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MEMÓRIA E DOCUMENTOS


A “REPÚBLICA DOS GUARANIS” E OS SETE POVOS DAS MISSÕES DOS JESUÍTAS¹

Francisco José da Silveira Lobo Neto2


Documentos:


Carta do Padre Anton Seppi


“Há quase um ano que estávamos ocupados em formar a nova povoação [São João]. A igreja e as casas já estavam edificadas, e a colheita superara nossas esperanças. Achei que era o momento de transferir as mulheres e as crianças que eu retivera até então em São Miguel.

Era um espetáculo comovedor ver essa multidão de índias marchando pelos campos, carregando seus filhos aos ombros e os outros utensílios domésticos, que levavam nas mãos. Assim que chegaram, foram alojadas nas casas que lhes eram destinadas, onde cedo esqueceram suas antigas habitações e as fadigas que tinham experimentado para se mudarem para esta nova terra.

Já não (sic) se tratava de dar uma forma de governo a essa colônia nascente. Fez- se, portanto, a escolha daqueles que tinham mais autoridade e experiência para administrar a justiça. Outros foram encarregados da milícia, para defender a região das incursões que os povos do Brasil fazem de tempos em tempos. O resto do povo ocupou-se nas artes mecânicas”.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27383

2Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Membro do Neddate. Professor da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio da FIOCRUZ – EPSJV/FIOCRUZ

Relato de Charlevoixii


“Aí se aprendem a tocar todos os tipos de instrumentos cujo uso é permitido nas igrejas. (...) tiveram muito pouco trabalho para aprenderem a tocá-los como verdadeiros mestres. Aprenderam a cantar pelas notas as melodias mais difíceis, e somos quase tentados a crer que cantam por instinto, como as aves. (...) Saber cantar era considerado, de certo modo, como um dos primeiros deveres do cidadão.

(...) cita-se como instrumentos de orquestra o órgão, os violinos, violoncelos, contrabaixos, clarinetes, flautas, harpas, guitarras, violões, trombetas, trompas e tambores. Todos os instrumentos, de fabricação muito cuidada, saíam das oficinas dos guaranis.”


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Figura 1 - Indiozinho em frente às ruínas da Igreja de São Miguel. Autoria: Germano Schüür2


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2 Imagem retirada de banco de imagens de domínio público.

Trecho da Carta – escrita em guarani - da Municipalidade (Cabildo) de S. Luiz Gonzaga ao Marquês de Bucareli (Governador de Buenos Aires) em 28 de fevereiro de 1768iii


“Nós a municipalidade (Cabildo), e todos os caciques e índios, mulheres e crianças de S. Luiz, rogamos a Deus que tenha em Sua santa guarda Vossa Excelência, que é nosso pai. (...)

Cheios de confiança em Vossa Excelência vimos, com toda a humildade e de lágrimas nos olhos, suplicar que seja permitido aos filhos de Santo Inácio, aos padres da Companhia de Jesus, continuarem residindo entre nós e aqui permanecerem sempre. Pelo amor de Deus, suplicamos a Vossa Excelência que se digne pedir isso ao rei. (...)

... os filhos de Santo Inácio eram cheios de bondade por nós. Foram eles quem, desde o princípio, cuidaram de nossos pais, os instruíram, os batizaram e os salvaram para Deus e o rei. (...)

Os padres da Companhia de Jesus sabiam ser indulgentes com as nossas fraquezas e sentíamo-nos felizes sob a direção deles, pelo amor que dedicávamos a Deus e ao rei. (...) não somos escravos e queremos fazer ver que não nos agrada o costume espanhol que quer que cada um cuide de si, em lugar de se ajudarem mutuamente em seus trabalhos cotidianos.

Esta é a verdade nua e simples, e fazemo-la saber a Vossa Excelência, para que nela atente, senão esta Missão perder-se-á como as outras. (...) Os nossos filhos que estão atualmente nos campos e nas aldeias, se, no seu regresso, não mais encontrarem os filhos de Santo Inácio, fugirão para as florestas, para aí praticarem o mal. Ao que parece, já os povos de S. Joaquim, S. Estanislau e Timbó estão perdidos: nós bem o sabemos e o declaramos a Vossa Excelência. As próprias municipalidades já não são capazes de os fazer voltar sob a autoridade de Deus e do rei, como eles estavam antes. (...)

Eis o que vos declaramos, em nome do povo de S. Luís, hoje, 28 de fevereiro de 1768.

Vossos humildes servidores e filhos.


(a) Os membros do Cabildo da Missão de S.Luís.”

Contexto:


Há 250 anos e oito meses, “em nome do povo de S. Luís” – um dos aldeamentos, dentre os trinta, que formam a denominada “República dos Guaranis” e um dos sete povos das Missões Orientais da Companhia de Jesus, hoje situados no Rio Grande do Sul - os membros do “Cabildo” daquela municipalidade escreviam uma carta (Documento 3) ao Governador de Buenos Aires solicitando que os jesuítas continuassem a residir e permanecessem “para sempre” junto a eles. Caso contrário, o Rei e seus prepostos terão a não volta aos aldeamentos, a rebelião e retaliação.

Luis Felipe Baeta Neves (1978)iv já advertia, na conclusão de sua tese de doutorado em antropologia, que as dificuldades de se “estudar a ação da Companhia na efetiva ocupação do Brasil, porque muitos insistem em considerar que ou a Companhia era um ‘agente do colonialismo’ e estamos conversados, ou insistem em considerar que a Companhia ‘humanizou a colonização’, ou ficam com 200 anos de atraso, querendo saber se a Companhia queria fundar ou não ‘um império teocrático’ na America Latina”. E, prossegue Baêta Neves: “São todas estas questões congenitamente ligadas a uma ética moralista, não à história ou à antropologia”.


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A partir do momento em que os Padres Manuel da Nóbrega com seus companheiros, no Brasil do século XVI, assim como os missionários, enviados pelo Rei de Espanha, deslocando os guaranis da região do Rio Paranapanema para a região entre os Rios Paraguai, Paraná e Uruguai - no início do século XVII - sentiram a necessidade da criação de aldeamentosv de índios recém convertidos ao cristianismo. Assim, preservavam-nos tanto da ameaça da escravização, quanto do comportamento dos colonizadores pouco coerente com o código moral cristão.

O Padre Pierre Charlevoix (apud LEGON, 1977, pág. 32) recorda-nos que os Padres Simon Maceta e José Cataldino só aceitaram a Missão após “o bispo e o governador lhes conferirem plenos poderes para reunirem todos os cristãos em povoados, para os governarem sem qualquer dependência das cidades e fortalezas vizinhas dos lugares onde se estabelecessem, para construírem igrejas em todas as localidades e para se oporem, em nome do rei, a quem quisesse sujeitar os novos cristãos ao serviço pessoal dos espanhóis sob qualquer que fosse o pretexto”.

Um ano depois, em 1610, nascia a primeira “redução” de Nossa Senhora do Loreto, cuja população logo cresceu muito. Um dos caciques propôs, então, que se formasse uma outra redução: Santo Inácio-Mini. Ainda, em 1611/1612, organiza-se Santo Inácio-Guazu, sob a liderança do Padre Lorenzana, dizimada por uma doença contagiosa. Os poucos sobreviventes prosseguiram desenvolvendo-a e gerando novas filiais, assistidos pelo Padre Giffi, já que Lorenzana foi chamado a reassumir a direção do Colégio de Assunção.

Nesta primeira fase da evangelização da região ao sul da cidade de Assunção, marcada pelo Tratado de Tordesilhas como domínio espanhol e não português, os jesuítas europeus (espanhóis em maioria, mas também italianos, alemães, franceses) tiveram todo tipo de dificuldades. A primeira delas com os colonizadores - sejam eles colonos em suas estâncias, ou mandatários nomeados pelos Reis, bem como seus prepostos em vilas e fortalezas. Nem se deve esquecer que, no período de 1580 a 1640, a monarquia dual (um rei dois reinos) se estabelece na Península Ibérica, sendo proclamado Rei de Portugal, o Rei de Espanha Felipe II, em Portugal sob o nome de Felipe I. Assim os Felipe de Espanha III e IV, reinam também em Portugal como Felipe II e III.


Por um lado, a denominada União Ibérica propiciou a expansão do território brasileiro pelas “entradas” – expedições oficiais de exploração das terras a oeste do meridiano de Tordesilhasvi – e pelos “bandeirantes” que, sem o marco da formalidade oficial, iam em busca de ouro, prata, pedras preciosas e especiarias. Estes movimentos levaram os jesuítas a transferir suas missões da região do Paranapanema para as margens dos Rios Paraná, Paraguai e Uruguai (MIRANDA NETO, 2012, pág. 30)vii

Por outro lado, os inimigos da União Ibérica, percebendo o enfraquecimento das políticas portuguesas no ultramar, invadiram seus territórios nas Américas: franceses (em São Luiz do Maranhão) e, sobretudo os holandeses, que passaram quase ¼ de século dominando a Capitania de Pernambuco (1630-1654).

Em um segundo momento, já restaurada a monarquia portuguesa com o Duque de Bragança, proclamado Rei de Portugal como D. João IV, em 1640, os grandes ataques bandeirantes se encerraram com a Batalha Mbororé em 1641. Mas não cessaram as investidas dos paulistas, reduzindo à metadeviii o número de “reduções” e forçando sua migração para o oeste e o sulix.

Foram tão longe, os interesses do Império Português em estender o território brasileiro na direção do sul e do oeste, que determinou a D. Manuel Lobo, Governador da Capitania do Rio de Janeiro, montar uma expedição ao Rio de La Plata, com apoio dos comerciantes do Rio e de Santos, para garantir com uma fortificação os negócios com a América Espanhola. Em 22 de janeiro de 1680, em frente a Buenos Aires, os portugueses iniciam a Colônia do Santíssimo Sacramento, que consistia em uma fortaleza dotada de um porto.

Obviamente, o Governo de Espanha não se conformou. Colônia de Sacramento foi um pomo de discórdia, ora vinculada a Portugal, ora subordinada à Espanha. Com o Tratado de Madri, assinado em 13 de janeiro de 1750, foi devolvida definitivamente à soberania espanhola, sendo que passaram ao domínio português as sete “reduções” fundadas pelos jesuítas, juntamente com estâncias e terras “na margem oriental do rio Uruguai”, preservado o domínio hispânico nas “reduções” e terras na margem oeste do mesmo rio e na Bacia do Rio de La Plata.

Mas a fase de apogeu das “reduções”, começa justamente após a criação da Missão de San Francisco de Borja (hoje, São Borja, RS) em 1682 para aliviar a superpopulação da “redução” de San Thomé. Dois mil guaranis - homens, mulheres e crianças - cruzaram em balsas da margem ocidental para a oriental do rio Uruguai, formando o primeiro dos Sete Povos das Missõesx.

Seguem-se as criações das Missões: em 1687, de San Nicolás (a Nova, reconstruída sobre as ruínas da mais antiga, criada em 1626 e “abandonada há meio século pelos tapes”xi); de San Luís Gonzaga, referida acima no Documento 3; de San Miguel Arcangel. Em 1690, entre San Miguel e San Luís, a Missão de San Lorenzo. Sete anos depois (1697), para dividir a população de San Miguel (Documento 1), é criada a “redução” de San Juan Bautista. Finalmente, em 1706, é constituída a última Missão dos 7 povos, colocada sob a proteção de San Angel de La Guardia, para desafogar o excesso de população da “redução” de Concepción. Migraram para San Angel 737 famílias de tapes. O lugar desta “redução” foi escolhido, pelo Padre belga Diego de Haze, por ter abundância de “água, madeira e boas terras”xii.

A República Guarani sobreviveu, por pouco mais de século e meio, equilibrando sua autonomia entre duas metrópoles monárquicas. O segredo desta sobrevivência foi a estratégia jesuíta de criar conselhos eleitos ou “Cabildos”, já mencionados pelo Padre Mastrilli em 1626 e 1627. Lugon (1977, p. 89) nos diz que “toda administração prática se encontrava em suas [dos guaranis] mãos”. Os índios cuidavam da ordem em sua “redução” e tinham a iniciativa de tomar as providências necessárias e úteis ao bem comum. “Organizavam e dirigiam os trabalhos. Administravam os armazéns. Rendiam justiça”. As eleições ocorriam “nos últimos dias de dezembro ou no primeiro dia do ano” (ibidem). Um dos Missionários, exercia o cargo de Superior-Geral e visitava as “reduções” e escrevia as diretrizes para

manter “la uniformidad en todo, en todas las reduciones” (Regulamento de 1637, n. 5, apud LUGON, p. 91).

Os guaranis não se conformaram com o Tratado de Madri e resistiram às ordens de entregarem as reduções dos Sete Povos aos portugueses. Tanto o Rei de Espanha quanto o Rei de Portugal mobilizaram seus exércitos para vencer a resistência dos índios. No período entre 1753 e 1759, este confronto da união de tropas portuguesas e espanholas contra os guaranis dos Sete Povos, foi denominado “guerra guarani”. Tanto na Relação Abreviada da República dos Jesuítas e outras obras e panfletos espalhados pela Europa acusavam os jesuítas de desobediência ao poder monárquico, criando uma República autônoma em seu próprio benefício. Em 1759, os jesuítas são expulsos de Portugal, três anos depois banidos de França (1762) após oito anos, em 1767, do Reino de Espanha. Até que, em 1773, o Papa Clemente XIV os extingue.

Chegados à América Portuguesa e Espanhola no século XVI, atravessam o século XVII e mais da metade do século XVIII, evangelizando e educando fiéis para a Igreja Católica e súditos para os Reis de Portugal e de Espanha. Mas, sobretudo, criando uma pedagogia colonizadora, sim, mas quase sempre respeitosa das especificidades dos que denominavam de “gentios”. Mais que tudo, uma pedagogia que sabia respeitar o talento dos indígenas. Neste sentido, souberam defendê-los em aldeamentos, fizeram-nos capazes de exercer as artes e os ofícios que os Padres e Irmãos Coadjutores traziam da Europa. Uma pedagogia que – com seus defeitos e falhas, seus acertos e méritos – manifesta seus resultados nas ruínas, vestígios e documentos sobreviventes da devastação dos “civilizados”, testemunhos dos Sete Povos das Missões da República dos Guaranis. “Nenhuma outra região da América conheceu nos séculos XVII e XVIII uma prosperidade tão geral nem um desenvolvimento tão equilibrado e saudável” (LUGON, apud MIRANDA NETO, 2012, pág. 60).

Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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i Lettres Édifiantes et Curieuses, tomo V, pág. 489. Revista Internacional da Companhia de Jesus. Lyon, 1819. In: LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis: 1610-1768. 3ªed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 39.

ii CHARLEVOIX, Pierre François Xavier de. S.J. Histoire du Paraguay. 6vols. Paris, 1747, pág. 241- 242 e 257

iii Apud LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis: 1610-1768. 3ªed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 307-309. O mesmo LUGON, ibidem, informa que “o texto em guarani foi publicado por Woodbine Parish, em Buenos Ayres et les provinces de la Plata, traduzido em francês por Martin de Moussy”.

iv Cfr. NEVES, Luis Felipe Baeta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 164.

v No caso da República Guarani o nome “reduções” foi utilizado para designar as aldeias, para acentuar o “fato de que elas estavam assim convertidas em “redutos” à margem do mundo colonial” (LUGON, op. cit, pág. 30, nota).

vi Assinado entre a Coroa de Portugal e a Coroa de Castela, em 1494. Assim é que constatamos que a região do Guayra (hoje, em parte grande do Estado do Paraná), pelo Tratado de Tordesilhas, eram terras castelhanas.

vii MIRANDA NETO, A utopia possível: missões jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape, 1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico. Brasília (DF): FUNDAG/MRE, 2012.


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viii LUGON, op. cit. pág. 65.

ix cfr. Idem, ibidem.

x ARAUJO, Rubem Vidal. Os jesuítas dos 7 povos. 4ª ed. Porto Alegre: Edições Renascença, distrib. Vozes, s/d (1ª. ed. Em 1998) pág. 245-306.

xi Idem, pág. 249. Os tapes são indígenas, próximos aos guaranis, que habitavam a região alta a oeste da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul.

xii idem, pág. 291-292.