v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X
Kelli Cristine de Oliveira Mafort2
O ponto de partida deste trabalho é a jornada nacional de lutas das mulheres do campo, que integra as mobilizações do dia internacional das mulheres. Tal jornada se caracteriza pela pauta histórica das trabalhadoras – contra o patriarcado e a divisão sexual do trabalho, igualdade nas relações sociais de gênero, combate à violência, políticas para as mulheres e a visibilidade sobre o vínculo entre classe, gênero, raça e diversidade. E para compreender a especificidade da luta das mulheres do campo, analiso a temática de gênero, articulada à trajetória de luta por reforma agrária.
Palavras chave: gênero; questão agrária; reforma agrária.
El punto de partida de este trabajo es la jornada nacional de luchas de las mujeres del campo, que integra las movilizaciones del día internacional de las mujeres. Esta jornada se caracteriza por la pauta histórica de las trabajadoras - contra el patriarcado y la división sexual del trabajo, igualdad en las relaciones sociales de género, combate a la violencia, políticas para las mujeres y la visibilidad sobre el vínculo entre clase, género, raza y diversidad. Y para comprender la especificidad de la lucha de las mujeres del campo, analizo la temática de género, articulada a la trayectoria de lucha por reforma agraria.
Palabras clave: género; cuestión agraria; reforma agraria.
The starting point for this work is the national day of women's struggles in the countryside, which is part of the mobilizations of the international women's day. This journey is characterized by the historical agenda of women workers – against patriarchy and the sexual division of labor, equality in gender social relations, combating violence, policies for women and visibility on the link between class, gender, race and diversity. And to understand the specificity of the struggle of women in the countryside, I analyze the theme of gender, articulated to the trajectory of struggle for agrarian reform.
Keywords: gender; agrarianquestion; landreform
1Artigo recebido em 26/03/19. Primeira Avaliação em 11/04/19. Segunda avaliação em 02/05/19. Terceira avaliação em 24/05/19. Aprovado em 10/06/19. Publicado em 04/07/2019 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29367
2Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras, da UNESP, campus Araraquara/SP, Brasil. Mestre em Ciências Sociais pela UNESP e graduada em Pedagogia pela UNESP. E-mail: kmafort@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4698- 3113.
O objetivo do presente artigo é analisar a participação das mulheres na luta por reforma agrária, destacando a metodologia na qual estas lutas se desenvolvem. O conteúdo das ações políticas destas mulheres tem trazido uma interessante mistura entre os elementos constitutivos do ser mulher, da terra e da própria luta em si, que podem fornecer pistas sobre a trajetória a ser seguida para impulsionar um processo educativo quanto à consciência de classe. Ao mesmo tempo, a forma metodológica da ação direta, da construção coletiva e da conspiração necessária, remete ao debate sobre a natureza e o caráter necessário às lutas da atualidade.
Trabalho com a questão agrária, tendo um foco nas mulheres organizadas em acampamentos e assentamentos, integrantes do MST (Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra). Para compreender a especificidade da luta das mulheres do campo, analiso a temática de gênero, articulada à trajetória de luta por reforma agrária, marcada historicamente por ações ofensivas de caráter radical, influenciadas pela própria natureza conservadora e violenta do latifúndio e de defesa da propriedade privada. Mas apesar desta trajetória ofensiva, analiso que a subjetividade dos sujeitos sociais protagonistas desta luta está sob permanente disputa e tal questão deve ser entendida sob o contexto da reestruturação produtiva do capital (Firmiano, 2014) e seus impactos sobre as formas organizativas e políticas dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Neste artigo, tomo como ponto de partida a ocupação de terras no estado de Goiás, na fazenda de propriedade do médium João de Deus, onde discuto o sentido desta ação dentro do contexto de agravamento da violência contra as mulheres e os trabalhadores do campo em geral. A seguir, analiso o sentido pedagógico desta e como isso se opõe à perspectiva de assimilação e conciliação de classes. Por fim, trago alguns elementos sobre os condicionantes da vida cotidiana das mulheres, seus elementos de resistência e como eles podem ajudar na retomada da luta ofensiva tão necessária em tempos de crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2010).
Na madrugada do dia 13 de março de 2019, cerca de 800 mulheres do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e do MCP (Movimento Camponês Popular) fizeram a primeira ocupação de terras sob o governo Bolsonaro. A ocupação fez parte da jornada nacional de lutas que ocorre em torno do dia internacional das mulheres, o 8 de março, mas que neste ano em especial, ao rememorar um ano do assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), estendeu-se até o 14 de março. Sob o lema “Pela vida das mulheres, somos todas Marielles”, as trabalhadoras do campo organizaram diversas atividades em todo o país, tais como feiras, distribuição de alimentos, rodas de conversas, debates, caminhadas, protestos, ocupação de terra e ações simbólicas como o “trancamento” dos trilhos de trem no município de Sarzedo – MG, por onde empresas mineradoras, como a Vale, trafegam livremente, mesmo depois do dramático rompimento da barragem de rejeitos no município de Brumadinho, no estado de Minas Gerais (MST, 2019a).
Segundo o MST (id, ibid), a ocupação da fazenda Agropastoril Dom Inácio, em Anápolis, de João de Deus, localizada entre os distritos de Interlândia e Sousânia, estado de Goiás, reivindica que todos os imóveis rurais do proprietário sejam destinados para reforma agrária, a fim de produzir alimentos saudáveis, e que as vítimas dos 506 casos denunciados de abusos sexuais cometidos pelo médium, sejam indenizadas. Essa ação teve o apoio da organização social COAME – Combate ao Abuso no Meio Espiritual, entidade a qual pertencia a jornalista Sabrina Bittencourt, que cometeu suicídio no dia 02 de fevereiro deste ano, alegando em carta deixada por ela, fortes pressões decorrentes das denúncias que ela ajudou a difundir.
A ocupação do latifúndio por essas mulheres desses movimentos são, portanto, um direito garantido em Constituição, e não poderia ser um destinamento mais justo e simbólico para essas terras. A História e a vivência estão aí para nos mostrar que: onde há exploração da terra, há exploração da mulher. Onde o homem abusa da terra, encontraremos também abuso da mulher. É hora deste tempo acabar. Toda nossa solidariedade à Jornada Nacional de Lutas das Mulheres Sem Terra. (COAME, 2019).
A ocupação de terras tem sido uma forma de luta histórica dos movimentos populares do campo, que conseguiram impor legitimidade a uma ação política que superficialmente poderia ser considerada como ilegal, mas que ao contrário, tem sido o principal mecanismo de arrecadação de terras para a política de reforma agrária e cumprimento constitucional da função social da terra.
O fato da ocupação de terras não ser nenhuma novidade, não tira dela o caráter de radicalidade do processo organizativo para adentrar numa propriedade privada e questionar suas mazelas e a necessidade social de sua arrecadação, no entanto, tal característica de luta radical é explicitada com mais contundência quando os contornos de classe da luta diária estão latentes, como é o caso do momento atual.
O governo Bolsonaro tem tentado criar uma “proibição” à luta política e a processos organizativos e populares, seja através de ataques verbais, incentivo à perseguição e assassinatos de defensores dos direitos humanos, mas também por meio da consolidação de um discurso que tipifica movimentos sociais como terroristas (o que contribui para alterações legislativas por parte do congresso nacional). Sob tal contexto, a ocupação nas terras de João de Deus se torna histórica, não somente por ser a primeira do governo Bolsonaro, mas também por dar novo sentido a uma forma de luta que já estava assimilada pela sociedade brasileira e em certa medida, pelas instituições de Estado. Portanto, ocupar latifúndios, prédios públicos, casas e terrenos abandonados, no espaço urbano ou rural, é um ato político com um sentido ressignificado, dado o nível de ameaça que existe sobre tal ação e seu potencial exemplo pedagógico para uma massa de trabalhadores na sociedade, cada vez mais expropriados e privados de acesso a condições básicas de sobrevivência.
Ainda segundo o MST (MST, 2019b) a ocupação na fazenda agropastoril Dom Inácio, teve como motivação questionar a que serve o latifúndio, explicitando a sua vinculação com expressões de poder e domínio, utilizadas para cometer crimes de abusos sexuais contra mulheres em condição de extrema fragilidade, numa ardilosa trama de exploração da fé e da crença individual.
Ao se defrontarem com essa mistura entre latifúndio e abusos sexuais, as mulheres são levadas a refletir sobre a própria realidade em que vivem e as condições a que estão submetidas numa sociedade patriarcal e misógina. O trecho
da crônica a seguir, elaborada no contexto da referida luta, nos dá pistas para compreender o sentido pedagógico da participação das mulheres nestes processos.
Naquele momento já não se ouvia mais a respiração, porque havia outros sons mais fortes, o som da quebra das correntes nos arrepiava, nos provocava gritos emocionados, como se aquelas correntes que identificavam o latifúndio não fossem só isso, e de fato não eram. É nessa concentração, nesse poder que se apresentam o tráfico, a exploração, a violência, e a apropriação de nossos corpos, de nossas vidas, de nosso trabalho e do poder de dominação. Aquelas correntes, de fato tão fortes, tão grossas, malditas, pesadas e cruéis tinham que ser quebradas, rompidas, estraçalhadas. O “tililim” do impacto do machado e da marreta na quebra das correntes que nos aprisionam, soava como uma música clássica aos nossos ouvidos tão desacostumados a escutar. Com as trocas de olhares, de abraços, de emoções o grupo foi tomando seus lugares, pegando as ferramentas para a construção dos espaços coletivos para dormir, alimentar, cuidar da saúde, da segurança e muito rapidamente aquele latifúndio de estuprador de mulheres virou um jardim de histórias, de “causos”, de esperança da conquista da terra, de justiça e de desejos de poder desejar. Eram as chitas que circulavam, que se cruzavam e conspiravam. (WITCEL, 2019, não paginado).
Neste “quebrar das correntes do latifúndio”, as potencialidades de repensar as situações de violência e privações presentes no cotidiano de muitas mulheres trabalhadoras do campo, confere um sentido pedagógico aos processos de luta. E em se tratando de uma luta com caráter radical, como é a ocupação de terras, a tática da ruptura diante das estruturas de dominação, vai se apresentando como a única forma possível de alterar tal situação.
No caso específico da luta por reforma agrária, as tentativas de enquadramento político deste segmento na chamada “agricultura familiar”, são prova inequívoca de como a consciência do que se é tem implicações políticas no que se faz e nas definições para onde se vai.
A histórica luta por reforma agrária no Brasil é marcada por uma trajetória de ações ofensivas de caráter radical, pela natureza conservadora e violenta do latifúndio, mas também pela concentração de poder em torno da defesa da propriedade privada. Isso está presente nos históricos processos de luta pela terra até os movimentos populares da atualidade, no entanto a subjetividade dos sujeitos sociais protagonistas desta luta está sob permanente disputa e tal questão deve ser
entendida do ponto de vista da reestruturação produtiva do capital e seus impactos sobre as formas organizativas e políticas dos trabalhadores e das trabalhadoras.
No campo brasileiro, a reestruturação produtiva foi sentida já no final da década de 1980, com as reformas no comércio exterior, que produziram como efeito a liberalização do mercado agrícola e a redução da tarifa média, nos primeiros anos de 1990, para determinados grupos de produtos agrícolas, insumos e equipamentos (FIRMIANO, 2016). Mas no final da década de 1990, os agronegócios ganharam importância decisiva no conjunto da economia brasileira, com forte investimento em infraestrutura territorial e pesquisa agropecuária, mudando a regulação do mercado de terras e na política cambial, eliminando a sobrevalorização, o que tornou o agronegócio competitivo no comércio internacional.
Neste período, o agronegócio passa a se reorganizar, criando a ABAG– Associação Brasileira do agronegócio em 1993, aglutinando os participantes das diferentes cadeias produtivas do agronegócio, orientando as profundas mudanças que ocorreriam no campo em favor do capital. Mas a reestruturação produtiva também operou em processos de seletividade entre os trabalhadores do campo, promovendo a ascensão da agricultura familiar integrada à lógica do agronegócio, seguindo as orientações políticas do Banco Mundial (FIRMIANO, 2016).
Os governos neodesenvolvimentistas de Lula da Silva e Dilma Rousseff criaram um ambiente político-institucional que possibilitou a consolidação e a expansão do agronegócio e da agricultura familiar, como sua completude subordinada, mas ao mesmo tempo, desenvolveram políticas públicas que foram ao encontro das necessidades dos trabalhadores do campo. No entanto, a contradição fundamental desse processo é que a ascensão e consolidação da agricultura familiar ocorreram em detrimento da política estruturante de reforma agrária, disputando a consciência dos trabalhadores e dos movimentos populares.
Inúmeras políticas públicas e programas sociais foram criados ou ampliados durante os governos de Lula da Silva e mais tarde, nos governos de Dilma Rousseff, mas destaco aqui aquelas que mais tiveram incidência nos assentamentos: a) financiamento: PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e custeio; b) crédito: apoio inicial, fomento e fomento mulher; c) Mercado institucional - PAA (Programa de Aquisição de Alimentos): por meio deste programa criado em 2003, as famílias assentadas poderiam comercializar através de suas
organizações, cooperativas ou associações, até R$ 8 mil por ano, destinando os alimentos produzidos às populações que se encontravam em situação de insegurança alimentar; ou através de formação de estoque; PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), criado em 2009 por força de lei, determina às prefeituras a obrigatoriedade de compra da agricultura familiar de 30% dos alimentos destinados às escolas; neste caso, cada família pode entregar até R$ 20 mil por ano/por prefeitura, em um total de até R$ 360 mil por ano; d) ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural); e) PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), curso de ensino médio, pós médio, superior e pós graduação, através de parcerias com universidades públicas; f) titularidade em nome preferencial da mulher (desde 2003, tornou-se obrigatória a titularidade conjunta dos lotes de reforma agrária, ou seja, quando a família conquista a terra, a concessão de uso é em nome da mulher e do homem, e preferencialmente da mulher, independente do estado civil, assegurando o direito da mulher à terra em caso de divórcio, desde que ela detenha a guarda dos filhos, propiciando que ela comprove a atividade rural para fins de acesso aos benefícios previdenciários, como salário- maternidade e aposentadoria. (SEAD, 2018).
Tais políticas, mesmo que não atingindo a totalidade dos assentamentos de norte a sul do país, conferiram uma melhoria nas condições de vida das famílias assentadas. Elas também serviram como uma proteção, ainda que precária, contra os efeitos destrutivos do agronegócio, pois, apesar de haver uma completude da agricultura familiar em relação ao agronegócio, ela se dá de forma bastante subordinada, arrasando bens naturais e intensificando a exploração do trabalho. A percepção dos assentados e das assentadas acerca dos efeitos destrutivos e predatórios do agronegócio foram sentidas de forma mais acentuada nas relações produtivas e comerciais, devido à concorrência extremamente desigual. Tudo isso fez com que os assentados buscassem na agricultura familiar e suas políticas públicas, um leque não só de proteção, mas também uma arma política contra os imperativos do agronegócio, e ao trilhar esse caminho, foram abrindo mão da reforma agrária mesmo que de forma inconsciente.
Com isso, foi sendo criada uma subjetividade entre os assentados de apartação à luta da reforma agrária, fortalecendo a convicção de que as relações criadas no âmbito da agricultura familiar seriam suas novas ferramentas de luta
contra o privilégio do agronegócio, e não contra as forças estruturais do capital que o constituem, como podemos ver na crônica de Mafort, 2018, p. 167:
Reforma agrária já era! Simão e Zé pularam da cama bem cedo e quando o sol estava soltando seus primeiros raios, lá estavam os dois na sede da cooperativa, junto com outros companheiros e companheiras, fazendo o carregamento da produção para mais uma entrega da merenda escolar. O cheiro de terra molhada se misturava ao aroma agradável das verduras fresquinhas, colhidas há pouco pelos assentados.
Com o caminhão carregado, foi só tomar um gole de café e pegar a estrada. No caminho até o asfalto, Simão e Zé seguiram em silêncio, embalados pela programação da rádio Tapera, ali mesmo da comunidade. As modas de viola eram intercaladas por notícias do movimento: "Em mais uma jornada nacional de lutas, o MST mobiliza cerca de 40 mil pessoas em todo o Brasil. Estamos em abril, e essa já é a quarta jornada que o MST realiza somente esse ano. Sabemos que nada vem fácil nessa vida, mas tá difícil arrancar conquistas, mesmo no governo da Dilma, que está pressionada pelo agronegócio. Mas não podemos desistir! Seguimos firmes seja nos barracos de lona ou na resistência nos assentamentos, com nossa produção saudável, farta e diversa, da nossa reforma agrária popular. Segue a música!", dizia o locutor.
Quando o caminhão alcançou a pista, a chiadeira tomou conta do rádio e o melhor a fazer era desligar e prosear um pouco pra gastar o tempo. Simão foi quem puxou conversa: "Ei Zé lembra aquela vez que a gente ficou 10 dias no Incra em SP? Foi bom demais ver aquele povo que tava acampado na pista, saber que a terra tinha saído. Comemoramos a noite toda." E Zé em silêncio. Simão tentou mais uma vez: "E aquela outra vez que a gente fechou a pista? A gente já era assentado e tava lutando pela renegociação das dívidas. Bons tempos, e a gente conseguia tudo na luta." "Bons tempos", foi a deixa para Zé se animar e entrar na conversa, arrebatando logo de cara: "Para de bestagem Simão! Bons tempos é agora que o governo olha por nós e tem as políticas públicas. Antes era um sacrifício danado e a gente precisava ficar debaixo do mando dos militantes. Hoje não, pois é nós e o governo, direto, sem intermediário. E o duro é que o movimento insiste nessa coisa de reforma agrária, e o que a gente tem que entender, é que reforma agrária já era. Assentamento é bom, muito bom, e não sou de cuspir no prato que eu comi, mas é só olhar pro lado e perceber que não tem mais como sair terra pra ninguém. Veja Simão, aqui é soja, soja por todo lado, e até no assentamento tem, feita por aqueles que andaram se enricando por aí. No nosso tempo, as terras tavam paradas, improdutivas, tinha um ou outro gado perdido, e aí, quando a gente pulava prá dentro das terras, o povo da cidade assustava, mas acabava entendendo. Hoje não. Não tá tendo mais terra parada. E as que tão parada, tá no aguardo de alguma coisa; tão assim, como no banco de reserva na partida de futebol. E olha, hoje pra nós assentado, não tá ruim não. Não tá assim uma beleza, como tá prô agronegócio, mas em vista do passado, melhorou foi muito. Você pode tirar por esse caminhão aqui, que conseguimos naquele projetinho feito pelos técnicos do território e não ocupando Incra. Aquele tempo das lutas radical já
passou Simão, a luta agora é se organizar, formar cooperativa, ir pro território disputar recurso, produzir e aproveitar as leis, como essa da merenda."
Simão ligou o rádio de novo, sintonizou numa estação que tava tocando música do estrangeiro, aumentou o volume e encostou sua cabeça no vidro. E assim, seguiram viagem.
Com a crise de 2014, a agricultura familiar também foi impactada e vários programas sociais e políticas tiveram cortes drásticos ainda sob o governo de Dilma Rousseff. Somado a isso, houve uma intensificação da judicialização da questão agrária, e várias áreas que poderiam ser destinadas a assentamentos, permanecem por anos em tramitação no sistema de justiça. No caso das desapropriações, o decreto presidencial de criação de um determinado assentamento é um aceno importante para concretizar o atendimento da reivindicação dos trabalhadores, no entanto, ele somente vai se materializar com a imissão de posse feita pelo judiciário; nesse intervalo de tempo, há uma verdadeira batalha judicial entre as partes do processo, o que pode durar anos e o decreto perder a validade, caducando. Segundo o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, somente em 2015, 170 imóveis, correspondentes a 300 mil hectares, estariam parados na justiça e caso tramitassem, poderiam assentar cerca de 10 mil famílias (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017).
Importante ressaltar que o argumento da judicialização da reforma agrária era habilmente utilizado pelo INCRA para escamotear o desmonte orçamentário do governo Dilma, se isentando da responsabilidade por sua execução. Por outro lado, a mesma morosidade judicial não era verificada em processos de reintegração de posse, que eram (são) deferidos com grande agilidade, muitas vezes algumas horas após as ocupações de terra.
O impeachment de Dilma Rousseff teve início em dezembro de 2015 com a aceitação da denúncia de crime de responsabilidade fiscal e improbidade pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, a constituição de uma comissão investigativa, a aprovação do relatório da comissão, o afastamento da presidenta em maio de 2016 e o encerramento do processo em agosto de 2016. Em 05 de maio de 2016, Michel Temer assume a presidência de forma interina e deflagra uma série de medidas que avassalaram os direitos dos trabalhadores. A partir daí, as medidas da contra reforma agrária se intensificaram, não somente inviabilizando novas conquistas, mas também promovendo graves retrocessos.
Em relação à agricultura familiar e à reforma agrária foram muitas as medidas tomadas, mas o governo golpista não se limitou à velha tática de corte no orçamento, pois, além disso, lançou mão de processos de reordenamento fundiário a serviço do capital e de desestruturação dos assentamentos, chegando ao limite de desenvolver uma política massiva de titulação/emancipação com vistas à privatização das áreas por meio da lei 13.465/17. As famílias acampadas também foram ferozmente combatidas na sua legitimidade de beneficiárias da conquista que elas próprias demandaram através das lutas, das ocupações e dos acampamentos.
Importante notar que para o governo de Michel Temer, a agricultura familiar continuava sendo uma completude funcional ao agronegócio, pela subsunção do trabalho, cujo mais valor é apropriado pelas transnacionais, como força auxiliar na produção de commodities e também como consumidora das mercadorias do capital (insumos). No entanto, as margens para investimento do Estado neste setor diminuíram drasticamente, ao ponto de desvelar a fragilidade da chamada agricultura familiar. Ou seja, os sujeitos sociais protagonistas da luta pela terra e reforma agrária, que tiveram sua subjetividade capturada pela identidade de agricultores e agricultoras familiares, se viram desnudos diante do capital, como força de trabalho disponível, acentuando processos de proletarização mesmo entre aqueles que detêm parte dos meios de produção e pretendiam se projetar como empreendedores autônomos.
As principais medidas do governo de Michel Temer, de combate à reforma agrária e neutralização da agricultura familiar, foram: 1) Extinção do MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário, através da Medida Provisória - MP 726/2016, fundindo o MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e o MDA, dando origem ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; 2) cortes no orçamento do PAA; 3) cortes no orçamento de obtenção de terras: Em 2015, foram destinados R$ 800 milhões para desapropriações. Em 2018, somente R$ 34,2 milhões, o que representou um corte de 86,7%. (BRASIL DE FATO, 2018); 4) Em 2017 não houve nenhuma família assentada na reforma agrária (FOLHA/UOL, 2018).
A lei 13465/17 sancionada por Michel Temer é bem ampla e trata da regularização fundiária no rural e no urbano, explicitamente a serviço dos interesses do agronegócio e da especulação imobiliária. No tocante aos assentamentos, a lei retoma os processos de emancipação/titulação, previstos no Estatuto da Terra de
1964, mas relativizando as obrigações do Estado quanto às políticas públicas que devem ser desenvolvidas até que um assentamento seja considerado apto à emancipação. Antes da lei 13465/17, somente poderiam ser titulados em definitivo, assentamentos consolidados que tivessem mais de 15 anos de existência, mas com a referida lei, as novas famílias assentadas (que praticamente inexistem, como vimos acima) podem ser assentadas e imediatamente tituladas, sem a necessidade de um tempo de carência ou de terem os seus assentamentos consolidados pelo Estado em termos das políticas públicas necessárias. No caso das mulheres assentadas, isso pode aumentar a pressão sobre elas para venda ou negociação sobre os lotes, já que são elas as titulares, na maioria dos casos.
Em relação às famílias acampadas, a lei 13465/17 criou a obrigatoriedade de editais municipais para a seleção de famílias candidatas à reforma agrária, e colocou o critério de vulnerabilidade social como o mais relevante para garantia de acesso ao assentamento, ou seja, não necessariamente uma família que se organizou, ocupou terra e resistiu por anos num acampamento, será selecionada para o futuro assentamento, mesmo que ela preencha todos os quesitos necessários para ingressar na política de reforma agrária. Isso tende a desestimular as famílias a se engajarem na luta por terra e reforma agrária e muito provavelmente o próprio assentamento jamais existirá, se não for a pressão e a resistência das famílias acampadas.
Com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência em 2019, a pauta da reforma agrária e da agricultura familiar passa a enfrentar um ataque ainda maior, tal como o tratamento agressivo dado aos indígenas, quilombolas e demais povos do campo. O governo criou a Secretaria Especial da Regulação Fundiária do Ministério da Agricultura e nomeou para o comando da pasta, o ruralista, tradicional membro da UDR – União Democrática Ruralista, Luiz Antônio Nabhan Garcia. Uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro na área foi suspender, no terceiro dia do seu mandato, a política de reforma agrária, e alguns dia depois, voltou atrás devido à pressão de vários setores da sociedade que denunciaram a inconstitucionalidade de tal medida. No entanto, em fins de março deste ano, o governo voltou a suspender vistorias, processos de desapropriação em curso e todo o rito das desapropriações, alegando falta de recursos (REPÓRTER BRASIL, 2019).
Para chefiar o Ministério da Agricultura, escolheu Tereza Cristina, conhecida como a “musa do veneno”, que já tinha autorizado até 01 de março deste ano, 86 novos produtos de agrotóxicos. De 2010 a 2016, os registros foram sempre abaixo de 20 por ano. Nos dois últimos anos o número subiu para 47 (2017) e 60 (2018), recorde batido em apenas 60 dias, com as 86 novas liberações. (BRASIL DE FATO, 2019).
No comando da pasta do meio ambiente, questão implicada à temática agrária, o presidente Jair Bolsonaro nomeou Ricardo Salles, que foi condenado recentemente pela Justiça do estado de São Paulo por improbidade administrativa, ao manipular mapas e informações quando era Secretário Estadual do Meio Ambiente, favorecendo mineradoras. (GLOBO, 2018). E como presidente nacional do INCRA, o governo escolheu o general Jesus Corrêa, reforçando o time de militares em pastas importantes do primeiro e do segundo escalão (CONGRESSO EM FOCO, 2019).
Além destas nomeações avessas ao diálogo com movimentos populares, o discurso de ódio contra o MST e defensores dos direitos humanos, ambientalistas e indígenas, traduz-se num incentivo direto à violência aberta contra a luta por reforma agrária e as ocupações de terra. Algumas medidas do governo instigam o conflito na sociedade em geral, e no campo, institucionalizando a tese de que a propriedade privada deve estar acima da vida, num evidente descumprimento do que está previsto na Constituição brasileira - o decreto presidencial 9797/19 (que alterou o decreto 9785/19), flexibiliza o Estatuto do Desarmamento e impõe novas regras mais permissivas para a posse, o porte, e a comercialização de armas de fogo e munições (Brasil, 2019); durante a abertura da feira do agronegócio, a Agrishow, em Ribeirão Preto – SP, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que enviará ao congresso nacional um projeto de lei que propõe a aplicação do entendimento do “excludente de ilicitude” presente no Código Penal Brasileiro, aos proprietários rurais em toda a extensão de suas fazendas e empresas (GLOBO/G1, 2019), ou seja, uma espécie de licença para matar quem adentrar a “sagrada” propriedade privada.
A luta por terra e por reforma agrária historicamente tem enfrentado um padrão de violência que se mantém até os dias atuais, assegurando o pacto entre capital/estado e latifúndio, combinando várias formas de repressão contra os trabalhadores e as trabalhadoras. Os indicadores de violência no campo apontam
que o aumento nos casos de violência estão intrinsecamente ligados ao modelo do moderno agronegócio, da mineração e do hidronegócio, que tem gerado um rastro de conflitos em todo país. Certamente, o discurso de ódio do presidente da república e a incitação para que movimentos populares sejam enquadrados como terroristas provocam um aumento da violência aberta e direta contra os trabalhadores e as trabalhadoras.
Importante destacar que dado o protagonismo que as mulheres têm assumido no campo, à frente das lutas e dos processos organizativos (se tornaram dirigentes, presidentes de cooperativas, lideranças comunitárias, agitadoras populares, comunicadoras etc), também ficaram mais expostas à violência de caráter político, que somadas às agressões misóginas, pioram muito a vulnerabilidade deste grupo social, incluindo mulheres trans. Segundo relatório da CPT - Comissão Pastoral da Terra, em 2018 a violência no campo contra as mulheres aumentou 377% em relação a 2017 (DE OLHO NOS RURALISTAS, 2019).
Porém, mesmo com todas essas adversidades, a luta pela reforma agrária segue, por se tratar de uma questão social e a agudização dos problemas urbanos da atualidade provoca um repensar sobre a questão agrária e suas implicações de forma mais ampla, abarcando o conjunto da sociedade. Em outras palavras, a consolidação e a expansão dos agronegócios colocam novas implicações sobre a questão agrária brasileira, pois a ação destrutiva do capital passa a afetar de forma ainda mais direta a reprodução da sociedade e questões como escassez de água, explosão dos casos de intoxicações por consumo de alimentos envenenados etc., podem indicar o sentido e a atualidade da reforma agrária, isso, se formos capazes de compreender tais temas, sob o seu escopo.
Por tudo isso, a jornada de lutas das mulheres trabalhadoras rurais é tão importante e o fato da primeira ocupação de terras do governo Bolsonaro ter sido feita por elas, numa fazenda de abusador sexual, traz uma simbologia muito forte sobre o significado que a luta por reforma agrária assume na atualidade.
Ao marcar o março com uma ferramenta de radicalidade histórica da luta sem terra, as mulheres estão sinalizando que é preciso seguir com o processo organizativo e com a contundência da ação política. Mas, para entender o que move as mulheres do campo é preciso se aproximar um pouco mais do seu cotidiano, compreendendo que as lutas são expressões de uma síntese e também são
respostas à uma explosiva combinação entre dominação de classe, racismo, exploração de gênero e lgbtfobia.
As forças do trabalho mobilizadas em torno da luta por reforma agrária no Brasil foram capazes de garantir conquistas mesmo na fase de estreitamento significativo das margens possíveis, ainda na década de 1980. Parte destas conquistas está materializada nos assentamentos, nas diferentes frentes da educação, produção de alimentos, cooperação, cultura etc. Mas, ao garantirem conquistas, as forças do trabalho foram adquirindo também ferramentas de organização e luta que talvez se constituam como o maior legado dos movimentos populares, principalmente do MST. Na atualidade, tanto os assentamentos conquistados, como os acampamentos que persistem, estão sob intensa pressão das forças do capital, mas não somente no sentido de confrontá-los, mas também de sujeitá-los.
As trabalhadoras do campo, organizadas, foram construindo uma trajetória na qual os elementos - mulher, terra e luta se misturam e se constituem como sinônimos de uma radicalidade que educa. No campo, elas estão entre as mais precarizadas, num universo de trabalhadores historicamente precarizados e empobrecidos. A divisão sexual do trabalho invisibiliza o trabalho das mulheres, e ao mesmo tempo se favorece dele; as principais ocupações das mulheres rurais estão relacionadas aos cuidados com a família, a casa, o quintal, e o autoconsumo, atividades reprodutivas sem remuneração, mas de fundamental importância econômica, sendo condição fundamental para a reprodução do capital. As mulheres também se ocupam de outras atividades tais como artesanato, pesca, extrativismo, produção de alimentos, produção de queijos, doces e compotas, criação de animais, apicultura, cultivo e manipulação de ervas medicinais e condimentares, comercialização (feiras, cestas, vendas pela internet), para citar algumas atividades, mas, em geral, sua participação é considerada como mera ajuda e seus rendimentos são os menores.
A população com os maiores rendimentos vive na zona urbana, onde os homens recebem em média R$ 2.060,70 e as mulheres R$
1.486,80 ao mês, enquanto na zona rural os homens recebem em média R$ 977,50 e as mulheres R$ 614,80 ao mês. Os homens brancos urbanos apresentam o maior índice de rendimento mensal, no valor de R$ 2653,70, e as mulheres negras rurais apresentam o menor índice, no valor de R$ 536,20. [...] as mulheres rurais, brancas e negras, são as que possuem os piores rendimentos médios mensais. (PNAD/IBGE, 2018).
A situação das mulheres negras do campo é ainda mais desigual, como podemos analisar nos dados citados sobre os rendimentos por ocupação, o que explicita os elementos resultantes de uma sociedade patriarcal, machista e racista, elementos centrais para compreender a dinâmica da classe trabalhadora na atualidade e como os sujeitos da classe são atingidos pelo capital de forma generalizada, mas com particularidades a serem levadas em consideração numa formulação estratégica de superação deste sistema, pois no caso delas,
[…] o capital ajuda a liberar as mulheres para melhor poder explorá- las como membros de uma força de trabalho muito mais variada e convenientemente “flexível”. Ao mesmo tempo, precisa manter a subordinação em outro plano – para a reprodução sem problemas da força de trabalho e a perpetuação da estrutura familiar predominante […] (MÉSZÁROS, 2010, p. 83).
O racismo nas relações de trabalho no campo fica evidente ao analisar os dados entre os assalariados mais precarizados (informais) quanto à cor/raça,
[…] os assalariados rurais são, na maioria, pretos ou pardos, representando 68,7% do total. Os brancos são 30,8% e os indígenas e amarelos representam 0,2% cada. Considerando apenas os sem carteira, o percentual de pretos e pardos sobe para 72,5% do total de empregados nessa condição, enquanto o de brancos diminui a participação para 26,8% do total. Existem mais pretos e pardos na informalidade do que no emprego formal como um todo. (DIEESE, 2014, p.21).
Em relação à juventude do campo, esta representa cerca de oito milhões entre 15 a 29 anos e, dentre estes, mais de 58% estão em situação de pobreza e extrema pobreza (IBGE, 2010). Também são os jovens os que mais sofrem com as expropriações do trabalho e consequente migração forçada – entre o censo de 2000 e o de 2010, a população rural reduziu 2 milhões, e destes, 1 milhão eram jovens, com forte crescimento de mulheres (IBGE, 2010). Neste aspecto, é possível compreender como o capital opera de forma contínua nos espaços de representação do urbano e do rural, afirmando sua completude e unidade, e a situação da migração
forçada das mulheres é um exemplo deste movimento, pois ao migrarem para as cidades, as mulheres jovens do campo se lançam num mercado de trabalho cada vez mais precarizado e feminino.
Muitos estudos têm apontado que, na nova divisão sexual do trabalho, as atividades de concepção ou aquelas de capital intensivo são realizadas predominantemente pelos homens, ao passo que aquelas de maior trabalho intensivo, frequentemente com menores níveis de qualificação, são preferencialmente destinadas às mulheres trabalhadoras (e também a trabalhadores(as) imigrantes, negros(as), indígenas etc.). (HIRATA, 2002, apud ANTUNES e ALVES, 2004, p. 338).
Das medidas impostas pela reestruturação produtiva, a partir dos anos de 1990, especialmente aos setores urbanos, a terceirização tem lugar de destaque, com vínculos empregatícios fragilizados e fundamentados na flexibilização das leis trabalhistas, retirando a responsabilidade das empresas sobre os trabalhadores, e repassando-a para empresas terceiras, contratadas para prestação de serviços. A terceirização na década de 1990 autorizava a contratação de empresas para a realização das chamadas atividade-meio, e era vedada a contratação para atividades-fim. Esses e outros pontos foram alterados pela lei 13.429/2017 e posteriormente pela contrarreforma trabalhista, aprofundando a precarização nas relações de trabalho no campo.
Outra evidência deste processo de precarização, diz respeito à questão da saúde do trabalhador e da trabalhadora. Como exemplo, pode-se citar a situação alarmante de intoxicação humana por agrotóxicos. “Segundo a Fiocruz (Sinitox/Fiocruz/Sinan), em média, há cerca de seis mil casos registrados por ano de intoxicação humana por esse tipo de produtos”. (DIEESE, 2014, p. 27). Com o aumento crescente da utilização do pacote agroquímico do agronegócio, as intoxicações dos trabalhadores tendem a aumentar.
Além destes fatores, os casos de violência contra a mulher no campo, também se constituem como elemento central e os dados sobre o tema ainda são incipientes.
Os frágeis instrumentos de combate à violência contra mulher que conquistamos não alcançam as mulheres do campo e das florestas. Distantes dos centros urbanos, marcadas pela pobreza e pela ausência de educação formal, essas mulheres não acessam informações sobre as políticas públicas e tão pouco, estas chegam até elas. Isso fica evidente quando buscamos os dados sobre a
violência contra a mulher do meio rural: não dispomos do diagnóstico e menos ainda de instrumentos de combate. (MST, 2019c).
E por fim, a proposta da contrarreforma da previdência por parte do executivo recai com força sobre as mulheres do campo, principalmente pelo aumento da idade para se aposentar, ignorando que as mulheres trabalham mais do que os homens, devido às imposições da divisão sexual do trabalho. No caso das mulheres do campo, em geral, as mulheres começam a trabalhar muito jovens, ainda adolescentes, principalmente na esfera dos cuidados. Além disso, está proposto um aumento no tempo de contribuição de 15 para 20 anos, lembrando que 20 anos representam 240 meses e que a maioria dos trabalhadores sequer consegue comprovar o tempo exigido atualmente, pois em geral, os contratos são precários, inexistentes e existem situações nas quais o trabalhador ou a trabalhadora não dispõem de documentos civis.
O que todos precisam saber é que 42% dos trabalhadores segurados no Brasil conseguem comprovar, em média, somente 4,9 meses de contribuição por ano . [...] Com isso, os 5 anos de contribuição a mais que serão exigidos significam, para quase metade dos trabalhadores, 12 anos a mais de trabalho. Dada as características dramáticas do mercado de trabalho, é provável que a maior parte desses trabalhadores não consigam ter proteção na velhice. Quem conseguir, terá direito a somente 60% da média aritmética de todas as suas contribuições previdenciárias. [...] Ou seja, a grande maioria dos brasileiros morre antes de se aposentar ou, se sobreviver, terá seus rendimentos rebaixados. (MOREIRA, 2019, pag. 03).
Sempre importante destacar que a previdência dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, assegurada na Constituição de 1988, faz justiça a um direito que até este período vinha sendo negado. Os direitos previdenciários no campo chegaram somente nos anos de 1990, com aplicação muito incipiente, o que expôs grandes contingentes humanos a situações extremas de precarização ou mesmo de trabalho análogo à escravidão. Somado a isso, no campo estão concentradas as maiores taxas de pobreza, falta de acesso à educação, alimentação, água potável e saneamento básico, aumentando a exposição às doenças.
Todos esses elementos estão na base da realidade vivenciada pela maioria das mulheres no campo. Mas o que fazer para alterar e enfrentar tal situação?
Durante muito tempo, o campo da luta de esquerda considerou como legado estratégico, os movimentos históricos dos trabalhadores como classe, sem explicitar
de forma mais detida, as determinações sociais que constituem essa classe e suas especificidades quanto a gênero, orientação sexual, raça/etnia e sentido geracional. Mas as e os sujeitos sociais da classe trabalhadora foram ocupando espaços, através da luta feminista, do protagonismo da juventude, do reconhecimento da diversidade sexual, na explicitação dos preconceitos e discriminações, no combate ao machismo, à lgbtfobia e ao racismo.
Foi assim, “de pé na porta”, e sem concessões, que surgiu um feminismo popular e revolucionário, uma cunha de classe dentro do debate LGBT, uma perspectiva revolucionária no movimento de resistência negra, um questionamento estrutural dos indígenas sobre o agronegócio etc.
As tarefas dessa construção ainda são muitas e cheias de limites, mas como esse tipo de luta mexe com elementos estruturantes da sociedade de classe, como o patriarcado, tendem a trazer uma radicalidade, possível de ser encontrada naquelas que buscam uma igualdade de fato substantiva.
Neste sentido, mais do que reconhecer a importância da luta específica das mulheres, o desafio atual para a luta de classes é perceber as mediações na qual a luta se desenrola nesses setores. Isso pode trazer alguns indicadores de que não é o conjunto das classes que precisa reconhecer as diferenças e criar espaços de participação somente, pois o desafio atual pode estar para além disso. Em tempos de crise estrutural do capital, ampliação da precarização do trabalho, desemprego, naturalização da violência, encarceramentos em massa, migrações forçadas, mercantilização acentuada dos bens naturais, nosso maior desafio é retomar a luta ofensiva e para tal, é fundamental levar a cabo o posicionamento político de quem não teve direito à trégua, mesmo em tempos de aparente calmaria.
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