v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X
Entrevista realizada por William Kennedy do Amaral Souza2
A conjuntura nacional traz indicadores nefastos de uma guerra travada no campo. A luta pela terra, pelo território e pelo direito a uma vida digna está, cada dia, mais acirrada. No ano passado, 28 pessoas perderam suas vidas em decorrência de luta pelo direito de ter acesso à terra num país com um dos maiores índices de concentração fundiária do mundo. Em 2019 as mortes continuam mostrando o acirramento e aumento da violência no campo promovido pelas elites agrárias contra qualquer forma de entrada de trabalhadores no mercado de terras, o que se deduz dos relatórios da CPT sobre Violência no Campo de 2017 e de 2018. E essa forma de extermínio não para. O caso mais recente apareceu com as mortes de quatro agricultores no município de Lábrea, no sul do Amazonas. E apenas no primeiro
1 Entrevista recebida em 15/04/2019. Aprovada em 23/05/2019, pelos editores. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29375.
2 Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professor de Sociologia e Sociologia Rural no Instituto Federal de Educação de Rondônia. E-mail: william.souza@ifro.edu.br ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6271-9422
trimestre de 2019 já se pode afirmar que as mortes provocadas representam 36% do total observado ao longo de todo o ano passado no país.
A violência recrudesce a partir de uma série de novas medidas adotadas ou planejadas pelo poder executivo brasileiro atual que afetam no sentido de enfraquecer os direitos das populações tradicionais e dos pequenos agricultores sobretudo na Amazônia onde os povos originários ocupam desde sempre uma territorialidade identitária que se constitui por uma relação integral com o meio ambiente, ou então a partir de formas de ocupação produtiva de segmentos subalternizados incluídos em projetos de colonização conduzidos nos anos 60 e 70 pelo Estado durante a Ditadura Militar, ou a partir de movimentos de ocupação organizada mais recentes dos auto identificados como “sem terra”, na expectativa de serem beneficiados por algum projeto de assentamento.
A região Amazônica - de grande importância internacional por sua floresta – é certamente o lugar que mais sente os efeitos de um avanço predatório que resulta da entrada do agronegócio estruturado em base de monocultura associada a agrotóxicos e enquanto modelo hegemônico que se estabelece irracionalmente em enormes extensões de terra. Desta forma o avanço do grande capital transnacional aparece neste cenário, articulando interesses econômicos nacionais e internacionais com respaldo político da bancada conservadora do Congresso Nacional. Uma elite que tem atuado através de formas de domínio e controle destrutivo da riqueza natural e hidro territorial, incluindo o subsolo onde se alojam os reservatórios aquíferos e minerais e avança ainda de modo opressivo e violento contra as formas de reprodução comunitárias da vida ali localizadas. Com uma grande volúpia procuram extrair terras, minérios, águas e tudo o que nela vive. Pouco importa se se trata de homens ou mulheres, animais ou peixes, árvores ou outras plantas. Por aí emerge a multiplicação de conflitos, os quais expressam os antagonismos entre os modelos de desenvolvimento impulsionados pelo capital e as formas de existência e resistência dos povos do campo, das florestas e das águas.
A Revista Trabalho Necessário traz uma longa entrevista com Ana Maria Motta Ribeiro, professora associada do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. Ana Motta é do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (UFF) e, envolvendo estudantes de graduação e pós-graduação em projetos de ensino, pesquisa e
extensão, coordena o Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) e, neste espaço desenvolve o Projeto “Sociologia Viva”. Ali se articulam seus orientandos/as e grupos de pesquisadores/as de diversos núcleos de investigação e extensão do Brasil. Recentemente esse coletivo começou a se expandir numa dimensão latino- americana, envolvendo Argentina, Chile e México na recém-criada Rede Latino- Americana de Observatórios Hidro Territoriais.
A entrevista foi realizada no dia 31 de março de 2019. Como lembrou a professora, “um dia de memória triste”. Mas ao mesmo tempo é a própria Ana Motta quem nos alenta e nos alerta sobre a esperança rebelde e criativa que emerge do reconhecimento de formas do “Comum” que se constituem “desde abajo” nas experiências comunitárias populares latino-americana.
quilombolas, indígenas e ribeirinhos, por exemplo. São populações que são deslocadas de suas terras por motivos variados, como construção de barragens, mineração, construção de estradas, pela poluição de rios e mares. Todos podem ser consignados na mesma condição de “atingidos” e que estão subalternizados na luta contra o grande capital? Como articular a luta no campo?
acabasse a ditadura, houve uma implosão dessa categoria de ação que era uma categoria de unificação política. Assim como foi camponês nos anos 1960, unificando a luta pela reforma agrária. Nos anos 60, 70, 80 a unificação se dava na categoria “trabalhadores rurais”, ressaltando a dimensão dos direitos, dos herdeiros da proletarização e cercamento das terras camponesas. De fato, o processo de expropriação dos trabalhadores na expansão do capital no campo brasileiro andava a largos passos. O que vai acontecer a partir de então, é que mesmo durante a ditadura militar, uma série de situações de confronto com o capital levou à necessidade de desenho de pautas especificas. Emerge a luta dos seringueiros que acaba resultando em uma defesa da floresta amazônica. Emerge a luta dos ribeirinhos que caminha passo a passo com os seringueiros. Aparece a luta de posseiros e de trabalhadores rurais sem terra diferenciada dos trabalhadores assalariados. E acontece uma GREVE dentro da Lei de Greve, conduzida pela CONTAG, para espanto dos próprios redatores da lei feita para nunca ser cumprida. Assim, a agenda da luta dos trabalhadores do campo vai sendo definida e cada vez mais depurada pela especificidade de situações das experiências existentes no campo. Cada uma das identidades se estabelece numa dupla direção: por um lado pelo modo como se estabelece a reprodução da vida. Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu tem uma relação com o coco babaçu, com a palmeira do coco babaçu. E assim elas criaram e levaram uma luta, por exemplo, em direção à constituição de uma Lei, a chamada “Lei do babaçu livre”. Conseguiram uma legislação específica. Elas têm acesso ao babaçu. Como os seringueiros, elas não querem um pedaço de terra demarcado como uma propriedade privada individual. Elas querem uma terra coletiva, elas querem acesso as palmeiras de babaçu. Então a matança, a destruição dos babaçus, afeta diretamente a reprodução da vida dessas mulheres, que tem essa relação equilibrada, harmônica com a natureza. Por outro lado, os trabalhadores rurais assalariados querem seus direitos, querem uma carteira de trabalho assinada, e outros direitos como o fim do “roubo da balança” e do “roubo do metro” no cálculo manipulado de seus ganhos após trabalho sazonal no corte da cana de açúcar, querem também o fim do cativeiro do barracão que vende por preço alto o alimento que durante o corte não podem pagar e aumenta a dependência “domestificadora” a favor dos interesses das Usinas e Usineiros, enfim. Já os quilombolas vão querer a sua terra demarcada, e definida pelo legado
ancestral e pela dívida social e histórica do Estado Brasileiro que construiu sua riqueza econômica e política através do modelo escravocrata desumano e indigno, e vão conquistar esse direito junto a outros direitos de outros movimentos sociais presentes e ativos no Brasil dos anos 80, em forte mobilização e luta democráticas que levou o país à realização de uma Constituinte cujo resultado levou a designação de A Constituição Cidadã de 1988. Nela os agricultores familiares negros que viviam em comunidades étnicas ganharam finalmente o direito de serem identificados como “quilombolas”, que de fato sempre foram, e o direito de ocupação legal e legítima de suas “terras de preto”. Então repare que saem gradativamente de debaixo do guarda-chuva “trabalhador rural”, de acordo com pautas de lutas especificas, essas identidades que são identidades definidas na experiência de reprodução real e cotidiana da vida material e imaterial. A gente pode dizer, que todo este cenário vai formando e gerando novos sujeitos que decorrem do aprendizado de suas lutas, quer dizer, da definição constitutiva de novas experiências coletivas através das quais se descobrem como grupos de interesse comum, quando se organizam para lutar contra o espólio de sua própria condição de reprodução, e assim também se transformam em novos sujeitos diversos em sua condição mas iguais no interesse contra o esbulho: rebeldes com causa! Então a diversidade hoje, eu diria, ela é impossível de ser amarrada e de ser atada no bolo homogeneizador da opressão que pretende igualar todas as dores e defesas reais e sentidas em cada caso. Ela tem que correr solta de toda maneira porque essa luta se específica na sua diversidade, o que não quer dizer que não haja a possibilidade de uma unificação. Claro, a unificação vai ter que passar por questões gerais da luta maior contra o capital. O movimento de unificação mais significativo que eu vejo na América Latina, embora com problemas de atuação, hoje se organiza através de uma entidade coletiva identificada como a “Via Campesina”. Ela unifica não apenas essa diversidade de situações de trabalho e de reprodução da vida no Brasil, como também em toda a América Latina. Eu diria que é a coisa mais importante na agenda mundial hoje, de confronto direto contra o avanço do capital. E, portanto, essa unificação tem que se estabelecer de modo estratégico. Ela não pode ser apenas um desejo, apenas uma intenção. E depende das organizações que dentro dela se colocam. Então a Via Campesina é o âmbito, o lugar, dessa unificação, em minha opinião.
internacional. E eu começaria pela integração das lutas na América Latina, do ponto de vista do pensamento pela integração da reflexão que desenvolvemos na universidade, colocando-a na dimensão latino-americana e não ficando restritos à dimensão do Brasil. Isso significa buscar compreender empiricamente melhor as contradições do capital e do trabalho na dimensão do território maior, no âmbito da América Latina, sem esquecer ou perder a dimensão das singularidades reais provocadas pelo processo de colonização; pela expressão objetiva e subjetiva da opressão machista, patriarcal e racista - sobretudo no caso do Brasil - que se traduzem em experiências de sofrimento que devem ser tomadas e reconhecidas em cada caso.
não por acaso, essa presença de violência com suporte do Estado/governo aparece hoje no desenho do ministério.
multando quem quer fazer, produzir a economia, e fazer a economia avançar”, numa clara referência e defesa do agronegócio. Então com isso, o discurso torna claro que os interesses do capital estarão sempre à frente dos interesses dos trabalhadores e, sobretudo, dos brasileiros de modo geral e de seu território nacional.
Trabalho Necessário: A Comissão Pastoral da Terra (CPT), lançou no ano passado, como sempre costuma fazer anualmente, o relatório “Conflitos no campo Brasil 2017”3, indicando que nesse ano houve o maior número de assassinatos desde 2003, com assustador aumento de massacres. Pode comentar isso e comentar como os movimentos de resistência rurais têm reagido a violência no campo?
3 Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/
comprometido, com formas e modos de associação com representantes do interesse privado do capital agrário, e do agronegócio. Em muitos casos os massacres que vão acontecendo têm figuras civis, como seguranças particulares de fazendeiros, mas que atuam ao lado e apoiadas por elementos da PM, os quais entram em ocupações de trabalhadores rurais sem terra ainda que, todavia, em litígio, e saem atirando aleatoriamente e a revelia. Então, acho que isso reflete o segundo item que quero chamar atenção, que é o crescimento de armas na mão de proprietários privados rurais e seus seguranças privados armados com resultados nefastos. Gera preocupação quando hoje reivindicam a liberação generalizada pelo direito legal de uso de armas supostamente “em defesa de suas propriedades” sem qualquer contraponto em termos de qualquer intensão de esclarecimento jurídico sobre a própria condição legal e legítima dessas referidas posses quando definidas pelo domínio de grandes e imensas extensões de terra em território nacional. Então o cenário é complicado. Mas não pacífico, dado que a rebeldia quanto as concepções de direito á terra continuam se colocando ativamente em disputa apesar das baixas provocadas por essa violência anunciada!
comunitária, a juventude tem um projeto ideológico na cabeça. Lembrando a palavra de ordem das ocupações de sem-terra, seja do MST, seja do MPA ou do MCC, ou de todos esses movimentos, eles têm em comum, e como chancela, a ideia de “ocupar, produzir e resistir”. Então a juventude se mantém ali porque produzir é um ato político. E é uma dimensão da resistência. Por outro lado, “não basta ocupar”. Esse é o recado que eles dão, e a juventude em geral tem mais para dar. Quando você junta o movimento de ocupação organizado com a produção, você encontra na produção uma instância da própria direção orgânica do movimento. Então é mais do que estar produzindo, trabalhando na terra. Cada tomate que se planta – e em especial dependendo como se revela se foi plantado COM ou SEM VENENO, grita contra o modelo hegemônico e torna-se um verdadeiro panfleto, por consequência, o qual se joga diante da sociedade para abrir consciências, mostrando como aquilo é possível. A partir das pesquisas que desenvolvi, dá para ver que a juventude é cada vez mais alheia à permanência na terra. A tendência é de se deslocar para a cidade e, geralmente quando ela participa é quando ela está orgânica. Eu diria que a chave explicativa é a organicidade. A explicação dada pelo próprio assentado que está registrada na pergunta, acho que esclarece o que eu estou dizendo.
assentados abandonarem a pluriatividade de outrora e dedicarem-se apenas a produção de leite de gado bovino por exigência do mercado capitalista da região. Como entender essa subsunção ao mercado mesmo com o MST à frente do assentamento?
sentimento de “pertença” – que nestes casos é criado pela luta cotidiana para poder permanecer naquilo que foi conquistado. Isso resulta numa modalidade de pertencimento sociologicamente singular e que acompanha a labuta diária da permanência no território que irá prover a possibilidade de um futuro identitário que acontece desde que permite e torna real a possibilidade objetiva de chegar-se a ter um “futuro” neste mundo de desempregados e endividados semimortos e homogêneos na miséria alienada. Esse fato e sentimento que se assegura na abertura do acesso a ideia de uma reprodução com dignidade. Sem pressa por admitir a possível consolidação de um futuro e assim a existência de alguma história e trajetória pessoal e familiar onde “ninguém” poderá ter a chance de se transformar em “alguém” social. Eu penso que isso meio que explica porque algumas pessoas pobres acabam decidindo por encampar a luta de ocupação da terra, como condição de sua própria reprodução social no limite e se traduz numa forma de escolha que muitas vezes, mesmo quando derrotada não esgota a vontade de ter feito isso mesmo, e repetir outra vez e outra vez. Assim, a radicalidade da escolha é tão determinada pelo desenraizamento social desses “sem-terra” que querem se superar por escolha própria, quanto pela total falta de perspectivas e derrota dada no pessimismo intrínseco da submissão ao capital e ao patriarcalismo violento, agressivo e simultaneamente sedutor das elites proprietárias no Brasil. Mas vale afirmar que as duas formas estão sujeitas a serem desagregadas e subsumidas em conjunturas e a partir de perdas reais (assassinatos e massacres, despejo e remoção da terra ocupada ou da terra possuída por crise financeira) e que podem chegar a ser (e eu já vi isso) desagregados da família original tendo que se recompor em perfeito estado de anomia social na condição de miseráveis urbanos escondidos em guetos onde podem ser recolhidos por acolhimento religioso por pastores pentecostais que falam a sua língua ainda que abusem de sua condição de sujeito ativo. Para mim é nessas brechas de reconstrução rebelde ou de desenraizamento (José de Souza Martins revisto aqui por mim nas suas considerações do livro, O SUJEITO OCULTO) que se definem aqueles que pertencem a condição de agricultores familiares. Serão sempre os novos sujeitos no campo que podem ser simultaneamente submetidos e manipulados assim como podem também ressurgir e sobreviver heroicamente e romper com a força poderosa que os empurra em direção a homogeneidade. Mas na minha experiência de
trabalho de campo há mais de 40 anos ainda fico extasiada quando encontro segmentos que resistem de tal modo que quando falam parecem poetas do devir. Pode-se encontrar uma forma de luta que politiza a produção, por exemplo nas comunidades em que a agroecologia ataca a prática do envenenamento hegemônico e que começam a demonstrar na colheita que sua forma de produção desmistifica a lógica da produtividade. E nesta hora pode-se ver em que medida a agricultura familiar que estou tentando problematizar pode ser também em determinadas condições e situações, pensada como uma comunidade geradora de uma ação social na qual chegue ao limite de se fazer quando em luta, a classe. E, nesta medida, para mim também poderia ser pensada como formadora de modos anticapitalistas de reprodução da vida, tanto quanto as populações tradicionais e originárias tendem a ser. Eu não deduzi essa afirmação olhando para a maior parte desses casos mas acho que valorizei e valorizo até agora a importância de um reconhecimento de algumas formas interessantes ainda que minoritárias que tenham esse potencial quando percebidas em momentos cíclicos ou pontuais - para mim não importa isso, mas o fato incrível de que é possível sim encontrar comunidades onde a reprodução da vida subverte normas dominantes e ainda revela sujeitos raros e que fazem muita diferença! Então, agora que já problematizei e apresentei minhas premissas de raciocínio definidas a partir de minas investigações empíricas em diferentes regiões e conjunturas posso finalmente te responder e vamos lá. Na minha opinião, e tendo em vista tudo que disse até agora, de forma alguma o abandono da pluriatividade é a chave explicativa da melhoria das condições de vida. A pergunta a ser feita é: que agricultura está sendo praticada? Se é uma agricultura nos moldes da agricultura dominante baseada em grandes extensões de terra ou se é uma agricultura baseada em uma estrutura familiar, sem a presença de exploração do trabalho, sem a presença de um empregado. Primeiro há que se ver isso. Segundo, para acompanhar a pergunta, há que se ver que leite é esse? É um leite envenenado? Com hormônio? Se ele for, a gente está falando aqui de duas coisas importantes. Primeiro, que a agricultura familiar para entrar no mercado de venda de produtos, ela tem que se integrar ao grande capital porque ela não está em uma bolha, e a integração que se dá, é em geral através de um mecanismo de verticalidade onde as cooperativas de leite vão absorver esses pequenos produtores de leite, pequeninas quantidades que somadas representam
muito mais. O livro “Os colonos do vinho”4 por exemplo, é bastante esclarecedor: os produtores de uva se integram verticalmente aos produtores de vinho, passando a compor o chamado complexo agroindustrial. Então, trata-se de uma questão moral: porque é que podendo melhorar a qualidade de vida e a qualidade da renda, os trabalhadores vão se sujeitar a ficar em uma situação pior? Isso a gente não deseja nem para o nosso maior inimigo. Muito cômodo a gente estar sentado na Academia e ficar desejando que o agricultor familiar continue miserável, porém, dignamente situado na bandeira crítica e da esquerda. Segundo: o movimento dos sem-terra é um movimento popular, o que quer dizer que ele ocupa, estabelece o acampamento e depois essa comunidade assentada passa a ter visibilidade diante do Estado, passa a ter uma relação com o Estado mediada por políticas públicas. Então muda a configuração dessa comunidade. Se essa comunidade continua ainda vinculada ao movimento do LCP, MPA, MCC, MPA, ou seja, o movimento que for, para distribuir as suas mercadorias, para se integrar no mercado na via vertical, significa que ela está existindo e se inserindo na economia. E ela não pode deixar de se inserir. Se ela continua ideologicamente e politicamente vinculada a um movimento orgânico, ela vai defender essas bandeiras. Mas isso não quer dizer que o fato de ter melhorado de vida foi determinado pelo fim da pluriatividade, de jeito nenhum. As determinações passam por outros canais. Garanto que uma comunidade que melhora a qualidade de vida, que tem moto, que constrói uma casa melhor, ela consegue realizar a sua produção no mercado e ela pode ainda permanecer ligada ao movimento de classe que se contrapõe ao capital. Acho que esse é o desafio. E como sempre é um desafio de reprodução que está na marca do contraditório. A hegemonia do capital não pode ser subestimada. Como diz o Gramsci, “se o teu inimigo é tão pequenino e tão fraco, como é que ele lhe domina até hoje?”. Respondendo a sua pergunta: ela pode ser, portanto, uma agricultura bem realizada que entrou no mercado, mas continua vinculada ao movimento popular. Ou uma agricultura familiar, de base familiar, bem realizada que entrou no mercado, se subordinou e perdeu seu vínculo atávico, político e ideológico com o movimento popular. Essa é a pergunta que se deve fazer.
4 TAVARES DOS SANTOS, José Vicente, Os Colonos do vinho: estudo sobre a subordinação do trabalho camponês ao capital. São Paulo, Hucitec, 1978.
Ditadura Militar e que custaram muito caro em termos de dívida externa e mal foram concluídos. O interessante dessa história, sociologicamente falando, é que parece que há uma resistência eterna e permanente que é bastante viva. Curiosamente parece que ninguém sabia, mas na época do governo Fernando Henrique Cardoso apareceu a torre da igreja quando as águas baixaram. Quando essa torre apareceu, no espaço de 24 horas, tinham mais de 500 pessoas naquele entorno. Em contato com essas pessoas, alguns pesquisadores descobriram que havia um grupo de vigilância desde que a torre foi afogada. Então eles permaneceram observando o dia em que ela voltaria, pois a lenda dizia que aquela torre voltaria e que a igreja iria aparecer novamente e que ninguém ia sumir com ela. Com este exemplo, estou tentando dizer que um grupo social reage a uma experiência de afogamento, ou seja, reage ao apagamento da experiência social. Outro caso é o de Serra Queimada, o projeto de barragem a ser construída no rio Guapiaçu que, não por acaso, atingiria um número pequeno de fazendas e, ao mesmo tempo, alagaria e afogaria cerca de 8 a 10 assentamentos de trabalhadores rurais. Entre eles São José da Boa Morte, a primeira grande luta pela terra no estado do Rio de Janeiro e uma das mais importantes de todo o país. A resistência contra a barragem, então acabou se traduzindo não apenas na resistência das populações vivas e que atualmente residem nesses assentamentos, como em uma resistência contra o apagamento dessa memória ou o apagamento de sua própria história, da sua existência. É isto o que estou chamando de “apagamento sociológico”. Esses dois exemplos dão uma ideia da qualificação que eu quero dar a essa categoria.
Bahia ao lado da professora Guiomar Inez Germani. Pesquisamos também com a Profa. Cristina Alencar, da Universidade Católica em Salvador (UCSAL). Fizemos contato e articulamos com a discussão sobre estudos e uma substantiva pesquisa sobre os índios guaranis com a professora Gabriela Peixoto Coelho de Souza da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e apresentamos a proposta formalmente no encontro presencial da Rede de Estudos Rurais, tradicional fórum de debate e exposição de pesquisas no âmbito da realidade rural. Assim, tentamos reunir cabeças, pesquisas, núcleos, enfim projetos e programas de pós-graduação focados em situações de conflito no campo. E isso ainda está em curso e conta hoje com 20 núcleos articulados que aceitaram a proposta, tanto do ambiente acadêmico quanto de entidades ligadas aos movimentos de assessoria popular ou diretamente de movimentos sociais organizados do campo no âmbito latino americano, como por exemplo, grupos de gestão comunitária da água do México que envolvem organizações semelhantes na Colômbia, Peru e Bolívia.
é importante que se diga que, na medida em que a gente produz esse tipo de assessoria qualificada, a gente também modifica a universidade, traz para dentro dela um conhecimento que a gente vai chamar de “ativo” e bastante atualizado. Então, é esse caminho duplo e dialético entre conhecer e ensinar , entre pesquisador e pesquisado, entre assessor e assessorado que caracteriza, em minha opinião, essa extraordinária capacidade viva, e, no caso da sua pergunta, que permite a possibilidade de se oferecer consultoria e assessoria a grupos e comunidades despossuídas que passam por situações de vulnerabilidade ou em situações de conflito. Uma tarefa que a Universidade como ente público e agencia estatal que é precisa se comprometer em praticar e oferecer até como compensação social
que está fortemente presente no campo. Para traduzir suas pautas de interesses e lutas no combate e no contraste com o capital e, de alguma maneira, ao dar visibilidade a experiência viva, à experiência real cotidiana, o pesquisador volta modificado. Por ter entrado na realidade, o pesquisador também modificou essa realidade. Então, como já havia dito, acontece uma relação dialética tensa e contraditória, nada pacífica ou linear entre sujeito-conhecimento-pesquisador e o objeto-conhecimento, que transforma o sujeito-conhecimento-pesquisador em objeto daqueles que ele está estudando, porque ele é questionado, é problematizado por esse objeto e transforma o seu objeto de estudo, os segmentos subalternizados. Na verdade, seria o seu objeto principal, na iminência de uma possibilidade que ele tenha um protagonismo tal, que ele devore o próprio pesquisador e transforme esse pesquisador também no seu objeto de perguntas, de demandas e de solicitação de espaço, de registro, de memória, etc. Então, é essa tensão estabelecida na qual o pesquisador não tem que pensar nos subalternizados como sempre corretos, sempre os que estariam certos e são bonzinhos, já que o pesquisador da Sociologia Viva é portador de uma teoria crítica, que serve também como uma ferramenta de luta e ele quer entender em que medida os segmentos subalternizados compreendem essa teoria crítica como ferramenta. Algumas vezes os segmentos subalternizados precisam ser chamados a atenção, por que não? Do contrário, aceitá-los a priori como donos da verdade seria uma atitude populista. Mas quando a gente pensa que eles também podem ser sabatinados e questionados, a gente entende quando eles nos sabatinam, nos questionam e nos problematizam. Então, é esse caminho de mão dupla, tensionado, contraditório que constitui a Sociologia Viva a partir de investigações empíricas sobre as experiências de homens e mulheres, velhos, crianças, enfim, de seres vivos e reais. A ida ao México me trouxe toda uma pauta e um caminho teórico-metodológico interessante, construídos no diálogo entre a minha produção teórica acumulada coletivamente no Observatório Fundiário Fluminense e a produção do Entramados, que também fez parte de nosso processo de articulação de pares para uma possível constituição da Rede Latino Americana. Descobrimos que deveríamos trabalhar com três dimensões epistêmicas essenciais. A primeira delas o capital; a segunda, o patriarcalismo e a terceira, a colonização: ou seja, C-P-C. Essa é a matriz da reflexão que a gente precisa fazer a contrapelo. Em segundo lugar, a ideia de que o estadocentrismo tem que ser
rompido porque ele corresponde à produção de um bloqueio epistemológico ao pensamento sobre o social. O social tem uma démarche própria e tem uma dinâmica que vai para além do capital. Que precisa ser demarcada como relação social historicamente determinada. A meu ver, o capital não apenas subordina e torna pacífico o segmento subalternizado. Mas a experiência do subalternizado vai além dele quanto entra em estado de resistência e se coletiviza e então produz formas anticapitalistas de reprodução da sua vida material e imaterial, uma forma de ação que hoje estamos chamando de “o Comum”. Esse Comum explica falas e agencias que podem acontecer apesar ou contra o Estado que em geral os rejeita ou os abandona. Muitas vezes, acontecem movimentos que apresentam a sociabilidade e a ação social ultrapassando a necessidade de um Estado, de um direito burguês, de um Estado burguês constituído. Acho que a ideia de olhar para perceber que ele foi colonizado, e que apesar de ser colonizado, não é apenas e univocamente isso, mas esse comunal é alguma coisa que tem uma historicidade, um modo próprio onde o social não se define exclusivamente pelo Estado. Uma experiência que em alguma medida se resolve e se constitui a contrapelo do “status quo”, mesmo apesar de estar subsumida ao sistema hegemônico. Uma forma de viver a vida social que vai além, que também sugere outros modos de vida, em momentos determinados expondo mais ou menos claramente sua contradição, maior ou menor. Um modo de reprodução que propõe outras formas de vida que são mais harmônicas e integradas ao ambiente natural e a natureza humana do homem. Formas dinâmicas, que chegam a ser mais solidárias, e estão em processo de acontecimento ao mesmo tempo em que são subordinadas e oprimidas, porque são mais do que isso, do que opressão! Quando lutam as comunidades em resistência tornam-se “classe”. Na minha opinião a experiência crítica deve ser mapeada em sua diversidade por uma sociologia sensível à dialética e que seja cada vez mais participativa e interativa. Acho que é isso o que o grupo do México com quem aprendi muito, está tentando mapear: esse “Comum”. Minha proposta foi a de chegar a um acordo de compreensão entre tradições de pesquisa em diálogo que penso ter conseguido encaminhar. Resultando numa espécie de divisão territorial do pensamento, no qual, o grupo brasileiro do OBFF poderia ser identificado como o intelectual coletivo que trabalha com o estudo de situações de conflito, cuja reflexão participativa se centraria na denúncia do “despojo”/esbulho provocado pelo capital e que em
contrapartida gera e formula estratégias e táticas de resistência. E o grupo ENTRAMADOS, do México, de uma maneira mais ampla já avança pelo mapeamento de formas anticapitalistas de produção da vida adotando ferramentas mais independentes de observação e de percepção focadas especificamente nas teorias críticas e marxistas que apenas reagem na mesma estrutura paradigmática onde o sistema tem domínio. O acumulo da produção do grupo Entramados me pareceu chamar a atenção do pesquisador no sentido de explorar outros processos não instituídos na modernidade burguesa, e para a importância de abrir o olhar o pensamento, começando por um forte exercício de descolonização acadêmica- inclusive do materialismo histórico dialético institucionalizado- para que se possa chegar á construção de novas e outras ferramentas de saber não necessariamente produzidas nas oficinas oficiais do ofício universitário para que se possa, voltando á Teoria Crítica em processo de produção nas “ruas” e através de diferentes e diversos saberes, seja possível reconhecer como concreto uma definição do mundo popular, de fato, “desde abajo” e como possibilidade real que já se constitui fora do modo de produção e reprodução do capital. A crise global do capital oferece as condições objetivas e subjetivas para a emergência desses processos de conhecimento e de acontecimento da vida social. Juntando as tradições a partir deste diálogo Brasil – México foi que consegui ampliar a proposta da SOCIOLOGIA VIVA. Afinal, se cotidianamente lutamos e resistimos como investigadores militantes e se a gente - sem negar pretensiosamente o sistema hegemônico- mas busca uma transformação contra hegemônica em gotas ou miúda de cada dia, então acho que é isso: como é que nós vamos modelar esse outro mundo? Ele já está sendo produzido e desenhado na categoria que chamamos hoje de “o Comum”. Para isso é necessário não apenas, olhar a contrapelo do capital pelas lutas e conflitos, mas também olhar o mundo com pressupostos epistemológicos dialéticos mais severos: através de uma epistemologia descolonizadora; feminista e anti-patriarcalista; antirracista e abolicionista. Enfim, acho que essas coisas constituíram o amálgama do que eu poderia chamar hoje, e me sinto muito bem situada e tranquila em relação a esses paradigmas e a essa maneira de construção do pensamento na sociologia crítica, o que eu poderia hoje chamar de SOCIOLOGIA VIVA, um lugar para onde eu trouxe e está chegando a minha própria trajetória. Agradeço o convite à entrevista.