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v.17, nº3 3, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


O PERCURSO HISTÓRICO DA PEDAGOGIA 6DO SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM INDUSTRIAL DO ESPÍRITO SANTO DE 1952 A 20021


Zilka Teixeira2 Marcelo Lima3


RESUMO

Neste artigo visamos analisar o percurso histórico da pedagogia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Espírito Santo (Senai-ES), de 1952 a 2002, operando com o pensamento crítico de base marxista. Essa reconstrução baseou-se na pesquisa bibliográfica e documental, fazendo emergir uma periodização dos modelos de formação profissional adotados pela instituição, centrados no aprender a fazer fazendo da Série Metódica Ocupacional; no aprender a ser da Formação para o Projeto e a Transferência; e no aprender a aprender da Formação Profissional Baseada em Competências.

Palavras-chave: Educação Profissional; História da Instituição; Práticas Pedagógicas.


EL PERCURSO HISTÓRICO DE LA PEDAGOGÍA DEL ERAVZO NACIONAL DE APRENDIZAJE INDUSTRIAL DEL ESPÍRITU SANTO DE 1952 A 2002

RESUMEN

En este artículo pretendemos analizar el recorrido histórico de la pedagogía del Servicio Nacional de Aprendizaje Industrial del Espíritu Santo (Senai-ES), de 1952 a 2002, operando con el pensamiento crítico de base marxista. Esta reconstrucción se basó en la investigación bibliográfica y documental, haciendo emerger una periodización de los modelos de formación profesional adoptados por la institución, centrados en el aprendizaje a hacer haciendo la Serie Metódica Ocupacional; en el aprendizaje a ser de la Formación para el Proyecto y la Transferencia; y en el aprendizaje a aprender de la Formación Profesional Basada en Competencias.

Palabras clave: Educación Profesional; Historia de la Institución; Prácticas pedagógicas.


THE HISTORICAL TRACK OF THE PEDAGOGY OF THE NATIONAL ERVICE OF INDUSTRIAL LEARNING OF THE ESPÍRITO SANTO OF 1952 TO 2002

SUMMARY

In this article we aim to analyze the historical course of the pedagogy of the National Service of Industrial Learning of the Espírito Santo (Senai-ES), from 1952 to 2002, operating with critical thinking based on Marxism. This reconstruction was based on the bibliographical and documentary research, giving rise to a periodization of the professional training models adopted by the institution, centered on learning to do doing the Occupational Methodological Series; in learning to be from Project and Transfer Training; and in learning to learn from Competency-Based Vocational Training.

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Key words: Professional Education; History of the Institution; Pedagogical practices.


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1 Artigo recebido em 09/02/19. Primeira Avaliação em 27/03/19. Segunda avaliação em 04/04/19. Terceira avaliação em 18/04/19. Aprovado em 20/06/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29377.

2Pedagoga e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), membro do Grupo de Estudos em Gestão, Trabalho e Avaliação Educacional (Getae-Ufes), vinculado ao Laboratório de Gestão da Educação Básica do Espírito Santo (Lagebes-Ufes) (Orcid - https://orcid.org/ 0000-0002-2241-4517).

3 Pedagogo e Mestre em Educação pela Ufes, Doutor com pós doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), docente do Departamento de Educação, Política e Sociedade do Centro de Educação (DEPS-CE-Ufes) e membro do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-Ufes), do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação

(Neddate-Ufes) e do Getae/Lagebes/Ufes (Orcid - https://orcid.org/0000-0002-7448-8366).



Introdução


Nas sociedades capitalistas de países periféricos, como o Brasil, a educação escolar não possibilitou aos indivíduos, de forma universalizada, o acesso a todos os níveis, formas e modalidades de ensino, reproduzindo, na maioria das vezes, a estrutura social pela via da dualidade educacional: às elites, o ensino propedêutico para o trabalho intelectual; e, aos mais pobres, o ensino profissional (correcional e assistencialista) para o trabalho manual.


[...] no início do século XX, a classe dominante buscou inserir o Brasil na civilização ocidental por meio de uma sistemática política de imigração em detrimento da emancipação cultural-econômica da população composta, em sua maioria, por ex-escravizados. Quando essa política foi dificultada, especialmente pela participação ativa de alguns desses imigrantes nos conflitos de classe, o país precisou olhar para a massa desescolarizada, a qual havia abandonado à própria sorte, e prepará-la, às pressas, para a atividade industrial urbana emergente (BOMENY, 2003).


Assim, o trabalho moderno trouxe novos contornos à questão da educação: a escolarização e a formação para o trabalho tornaram-se problemas. Ademais, as mudanças nos processos produtivos decorrentes da introdução da racionalização do trabalho (taylorismo-fordismo) fizeram necessárias transformações na oferta escolar.

Experiências como a do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo (LAO-SP), a partir de 1924, efetuaram enormes alterações no ensino profissional, culminando em mudanças estruturais nas concepções educativas vigentes. No ensino profissional, passou-se a enfatizar o ensino metódico, a disciplina na execução do trabalho, a singularização das funções e a seleção de alunos segundo fundamentos do taylorismo e da psicotécnica.

No mesmo período, a Reforma Capanema, do Ministério da Educação e da Saúde Pública, produziu um programa de mudanças educacionais com o objetivo de “[...] criar uma unidade de orientação, de sistematizar um conjunto de procedimentos que fossem referência em todo país” (BOMENY, 2003, p. 52).

Nesse bojo, é criado pelo Decreto-lei nº 4.048/1942, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), para preparar a força de trabalho para a indústria, inspirado no LAO-SP e no Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional de São Paulo (Cefesp), criado em 1934, que empregava métodos racionais de seleção de alunos e formação pelo ensino metódico. Desse modo, o Senai constituiu-se,

historicamente, num importante espaço paraestatal de ensino industrial, assumindo papel de destaque na formação da mão de obra industrial brasileira.

Considerando a importância do Senai para a formação profissional no Brasil, examinamos o percurso histórico de sua pedagogia no Espírito Santo (Senai-ES), de 1952 a 2002. Para tanto, elegemos a categoria modelos de formação profissional do Senai, que nos permite classificar, historicamente, sua prática pedagógica, tomando como principais elementos estruturantes objetivos educativos, conteúdos e metodologia de ensino, público-alvo, duração dos cursos e áreas profissionais.

Segundo Fontes (1997), a ideia de modelo visa “[...] representar relações ou funções que ligam as unidades de um sistema” (p. 356) que, por sua vez, constitui- se por inter-relações e entrelaçamentos de elementos, perfazendo um determinado conjunto. Assim, ao construir um modelo, parte-se do pressuposto de que uma generalização prévia deve permitir, ainda de acordo com Fontes (1997), “[...] uma explicação abrangente de um fenômeno ou grupo de fenômenos” (p. 356). Mas, ainda que um modelo jamais seja idêntico à realidade observada, permite-nos, em consonância com o que nos diz o autor, “[...] captar a dinâmica – movimento de um conjunto – ou estrutura – formas de articulação de um grupo de fenômenos” (p. 356). Assim, ao estabelecermos os modelos de formação profissional do Senai-ES, buscamos capturar o movimento da realidade por meio de uma elaboração cognitiva, fazendo dialogar nossa base teórica com os dados empíricos relativos aos objetivos educativos, aos conteúdos e à metodologia de ensino, ao público-alvo, à duração dos cursos e às áreas profissionais que se apresentam ao longo do tempo e que nos

permitem realizar uma classificação histórica das práticas pedagógicas.

Desse modo, focamos nosso estudo nos seguintes aspectos: a) processos históricos de formulação das Séries Metódicas Ocupacionais (SMO), base da pedagogia do Senai; sua implementação e suas evoluções no ES durante o período de 1952 a 1992, considerando a relação objetivos / conteúdos / métodos / público- alvo e; b) a “crise” desse modelo face às mudanças na produção pós-fordista, e as estratégias implementadas pelo Senai visando à superação da SMO: o Modelo Formação para o Projeto e a Transferência (Petra) e a Formação Profissional Baseada em Competências (FPBC), bem como as implicações dessas mudanças no Senai do Espírito Santo, no período de 1992 a 2002. Essa periodização emerge de dois importantes marcos temporais que estruturam o percurso histórico institucional

que se origina na criação do Senai no Espírito Santo, em 1952, e na decorrente implementação das SMOs, e se conclui na oficialização da FPBC, em 2002.

Para descrever esse trajeto, operamos com as definições de modelos de formação (monotécnica e multitécnica). Conceituamos formação monotécnica como aquela voltada para a preparação para uma ocupação derivada ou pertencente a uma profissão mais ampla (da profissão de mecânico geral, por exemplo, derivam-se as ocupações de torneiro, soldador, ajustador, caldeireiro, serralheiro etc.). Essa formação contempla cursos com duração variável entre 200 e 800 horas, voltados para o público adulto em processo de formação inicial, de requalificação e de

aperfeiçoamento profissional e, não garante, na mesma matrícula e espaço formativo, integração ou articulação com os processos de escolarização, exigindo, às vezes, apenas a conclusão dos anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano) para fins de (re)inserção e/ou de permanência no emprego/posto de trabalho.

A formação multitécnica, aqui considerada, é voltada para a formação de uma profissão principal ou para agrupamentos de ocupações da mesma profissão (a profissão de mecânico industrial inclui as ocupações de torneiro, soldador, ajustador, caldeireiro, serralheiro ou combinações entre essas). De forma geral, tem duração de 800 a 1.200 horas e seu público-alvo são jovens em processos de formação básica ou técnica. Da mesma forma que os cursos monotécnicos, também não garantem a integração (na mesma matrícula e espaço formativo) com processos de escolarização, mas possibilitam sua articulação (com duas matrículas em um ou mais espaços formativos), exigindo, na maioria das vezes, a conclusão do ensino fundamental (1º ao 9º ano) para inserção no emprego/posto de trabalho.

Em nossa orientação teórica, a base de toda ordem social assenta-se sobre sua produção e caracteriza-se pelo movimento do pensamento produzido a partir das condições materiais de existência dos homens e das relações que delas decorrem. Nessa perspectiva, as causas de quaisquer mudanças sociais devem ser buscadas nos modos de produção e em seus intercâmbios.

Tomando como ponto de partida o desenvolvimento da vida material e da produção social da existência, buscamos elaborar um conhecimento histórico no sentido de captar as articulações sociais e temporais dos elementos constitutivos do objeto de pesquisa e, para tanto, tentamos dar conta de suas inúmeras articulações e relações de determinação.

Durante a pesquisa, nossa investigação percorreu um acervo pouco organizado, disperso e sem cronologia, mas, na medida do possível, mapeamos, analisamos e comparamos as diversas fontes, cujos valores históricos foram determinados, inicialmente, pela qualidade e pela precisão das informações. A relevância de cada fonte foi sendo estabelecida tendo em vista a vinculação dos registros históricos com os processos de formulação e a implementação dos modelos de formação profissional do Senai, em âmbitos nacional e local.

Consideramos nas análises das fontes que todo “[...] documento é sempre portador de um discurso que não pode ser visto como algo transparente” (CARDOSO; VAINFAs, 1997, p. 378). Desse modo, visando estabelecer relação dos documentos com o processo histórico em tela, sempre que possível, buscamos entender as conexões entre as continuidades e descontinuidades apresentadas. Para isso, buscamos analisar cada fonte apurando, quando possível, o maior número de aspectos que a constituem, problematizando seu discurso e relacionando seu conteúdo com outros documentos e com um contexto mais amplo.

Por isso, com foco na reconstrução histórica local, procedemos na busca e identificação das principais fontes locais. Nesse sentido, destacamos seguintes documentos: relatórios anuais de gestão (1955-1993), boletins gerenciais (1994- 2002), registros escolares, fotografias e imagens das unidades de ensino e documentos publicados em 1987, 1998 e 2001, constitutivos da memória da instituição. Com o mesmo teor descritivo e formal dos documentos nacionais, os registros locais relatam atividades do Senai-ES, buscando a convergência dos serviços prestados pela instituição com os interesses dos industriais.

Tomando cada fonte na sua forma e conteúdo, levando em consideração sua relação com os demais elementos da memória disponíveis, buscamos estabelecer criticamente seu valor histórico. Os materiais sobre a SMO, o Petra e a FPBC nos forneceram o desenvolvimento histórico das bases explicativas da pedagogia do Senai e de seus modelos de formação profissional. Os relatórios de gestão, boletins gerenciais do Senai-ES, registros escolares, fotografias e imagens das unidades de ensino nos permitiram delinear a historicidade da oferta escolar, do público alvo, do currículo. Tais referenciais materializaram o registro, ao longo do tempo, da prática educativa da instituição no contexto do espaço do estado do Espírito Santo.

Permeando o movimento da realidade que se explica com base na sua história, pudemos observar o deslocamento dos objetivos educacionais permitindo, assim, uma classificação das ações da instituição em uma periodização.

Nesta pesquisa partimos da compreensão da historiografia como produto da história, produção intelectual que pressupõe a existência social de um historiógrafo, revelando, de certo modo, sua subjetividade. Entendemos a historiografia como “[...] uma espécie de prática cultural e de estrutura mental, [...] uma apresentação elaborada do passado, limitada ao meio da escrita, com suas possibilidades e restrições” (MALERBA, 2006, p. 22). Assim, com essa forma específica de manifestar a consciência histórica, apresentamos a trajetória do Senai-ES de forma cronológica.

Destarte, consideramos que a história dos grupos, classes sociais, famílias, indivíduos e instituições, dentre outros, tem seu sentido na produção da existência humana, reconhecendo-se nos acontecimentos situados em tempos e espaços determinados. Assim, tomamos a história como processo e método, tendo como referencial a história como produção da existência dos homens em sociedade e, como ponto fulcral, as mediações que constituem os fenômenos que fundam os diversos processos da produção humana no tempo e no espaço.


Os modelos de formação profissional baseados em Séries Metódicas Ocupacionais


As SMOs originam-se numa matriz pedagógica de origem russa, desenvolvida por Victor Della-Vos, denominada método analítico. Essa concepção inaugurou a separação entre oficinas de produção e oficinas de aprendizagem, estruturou o ensino prático considerando o grau de complexidade das tarefas desenvolvidas pelos aprendizes e instituiu o sobrepujamento da fábrica-escola pela implantação da escola-fábrica. Ademais, o método russo propõe a superação da aprendizagem espontânea ocorrida no interior dos espaços produtivos, estabelecendo uma formação sistemática a ser realizada em espaços formativos que simulam, de modo fiel, os ambientes profissionais das ocupações para as quais se quer formar.

No Brasil, esse modelo tem suas primeiras aplicações no ensino de ofícios ligados à construção civil, na década de 1890, no LAO-SP. Na década de 1920, Roberto Mange, então diretor do Liceu, iniciou experiências de racionalização desse método na Escola Profissional de Mecânica para atender demandas do setor

ferroviário paulista. Suas experiências pedagógicas incorporaram elementos da racionalização (seleção dos aprendizes e formação metódica para a produção racional), inaugurando, assim, um novo modelo de formação profissional, cujo fito era formar para a produção taylorista-fordista.

As experiências da Escola Profissional de Mecânica foram continuadas no LAO-SP (1924), no Serviço de Ensino e Seleção Profissional (1930) e no Cefesp (1934). Os aprendizes formados no Cefesp poderiam ser direcionados a outras ferrovias ou indústrias que não tivessem condições de arcar com as despesas dos processos de seleção e formação proporcionados na instituição, criando as condições necessárias para a centralidade e uniformidade dos processos de seleção e formação, para que o aprendido na escola servisse às empresas. Em 1942, quando o Senai foi criado, esse desenvolvimento pedagógico, e o próprio Cefesp, foram incorporados pela instituição recém-criada, que preservou e aprimorou o ensino metódico, dando origem às SMOs, sequências de operações desenvolvidas e originadas nas operações mais fáceis em direção às mais difíceis. Tais sequências eram elaboradas a partir das operações representativas de uma ocupação.

Nas SMOs, após a análise ocupacional, as operações são organizadas em sequência didática e preparadas para o ambiente simulado da escola. Um conjunto de SMOs constitui-se de quadro-programa (relação entre tarefas e suas operações), quadro analítico (tarefas e operações a serem realizadas no programa de formação), folha de tarefa (detalhamento da tarefa), folha de operações (detalhamento sobre como realizar as operações) e folha de informações tecnológicas (dados sobre os materiais, máquinas e equipamentos relativos à tarefa). No início dos anos de 1950, o Senai instituiu um método de aplicação das SMOs, a instrução individualizada, com base na pedagogia moderna e estruturada em 4 fases (Figura 1): 1ª) estudo da tarefa; 2ª) demonstração; 3ª) execução da tarefa e; 4ª) avaliação.



Figura 1 – Fases do Método Instrução Individual do Senai


Método de Instrução Individual 1984

Fonte: Senai-DN (1984, p. 21).


A primeira fase consiste no estudo do que será realizado na oficina, podendo ser realizada individualmente, em grupo ou por módulo instrucional, orientada pelo docente e apresentando, como produto, o planejamento da atividade a ser realizada. A segunda, refere-se à demonstração da tarefa pelo docente, realizada de forma direta ou indireta por ele. A terceira é a execução da tarefa pelo aluno, sob supervisão docente e, a avaliação, apesar de surgir como quarta fase, é preconizada como uma ação docente que deve permear todo o processo (Senai, 1984).

Esses processos de desenvolvimento metodológico foram incorporados no Espírito Santo quando, em 1952, o Senai se instalou oficialmente, com um acordo para a formação de aprendizes ferroviários para a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Segundo o Senai-ES (1982), o início das atividades no ES data de 1948, na Escola Ferroviária João Neiva (Figura 2), no município de Ibiraçu.

Figura 2 – Aprendizes ferroviários e o instrutor de aprendizagem em frente à Escola Ferroviária de João Neiva (EFJN) localizada em Ibiraçu-ES no fim dos anos de 1940.


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Fonte: Acervo Nestor Scopel (apud Lima, 2007, p. 37) (autor desconhecido)


Para avaliar a trajetória histórica da prática pedagógica do Senai-ES e demarcar uma periodização, tendo em vista rede física, metodologia e conteúdos de ensino, bem como público-alvo 4 , levamos em conta as principais mudanças institucionais, a saber: instituição do Senai-ES (1952); constituição da autonomia de gestão do DR (1959); reestruturação da aprendizagem industrial para menores em formato multitécnico com educação geral (1973); inauguração da primeira escola com oferta exclusiva de cursos monotécnicos sem formação multitécnica (1981); consolidação e expansão do modelo de aprendizagem sem formação geral e com foco nos cursos monotécnicos; estruturação da formação para o Projeto e a Transferência – Modelo Petra (1992) e; estruturação da Formação Profissional Baseada em Competências (FPBC) como metodologia oficial do Senai (2002).

Com esses marcos, situamos a periodização: a) institucionalização do modelo monotécnico sem formação geral para menores (1952-1959); b) consolidação dos modelos multitécnico com formação geral para menores e monotécnico de qualificação e aperfeiçoamento para jovens e adultos (1959-1981) e; c) declínio do modelo multitécnico com formação geral para menores e fortalecimento do modelo monotécnico de qualificação e aperfeiçoamento de jovens e adultos (1981-1992).


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4 A questão da periodização é complexa e controvertida, pois não está evidente “[...] no próprio movimento objetivo dos fenômenos históricos investigados”, portanto, não é um dado empírico (SAVIANI, 2013, p. 12).

Essa periodização expressa o nosso entendimento sobre como se desenvolveram as mudanças no Senai-ES e sua transição de um período para outro5.

A primeira fase, institucionalização do modelo monotécnico sem formação geral para menores (1952-1959), tem seus principais marcos temporais na constituição do Senai-ES, em 25 de março de 1952, por um acordo firmado com a CVRD, “[...] que emprestou um de seus galpões para sua instalação” (Senai-ES, 1987, p. 5), e sua instituição como Departamento Regional (1959). Esse período é caracterizado pela oferta hegemônica da Aprendizagem Industrial Monotécnica de menores em escolas cedidas pela então CVRD. Assim, iniciaram-se as ações de formação na Escola de Aprendizagem Pedro Nolasco (Figura 3), sita no município de Cariacica-ES, com cursos de aprendizagem de Marcenaria e de Mecânica, além de cursos denominados “preliminares” para nivelamento e seleção de aprendizes.

Figura 3 – Escola de Aprendizagem Pedro Nolasco (1952), em Cariacia-ES.


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Fonte: Lima (2007, p. 53). (autor desconhecido)


No mesmo ano, o Departamento Nacional orientou que as escolas ferroviárias fossem descentralizadas do Departamento Regional de São Paulo (DR-SP). O acordo com a CVRD previu a incorporação da Escola Ferroviária de João Neiva ao Senai-ES, que passou a contar com duas unidades de ensino6 (SENAI-ES, 1982).


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5 Alguns elementos de determinado período são percebidos em outros, pois, os marcos apresentados não representam rupturas com os modelos e práticas que os antecederam.

6 No fim dos anos de 1940, o Cefesp foi incorporado ao Departamento Regional-SP, transformando- se em Divisão de Transportes (Cunha, 2000c, p. 27), passando a prestar serviço de assistência aos departamentos regionais que haviam recebido as escolas ferroviárias. Em 1952, foram elaborados estudos por esse setor para as escolas ferroviárias do Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro (Senai-SP, 2002, p. 41).

O objetivo da formação na fase de institucionalização do modelo monotécnico sem formação geral para menores (1952-1959) era a preparação para um único posto de trabalho, à época: Torneiro Mecânico, Marceneiro, Eletricista, Caldeireiro, Torneiro de Madeira e Ajustador-Torneiro. A matrícula anual nas duas escolas girava em torno de 300 em Aprendizagem Industrial, excluindo-se as matrículas dos cursos preliminares para menores com objetivos de nivelamento de conhecimentos e de seleção para o programa de Aprendizagem Industrial (SENAI-ES, 1955).

Os currículos da Aprendizagem Industrial Monotécnica eram constituídos por disciplinas da educação geral (Português, Matemática e Ciências) e da formação profissional (Tecnologia, Desenho e Prática Profissional), ministradas por diferentes instrutores, inclusive na parte do ensino do ofício (SENAI-ES, 1956, p. 3). As disciplinas teóricas e práticas tinham objetivos claramente definidos. Em Português, o fito era “ensinar o educando a falar com desembaraço e correção”; em Matemática, desenvolver o raciocínio usando problemas reais ligados ao ofício em aprendizagem; em Ciências, conhecer os fenômenos e materiais da natureza, aguçando o interesse pela observação, pelas experiências e pelas matérias-primas industriais; em Tecnologia, apresentar materiais, processos industriais e ferramentas de trabalho, pertinentes ao ofício; em Desenho, introduzir conhecimentos essenciais para a compreensão das peças de trabalho e; em Prática Profissional, a série metódica relativa à ocupação. Todo o processo de ensino era realizado nos ambientes simulados do Senai-ES, sem qualquer tipo de alternância das atividades práticas na empresa contratante dos menores (SENAI-SP, 1992, p. 65).

A figura 4 mostra uma das primeiras fichas individuais de aprendizes da Escola de Aprendizagem Pedro Nolasco, com ingresso no 2º semestre de 1952. Com o 4ª ano da “escola primária”, o ingressante manteve contrato de aprendizagem com a CVRD, de 1952 a 1955, não sendo certificado como aprendiz por não ter sido aprovado em avaliação para certificação de aprendizagem.

Figura 4 – Ficha escolar individual de um ingressante na Aprendizagem Industrial do Senai-ES, na Escola de Aprendizagem Pedro Nolasco (1952-1955).



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Fonte: Escola de Aprendizagem Industrial Pedro Nolasco, Senai-ES.


Em 1955, o SENAI-ES tomou conhecimento da frequência alternada no sistema fábrica-escola (o aluno/aprendiz permanece na escola e na empresa), que se desenhava no SENAI-SP, e implementou o sistema, em 1956: o aluno/aprendiz passou a permanecer na escola Senai nos dois primeiros anos e nas empresas contratantes no terceiro ano (SENAI-ES, 1955, p. 3).

Em 1958, com a criação da Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), o SENAI-ES teve seu Conselho Regional (CR) instituído, condição

necessária para tornar-se autônomo (departamento regional). Em 1959, foram iniciadas turmas de qualificação profissional para adultos (SENAI-ES, 1985).

A segunda fase, a consolidação dos modelos multitécnico com formação geral para menores e monotécnico de qualificação e aperfeiçoamento para jovens e adultos (1959-1981), configura-se no período entre a constituição do DR do Senai- ES (1959) e a criação da primeira unidade sem Aprendizagem Industrial, com oferta exclusiva de cursos de qualificação e aperfeiçoamento profissional (1981).

A instituição do CR do SENAI-ES fez com que sua composição de oferta fosse se modificando, já que esse conselho passou a demandar a ampliação dos cursos de qualificação profissional para adultos e de aperfeiçoamento de seus quadros internos. Esse tipo de oferta foi intensificado, a partir de 1963, pelo financiamento do Programa Intensivo de Preparação da Mão de Obra Industrial (Pipmoi); a partir de 1964, pela instituição da primeira unidade em sede própria localizada em Vitória e; a partir da década de 1970, pela chegada dos grandes investimentos.

No entanto, ao mesmo tempo em que a oferta dos cursos de curta duração crescia, a Aprendizagem Industrial se consolidava como oferta formativa prioritária da instituição. Assim, o SENAI-ES ampliou sua rede física, estruturando unidades nos municípios mais industrializados: Vitória, em 1964 (Figura 05); Cachoeiro de Itapemirim, em 1970; Linhares, em 1973 e; Serra, em 1981 (Figura 06); além disso, organizou diversas unidades móveis a partir de 1970.

Por volta do fim da década de 1960, nacionalmente, o SENAI iniciou mudanças no currículo da Aprendizagem Industrial, adotando a multitecnia. No SENAI-ES, a formação dos aprendizes passou a enfocar os ofícios de Mecânica Geral, Eletricidade, Mecânica de Automóveis e Marcenaria; todos com 3.200 horas no SENAI e 1.980 horas na empresa contratante, perfazendo 5.180 horas totais. Essa reestruturação ampliou o processo formativo para além da preparação monotécnica, ampliando o processo formativo pela inclusão de tarefas típicas do ofício e de suas ocupações derivadas, seja por obedecerem ao mesmo processo industrial, seja por serem executadas nas mesmas máquinas ou ainda por comporem parte do serviço. Enquanto isso, os programas de qualificação tinham carga horária variável entre 200 e 675 horas e os de aperfeiçoamento, entre 10 e 350 horas (SENAI-ES, 1971).

Figura 05 – Centro de Formação Profissional Jerônimo Monteiro (1964).


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Fonte: Acervo SENAI-ES. (autor desconhecido)


Figura 6 – Centro de Formação Profissional Jones dos Santos Neves (1981), de oferta exclusiva de cursos de qualificação e aperfeiçoamento.


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Fonte: SENAI-ES (1987, p. 14)


No contexto da promulgação da Lei Nº 5.692/71, a educação geral supletiva foi incluída no currículo da Aprendizagem Industrial nacional e localmente, possibilitando a elevação da escolaridade. Essa implementação é evidenciada por meio da Resolução nº 38/1973 do Conselho Estadual de Educação (CEE-ES), que aprovou o plano de curso da Aprendizagem Industrial do SENAI-ES com a educação geral supletivada (LIMA, 2007, p. 212). De acordo com o SENAI (1976, p. 12 e 13), e conforme pode-se observar nas figuras 09 e 10, o novo currículo foi organizado com a Educação Geral (Português, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, Ed. Moral e

Cívica, Desenho, Ed. Artística e Educação Física); e com a Formação Especial (Tecnologia e Prática Profissional).

A chegada de grandes investimentos ao estado fez com que a oferta formativa do SENAI fosse modificada. De modo geral, a oferta de cursos (tipo, público, duração e currículo) foi sendo ampliada geograficamente em todo o estado, inclusive pela estruturação de novas unidades fixas. O objetivo era atender à demanda das empresas industriais, especialmente para aperfeiçoamento interno, em diversos cargos e níveis. Nesse período, o SENAI contava com o financiamento do Pipmoi e do Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra (Pipmo) para fomentar a formação dos trabalhadores industriais.

Assim, a formação do tipo monotécnica, com cursos de curta duração, foi se tornando prioritária em detrimento da formação multitécnica com educação geral, especialmente a partir dos anos de 1980.

Figura 7 – Ficha escolar (frente) de um aluno matriculado no Centro de Formação Profissional Jerônimo Monteiro na Aprendizagem Industrial com Supletivo do 1º Grau (Aprendizagem Industrial Multitécnica com Educação Geral).



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Fonte: SENAI-ES.

Figura 8 – Ficha escolar (verso) de um aluno matriculado no Centro de Formação Profissional Jerônimo Monteiro na Aprendizagem Industrial com Supletivo do 1º Grau (Aprendizagem Industrial Multitécnica com Educação Geral).


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Fonte: SENAI-ES.

No SENAI-ES, o período compreendido entre 1959 e 1981 é marcado por uma série de mudanças internas decorrentes do cumprimento de dispositivos legais que vigoraram na ocasião e, especialmente, em função do contexto político e econômico. Em todo estado, é possível notar significativo avanço na oferta das modalidades voltadas à formação e ao aperfeiçoamento dos trabalhadores industriais, focalizando o aumento da produtividade das empresas industriais. Além dessas mudanças, verificam-se importantes implementações curriculares e

metodológicas na Aprendizagem Industrial, tais como a inserção do Ensino Supletivo, a atualização das SMOs e a transformação do programa da Aprendizagem Industrial de monotécnico para multitécnico com educação geral.

Com a intensificação da industrialização no ES, no fim da década de 1970, o SENAI-ES instituiu, no município de Serra, uma unidade cuja oferta formativa compunha-se exclusivamente de cursos de qualificação e aperfeiçoamento de trabalhadores industriais, característicos da formação monotécnica. Essa unidade foi criada em 1981 sem a Aprendizagem Industrial multitécnica com educação geral, indicando uma ruptura com os processos que vinham sendo realizados pela instituição. Esse marco inaugura a terceira fase, o declínio do modelo multitécnico com formação geral para menores e o fortalecimento do modelo monotécnico de qualificação e aperfeiçoamento de jovens e adultos (1981-1992).

Somente em 1984, a escola de Serra passou a ofertar a Aprendizagem Industrial multitécnica, mas sem a educação geral. Nessa escola, os aprendizes cursavam somente a formação profissional (Tecnologia e Prática Profissional), sendo o primeiro ano no SENAI e o segundo na empresa (SENAI-ES, 1984, p. 16). Esse modelo foi implementado, em 1986, no Centro de Formação Albano Franco, em Colatina, e em 1992, no Centro de Formação Profissional Hélcio Rezende Dias, em Vila Velha. A partir de 1987, o SENAI dá início, timidamente, à oferta de cursos técnicos de nível médio (formação multitécnica), na unidade de Vitória. Em 1992, o SENAI-ES oficializou a descontinuidade da oferta da Aprendizagem Industrial Multitécnica com Educação Geral nas escolas de Vitória, Cachoeiro de Itapemirim e Linhares, visando à elevação da venda de serviços educacionais.

Segundo Lima (2007, p. 92), cerca de mil alunos deixaram de receber a educação supletiva de 5ª a 8ª séries, sinalizando um retrocesso na formação promovida pelo SENAI-ES. Além disso, a oferta da Aprendizagem Industrial começa ser reduzida e substituída pela oferta dos cursos de qualificação e aperfeiçoamento profissional (formação monotécnica).


Crise e Reestruturação do Modelo de Formação Profissional do SENAI (1992- 2002)


Na primeira metade da década de 1990, o SENAI rediscute nacionalmente o seu modelo de formação profissional baseado em SMOs, considerando que essas séries haviam sido implementadas para promover e atender à produção taylorista- fordista, num contexto da intensa reestruturação produtiva e inovação tecnológica.

O SENAI-DN (2013, p. 14) assume o discurso da formação polivalente dos trabalhadores industriais, afirmando que diferentes capacidades seriam exigidas dos

trabalhadores na produção fordista e na produção pós-fordista, pois, enquanto a produção fordista requeria a capacidade de cumprir tarefas, a realização de tarefas simples e repetitivas, a disciplina, a obediência às instruções, o trabalho individual e isolado e, os conhecimentos técnicos especializados e limitados, a produção pós- fordista preconizava a necessidade de o trabalhador ter capacidades de iniciativa, de tomada de decisões, de realização de tarefas variadas e complexas, de identificação e resolução de problemas a partir de uma perspectiva global do processo de trabalho, de adaptação às mudanças e de conhecimentos técnicos transferíveis.

Para colocar-se em compasso com a indústria, a instituição deveria reconhecer e superar a “crise” do seu modelo tradicional de formação e buscar a formação de um trabalhador polivalente. Desse modo, o SENAI passou a discutir internamente seu modelo de formação profissional baseado em SMO, buscando reformulá-lo para se adequar à produção flexível, com vistas à formação de um suposto trabalhador industrial polivalente. Para atendimento a essas mudanças decorrentes da produção flexível, os processos formativos deveriam superar a “[...] simples série de atuações constantes” (SENAI-DN, 2013, p. 13-14), passando a ser exigido um “[...] conjunto complexo de conhecimentos e habilidades, muito além do tradicional repertório descritivo das qualificações” (SENAI-DN, 2013, p. 13-14).

Assim, o “fator humano” seria imprescindível para tornar as empresas competitivas em âmbito global. Para o SENAI-DN (2013, p. 9), a realidade socioeconômica apontava a “[...] valorização do capital humano nas organizações”, impondo aos empresários, trabalhadores e governantes e às instituições de formação profissional, uma “[...] busca contínua de novos diferenciais competitivos” (SENAI-DN, 2013, p. 9). Ademais, a instituição estabeleceu que seus DR deveriam pensar soluções para a “crise” de seu modelo pedagógico. Na Região Sudeste, propõe-se a implantação da formação para o Petra como forma complementar às SMOs. Esse modelo de origem alemã visava ao desenvolvimento de “qualidades pessoais”, que deveriam ser agregadas às habilidades psicomotoras7.

Nesse método, após adquirir habilidades manipulativas e conhecimentos suficientes, o aluno deveria realizar um projeto para desenvolvimento das ditas


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7 O Petra surgiu em 1985, na Alemanha, num contexto de instauração de crise no modelo econômico capitalista, com reflexos também no campo educacional, e foi implantando na empresa Siemens, visando preparar um tipo de trabalhador que [...] “apresentasse, além da capacidade técnica, alguns atributos pessoais, que permitissem sua pronta adaptação às mudanças de diversas naturezas” (Senai-SP, 1992, p. 6).

qualidades pessoais. Nesse viés, projeto é “[...] entendido como uma tarefa, com graus variados de complexidade e de difícil solução” (SENAI-SP, 1992, p. 6), e a transferência “[...] significa a aplicação de conhecimentos, habilidades e qualidades pessoais já aprendidos a situações novas ou modificadas” (SENAI-SP, 1992, p. 6).

O SENAI-SP elegeu 39 qualidades pessoais necessárias à formação do trabalhador industrial brasileiro diante dos desafios da década de 1990. Segundo a instituição, essas qualidades não estavam atreladas a conteúdos curriculares específicos e, correspondiam “[...] aos atributos desejáveis ao egresso do SENAI” (SENAI-SP, 1992, p. 7), sendo que se referiam à execução, por parte dos alunos, de atividades individuais e coletivas. As qualidades pessoais selecionadas foram:

[...] autossuficiência, atenção, capacidade de autoavaliação, capacidade de concentração, capacidade de pesquisa, capacidade de planejamento, capacidade de resolução de problemas, capacidade de transferência, compensação de posturas físicas, consciência de qualidade, consciência de segurança, cooperação, coordenação, determinação, disciplina, empatia, envolvimento, expressão oral e escrita, flexibilidade, generalização, imparcialidade, iniciativa, integração, julgamento, leitura e interpretação de desenhos e circuitos, leitura e interpretação de textos, liderança emergencial, manutenção do diálogo, objetividade na argumentação, participação, perseverança, precisão, prontidão para aprender, prontidão para ouvir, racionalização, receptividade, reconhecimento das próprias limitações, utilização de técnicas de aprendizagem, zelo (SENAI-SP, 1992, p. 7).

Após selecionar as qualidades pessoais consideradas necessárias ao contexto brasileiro, o SENAI-SP separou-as em classes, entendendo que isso facilitaria “[...] o planejamento de ações mais eficazes de capacitação de alunos” (SENAI-SP, 1992, p. 8 e 9), fazendo emergir “[...] qualificações-chave, [...] qualidades pessoais que o aluno deve aprender para poder enfrentar futuras alterações tanto no conteúdo do seu trabalho quanto no seu perfil de desempenho” (SENAI-SP, 1992, p.8 e 9). Tais qualificações-chave foram entendidas como imprescindíveis para a “[...] adaptação do trabalhador a mudanças” (SENAI-SP, 1992,

p. 9). Assim, foram estruturadas cinco qualificações-chave para o processo de implantação do modelo: organização e execução do trabalho; comunicação interpessoal; autonomia e responsabilidade; autodesenvolvimento; e resistência a pressão.

Tal implementação demonstrou o primeiro esforço do SENAI-ES, juntamente com os DR de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, no sentido de deslocar seu

modelo pedagógico do “aprender a fazer” para o “aprender a ser”, pela via do desenvolvimento das “qualidades pessoais” selecionadas pela instituição e avaliadas como necessárias à adaptação do aluno SENAI às mudanças em curso na produção industrial. Assim, as cinco “qualificações-chave” selecionadas seriam estimuladas, desenvolvidas e avaliadas por meio de projetos. O SENAI-ES orientou sobre a designação da coordenação do projeto de implantação e a formação do corpo docente da escola escolhida para pilotar a implantação.

Nos documentos, é possível verificar o registro do curso de formação dos instrutores no Centro de Formação Profissional Jones dos Santos Neves, em Serra, no Modelo Petra, em 1994. Cabe destacar que nos relatórios anuais seguintes, não encontramos outros registros que evidenciem a continuidade do processo de implementação do Petra no estado. Encontramos também a Portaria SENAI-ES nº 228/93, designando as coordenações estaduais para a implementação de projetos do plano de ação estratégico do SENAI-ES, dentre os quais o Projeto R-02, que diz respeito ao Petra, que ficou sob coordenação de Antônio Rogério Cola.

Consideramos que ao estabelecer as qualidades pessoais e as qualificações- chave, o SENAI visava instrumentalizar o aluno para as mudanças em curso na produção industrial, mantendo o domínio técnico-prático propiciado pelas SMOs. Inferimos que os atributos relativos ao “saber ser”, de modo geral, sempre foram demandados pelo SENAI quando atuava unicamente na perspectiva do “aprender a fazer fazendo”. O que mudou, nesse novo contexto, parece ter sido a importância dessas qualidades pessoais os alunos conseguirem ou permanecerem no emprego. Destarte, consideramos que, pelo Petra, o SENAI buscava enfatizar uma formação que, de forma transversal, já era uma constante na instituição. Não obstante, a instituição ressignifica alguns atributos à luz das pedagogias em voga no momento, o que mais tarde culminaria na adoção da formação com base em competências.

A partir de 1998, em nível nacional, um grande programa de formação é implementado visando nivelar o conhecimento dos docentes quanto às preconizações da Pedagogia das Competências. Nesse sentido, o DN do SENAI instituiu o Programa de Formação de Formadores (Fofo) e posteriormente, em 2002, organizou, em substituição às SMO, a FPBC, que se constituiu num conjunto de documentos orientadores para estruturar o processo de reformulação do modelo de formação profissional do SENAI, com 4 fases, a saber: Fase 1: Comitê Técnico

Setorial: Estrutura e Funcionamento; Fase 2: Elaboração de Perfis Profissionais; Fase 3: Elaboração de Desenho Curricular baseado em Competências e; Fase 4: Avaliação e Certificação de Competências. Cada documento constituía-se em uma fase da nova metodologia que se foca, sobretudo, no desenvolvimento curricular.

O documento norteador sobre a primeira fase, estruturação e funcionamento de comitê técnico setorial, primeira etapa da metodologia da FPBC, intitulado de “Comitê Técnico Setorial: Estrutura e Funcionamento”, aborda os objetivos e a composição desses comitês, bem como o modo como deveria ser o desenvolvimento de suas atividades8. Esses comitês contribuiriam no processo de “[...] identificação e atualização permanente das competências profissionais dos trabalhadores” (SENAI-DN, 2002b, p. 11), pela via da elaboração de perfis profissionais correspondentes as qualificações profissionais demandadas pelos segmentos industriais. A partir do perfil profissional, seriam elaborados os desenhos curriculares, os instrumentos de avaliação e a certificação de competências.

A segunda fase preconizada nos documentos do SENAI trata da “elaboração de perfis profissionais” e, circunscrito no âmbito do comitê técnico setorial, tenderia a “[...] estabelecer um marco coerente para atualizar e garantir a qualidade da educação profissional, assim como articular a oferta formativa correspondente aos distintos níveis de educação e de qualificação” (SENAI-DN, 2002b, p. 9).

Nessa lógica, o objetivo principal dos comitês, que era elaborar perfis correspondentes a qualificações profissionais industriais, seria consolidado a partir da descrição ideal do saber necessário para realizar, no campo profissional, o trabalho a que se refere a qualificação em análise. A descrição ideal buscava tornar possível a comparação do que estava previsto no perfil e o desempenho real dos profissionais, avaliando-os, assim, como competentes ou não, para dada ocupação.

Para empreender esses perfis, o SENAI (re)conceitua qualificação profissional como “[...] conjunto estruturado de competências com possibilidade de reconhecimento no mercado de trabalho, as quais podem ser adquiridas mediante formação, experiência profissional ou a combinação de ambas” (SENAI-DN, 2002b,

p. 10). Desse modo, a instituição abre portas tanto para a formação baseada em


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8 A técnica de instituição desse fórum de discussão foi desenvolvida pelo Senai do Rio de Janeiro e implementada nacionalmente. Partia da premissa de que os comitês se constituiriam como instrumento capaz de aproximar a formação profissional do Senai ao mercado de trabalho “de modo mais dinâmico que o propiciado pelos levantamentos de dados” (SENAI-DN, 2002b, p. 8).

competências como para a certificação de saberes a partir da mesma base teórica. Por isso, o SENAI recomenda que as qualificações requeridas sejam conceituadas e subdivididas em níveis de ensino, apresentando características que devem representar tanto “[...] uma resposta coerente para certas necessidades presentes e futuras do setor correspondente, quanto um consenso entre os distintos atores envolvidos” (SENAI-DN, 2002b, p. 11); ter nomeação clara e inteligível no mundo do trabalho, tanto para empregados como para empregadores; ter definição de competências e capacidades (técnicas, metodológicas, organizativas e sociais), conforme desempenho profissional e adequado às exigências do mercado de trabalho; guardar equilíbrio entre polivalência e especialização, fazendo com que o egresso seja capaz de adaptar-se a diferentes postos e papéis nas situações de trabalho; apresentar condições para orientar um processo formativo e; viabilizar a certificação total e/ou parcial por parte de uma instituição de formação profissional.

A “elaboração de desenho curricular baseado em competências” é a terceira fase das orientações de implementação do modelo FPBC. Seu documento norteador (Figura 10) foi desenvolvido com vistas a “[...] delinear a oferta formativa referente à qualificação profissional, tendo por base o perfil estabelecido pelo comitê técnico setorial” (SENAI-DN, 2002c, p. 13). Assim, o desenho curricular refere-se a uma “[...] decodificação de informações do mundo do trabalho para o mundo da educação” (SENAI-DN, 2002c, p. 13), que busca, em última instância, traduzir, de forma pedagógica, o que a instituição compreende por competências profissionais.

Figura 10 - Capa da publicação “Metodologia: elaboração de desenho curricular baseado em competências” (2002).


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Fonte: SENAI-DN (2002a).

O desenho curricular preconizado no documento orientador compreende a organização curricular que, preferencialmente, deve ser modular; metodologia de ensino; unidades curriculares e seus objetivos, critérios de avaliação, conteúdos formativos e cargas horárias; sugestões de estratégias pedagógicas e de recursos didáticos e; a caracterização dos ambientes pedagógicos necessários para realização da formação, especificando equipamentos, máquinas, ferramentas, instrumentos e materiais (SENAI-DN, 2002d, p. 13). Por fim, a quarta fase da FPBC trata da “avaliação e certificação por competências”, fase que visa orientar a estruturação do novo modelo de formação profissional9. Segundo o SENAI (2002d),

Tratando-se de avaliação no processo formativo, os seguintes critérios devem ser observados: a avaliação não deve ser um fim em si mesma e, sim, inserir-se como um processo fundamental para o desenvolvimento de competências; a avaliação de competências não deve enfocar aspectos isolados da teoria desvinculados da prática, sem estabelecer relações entre elas. Deve fomentar a resolução de problemas em que seja necessário mobilizar as distintas competências (básicas, específicas e de gestão) requeridas pelo contexto de trabalho; [e] a avaliação de competências, bem como as metodologias e estratégias pedagógicas, deve propiciar a autonomia e a autoavaliação, para que o aluno venha a desempenhar um papel ativo no seu próprio desenvolvimento (SENAI-DN, 2002d, p. 27).


A partir dessas premissas, o SENAI conceitua situação-problema como proposição “[...] hipotética ou não, de ordem teórica ou prática, que envolve elementos relevantes na caracterização de um desempenho profissional, levando a pessoa a mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes na busca de alternativas de solução” (SENAI-DN, 2002d, p. 28). Destarte, a avaliação deveria ser um processo contínuo que comprovasse o domínio das competências desenvolvidas durante o processo formativo.

Nessa perspectiva, o docente deveria considerar a relação entre as unidades curriculares e o perfil profissional, focando nas suas respectivas competências, para verificar o progresso dos alunos, de modo a “[...] suprir carências identificadas e introduzir modificações oportunas que melhorem sempre o processo de ensino e aprendizagem” (SENAI-DN, 2002d, p. 28). As avaliações deveriam ser realizadas tanto por unidade de competência como por unidade de qualificação, sempre tendo em consideração o perfil profissional elaborado pelo comitê técnico setorial.

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9 Optamos por tratar exclusivamente do processo de avaliação por competências, deixando os procedimentos de certificação por competência de fora da análise.

Nesse viés, o SENAI-ES estruturou um planejamento estratégico para o início dos anos 2000, visando à implementação das mudanças trazidas pelo processo de remodelação pedagógica. O documento denominado Ações Integradas 2001 confirma o direcionamento do SENAI-ES quanto à Formação Profissional Baseada em Competências e suas preconizações. Segundo o presidente do Conselho Regional do SENAI à época,


[...] buscando a flexibilidade de sistemas de formação, voltados a ambientes profissionais cada vez mais maleáveis, a instituição [visa] à diversidade e ampliação de sua oferta de produtos ligados à educação profissional e à prestação de serviços às empresas instaladas no Espírito Santo (SENAI-ES, 2002, p. 5).


A partir dessa afirmativa, de maneira especial, a formação profissional passava a ser entendida como um produto à venda no mercado e, para tanto, precisaria assumir modelos mais flexíveis e baratos para serem vendidos, o que indicaria, de certa forma, o tipo de oferta formativa que se tornaria prioritária: os cursos monotécnicos de qualificação e os de aperfeiçoamento profissional, mais rápidos, modelados sob medida e, consequentemente mais baratos.

Desse modo, o SENAI-ES afirma que adotou como estratégia, “[...] desaquecer as modalidades antigas de Aprendizagem para permitir a elaboração paralela de estudos do Novo Modelo de Ensino” (SENAI-ES, 2001, p. 19). O SENAI- ES planejava-se para, a partir de 2002, implementar a FPBC como modelo de formação, “[...] considerando o novo perfil de empregabilidade, baseado na aquisição de competências” (SENAI-ES, 2001, p. 19).

O documento Ações Integradas 2001 confirma, ainda, que a FPBC foi tema de formação continuada dos profissionais das áreas tecnológicas, pedagógicas e de instrução no SENAI-ES. Especialmente no que diz respeito aos docentes, o documento esclarece que, 70 (setenta) dos 90 (noventa) instrutores, participaram das ações de formação nessa linha (SENAI-ES, 2001, p. 33). Portanto, face ao apresentado, inferimos que, com a instituição da FPBC, o SENAI buscou estruturar documentos para orientar seu modelo de formação profissional a partir da noção de competências e focou no desenvolvimento de cursos monotécnicos, sobretudo em formato de qualificação profissional e de aperfeiçoamento, em razão do movimento de mudança pedagógica ter transcorrido pari passu, e da necessidade de ampliação das receitas com a venda de serviços educacionais. Dado o momento e algumas

das motivações que levaram à instituição a promover a mudança radical em seu modelo, entendemos que o enfoque se daria no âmbito da formação monotécnica.


Considerações Finais


Neste artigo, operamos com a reconstrução histórica orientada pelo pensamento crítico, de base marxista, tendo o trabalho como princípio ontológico e a formação humana concebida como aquela que vai além das formas alienadas de reprodução da força de trabalho e que encontra, no processo histórico em tela, permanências e descontinuidades que combinam, de modo específico, metodologias de ensino, conteúdos escolares, públicos-alvo e objetivos educacionais.

Ficou evidente que para compreender o processo histórico em voga é necessário buscar a gênese da pedagogia do SENAI, aqui descritos a partir dos modelos monotécnicos e/ou multitécnicos, baseados em Séries Metódicas Ocupacionais (SMO), bem como seu processo de esvaziamento e substituição.

Ponderamos que a “crise” dessa pedagogia tradicional do SENAI constitui-se num discurso necessário às mudanças na produção tanto quanto à necessidade de financiamento do SENAI. Por isso, concluímos, a partir da análise das fontes documentais, que a “crise” dessa pedagogia e de seu modelo de formação de caráter multitécnico de cursos gratuitos baseado nas SMOs, cujos objetivos educacionais fundamentam-se no “aprender a fazer” dos aprendizes e são voltados para uma educação para mercado, serviu para permitir a constituição de um novo modelo de formação de caráter predominantemente monotécnico de curso pago, baseado em novas metodologias (inicialmente no Petra, focado no desenvolvimento do “saber ser” e, posteriormente, na FPBC, fundada no “aprender a aprender”) para adultos e voltado para o mercado da educação.

Em síntese, podemos afirmar que, nesse processo, evidenciam-se os deslocamentos tanto do conceito de qualificação para a noção de competências, quanto da “formação para o mercado” para o “mercado da formação”, esvaziando o projeto de um ensino para o emprego e assumindo um ensino para empregabilidade. Tal processo indicaria a ineficiência e a ineficácia pedagógica do modelo multitécnico baseado em SMOs com escolarização, assertiva que precisa ser relativizada na medida em que, além das mudanças tecnológicas e organizacionais que constituem a produção pós-fordista, há outros elementos não pedagógicos e de

natureza mais financeira e ideológica que explicariam sua substituição. Não parece razoável a escolha de um modelo que rompe com os objetivos históricos da instituição, que se relacionam com a formação de uma identidade ocupacional.

Compreendemos que, apesar de intencionar formar certo tipo de trabalhador, na prática, as concepções pedagógicas podem não se materializar tal como foram concebidas. Reconhecemos que a medida do que serve ou não à indústria é muito difícil de ser dosada. Ainda que se intencione formar profissionais que atendam às necessidades mais imediatas das empresas industriais, os processos formativos do SENAI, independentemente dos modelos de formação profissional adotados pela instituição, ganham contornos que não são facilmente controlados, pois o elemento “formação para o trabalho” traz em si a contradição capital x trabalho.


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