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TESE DE DOUTORADO



MONLEVADE, Ana Paula Bistaffa de. Comunidade Tradicional Raizama em Jangada/MT:¹ produzindo a existência associadamente por meio de enxadas, ralos, sucuris e torradeiras. 2018. 206p. Tese (Doutorado em Educação) – Instituto de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Cuiabá, 2018.2

Resumo expandido


A presente tese procurou demonstrar que, na contramão do sistema capitalista de produção – que é alicerçado na divisão social do trabalho que oprime e explora –, existem trabalhadoras e trabalhadores que seguem lutando historicamente contra este sistema, buscando (rememorando) outras formas de produzir a existência, sendo uma delas baseada na organização coletiva do trabalho e da vida, nos princípios de igualdade, solidariedade, autogestão e reciprocidade, no que denominamos produção associada.

Esta forma de organização é constituída a partir da autogestão do processo de trabalho, da divisão igualitária dos bens produzidos, da não exploração do outro, da transmissão geracional de saberes sobre o trabalho e sobre a vida, da ajuda mútua e da resistência ao trabalho assalariado.

Assim ocorre na Comunidade Tradicional Raizama (nosso campo empírico) que está localizada no município de Jangada a 110 km de Cuiabá - Mato Grosso. Local em que as trabalhadoras e os trabalhadores lutam historicamente para se manterem no campo e tentam resistir de várias formas aos “valores” pregados pelo capitalismo, como o individualismo e a competição. Um dos exemplos de resistência é a Associação dos Produtores Rurais da Raizama I criada, em 1988, com o objetivo


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27381

2Doutora em Educação pela UFMT. Mestra em Educação pela UFS. Especialista em Docência no Ensino Superior e Gestão de Negócios Turísticos. Bacharel em Turismo pela UNIRONDON. Professora lotada no Departamento da Área de Serviços do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT)

– Campus Cuiabá, atuando no Curso de Bacharelado em Turismo e no Curso de Ensino Médio Integrado em Eventos. Realiza pesquisa na linha de movimentos sociais, políticas, educação popular, turismo de base local e turismo pedagógico. A tese foi orientada pelo Prof. Dr. Edson Caetano, defendida em abril de 2018. anapaulabistaffa@gmail.com

de produzir coletivamente a farinha de mandioca, buscando o crescimento social e econômico da comunidade a partir de um produto que já era tradicional e que sempre remeteu à ancestralidade do local.



Imagem 01 e 02: Comunidade Tradicional Raizama

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Fonte: Lyra (2016)


Portanto, entendemos que a produção associada representa a dinâmica da realidade material e imaterial da trabalhadora e do trabalhador, o que permite entender os significados que o trabalho adquire na vida das pessoas, os comportamentos, as interações entre o grupo, os processos de sociabilidade e os mecanismos de controle.

Assim, consideramos Raizama uma comunidade tradicional por se diferenciar das demais comunidades pelo seu reconhecimento como grupo, pela sua história de luta, por possuir sua própria forma de organização e por preservar historicamente seus costumes e tradições.

Com base nisso, a pesquisa objetivou analisar as contradições e mediações vivenciadas pelas trabalhadoras e trabalhadores da Comunidade Tradicional Raizama/MT quando se organizam para produzir a existência a partir da produção associada. Especificamente, procuramos identificar elementos econômicos, culturais e saberes presentes na organização social da vida das trabalhadoras e trabalhadores de Raizama; apresentar as peculiaridades da produção associada que permeiam espaços e tempos históricos da comunidade e o que isto representa para a produção da vida material e imaterial em comunidade; e discutir os limites de existência e resistência da produção associada frente ao modelo de produção capitalista.

A partir dos objetivos apresentados, partimos do materialismo histórico- dialético na tentativa de entendermos a realidade concreta da Comunidade Raizama. Isto posto, optou-se pela pesquisa de abordagem qualitativa, a observação participante e a entrevista semiestruturada como forma possível para que as trabalhadoras e os trabalhadores da comunidade pudessem ser entendidos como sujeitos ativos e críticos. Em Raizama, estivemos presentes em diversos momentos e acontecimentos da comunidade e pudemos observar o andamento das reuniões da associação, a produção coletiva da farinha de mandioca, a realização dos mutirões e da festa de São Vicente de Paulo, bem como observamos o cotidiano de trabalhadoras e trabalhadores laborando na terra.

Foi também necessária a utilização da história oral como metodologia de pesquisa para entender como a comunidade se formou a partir das narrativas de memórias de seus(suas) moradores(as) e das histórias que foram passadas de uma geração para outra neste período de existência de Raizama. Histórias que perpassam desde o período em que existiam aldeias indígenas próximas à comunidade até o processo ilegal de ocupação das terras do Estado que interferiu diretamente na atual formação e delimitação das terras de Raizama.

Utilizamos, ainda, a metodologia chamada autofotográfica (ou método autofotográfico) em que entregamos uma câmera fotográfica a uma trabalhadora da

comunidade e solicitamos que a mesma registrasse fatos, objetos, acontecimentos,

produtos etc., que considerava mais importantes na comunidade e que representassem a forma de ser e viver em Raizama.

Conseguimos fundamentar teoricamente nossa pesquisa quando apresentamos a partir de Marx e demais autores da linha crítica, o trabalho em sua dimensão onto-histórica, o surgimento do capitalismo e, com ele, do proletariado e dos mundos do trabalho, bem como os aspectos históricos da produção associada. Também construímos a história da comunidade e da descendência das trabalhadoras e trabalhadores de Raizama. E contamos ainda como se deu o processo de ocupação de terras no Estado e como isso refletiu na história da comunidade.

Além disso, toda a pesquisa empírica realizada considerou os espaços de trabalho coletivo da comunidade como a farinheira e os mutirões e, ainda, apontou aspectos de sua existência/resistência frente ao capital e das relações sociais em comunidade.



Imagem 03: Mutirão para a reforma da farinheira

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Fonte: Lyra (2016)


Consideramos importante salientar que são muitas as contradições, os desafios e também as formas de resistência encontradas em Raizama. Foi possível identificar uma realidade que lhe é peculiar, pois tem-se a produção associada que

permeia espaços e tempos históricos da comunidade até um específico momento (produção da farinha de mandioca) e depois encontram-se os limites dessa existência frente ao capital (distribuição e circulação).

Raizama já sofreu com o processo ilegal de ocupação do Estado do Mato Grosso que impactou profundamente na distribuição das terras na comunidade, porém, mesmo não podendo mantê-las de forma comunal, a essência do trabalho associado não foi perdida. Isto pôde ser observado tanto na farinheira, como nos mutirões e também em outras instâncias da vida social que foram pesquisadas. Entendemos o que representa a prática histórica da “troca de dia” para estes(as) trabalhadores(as), em que uma família ajuda a outra sem utilizar pagamento em dinheiro, sem explorar a força de trabalho do outro e sem priorizar o lucro. Percebemos o quanto isso é importante para a manutenção da farinheira e para a produção da própria existência, pois além de resistirem a um sistema que escraviza e aliena, também conseguem construir uma forma de organização autogestionária e compartilhada em que a existência é pautada na solidariedade.

Atualmente, a farinheira passa por um momento importante de sua história, pois, após a sua reforma, voltou-se a produzir farinha como antes do tempo em que ficou suspensa. Novamente há fila para as famílias agendarem o dia para a produção. Muito mais associados(as) estão empenhados(as) no trabalho naquele espaço e, com isso, muito mais trabalhadores e trabalhadoras conseguem uma renda extra com a farinha.

Isto se deve aos novos equipamentos instalados no espaço, que permitiram que a produção se tornasse menos complicada e exaustiva, apesar de ainda ser um processo artesanal (um tipo de tecnologia social); hoje, mais trabalhadores(as) se dedicam a descascar a mandioca (procedimento que ainda é todo manual e que demanda mais tempo e técnica) e são necessários(as) menos trabalhadores(as) para as demais etapas devido às novas máquinas. Observamos, assim, não somente uma melhoria econômica para a comunidade, mas também social, pois Raizama reabilitou o seu espaço em participar das farinhadas e ajudar em todas as etapas do processo.

Assim, compreendemos que na farinheira de Raizama o trabalho ocorre de forma associada e autogestionária (mesmo com seus limites e contradições). Todos são proprietários do espaço e a sua administração ocorre de forma democrática. As trabalhadoras e os trabalhadores valorizam as relações de solidariedade existentes

e não exclusivamente o lucro, pois ali não existe a exploração da força de trabalho do outro.

Também em outros contextos da vida em comunidade foi muito fácil observar a preocupação de um com o outro e a responsabilidade que cada família tem em ajudar as demais, não permitindo que ninguém fique sem assistência ou passe por dificuldades extremas. Isto nos fez perceber que os laços de solidariedade e reciprocidade ainda são muito fortes no local, representando a identidade associativa da comunidade. Assim é Raizama, exemplo de existência, resistência e luta!


Recebido em: 01 de setembro de 2018. Aprovado em: 17 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.