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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


LUTAS SOCIAIS NO CAMPO: 13 PERGUNTAS PARA ANA MOTTA1


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Entrevista realizada por William Kennedy do Amaral Souza2


A conjuntura nacional traz indicadores nefastos de uma guerra travada no campo. A luta pela terra, pelo território e pelo direito a uma vida digna está, cada dia, mais acirrada. No ano passado, 28 pessoas perderam suas vidas em decorrência de luta pelo direito de ter acesso à terra num país com um dos maiores índices de concentração fundiária do mundo. Em 2019 as mortes continuam mostrando o acirramento e aumento da violência no campo promovido pelas elites agrárias contra qualquer forma de entrada de trabalhadores no mercado de terras, o que se deduz dos relatórios da CPT sobre Violência no Campo de 2017 e de 2018. E essa forma de extermínio não para. O caso mais recente apareceu com as mortes de quatro agricultores no município de Lábrea, no sul do Amazonas. E apenas no primeiro


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1 Entrevista recebida em 15/04/2019. Aprovada em 23/05/2019, pelos editores. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29375.

2 Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professor de Sociologia e Sociologia Rural no Instituto Federal de Educação de Rondônia. E-mail: william.souza@ifro.edu.br ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6271-9422

trimestre de 2019 já se pode afirmar que as mortes provocadas representam 36% do total observado ao longo de todo o ano passado no país.

A violência recrudesce a partir de uma série de novas medidas adotadas ou planejadas pelo poder executivo brasileiro atual que afetam no sentido de enfraquecer os direitos das populações tradicionais e dos pequenos agricultores sobretudo na Amazônia onde os povos originários ocupam desde sempre uma territorialidade identitária que se constitui por uma relação integral com o meio ambiente, ou então a partir de formas de ocupação produtiva de segmentos subalternizados incluídos em projetos de colonização conduzidos nos anos 60 e 70 pelo Estado durante a Ditadura Militar, ou a partir de movimentos de ocupação organizada mais recentes dos auto identificados como “sem terra”, na expectativa de serem beneficiados por algum projeto de assentamento.

A região Amazônica - de grande importância internacional por sua floresta – é certamente o lugar que mais sente os efeitos de um avanço predatório que resulta da entrada do agronegócio estruturado em base de monocultura associada a agrotóxicos e enquanto modelo hegemônico que se estabelece irracionalmente em enormes extensões de terra. Desta forma o avanço do grande capital transnacional aparece neste cenário, articulando interesses econômicos nacionais e internacionais com respaldo político da bancada conservadora do Congresso Nacional. Uma elite que tem atuado através de formas de domínio e controle destrutivo da riqueza natural e hidro territorial, incluindo o subsolo onde se alojam os reservatórios aquíferos e minerais e avança ainda de modo opressivo e violento contra as formas de reprodução comunitárias da vida ali localizadas. Com uma grande volúpia procuram extrair terras, minérios, águas e tudo o que nela vive. Pouco importa se se trata de homens ou mulheres, animais ou peixes, árvores ou outras plantas. Por aí emerge a multiplicação de conflitos, os quais expressam os antagonismos entre os modelos de desenvolvimento impulsionados pelo capital e as formas de existência e resistência dos povos do campo, das florestas e das águas.

A Revista Trabalho Necessário traz uma longa entrevista com Ana Maria Motta Ribeiro, professora associada do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. Ana Motta é do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (UFF) e, envolvendo estudantes de graduação e pós-graduação em projetos de ensino, pesquisa e

extensão, coordena o Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) e, neste espaço desenvolve o Projeto “Sociologia Viva”. Ali se articulam seus orientandos/as e grupos de pesquisadores/as de diversos núcleos de investigação e extensão do Brasil. Recentemente esse coletivo começou a se expandir numa dimensão latino- americana, envolvendo Argentina, Chile e México na recém-criada Rede Latino- Americana de Observatórios Hidro Territoriais.

A entrevista foi realizada no dia 31 de março de 2019. Como lembrou a professora, “um dia de memória triste”. Mas ao mesmo tempo é a própria Ana Motta quem nos alenta e nos alerta sobre a esperança rebelde e criativa que emerge do reconhecimento de formas do “Comum” que se constituem “desde abajo” nas experiências comunitárias populares latino-americana.


Trabalho Necessário: Como você analisa as lutas pela terra e territórios hoje?

Ana Motta: O avanço do capital em nível internacional tem se dado por meio de espoliação e esbulho. Em geral, o olhar do Primeiro Mundo sobre o Terceiro Mundo parece estar focado no esbulho da natureza e na subordinação da agricultura familiar e sua autonomia em diversas situações tradicional ou recente, definida por ocupação organizada através de movimento social de ocupação numa tentativa de democratização do agro. São desigualmente atingidas comunidades tradicionais e grupos étnicos originários, que de alguma maneira reproduzem uma relação com a natureza de modo a reproduzir em modo simples a sua própria vida: ao cuidarem de si, cuidam também do ambiente. Acho então que, hoje, as lutas pela terra têm significado uma tentativa de manutenção ou de defesa de territórios e territorialidades, considerando que água também é território, e emerge hoje como um dos elementos mais focados pelo capital considerando a abundância que temos por aqui no Terceiro Mundo e a escassez no Primeiro Mundo! Na América Latina existe um conjunto de situações comuns de esbulho do ambiente e de opressão sobre essas comunidades. Contra esse movimento destrutivo aparecem cada vez em maior proporção formas diversas de resistência. Respondendo à pergunta, então, acho que esse é o cenário que a gente vê hoje.

Trabalho Necessário: No campo, convivemos com uma enorme mistura de “identidades sociais”. Disputando espaço e tentando se defender do agronegócio, temos agricultores familiares beneficiários da reforma agrária, pescadores,

quilombolas, indígenas e ribeirinhos, por exemplo. São populações que são deslocadas de suas terras por motivos variados, como construção de barragens, mineração, construção de estradas, pela poluição de rios e mares. Todos podem ser consignados na mesma condição de “atingidos” e que estão subalternizados na luta contra o grande capital? Como articular a luta no campo?

Ana Motta: Bom, a diversidade de situações é dada pela forma como cada segmento social vai reproduzir a sua vida e demarcar a sua territorialidade. A humanidade é diversa, a unidade do humano é construída pela diversidade, é a unidade da diversidade e não a unidade do homogêneo. A homogeneização é um ato de violência contra a experiência humana de modo geral, onde ela venha a acontecer no campo ou na cidade, entre que segmento for. Então essa diversidade vai se apresentar, em cada conjuntura através de estratégias distintas. Posso dar exemplos. Nos anos 45 – 50 as lutas no campo usaram a identidade “camponês” importada da experiência vinda com a Revolução Francesa para identificar os trabalhadores rurais como agentes de luta, em resposta ao processo de expropriação provocado pelo movimento de entrada do capitalismo no campo. Assim CAMPONÊS era a categoria política que demonstrava a existência de uma resistência bem articulada e nada pacífica em especial das Ligas Camponesas e do sindicalismo nascente ainda desprovido de qualquer proteção legal, restrita apenas ao Código Civil. Uma lei contraditória, mas etiquetada como de Reforma Agrária. Durante a ditadura militar, portanto, a forma de identificação legal obtida dessa resistência conduziu a construção da categoria de TRABALHADOR RURAL como a nova identidade política estratégica da luta, e a CONTAG emerge e se constitui nesse processo como uma direção importante das lutas por direitos e por terra. Assim de novo aconteceu uma unificação de diferentes agendas e a diversidade de situações e demandas em uma única categoria representativa que habilitava uma unidade organizada dentro do novo enfrentamento. Foi assim, como desdobramento e memória das lutas camponesas que, se conseguiu o Estatuto do Trabalhador Rural direitos trabalhistas; a extensão da legislação trabalhista urbana para o campo; e até uma lei de Reforma Agrária fraca, cooptada, mas LEI; a definição de um Estatuto da Terra e um conjunto de indicações de marcos legais que permitiu o apoio, a sustentação e a defesa de direitos a essa diferenciada camada de trabalhadores e de situações de reprodução da vida verificadas no campo. Entretanto, antes que

acabasse a ditadura, houve uma implosão dessa categoria de ação que era uma categoria de unificação política. Assim como foi camponês nos anos 1960, unificando a luta pela reforma agrária. Nos anos 60, 70, 80 a unificação se dava na categoria “trabalhadores rurais”, ressaltando a dimensão dos direitos, dos herdeiros da proletarização e cercamento das terras camponesas. De fato, o processo de expropriação dos trabalhadores na expansão do capital no campo brasileiro andava a largos passos. O que vai acontecer a partir de então, é que mesmo durante a ditadura militar, uma série de situações de confronto com o capital levou à necessidade de desenho de pautas especificas. Emerge a luta dos seringueiros que acaba resultando em uma defesa da floresta amazônica. Emerge a luta dos ribeirinhos que caminha passo a passo com os seringueiros. Aparece a luta de posseiros e de trabalhadores rurais sem terra diferenciada dos trabalhadores assalariados. E acontece uma GREVE dentro da Lei de Greve, conduzida pela CONTAG, para espanto dos próprios redatores da lei feita para nunca ser cumprida. Assim, a agenda da luta dos trabalhadores do campo vai sendo definida e cada vez mais depurada pela especificidade de situações das experiências existentes no campo. Cada uma das identidades se estabelece numa dupla direção: por um lado pelo modo como se estabelece a reprodução da vida. Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu tem uma relação com o coco babaçu, com a palmeira do coco babaçu. E assim elas criaram e levaram uma luta, por exemplo, em direção à constituição de uma Lei, a chamada “Lei do babaçu livre”. Conseguiram uma legislação específica. Elas têm acesso ao babaçu. Como os seringueiros, elas não querem um pedaço de terra demarcado como uma propriedade privada individual. Elas querem uma terra coletiva, elas querem acesso as palmeiras de babaçu. Então a matança, a destruição dos babaçus, afeta diretamente a reprodução da vida dessas mulheres, que tem essa relação equilibrada, harmônica com a natureza. Por outro lado, os trabalhadores rurais assalariados querem seus direitos, querem uma carteira de trabalho assinada, e outros direitos como o fim do “roubo da balança” e do “roubo do metro” no cálculo manipulado de seus ganhos após trabalho sazonal no corte da cana de açúcar, querem também o fim do cativeiro do barracão que vende por preço alto o alimento que durante o corte não podem pagar e aumenta a dependência “domestificadora” a favor dos interesses das Usinas e Usineiros, enfim. Já os quilombolas vão querer a sua terra demarcada, e definida pelo legado

ancestral e pela dívida social e histórica do Estado Brasileiro que construiu sua riqueza econômica e política através do modelo escravocrata desumano e indigno, e vão conquistar esse direito junto a outros direitos de outros movimentos sociais presentes e ativos no Brasil dos anos 80, em forte mobilização e luta democráticas que levou o país à realização de uma Constituinte cujo resultado levou a designação de A Constituição Cidadã de 1988. Nela os agricultores familiares negros que viviam em comunidades étnicas ganharam finalmente o direito de serem identificados como “quilombolas”, que de fato sempre foram, e o direito de ocupação legal e legítima de suas “terras de preto”. Então repare que saem gradativamente de debaixo do guarda-chuva “trabalhador rural”, de acordo com pautas de lutas especificas, essas identidades que são identidades definidas na experiência de reprodução real e cotidiana da vida material e imaterial. A gente pode dizer, que todo este cenário vai formando e gerando novos sujeitos que decorrem do aprendizado de suas lutas, quer dizer, da definição constitutiva de novas experiências coletivas através das quais se descobrem como grupos de interesse comum, quando se organizam para lutar contra o espólio de sua própria condição de reprodução, e assim também se transformam em novos sujeitos diversos em sua condição mas iguais no interesse contra o esbulho: rebeldes com causa! Então a diversidade hoje, eu diria, ela é impossível de ser amarrada e de ser atada no bolo homogeneizador da opressão que pretende igualar todas as dores e defesas reais e sentidas em cada caso. Ela tem que correr solta de toda maneira porque essa luta se específica na sua diversidade, o que não quer dizer que não haja a possibilidade de uma unificação. Claro, a unificação vai ter que passar por questões gerais da luta maior contra o capital. O movimento de unificação mais significativo que eu vejo na América Latina, embora com problemas de atuação, hoje se organiza através de uma entidade coletiva identificada como a “Via Campesina”. Ela unifica não apenas essa diversidade de situações de trabalho e de reprodução da vida no Brasil, como também em toda a América Latina. Eu diria que é a coisa mais importante na agenda mundial hoje, de confronto direto contra o avanço do capital. E, portanto, essa unificação tem que se estabelecer de modo estratégico. Ela não pode ser apenas um desejo, apenas uma intenção. E depende das organizações que dentro dela se colocam. Então a Via Campesina é o âmbito, o lugar, dessa unificação, em minha opinião.

Trabalho Necessário: Muitas vezes os movimentos sociais do campo divergem em teoria e prática. Temos o exemplo do massacre de Corumbiara em Rondônia onde as divergências causaram uma ruptura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que culminou com a criação do Movimento Camponês Corumbiara (MCC) e da Liga dos Camponeses Pobres (LCP). Essa divisão repercutiu no enfraquecimento da luta pela Reforma Agrária? Como você analisa as divergências no interior dos movimentos sociais do campo? Qual é a pauta em comum?

Ana Motta: Se a divisão repercutiu no enfraquecimento da luta pela Reforma Agrária, eu diria que não, absolutamente. Quando a luta pela Reforma Agrária se traduz em uma diversidade de situações e de pautas, ela se fortalece porque ela ganha na magnitude da diversidade e não da homogeneização simplificadora como quer o capital subordinando a todos como meros trabalhadores livres e genéricos disponíveis para vender a sua força física e mental de trabalho e, para que abram mão de seu território, de sua identidade e de sua dignidade. Acho que as divergências no interior dos movimentos sociais no campo são inevitáveis, porque se você não tiver uma multiplicidade de tendências de opiniões, você vai ter que supor uma direção totalitária, sufocante sobre as formas de ver e de pensar. É claro que nessa divergência, na produção de tendências também existe a possibilidade dos segmentos de luta estarem sujeitos à formas de cooptação do capital, de reproduzirem as próprias relações de dominação. Isso é um fato e isso claro que diminui o movimento. Agora, não há como evitar. A não ser sobre o tacanho de uma unicidade de direção de um partido, de uma tendência que se coloca majoritária. Eu acho pessoalmente isso ruim. Eu acho que de rachas, de disputas, se pode chegar muito mais facilmente a uma direção comum e eficaz contra o capital do que de uma experiência simplificadora de cima para baixo. Se o movimento é sujeito a pressões da dominação e se diversifica, diria que isso é inerente à experiência da luta de classes. Você me pergunta qual é a pauta comum, respondo que depende da conjuntura. Mas eu acho que aqui temos a Via Campesina, temos o movimento das mulheres no mundo e na América Latina inteira, tem o movimento dos negros enfim, eu acho que se busca na verdade uma pauta orgânica que enfrente o capital na América Latina inteira. Acho que não apenas no Brasil, o capital sendo transnacional ele precisa encontrar um enfrentamento de classe igualmente internacional. Se você me perguntar hoje, qual seria o caminho da unificação, seria um caminho

internacional. E eu começaria pela integração das lutas na América Latina, do ponto de vista do pensamento pela integração da reflexão que desenvolvemos na universidade, colocando-a na dimensão latino-americana e não ficando restritos à dimensão do Brasil. Isso significa buscar compreender empiricamente melhor as contradições do capital e do trabalho na dimensão do território maior, no âmbito da América Latina, sem esquecer ou perder a dimensão das singularidades reais provocadas pelo processo de colonização; pela expressão objetiva e subjetiva da opressão machista, patriarcal e racista - sobretudo no caso do Brasil - que se traduzem em experiências de sofrimento que devem ser tomadas e reconhecidas em cada caso.

Trabalho Necessário: No desenho ministerial do presidente Jair Bolsonaro foi retirada do Incra a titulação de terras quilombolas e indígenas, e se passou essa função ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o qual tradicionalmente tem atuado sob a influência da bancada ruralista. Os quilombolas questionam a retirada da competência do Incra, destacando que o processo de regularização fundiária dessas comunidades inclui responsabilidades que fogem do escopo do MAPA, como é o caso de análise das questões socioculturais e antropológicas. Na prática, quais as intenções de Bolsonaro?

Ana Motta: Acho que a resposta é razoavelmente óbvia: colocar “galinhas junto com raposas”, define um destino pré-datado: serão cruelmente devoradas!!!! Claro que a intenção do desenho, do redesenho ministerial do Bolsonaro foi essa. Chama a atenção uma novidade nesse redesenho ministerial, que é a presença mais significativa do que nunca na história do Brasil, da bancada mato-grossense do Congresso e do representante do agronegócio de Mato Grosso e das elites agrárias do Mato Grosso. Uma bancada em geral conhecida como uma das mais violentas e agressivas em termos de ação contra os trabalhadores e seus interesses, em especial quando se organizam coletivamente. Aparecem formas de intervenção que se caracterizam por serem seletivas (na maioria das vezes se castiga e criminaliza, além de atingir diretamente de modo preferencial a lideranças e assessores dos movimentos emergentes) e com requintes de crueldade (aparecem na maioria das vezes formas de agressão diante da família, de crianças e na intimidade da casa da família ou na sede das entidades de apoio aos segmentos subalternizados). Então,

não por acaso, essa presença de violência com suporte do Estado/governo aparece hoje no desenho do ministério.

Trabalho Necessário: Depois da posse de Bolsonaro houve uma série de invasões promovidas pelos representantes do agronegócio e do neoextrativismo, a áreas demarcadas e/ou ocupadas por indígenas, quilombolas e outras populações camponesas. Isso se relaciona ao discurso do presidente que, enquanto candidato, defendeu abertamente a diminuição das terras destinadas a esses grupos sociais?

Ana Motta: Depois da posse do Bolsonaro, apareceu de modo claro e inequívoco em que medida as formas de violência passaram a ser desburocratizadas e até e ampliadas para além de formas de atuação no ritmo e tempo juridicamente definido. O novo desenho dos ministérios seria um exemplo disso (fim do Ministério do Trabalho; desligamento da FUNAI do lugar para um espaço até agora indefinido; colocação de policiais da PM na frente e na gestão do IBAMA e da defesa do patrimônio natural e ambiental, fim da fiscalização e criminalização do trabalho escravo contemporâneo (por dívida) enfim, uma ordem de controle repressivo que quase exclusivamente afeta aos grupos sociais em luta e contrários as concepções defendidas pelo governo que lutam por seus direitos e reagem a formas abusivas de opressão e exploração pelo capital. Dando ênfase inegável a um modelo de ação do Estado no âmbito nacional para permitir, providenciar e liberar os interesses do capital internacional como direção principal das formas de atuação publica, em especial dando abertura maior aos interesses econômicos definidos pelo Primeiro Mundo, quase como uma pauta de ação diretiva e dirigida fora do país, e que são definidas dentro da pressão voraz do neoextrativismo sobre o que as comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros ou sem-terra vão chamar de “reprodução da vida”. E é a isso que o capital chama de recursos “naturais”, numa tentativa de transformação da natureza em mercadoria. É claro que a presença de um governo de extrema direita vai aliar a pauta não apenas do agronegócio, das elites agrárias, como também a do capital internacional. Então, não é de interesse ouvir demandas, nem respeitar a antecedência ancestral da presença das comunidades no território, muito menos a preservação do ambiente. Vamos lembrar que dias antes do desastre de Brumadinho, o presidente atual dizia nas redes sociais que “não dava para ficar atrás de xiitas preocupados com o meio ambiente, multando quem não deve,

multando quem quer fazer, produzir a economia, e fazer a economia avançar”, numa clara referência e defesa do agronegócio. Então com isso, o discurso torna claro que os interesses do capital estarão sempre à frente dos interesses dos trabalhadores e, sobretudo, dos brasileiros de modo geral e de seu território nacional.

Trabalho Necessário: A Comissão Pastoral da Terra (CPT), lançou no ano passado, como sempre costuma fazer anualmente, o relatório “Conflitos no campo Brasil 2017”3, indicando que nesse ano houve o maior número de assassinatos desde 2003, com assustador aumento de massacres. Pode comentar isso e comentar como os movimentos de resistência rurais têm reagido a violência no campo?

Ana Motta: Primeiro eu quero chamar a atenção para um fato que não foi noticiado muito amplamente. Esse documento da CPT sempre foi lançado na mesma data – 17 de julho- para simbolizar a importância da memória sobre o sinistro “Massacre de Carajás”, quando oficiais do Estado fardados atuaram no extermínio de lideranças rurais com autorização do governador “para matar”. Pela primeira vez na história de seu lançamento (estava na trigésima segunda edição) em 2017 foi divulgado com um significativo atraso. Soube-se depois pela mídia que aconteceu uma invasão via internet do relatório. Ele foi “hackeado”, não se sabe por quem. Houve uma desorganização dos dados, uma interferência nos computadores que teve que fazer a entrega do relatório se atrasar pela primeira vez. Os interesses pela não divulgação dessa violência ficaram então, claramente demarcados ali. Duas coisas eu quero chamar atenção: primeiro que o Estado brasileiro matou muito mais gente durante o curto período do Temer na presidência da república do que a última década em todo o país. É significativo isso. Então, a violência se tornou extremamente letal. Dirigida e novamente seletiva, porque é uma violência que mais uma vez mantém uma identificação, continua escolhendo lideranças, escolhendo porta-vozes, mediadores que dão assessorias, advogados, clérigos que estão na área, evangélicos, enfim, que estram naquela dimensão. Então esse relatório atrasou e isso deve ser sublinhado ideologicamente. E o documento de 2017 (o de 2018 ainda está por ser divulgado), trouxe a ampliação de um quadro de opressão horrível. A segunda questão que eu acho relevante demarcar refere-se a questão de se desenha de modo consolidado quanto ao papel do Estado (coisa pública) e sua representação legal da violência como PM’s, por exemplo cada vez mais

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3 Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/

comprometido, com formas e modos de associação com representantes do interesse privado do capital agrário, e do agronegócio. Em muitos casos os massacres que vão acontecendo têm figuras civis, como seguranças particulares de fazendeiros, mas que atuam ao lado e apoiadas por elementos da PM, os quais entram em ocupações de trabalhadores rurais sem terra ainda que, todavia, em litígio, e saem atirando aleatoriamente e a revelia. Então, acho que isso reflete o segundo item que quero chamar atenção, que é o crescimento de armas na mão de proprietários privados rurais e seus seguranças privados armados com resultados nefastos. Gera preocupação quando hoje reivindicam a liberação generalizada pelo direito legal de uso de armas supostamente “em defesa de suas propriedades” sem qualquer contraponto em termos de qualquer intensão de esclarecimento jurídico sobre a própria condição legal e legítima dessas referidas posses quando definidas pelo domínio de grandes e imensas extensões de terra em território nacional. Então o cenário é complicado. Mas não pacífico, dado que a rebeldia quanto as concepções de direito á terra continuam se colocando ativamente em disputa apesar das baixas provocadas por essa violência anunciada!

Trabalho Necessário: Em muitos lugares, a juventude está fortemente presente nas lutas sociais do campo, como por exemplo, no MST. Um jovem em Rondônia nos disse que: “Os jovens hoje em dia é que tocam as tarefas do assentamento. Mas o que garante a minha militância é o coletivo, porque sei que posso sair e voltar e a horta não estará abandonada, ou o feijão que precisava colher foi colhido. Para nós é fácil arrumar um emprego em Rondônia, somos sempre assediados, para trabalhar em supermercados ou nos frigoríficos. Mas eu não preciso de emprego, já tenho o meu.” Você acredita que para os jovens a vida no campo é possível, e talvez melhor que em muitas periferias das cidades?

Ana Motta: Primeiro quero “limpar o terreno” dessa afirmação. Hoje o MST (Movimento dos Sem Terra) não é o único movimento social organizado de ocupação e resistência na terra. Citaria pelo menos outros movimentos com direção política autônoma, mas com grande presença em termos de resistência fundamental. O MPA (Movimentos dos Pequenos Agricultores); o LCP (Liga dos Camponeses Pobres); o MCC (Movimento Camponês Corumbiara), e outros atuando em diferentes regiões. Acho que isso é explicado pela organicidade. Quando você tem um projeto político comum, quando você tem uma coisa

comunitária, a juventude tem um projeto ideológico na cabeça. Lembrando a palavra de ordem das ocupações de sem-terra, seja do MST, seja do MPA ou do MCC, ou de todos esses movimentos, eles têm em comum, e como chancela, a ideia de “ocupar, produzir e resistir”. Então a juventude se mantém ali porque produzir é um ato político. E é uma dimensão da resistência. Por outro lado, “não basta ocupar”. Esse é o recado que eles dão, e a juventude em geral tem mais para dar. Quando você junta o movimento de ocupação organizado com a produção, você encontra na produção uma instância da própria direção orgânica do movimento. Então é mais do que estar produzindo, trabalhando na terra. Cada tomate que se planta – e em especial dependendo como se revela se foi plantado COM ou SEM VENENO, grita contra o modelo hegemônico e torna-se um verdadeiro panfleto, por consequência, o qual se joga diante da sociedade para abrir consciências, mostrando como aquilo é possível. A partir das pesquisas que desenvolvi, dá para ver que a juventude é cada vez mais alheia à permanência na terra. A tendência é de se deslocar para a cidade e, geralmente quando ela participa é quando ela está orgânica. Eu diria que a chave explicativa é a organicidade. A explicação dada pelo próprio assentado que está registrada na pergunta, acho que esclarece o que eu estou dizendo.

Trabalho Necessário: E falando sobre Rondônia, citando um caso específico, gostaria de destacar. As pesquisas sobre o assentamento Margarida Alves, do MST, no município de Nova União, revelam uma mudança no nível econômico dos assentados que pode relacionar-se com mudanças no padrão produtivo. Quando do surgimento do assentamento em meados dos anos 1990, havia uma gama de culturas agrícolas no assentamento. As pessoas plantavam milho, arroz, feijão, café, cacau, hortaliças, legumes, frutas, entre outras plantações. Compravam poucos itens nos supermercados da cidade. Mas o nível sócio econômico dos assentados era baixo, faltando itens essenciais para o bem-estar das famílias. Em 2007, em uma pesquisa do DURAMAZ (Universidade de Paris III) foram constatadas melhorias na qualidade de vida dos assentados e um incipiente abandono da pluriatividade e a opção pelo leite, processo que teve continuidade ratificada pelo professor Marcel Araújo em pesquisa realizada em 2013. Agora, em 2019, ele está fazendo outra pesquisa no mesmo assentamento e descobriu que o nível socioeconômico elevou- se consideravelmente. As famílias têm boas casas, carros, motos, itens domésticos que facilitam o dia a dia. Essa elevação do nível socioeconômico veio após os

assentados abandonarem a pluriatividade de outrora e dedicarem-se apenas a produção de leite de gado bovino por exigência do mercado capitalista da região. Como entender essa subsunção ao mercado mesmo com o MST à frente do assentamento?

Ana Motta: Acho que começaria dizendo que a realidade é dinâmica e complexa, e que há de ser observada em cada situação. Me aprece melhor afirmar de uma vez por todas, que é necessário separar a agricultura familiar já estabelecida no mercado e individualizada dos posseiros e pequenos proprietários, daquela “agricultura familiar organizada ou orgânica” que é produto de processo de luta de ocupação. A primeira aparece e se constitui em escassas situações regionais como uma condição precária em termos de mudanças na lógica dos interesses econômicos gerais que pode mudar a qualquer momento e ser de repente determinada de fora e sufocada. Para perder sua autonomia e ser reproduzida, mas em forma cada vez mais subordinada hierarquicamente pelo capital industrial por integração vertical (vinho; suco de tomate; suco de laranja; laticínios etc.), onde poderá se manter, mas não se diferenciar. Ou no limite sabendo dia a dia que poderá ser absorvida ou expropriada e desaparecer assistindo em que medida serão aqueles agricultores de antes que tiveram que vivenciar a contingência de se tornarem (assaltados pelo Banco) em assalariados sazonais de amanhã ou em pobreza urbana de guetos estigmatizada e criminalizada. A segunda é uma modalidade de existência que enfrenta a realidade aparente e se recusa a aceitar sua “naturalização”, compreendendo, não se sabe quando nem porque, que a realidade é histórica e pode ser transformada. Aparecem como uma forma de reprodução social que é portadora de sacrifícios, coragem e inseguranças – tudo ao mesmo tempo. E que se desenvolve durante a construção de padrões afirmativos de consciência que contemplam ativa e permanentemente desde o concreto da vida de cada um e a de todos juntos em desafio. Produzindo uma construção intelectual tensa e dinâmica e que pode fazer aparecer uma variedade criativa de estratégias experimentais de ação para garantir a permanência na terra ocupada, o que acontece sempre a partir de razões racionais e eticamente mapeadas por uma assessoria jurídica popular que irá pesquisar condições legais e assim encontrar a brecha socialmente justificadora da ocupação. Esse movimento poderá fazer emergir (estranhamente para os “de fora” e inclusive da academia) um novo

sentimento de “pertença” – que nestes casos é criado pela luta cotidiana para poder permanecer naquilo que foi conquistado. Isso resulta numa modalidade de pertencimento sociologicamente singular e que acompanha a labuta diária da permanência no território que irá prover a possibilidade de um futuro identitário que acontece desde que permite e torna real a possibilidade objetiva de chegar-se a ter um “futuro” neste mundo de desempregados e endividados semimortos e homogêneos na miséria alienada. Esse fato e sentimento que se assegura na abertura do acesso a ideia de uma reprodução com dignidade. Sem pressa por admitir a possível consolidação de um futuro e assim a existência de alguma história e trajetória pessoal e familiar onde “ninguém” poderá ter a chance de se transformar em “alguém” social. Eu penso que isso meio que explica porque algumas pessoas pobres acabam decidindo por encampar a luta de ocupação da terra, como condição de sua própria reprodução social no limite e se traduz numa forma de escolha que muitas vezes, mesmo quando derrotada não esgota a vontade de ter feito isso mesmo, e repetir outra vez e outra vez. Assim, a radicalidade da escolha é tão determinada pelo desenraizamento social desses “sem-terra” que querem se superar por escolha própria, quanto pela total falta de perspectivas e derrota dada no pessimismo intrínseco da submissão ao capital e ao patriarcalismo violento, agressivo e simultaneamente sedutor das elites proprietárias no Brasil. Mas vale afirmar que as duas formas estão sujeitas a serem desagregadas e subsumidas em conjunturas e a partir de perdas reais (assassinatos e massacres, despejo e remoção da terra ocupada ou da terra possuída por crise financeira) e que podem chegar a ser (e eu já vi isso) desagregados da família original tendo que se recompor em perfeito estado de anomia social na condição de miseráveis urbanos escondidos em guetos onde podem ser recolhidos por acolhimento religioso por pastores pentecostais que falam a sua língua ainda que abusem de sua condição de sujeito ativo. Para mim é nessas brechas de reconstrução rebelde ou de desenraizamento (José de Souza Martins revisto aqui por mim nas suas considerações do livro, O SUJEITO OCULTO) que se definem aqueles que pertencem a condição de agricultores familiares. Serão sempre os novos sujeitos no campo que podem ser simultaneamente submetidos e manipulados assim como podem também ressurgir e sobreviver heroicamente e romper com a força poderosa que os empurra em direção a homogeneidade. Mas na minha experiência de

trabalho de campo há mais de 40 anos ainda fico extasiada quando encontro segmentos que resistem de tal modo que quando falam parecem poetas do devir. Pode-se encontrar uma forma de luta que politiza a produção, por exemplo nas comunidades em que a agroecologia ataca a prática do envenenamento hegemônico e que começam a demonstrar na colheita que sua forma de produção desmistifica a lógica da produtividade. E nesta hora pode-se ver em que medida a agricultura familiar que estou tentando problematizar pode ser também em determinadas condições e situações, pensada como uma comunidade geradora de uma ação social na qual chegue ao limite de se fazer quando em luta, a classe. E, nesta medida, para mim também poderia ser pensada como formadora de modos anticapitalistas de reprodução da vida, tanto quanto as populações tradicionais e originárias tendem a ser. Eu não deduzi essa afirmação olhando para a maior parte desses casos mas acho que valorizei e valorizo até agora a importância de um reconhecimento de algumas formas interessantes ainda que minoritárias que tenham esse potencial quando percebidas em momentos cíclicos ou pontuais - para mim não importa isso, mas o fato incrível de que é possível sim encontrar comunidades onde a reprodução da vida subverte normas dominantes e ainda revela sujeitos raros e que fazem muita diferença! Então, agora que já problematizei e apresentei minhas premissas de raciocínio definidas a partir de minas investigações empíricas em diferentes regiões e conjunturas posso finalmente te responder e vamos lá. Na minha opinião, e tendo em vista tudo que disse até agora, de forma alguma o abandono da pluriatividade é a chave explicativa da melhoria das condições de vida. A pergunta a ser feita é: que agricultura está sendo praticada? Se é uma agricultura nos moldes da agricultura dominante baseada em grandes extensões de terra ou se é uma agricultura baseada em uma estrutura familiar, sem a presença de exploração do trabalho, sem a presença de um empregado. Primeiro há que se ver isso. Segundo, para acompanhar a pergunta, há que se ver que leite é esse? É um leite envenenado? Com hormônio? Se ele for, a gente está falando aqui de duas coisas importantes. Primeiro, que a agricultura familiar para entrar no mercado de venda de produtos, ela tem que se integrar ao grande capital porque ela não está em uma bolha, e a integração que se dá, é em geral através de um mecanismo de verticalidade onde as cooperativas de leite vão absorver esses pequenos produtores de leite, pequeninas quantidades que somadas representam

muito mais. O livro “Os colonos do vinho”4 por exemplo, é bastante esclarecedor: os produtores de uva se integram verticalmente aos produtores de vinho, passando a compor o chamado complexo agroindustrial. Então, trata-se de uma questão moral: porque é que podendo melhorar a qualidade de vida e a qualidade da renda, os trabalhadores vão se sujeitar a ficar em uma situação pior? Isso a gente não deseja nem para o nosso maior inimigo. Muito cômodo a gente estar sentado na Academia e ficar desejando que o agricultor familiar continue miserável, porém, dignamente situado na bandeira crítica e da esquerda. Segundo: o movimento dos sem-terra é um movimento popular, o que quer dizer que ele ocupa, estabelece o acampamento e depois essa comunidade assentada passa a ter visibilidade diante do Estado, passa a ter uma relação com o Estado mediada por políticas públicas. Então muda a configuração dessa comunidade. Se essa comunidade continua ainda vinculada ao movimento do LCP, MPA, MCC, MPA, ou seja, o movimento que for, para distribuir as suas mercadorias, para se integrar no mercado na via vertical, significa que ela está existindo e se inserindo na economia. E ela não pode deixar de se inserir. Se ela continua ideologicamente e politicamente vinculada a um movimento orgânico, ela vai defender essas bandeiras. Mas isso não quer dizer que o fato de ter melhorado de vida foi determinado pelo fim da pluriatividade, de jeito nenhum. As determinações passam por outros canais. Garanto que uma comunidade que melhora a qualidade de vida, que tem moto, que constrói uma casa melhor, ela consegue realizar a sua produção no mercado e ela pode ainda permanecer ligada ao movimento de classe que se contrapõe ao capital. Acho que esse é o desafio. E como sempre é um desafio de reprodução que está na marca do contraditório. A hegemonia do capital não pode ser subestimada. Como diz o Gramsci, “se o teu inimigo é tão pequenino e tão fraco, como é que ele lhe domina até hoje?”. Respondendo a sua pergunta: ela pode ser, portanto, uma agricultura bem realizada que entrou no mercado, mas continua vinculada ao movimento popular. Ou uma agricultura familiar, de base familiar, bem realizada que entrou no mercado, se subordinou e perdeu seu vínculo atávico, político e ideológico com o movimento popular. Essa é a pergunta que se deve fazer.


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4 TAVARES DOS SANTOS, José Vicente, Os Colonos do vinho: estudo sobre a subordinação do trabalho camponês ao capital. São Paulo, Hucitec, 1978.

Trabalho Necessário: O Dicionário da Educação do Campo publicado em 2012 pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e Expressão Popular, traz uma diferenciação entre “agricultura camponesa” e “agricultura familiar” que nos parece muito salutar entendê-la. Professora, como você entende esses dois modos de se fazer agricultura?

Ana Motta: Considero que essa questão diz respeito a uma classificação que vai se estabelecer a partir de uma análise e da explicação que a gente pode oferecer a partir da Academia. Porque na verdade, a agricultura familiar pode se traduzir em agricultura camponesa quando ela está em seu momento de luta política. O fato dela ser camponesa e ser agricultura familiar, respeitando a diferenciação brilhante feita pelos autores do Dicionário, significa que quando ela é camponesa ela se reveste de uma autodenominação de segmento e luta. Quando ela se diz familiar, ela se reveste de um projeto político mercadológico de entrada no sistema da produção. O que interessa entre as duas, o que elas se igualam não importa como se designam, é que a agricultura familiar tem de comum e exceção o fato de que dentro dela não existe empregado, não existe trabalhador explorado. Por isso ela é diferente. Tanto a camponesa quanto a familiar, ambas são diferentes e diversas à agricultura empresarial. E assentadas em tamanhos de terra pequenos. E pode ser ou não articulado a um projeto político orgânico. Mas isso está em permanente movimento na realidade e ver e observar isso é o desafio da sociologia militante ou Sociologia Viva como chamo atualmente a partir de uma síntese de meu próprio investimento acumulado em pesquisa empírica ao longo de minha trajetória.

Trabalho Necessário: Em junho de 2018, durante o VIII Simpósio Sobre Reforma Agrária e Questões Rurais realizado em Araraquara, você dizia que há “uma espécie de apagamento sociológico” que visa reduzir a importância dos movimentos sociais do campo e a luta pela Reforma Agrária. Como se dá esse apagamento sociológico? Quem produz esse apagamento? Quais os interesses que estão em jogo?

Ana Motta: Eu teria alguns exemplos importantes para colocar. Primeiro o caso de Canudos, onde houve um grande conflito aqui no Brasil. Canudos foi afogado para a construção de uma barragem. A igreja de Canudos ficou sufocada e afogada pelas águas cercadas pela barragem e assim se produziu uma amnésia na memória da resistência popular quando qualquer marca e registro dessa história desapareceu como resultado de mais um dos projetos “desenvolvimentistas” empreendidos pela

Ditadura Militar e que custaram muito caro em termos de dívida externa e mal foram concluídos. O interessante dessa história, sociologicamente falando, é que parece que há uma resistência eterna e permanente que é bastante viva. Curiosamente parece que ninguém sabia, mas na época do governo Fernando Henrique Cardoso apareceu a torre da igreja quando as águas baixaram. Quando essa torre apareceu, no espaço de 24 horas, tinham mais de 500 pessoas naquele entorno. Em contato com essas pessoas, alguns pesquisadores descobriram que havia um grupo de vigilância desde que a torre foi afogada. Então eles permaneceram observando o dia em que ela voltaria, pois a lenda dizia que aquela torre voltaria e que a igreja iria aparecer novamente e que ninguém ia sumir com ela. Com este exemplo, estou tentando dizer que um grupo social reage a uma experiência de afogamento, ou seja, reage ao apagamento da experiência social. Outro caso é o de Serra Queimada, o projeto de barragem a ser construída no rio Guapiaçu que, não por acaso, atingiria um número pequeno de fazendas e, ao mesmo tempo, alagaria e afogaria cerca de 8 a 10 assentamentos de trabalhadores rurais. Entre eles São José da Boa Morte, a primeira grande luta pela terra no estado do Rio de Janeiro e uma das mais importantes de todo o país. A resistência contra a barragem, então acabou se traduzindo não apenas na resistência das populações vivas e que atualmente residem nesses assentamentos, como em uma resistência contra o apagamento dessa memória ou o apagamento de sua própria história, da sua existência. É isto o que estou chamando de “apagamento sociológico”. Esses dois exemplos dão uma ideia da qualificação que eu quero dar a essa categoria.

Trabalho Necessário: Ainda sobre o VIII Simpósio Sobre Reforma Agrária e Questões Rurais, você apresentou uma proposta de construção de uma Rede Latino-Americana de Observatórios Fundiários. Em que consiste e como anda essa proposta?

Ana Motta: Sim, apresentei uma proposta de elaboração de uma Rede Latino Americana de Observatórios Fundiários. Fizemos contatos e articulação com pesquisadores que trabalham com conflitos sociais. O objetivo seria juntar pesquisadores, registros, acervos focando situações de conflitos na América Latina. Esse passo aconteceu ali, naquele VIII simpósio, o que resultou em um artigo para a revista Retratos de Assentamentos. Depois fomos ao Chile, Argentina e México. No Brasil percorremos alguns núcleos de pesquisa, como por exemplo, o Geografar, da

Bahia ao lado da professora Guiomar Inez Germani. Pesquisamos também com a Profa. Cristina Alencar, da Universidade Católica em Salvador (UCSAL). Fizemos contato e articulamos com a discussão sobre estudos e uma substantiva pesquisa sobre os índios guaranis com a professora Gabriela Peixoto Coelho de Souza da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e apresentamos a proposta formalmente no encontro presencial da Rede de Estudos Rurais, tradicional fórum de debate e exposição de pesquisas no âmbito da realidade rural. Assim, tentamos reunir cabeças, pesquisas, núcleos, enfim projetos e programas de pós-graduação focados em situações de conflito no campo. E isso ainda está em curso e conta hoje com 20 núcleos articulados que aceitaram a proposta, tanto do ambiente acadêmico quanto de entidades ligadas aos movimentos de assessoria popular ou diretamente de movimentos sociais organizados do campo no âmbito latino americano, como por exemplo, grupos de gestão comunitária da água do México que envolvem organizações semelhantes na Colômbia, Peru e Bolívia.

Trabalho Necessário: Quais os desafios das Universidades Públicas e dos Institutos Federais na mediação e assessoria as lutas sociais das populações que vivem em situação de conflito socioambiental e agrário?

Ana Motta: Em primeiro lugar, a universidade pública, assim como os Institutos Federais públicos tem ensino, pesquisa e extensão. Portanto, a integração dessas três funções permite que, simultaneamente, quando se estuda uma realidade social através de pesquisa, também possamos produzir registros que qualifiquem melhor o ensino. Por outro lado, na medida em que você tem um ensino mais pautado pela realidade, articulado á pesquisas de e atividades de extensão, você pode também, ao mesmo tempo criar uma relação de troca através da qual seja possível oferecer apoios e consultorias a populações que passam por situações de conflito. Por que a universidade pública tem o papel de dar, de fazer esse tipo de consultoria, de assessoria? É claro que isso se traduz numa vocação e define objetivos públicos dado que a universidade e do mesmo modo que se constitui um acervo útil á população em geral, também existem setores que se voltam para assessorar empresas e empresários na produção de novos produtos e formas de fazer, de tecnologia etc. No caso específico das áreas humanas, há uma tendência muito grande de produção de laudos que vão garantir a permanência de quilombolas e indígenas na terra, de laudos antropológicos, laudos multidisciplinares etc. Também

é importante que se diga que, na medida em que a gente produz esse tipo de assessoria qualificada, a gente também modifica a universidade, traz para dentro dela um conhecimento que a gente vai chamar de “ativo” e bastante atualizado. Então, é esse caminho duplo e dialético entre conhecer e ensinar , entre pesquisador e pesquisado, entre assessor e assessorado que caracteriza, em minha opinião, essa extraordinária capacidade viva, e, no caso da sua pergunta, que permite a possibilidade de se oferecer consultoria e assessoria a grupos e comunidades despossuídas que passam por situações de vulnerabilidade ou em situações de conflito. Uma tarefa que a Universidade como ente público e agencia estatal que é precisa se comprometer em praticar e oferecer até como compensação social

Trabalho Necessário: Afinal o que é “Sociologia Viva”?


Ana Motta: Nos caminhos percorridos para construção da Rede Latino-americana de Observatórios Fundiários e Situação de Conflitos, acabei chegando no México, onde eu fiquei por quase 5 meses como professora visitante da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla, em um grupo de pesquisa chamado “Entramados Comunitarios e Formas de lo Político”, coordenado pelas professoras Raquel Gutierrez, Mina Navarro e Lucia Linsalata. Elas trabalham a partir de referenciais teórico-metodológicos bastante instigantes. Considero que naquela ocasião, formulei o que eu chamo hoje de uma proposta de Sociologia Viva, que é vértice de minha trajetória acadêmico-militante na universidade pública no Brasil, depois de 42 anos. Para que eu possa dizer o que é Sociologia Viva, preciso explicitar seus pressupostos. O primeiro pressuposto da Sociologia Viva é que ela tem que estar determinada e baseada em experiencias empíricas, documentais e de preferência calcada em trabalho de campo. Trabalho de campo organizado com metodologias participativas do tipo pesquisa-ação, pesquisa-luta ou pesquisa participante. Ou seja, aquele tipo de pesquisa que entra na realidade para aprender com a realidade, para entender a gênese histórica dos processos que se vê, para contextualizar e interpretar os documentos e registros em suas diversas narrativas e formulações, populares ou cultas e instruídas de modo igual em termos de valor de memória social, para traduzir as experiências, para dar voz aos segmentos vulnerabilizados, apagados e silenciados na sociedade brasileira e que são parte do grupo de subalternizados de modos singulares pelo capitalismo latino-americano e

que está fortemente presente no campo. Para traduzir suas pautas de interesses e lutas no combate e no contraste com o capital e, de alguma maneira, ao dar visibilidade a experiência viva, à experiência real cotidiana, o pesquisador volta modificado. Por ter entrado na realidade, o pesquisador também modificou essa realidade. Então, como já havia dito, acontece uma relação dialética tensa e contraditória, nada pacífica ou linear entre sujeito-conhecimento-pesquisador e o objeto-conhecimento, que transforma o sujeito-conhecimento-pesquisador em objeto daqueles que ele está estudando, porque ele é questionado, é problematizado por esse objeto e transforma o seu objeto de estudo, os segmentos subalternizados. Na verdade, seria o seu objeto principal, na iminência de uma possibilidade que ele tenha um protagonismo tal, que ele devore o próprio pesquisador e transforme esse pesquisador também no seu objeto de perguntas, de demandas e de solicitação de espaço, de registro, de memória, etc. Então, é essa tensão estabelecida na qual o pesquisador não tem que pensar nos subalternizados como sempre corretos, sempre os que estariam certos e são bonzinhos, já que o pesquisador da Sociologia Viva é portador de uma teoria crítica, que serve também como uma ferramenta de luta e ele quer entender em que medida os segmentos subalternizados compreendem essa teoria crítica como ferramenta. Algumas vezes os segmentos subalternizados precisam ser chamados a atenção, por que não? Do contrário, aceitá-los a priori como donos da verdade seria uma atitude populista. Mas quando a gente pensa que eles também podem ser sabatinados e questionados, a gente entende quando eles nos sabatinam, nos questionam e nos problematizam. Então, é esse caminho de mão dupla, tensionado, contraditório que constitui a Sociologia Viva a partir de investigações empíricas sobre as experiências de homens e mulheres, velhos, crianças, enfim, de seres vivos e reais. A ida ao México me trouxe toda uma pauta e um caminho teórico-metodológico interessante, construídos no diálogo entre a minha produção teórica acumulada coletivamente no Observatório Fundiário Fluminense e a produção do Entramados, que também fez parte de nosso processo de articulação de pares para uma possível constituição da Rede Latino Americana. Descobrimos que deveríamos trabalhar com três dimensões epistêmicas essenciais. A primeira delas o capital; a segunda, o patriarcalismo e a terceira, a colonização: ou seja, C-P-C. Essa é a matriz da reflexão que a gente precisa fazer a contrapelo. Em segundo lugar, a ideia de que o estadocentrismo tem que ser

rompido porque ele corresponde à produção de um bloqueio epistemológico ao pensamento sobre o social. O social tem uma démarche própria e tem uma dinâmica que vai para além do capital. Que precisa ser demarcada como relação social historicamente determinada. A meu ver, o capital não apenas subordina e torna pacífico o segmento subalternizado. Mas a experiência do subalternizado vai além dele quanto entra em estado de resistência e se coletiviza e então produz formas anticapitalistas de reprodução da sua vida material e imaterial, uma forma de ação que hoje estamos chamando de “o Comum”. Esse Comum explica falas e agencias que podem acontecer apesar ou contra o Estado que em geral os rejeita ou os abandona. Muitas vezes, acontecem movimentos que apresentam a sociabilidade e a ação social ultrapassando a necessidade de um Estado, de um direito burguês, de um Estado burguês constituído. Acho que a ideia de olhar para perceber que ele foi colonizado, e que apesar de ser colonizado, não é apenas e univocamente isso, mas esse comunal é alguma coisa que tem uma historicidade, um modo próprio onde o social não se define exclusivamente pelo Estado. Uma experiência que em alguma medida se resolve e se constitui a contrapelo do “status quo”, mesmo apesar de estar subsumida ao sistema hegemônico. Uma forma de viver a vida social que vai além, que também sugere outros modos de vida, em momentos determinados expondo mais ou menos claramente sua contradição, maior ou menor. Um modo de reprodução que propõe outras formas de vida que são mais harmônicas e integradas ao ambiente natural e a natureza humana do homem. Formas dinâmicas, que chegam a ser mais solidárias, e estão em processo de acontecimento ao mesmo tempo em que são subordinadas e oprimidas, porque são mais do que isso, do que opressão! Quando lutam as comunidades em resistência tornam-se “classe”. Na minha opinião a experiência crítica deve ser mapeada em sua diversidade por uma sociologia sensível à dialética e que seja cada vez mais participativa e interativa. Acho que é isso o que o grupo do México com quem aprendi muito, está tentando mapear: esse “Comum”. Minha proposta foi a de chegar a um acordo de compreensão entre tradições de pesquisa em diálogo que penso ter conseguido encaminhar. Resultando numa espécie de divisão territorial do pensamento, no qual, o grupo brasileiro do OBFF poderia ser identificado como o intelectual coletivo que trabalha com o estudo de situações de conflito, cuja reflexão participativa se centraria na denúncia do “despojo”/esbulho provocado pelo capital e que em

contrapartida gera e formula estratégias e táticas de resistência. E o grupo ENTRAMADOS, do México, de uma maneira mais ampla já avança pelo mapeamento de formas anticapitalistas de produção da vida adotando ferramentas mais independentes de observação e de percepção focadas especificamente nas teorias críticas e marxistas que apenas reagem na mesma estrutura paradigmática onde o sistema tem domínio. O acumulo da produção do grupo Entramados me pareceu chamar a atenção do pesquisador no sentido de explorar outros processos não instituídos na modernidade burguesa, e para a importância de abrir o olhar o pensamento, começando por um forte exercício de descolonização acadêmica- inclusive do materialismo histórico dialético institucionalizado- para que se possa chegar á construção de novas e outras ferramentas de saber não necessariamente produzidas nas oficinas oficiais do ofício universitário para que se possa, voltando á Teoria Crítica em processo de produção nas “ruas” e através de diferentes e diversos saberes, seja possível reconhecer como concreto uma definição do mundo popular, de fato, “desde abajo” e como possibilidade real que já se constitui fora do modo de produção e reprodução do capital. A crise global do capital oferece as condições objetivas e subjetivas para a emergência desses processos de conhecimento e de acontecimento da vida social. Juntando as tradições a partir deste diálogo Brasil – México foi que consegui ampliar a proposta da SOCIOLOGIA VIVA. Afinal, se cotidianamente lutamos e resistimos como investigadores militantes e se a gente - sem negar pretensiosamente o sistema hegemônico- mas busca uma transformação contra hegemônica em gotas ou miúda de cada dia, então acho que é isso: como é que nós vamos modelar esse outro mundo? Ele já está sendo produzido e desenhado na categoria que chamamos hoje de “o Comum”. Para isso é necessário não apenas, olhar a contrapelo do capital pelas lutas e conflitos, mas também olhar o mundo com pressupostos epistemológicos dialéticos mais severos: através de uma epistemologia descolonizadora; feminista e anti-patriarcalista; antirracista e abolicionista. Enfim, acho que essas coisas constituíram o amálgama do que eu poderia chamar hoje, e me sinto muito bem situada e tranquila em relação a esses paradigmas e a essa maneira de construção do pensamento na sociologia crítica, o que eu poderia hoje chamar de SOCIOLOGIA VIVA, um lugar para onde eu trouxe e está chegando a minha própria trajetória. Agradeço o convite à entrevista.