Aprovado em: 17 de novembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.