v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X
Matheus Rufino Castro2
Este estudo almeja investigar o processo de crescimento do conservadorismo no Brasil em sua relação com a crise do capitalismo, e os ataques promovidos contra a educação. A dinâmica da luta classes em uma sociedade dependente potencializa o autoritarismo sistêmico, que, no campo educacional, se materializa em projetos reacionários, que se amoldam aos interesses do capital, material e ideologicamente. Assim, por se tornar um campo central da disputa de classes, um dos maiores polos de resistência da classe trabalhadora, assim como campo de difusão dos interesses e valores da classe dominante, a educação é alvo de uma série de ataques reacionários.
Este estudio desea investigar el proceso de crecimiento del conservadurismo en Brasil en su relación con la crisis del capitalismo que vivimos, y los ataques promovidos contra la educación. La dinámica de la lucha de clases expande el autoritarismo sistémico que en el campo educativo se materializa en proyectos que se adaptan a los intereses del capital, de forma material e ideológica. Siendo así, por convertirse en un campo central de la disputa de clases, uno de los mayores polos de resistencia de la clase trabajadora, así como el campo de difusión de los intereses y valores de la clase dominante, la educación es objeto de una serie de ataques reaccionarios.
This study aims to investigate the growth proccess of conservatism in Brazil and it relationship with the capitalismo crisis we are experiencing, and the attacks promoted against the education. This struggle class dynamics potentiate the systemic authoritarianism, that, in the educational field, materialize projects that fit together to the interests of the capital, material and ideologically. So, for becoming a central field of classes dispute, one of the greatest working class resistance poles, even as diffusion field of the interests and values from dominant class, the education becomes target of the reactionary attacks.
1Artigo recebido em 02/04/19. Primeira Avaliação em 17/04/19. Segunda avaliação em 02/05/19. Terceira avaliação em 30/05/19. Aprovado em 06/06/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29379.
2 Professor de Educação Física do Colégio Pedro II. Mestre em Educação/UFF; Doutorando em
Educação/UERJ. Email: matheusefufrj@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1615-8289
Desde os protestos de Junho e Julho de 2013, doravante denominados “Jornadas de Junho e Julho de 2013”, é possível observar um grande crescimento do conservadorismo no país e sua influência nos debates políticos, sociais e econômicos aumentando em grande escala. Nas “Jornadas de 2013”, apesar de ter elementos importantes do ponto de vista da classe trabalhadora, como a denúncia da mercadorização das cidades, em especial da mobilidade urbana, o estopim do processo e a crítica aos gastos com os megaeventos esportivos em detrimento dos serviços públicos, também houve uma captura das pautas e do sentimento de indignação dos sujeitos pela burguesia, ancorada pelos grandes conglomerados midiáticos, colocando como pauta central do movimento a denúncia da corrupção, associada à esquerda por conta do governo do Partido dos Trabalhadores, fomentando um sentimento de anticomunismo personificado no antipetismo.
Contudo, a situação que vivenciamos, com a ascensão política, inclusive no campo eleitoral, de Jair Bolsonaro, de perfil extremamente autoritário e assumidamente antipopular, contrário aos direitos sociais duramente conquistados pelos segmentos historicamente oprimidos: mulheres, população LGBT, população negra, articulado com o aumento do desemprego, da violência urbana, da desigualdade social, nos mostra que esse crescimento do pensamento conservador só pode ser compreendido mediante uma análise das mudanças na realidade que vivemos. Amparados no materialismo histórico e dialético, buscaremos justamente chegar à essência de nosso objetivo neste estudo, o avanço do conservadorismo na sociedade, e, por conseguinte, na educação, realizando uma crítica de sua relação com a nossa condição de capitalismo dependente, e o período de crise que vivemos.
Para tanto, organizamos este trabalho da seguinte maneira: a compreensão do que é o conservadorismo e a sua relação com a formação da subjetividade dos sujeitos no capitalismo; a dinâmica interna da luta de classes no Brasil, o desenvolvimento dependente e o crescimento do conservadorismo no momento de crise; o papel que a educação cumpre no capitalismo dependente, e os ataques reacionários, em especial o projeto Escola Sem Partido como a sua síntese.
De acordo com a perspectiva de Lukács (2013), o ser humano é um ser social, que se forma a partir de sua relação com a realidade e com os demais sujeitos, sobretudo, a partir do trabalho. O ser social é um ser que responde à realidade concreta, ou seja, as decisões tomadas no plano subjetivo/individual são respostas que esses sujeitos dão aos problemas colocados pela realidade objetiva, o que faz com que essas respostas, ainda que ocorram subjetivamente, tenham uma base objetiva. “O processo social real, do qual emergem tanto o pôr do fim quanto a descoberta e a aplicação dos meios, é o que determina – delimitando-o concretamente
o campo das perguntas e respostas possíveis, das alternativas que podem ser realmente realizadas” (LUKÁCS, 2013, p. 58).
É importante explicar que essa não é uma teoria individualista do ser, porquanto, por mais que a reação dos sujeitos seja definida no campo individual, a realidade concreta e as circunstâncias nas quais esses sujeitos atuam são socialmente constituídas. Assim, o ser social
[...] sempre está dando respostas concretas a dilemas de ação perante a vida, com os quais ele, enquanto homem que vive em sociedade, é confrontado, em cada caso, por uma sociedade bem determinada (de modo imediato: por classe, estrato etc. descendo até a família), mesmo que ele pense estar agindo puramente por impulsos advindos de sua necessidade interior (LUKÁCS, 2013, p. 207).
Sendo essa realidade concreta a realidade do capitalismo, entendido este enquanto um Modo de Produção, ou seja, a forma como os sujeitos produzem e reproduzem as suas vidas, organizam suas relações sociais, as alternativas concretas que são colocadas para os sujeitos tendencialmente impelem esses indivíduos para a adoção de respostas concretas que engendram a sua reprodução enquanto seres sociais dentro do escopo de produção e reprodução do próprio capitalismo. A sociedade capitalista é uma sociedade cindida em classes, que assumem a posição de uma unidade dialética, inerentemente contraditória, entre burguesia e proletariado, com interesses de classe antagônicos, por mais que a reprodução de ambas as classes enquanto tal impliquem na reprodução dessa mesma ordem.
Destarte, a formação do capitalismo engendra justamente uma classe trabalhadora que seja vista pela burguesia, e também se veja enquanto classe,
apenas em suas possibilidades de reproduzir o capital, produzir mais e mais valor. Isso faz com que as alternativas concretas possíveis diante dos dilemas colocados para os sujeitos tenham a sua resposta possível, mesmo no nível mais elementar de reprodução de sua existência biológica, inserida quase que totalmente no campo da reprodução do capital.
Para que essas relações possam se afirmar, é fundamental que não apenas os trabalhadores sejam compelidos materialmente a se submeter à exploração do capital, assim como possam tomar como seus os valores correspondentes às necessidades de reprodução dessa ordem. Esse processo tem em si um elemento central que é a ideologia, que, para nós, é a forma pela qual os sujeitos conseguem apreender as relações sociais e os conflitos socioeconômicos que delas são frutos e consequentemente são determinantes de sua reação diante desses conflitos.
Concordamos, consequentemente, com Mészáros (2012, p. 60), quando ele apresenta a ideologia como “consciência prática própria da sociedade de classes”, o que nos mostra a sua constituição a partir do conjunto de valores e ações das classes que se colocam em movimento. Do ponto de vista da ideologia dominante, a ideologia deve ser essencialmente conservadora, partindo de uma concepção de mundo que dê conta de explicar e propor soluções para os problemas apresentados pela realidade, sem comprometer a reprodução da ordem do capital. “Antes de tudo, elas devem fornecer apenas uma explicação plausível, a partir da qual se possa projetar a estabilidade da ordem estabelecida” (MÉSZÁROS, 2012, p. 69, grifos do original).
Diante do caráter objetivo da realidade concreta e, por conseguinte, das alternativas colocadas por essa realidade, a ideologia dominante deve evitar sempre qualquer tipo de crítica/negação radical, no máximo admitir a possibilidade de pequenas reformas e buscar deslegitimar todo tipo de crítica e concepção de mundo que ameace à ordem societária que lhe dá base concreta, neste caso, a ordem capitalista.
Assim, não é acidental que as ideologias dominantes insistam nas insuperáveis virtudes do “pragmatismo” e da “engenharia social gradual”, rejeitando (no mais das vezes, pela simples atribuição de algum rótulo exorcizante) todas as formas de “síntese total” ou de “holismo” (MÉSZÁROS, 2012, p. 233, grifos do original).
Por fim, ao falarmos de subjetividade buscamos as colaborações de Freud ([1930] 2010). De antemão, é importante registrar, que não há por nossa parte, um
domínio da vasta obra de Freud, mas um foco nas suas contribuições que julgamos ser pertinentes. Temos divergências com Freud, pois, compreendemos que o mesmo em nenhum momento estabelece uma crítica à sociedade capitalista, e, por vezes, também reforça uma lógica individualista para a solução de problemas socialmente estabelecidos.
Para este estudo, o conceito mais relevante de Freud é o de “princípio da realidade”, que é fruto do desenvolvimento social e psíquico do próprio sujeito. Ocorre a partir do desenvolvimento do “princípio do prazer”, que tem como característica central buscar aquilo que é prazeroso e evitar o desprazer/dor, cuja relação se dá a partir do equilíbrio entre a busca do prazer, “interna” ao sujeito, ainda que socialmente construída, e as pressões externas que podem frustrar essa busca e gerar o “desprazer”, que compõe a transição do “princípio do prazer” para o “princípio da realidade”, cujo foco é evitar o sofrimento.
A repressão dos desejos e vontades dos sujeitos, assim como de sua libido, faz com que uma parte dessa sua energia se converta em agressividade, fruto da insatisfação de não ter seu desejo realizado, para com outrem e para com o mundo externo, enquanto a parte que não pode ser externalizada sob risco de sua ruína, física e social, se volta para o próprio sujeito.
Lá é acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe ao resto como Super-eu, e que, como “consciência”, dispõe-se a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos. À tensão entre o rigoroso Super-eu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição (FREUD, [1930], 2010, p. 59).
O princípio da realidade constituído, então, é o princípio da realidade capitalista, cuja mediação inicial se dá por meio da família, mas que, ao longo da vida, é reforçada pela escola, pela mídia, e, mais tarde, pela própria organização do trabalho. Nesse sentido, o “princípio da realidade”, o superego, em nossa concepção, se relaciona intimamente com a percepção de campo aberto da realidade concreta.
Tendo em vista que realidade concreta apresenta alternativas igualmente concretas para que o sujeito faça suas escolhas, devemos considerar que a base dessas escolhas passa por aquilo que foi consolidado para si enquanto seu princípio da realidade. Isso faz com que o superego socialmente constituído, mediado pelos demais seres, a instância civilizatória interna aos sujeitos, acabe por ser um elemento
interno de adesão e amoldamento à realidade que se vive, sendo essa realidade o capitalismo. Contudo, não pretendemos ser deterministas, pois, vemos ser possível que o sujeito supere os limites do princípio da realidade do capital e estabeleça em sua práxis a crítica e a negação sistêmicas.
Sendo assim, investigaremos no tópico seguinte a formação societária brasileira, a sua atual composição, porque, no âmbito da subjetividade, tendo em vista o seu caráter social/objetivo, é fundamental compreendermos qual é o “princípio da nossa realidade”, pois, por mais que busquemos as linhas gerais do desenvolvimento capitalista, o Brasil apresenta elementos particulares relativos ao seu desenvolvimento na ordem capitalista mundial que são determinantes para compreendermos a nossa dinâmica própria da luta de classes.
Entender a realidade brasileira deve necessariamente passar por captar a sua particularidade, as mediações que a tornam concreta, mas também as suas determinações mais essenciais em relação ao capitalismo mundialmente estabelecido.
[...] se a condição dependente faz parte da unidade dialética que é a acumulação capitalista mundial, devem existir condicionantes estruturais dessa dependência (característica do mercado mundial capitalista) e determinantes conjunturais históricos da dependência (CARCANHOLO, 2014, p. 08).
O eixo central que caracteriza a condição de dependência é o fato que o mais- valor produzido nas nações periféricas/dependentes não são apropriadas em seu território, havendo uma transferência desse mais-valor para ser apropriado no centro do capital.
Essa transferência de valor é explicada por alguns fatores: o capital que produz com maior produtividade tem a capacidade de se apropriar de parte do mais-valor do capital com baixos índices de produtividade. Como os capitais dos países dependentes em geral se limitam à produção de mercadorias de menor produtividade, o mais-valor produzido na periferia tende a ser expropriado, e apropriado no centro do capital.
Isso implica que as nações desfavorecidas devem ceder gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cessão ou transferência seja
acentuada em favor daquele país que lhes venda mercadorias a um preço de produção mais baixo, em virtude de sua maior produtividade (MARINI, 1973a, p. 145).
Ademais, houve o desenvolvimento de outras formas ainda mais complexas de garantir a transferência de valor, como o mecanismo da dívida pública, sobretudo dos países periféricos; o processo de reprimarização das economias dependentes, em que o parque industrial existente é gradativamente desmantelado aprofundando o grau de dependência; as disputas por patentes em que as tecnologias mais avançadas ficam limitadas ao centro do capitalismo, etc. (MARINI, 2012).
Diante desse cenário, a burguesia periférica deve lançar mão de mecanismos que possibilitem a compensação do mais-valor apropriado pelos capitais centrais,
[...] o que obriga esses capitalistas a aumentarem a produção da mais- valia e possibilitar o desenvolvimento capitalista de suas economias. É por isso que a superexploração da força de trabalho é uma categoria própria da dinâmica de acumulação de capital dependente (CARCANHOLO, 2014, p. 09).
A superexploração é o mecanismo encontrado pela classe dominante local para superar esses condicionantes estruturais da dependência, e assume diversas formas como: a ampliação da jornada de trabalho, desregulamentação de direitos trabalhistas para reduzir os custos com a força de trabalho; arrocho salarial que culmina com uma remuneração abaixo da força de trabalho, ou seja, apropriação do fundo de consumo do trabalhador, em que ele ganha abaixo do que seria necessário para se reproduzir enquanto mercadoria (CARCANHOLO, 2014; MARINI, 2012).
Como consequência para a dinâmica da luta e relação entre as classes, temos: a classe dominante não pode se reproduzir sem que haja o aumento da exploração sobre o trabalhador, e deve buscar a qualquer custo a retirada de direitos, e, frente à situação de dependência em relação aos capitais estrangeiros, há a necessidade de se submeter aos imperativos do centro do capitalismo. Essa situação demanda uma relação de domínio por sobre o Estado, impedindo que o mesmo cumpra inclusive as funções mais básicas que exerce no centro do capital, como políticas redistributivas, garantia de direitos sociais básicos, pois, o Estado se torna um elemento central de garantia de sua acumulação, necessitando da constituição de instrumentos extremamente violentos de repressão, uma baixa tolerância às ações da classe trabalhadora, no que Florestan Fernandes (2009) já acusava como mandonismo e patrimonialismo de nossa classe dominante.
Essa condição da classe dominante implica em relações de classe mais autoritárias do que no centro do capital, em que mesmo a democracia só pode ser minimamente possível em conjunturas externas favoráveis, pois, em momentos de crise, ou de maior dificuldade de acumulação de capital, torna-se imperioso ampliar tanto a repressão sobre os trabalhadores quanto intensificar o corte de direitos.
Diante desse cenário, de uma profunda concentração de poder e riquezas, as relações de classe se tornam extremamente instáveis, e sua manutenção deve ocorrer tanto por uma forte e violentíssima repressão, como as ações das polícias militares em protestos, inclusive os mais pacíficos; quanto pelo reforço dos valores do capital a todo instante, como os grandes conglomerados midiáticos, e também a função histórica que as religiões vem cumprindo na difusão do ideário capitalista, além do próprio papel da educação formal, que ainda sofre com a tutela do conservadorismo.
Na estrutura do capitalismo contemporâneo, profundamente afetado com a crise estrutural de 20083, que perdura e se agrava até hoje, há um processo de intensificação das relações de dependência. O ciclo de crescimento econômico vivido na região, em especial no Brasil, foi rapidamente revertido, ocorrendo uma fuga de capitais, a restrição do acesso ao crédito, o que faz com que o Estado deva aprofundar os ataques à classe trabalhadora: mais privatizações de segmentos estratégicos da economia nacional, retirada de direitos trabalhistas para diminuir os custos com a força de trabalho, e a progressiva retirada de investimentos nos setores sociais como educação, saúde, segurança, cultura, habitação, etc., para ampliar a remuneração do capital. É uma situação de crise que foi sentida pela população, tornando-se administrável até 2013, o ano que as contradições do capital se tornaram insuportáveis e deram origem às “Jornadas de Junho e Julho de 2013”.
A intensificação das mazelas do capital a partir da condição de crise que vem se agravando, faz com que o “princípio da realidade” dos sujeitos se torne ainda mais contraditório, engendrando um campo de alternativas concretos cada vez mais limitado no que diz respeito à sua sobrevivência física e social. Ideologicamente falando, os sujeitos devem suportar um grande processo de precarização de suas condições de trabalho, quando não condições de vida, escalada do desemprego, aumento da violência urbana, perda de condições de trabalho, arrocho salarial,
3 Carcanholo (2010, 2011), Chesnais (2013), nos oferecem leituras para compreendermos as causas dessa crise e as suas consequências em termos da dinâmica de acumulação de capital e a sua chegada na periferia do capital.
ausência de direitos e prestação de serviços públicos por parte do Estado. No entanto, a agressividade naturalmente fruto desse processo de precarização de sua vida engendra uma condição de revolta por não ter suas esperanças e perspectivas concretizadas, que se tornam mais frustrantes ao passo que o sistema continua a prometer ideologicamente o reino encantado da liberdade e da meritocracia.
Ao mesmo tempo que a realidade mostra para os sujeitos uma grande piora em suas condições de vida, no campo ideológico por meio de vários mecanismos como a grande imprensa, as religiões, especialmente as neopentecostais com a Teologia da Prosperidade, faz com que os mesmos absorvam a ideologia da meritocracia, desenvolvam grandes contradições internas. Diante disso, da impossibilidade de se estabelecer uma ligação racional entre as promessas ideológicas sistêmicas e a realidade concreta, de sua inconciliabilidade, o irracionalismo se torna um elemento fundamental de manutenção da ordem do capital, a ideia de uma transcendência diante da impossibilidade de compreender as reais causas de suas mazelas, até mesmo com a promessa de uma “melhor vida futura”, ou de que as condições de vida atuais são fruto de uma vontade superior, faz com que não apenas os sujeitos consigam se acomodar diante de condições precárias, como passem a defender essa ordem societária e aqueles que buscam mudar essa realidade (militantes de esquerda), se tornem obstáculos de sua salvação, devendo ser combatidos. Ontologicamente, uma das características fundamentais desse tipo de movimento é o irracionalismo, “na transcendência um princípio que ignora a base ontológica material que fundamenta o ser social e institui formas de consciência que levam à intolerância” (SILVA et alii, 2014, p. 417).
Como a ordem em vigor não pode ser questionada, e ela é na verdade desejável, a precarização da vida das pessoas se torna responsabilidade dos sujeitos que tentam transformá-la, consolidando o anticomunismo. A histeria anticomunista foi muito reforçada pelos escândalos de corrupção do governo PT, além da grande habilidade manipulatória do capital, a partir da base material reforçada pelo PT com políticas neoliberais, como a focalização das políticas públicas e direitos, que transformam o sujeito de detentor de direitos em um consumidor de serviços públicos, inclusive nas camadas mais pauperizadas da população e impelem os indivíduos a uma despolitização profunda que, em um momento de crise, em que a ascensão social
via consumo não seja mais possível, a sua subjetividade se torne solo fértil para as perspectivas mais reacionárias.
Por fim, é importante ressaltar um elemento central do discurso conservador que é a defesa da família tradicional que traz consigo a defesa da desigualdade de gênero e da prática homofóbica ou heteronormativa. A estrutura familiar é a grande responsável por, desde o nascimento, fazer a mediação dos valores socialmente desejados para os sujeitos. A família nuclear/patriarcal é fundamental para a formação da subjetividade dos sujeitos e a maneira pela qual os sujeitos vão apreender a realidade à sua volta. Com isso, as discussões de gênero que defendem a igualdade entre homens e mulheres, e a campanha pela promoção da diversidade sexual, alguns avanços sociais nesse campo, mesmo que bastante tímidos, em um momento de crise são tratados pela ideologia conservadora como os culpados pelas dificuldades que atravessamos.
As lutas das mulheres junto da luta pela diversidade sexual, além de dificultar a externalização dessa agressividade, também são vistas com a ascensão do irracionalismo calcado no fundamentalismo religioso, como algo que possa comprometer o “céu prometido” para as pessoas que se sujeitam à ordem societária do capital. Ou seja, se se tenta modificar a sociedade que pode levar as pessoas ao paraíso prometido, logo, essas pessoas se tornam inimigas, e, como tal, devem ser combatidas, quando não exterminadas, em uma situação que combinada com o ódio canalizado pelos sujeitos em virtude da precarização de suas condições de vida.
Assim sendo, vislumbramos que o estopim, até o momento, da polarização social que se abriu em virtude da crise de 2008, com as “Jornadas de Junho e Julho de 2013”, foi o golpe que resultou no impedimento da presidenta Dilma Roussef, um golpe que articulou os mais diversos segmentos reacionários brasileiros representados no parlamento.
A maior fábrica dessa espécie de cretinice é a Câmara dos Deputados, presidida, até então, pelo maior dos cretinos e comandada na sua base pela chamada bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia — latifundiários, empresários da indústria de armas e líderes evangélicos) que na verdade deveria ser BBBBB (Boi, Bala, Bíblia, Bola e Banco — os dois últimos representam a “cartolagem” do futebol e o sistema financeiro), a que se soma ainda a ação parlamentar dos representantes de poderosas empreiteiras (BRAZ, 2017, pp. 88-89).
Reeditando as experiências históricas em um país dependente, em especial no Brasil, historicamente marcado pelo mandonismo de sua classe dominante, de seu imperativo objetivo da repressão a qualquer tipo de movimento mais incisivo da classe trabalhadora, o golpe consuma o avanço da polarização da luta de classes no Brasil, e, por consequência, do avanço do conservadorismo. Fato esse comprovado com a eleição de Jair Bolsonaro para presidente da República.
Essa realidade nos faz justamente remeter às experiências históricas do capital de retomada de governos e rearranjos de classe extremamente autoritários, reacionários, como as experiências fascistas ao redor do mundo, como resposta à crise da década de 1920, e as ditaduras empresariais-militares que assolaram a América Latina por meio de golpes como resposta às crises da década de 1960.
Se o fascismo é uma forma política sempre possível desde quando os monopólios constituíram-se como dominantes na economia capitalista, no Brasil ele se amalgama com os elementos históricos de uma cultura de classe dominante que se alimenta do racismo. Junta-se a isso uma cultura política que, mesmo nos períodos republicanos, pouco avançou em relação à laicidade e que se alimenta também da intolerância religiosa. [...] Em todos os casos estamos diante de traços profundamente antidemocráticos que promovem no Brasil uma ascensão preocupante de forças conservadoras reacionárias. A chamada lei da mordaça (“Escola sem Partido”) é talvez o melhor exemplo dessa ascensão (BRAZ, 2017, p. 102).
Tendo em vista a importância que a educação assume no processo de consolidação da ordem do capital, na formação dos sujeitos, um papel definitivamente estruturante, a ofensiva reacionária do capital sobre a educação é muito indicativa da realidade que vivemos. Dessa forma investigaremos adiante essas mudanças que ocorrem no âmbito educacional como síntese do momento que vivemos.
A educação tem como objetivo regular as ações e intenções dos mais diversos indivíduos formando-os para uma ação a partir de valores, regras, enfim, formas de responder às alternativas concretas colocadas pela realidade que estejam de acordo com os imperativos da ordem do capital, ou seja, tornam-se capazes de manter o processo de acumulação de capital e valorização do valor. Logo, a educação é também o espaço de formação de um “princípio de realidade”. Contudo, na sua
autonomia relativa, é também um espaço de contradições, em destaque a contradição da luta de classes, o que possibilita que educação escolar, em especial a educação pública, possa ser importante no que concerne à resistência e à organização da classe trabalhadora.
Entretanto, em um país dependente, a educação também assume particularidades no que diz respeito ao papel exercido pela educação nos países centrais. Essas mediações que determinam a particularidade brasileira são condicionantes estruturais que também atuam para que a educação brasileira não possa cumprir o mesmo papel que o sistema educacional cumpre no centro do capital. Logo, por mais que se busque importar ou transplantar instituições do centro do capitalismo, não haverá como igualar o seu funcionamento. “As possibilidades de absorção da sociedade brasileira impuseram, por sua vez, um drástico empobrecimento funcional aos modelos institucionais assim importados” (FERNANDES, 2004, p. 278).
A realidade material brasileira baseada em uma economia de base sobretudo primária, agroexportadora, além da apropriação quase que total do fundo público pela burguesia local, e o seu aparelhamento como forma de transferência de valor para o centro do capital, fez com que os investimentos em educação nunca se tornassem muito necessários para os imperativos de acumulação do capital, em especial a educação pública, responsável por formar a classe trabalhadora. Junto a isso, a necessidade de controle ideológico fruto da instabilidade da luta de classes sempre fez com que historicamente, houvesse grande tutela dos grupos religiosos, sobretudo a igreja católica, na educação. Isso fica muito evidente quando se analisa a própria laicidade do Estado brasileiro. Por exemplo, a utilização das escolas como mecanismo de difusão de uma ideologia explicitamente conservadora e afinizada com o capitalismo, como a instituição do ensino religioso custeado com dinheiro público e de oferta obrigatória nas escolas, historicamente tutelado com os valores católicos e agora evangélicos, e também a instituição da disciplina “educação moral e cívica”, na época da ditadura empresarial-militar (CUNHA, s.d.).
Contudo, desde a redemocratização da sociedade brasileira, a escola se converteu em elemento não apenas de resistência da classe trabalhadora, como as greves docentes e a presença do movimento estudantil, mas também passou a incorporar algumas demandas dos grupos historicamente oprimidos, como tratar das
questões de igualdade racial e de gênero, de promoção dos direitos humanos, tratar da luta contra as opressões e preconceitos, como o combate ao machismo, racismo e à LGBTfobia.
Pode-se dizer dessa maneira que a escola foi o setor social com a maior capacidade de absorção das pautas desses segmentos mais marginalizados e oprimidos da sociedade, ainda que efetivamente os avanços conquistados tenham sido mínimos. Destarte, há alguns parcos ganhos, como a Lei de Cotas, as possibilidades de discussão dos direitos humanos, da diversidade, e, mais recentemente inclusive o direito à adoção do nome social para a população trans.
Por mais que esses direitos caminhem menos que o esperado para conquistas efetivas no âmbito da classe trabalhadora são relevantes se considerarmos a realidade extremamente sofrida desses setores da sociedade e, em um país tão conservador, cujos limites das lutas sociais são tão estreitos quanto o nosso, gera uma grande ofensiva reacionária, principalmente em uma conjuntura de crise.
Isso faz com que os grupos mais conservadores venham a ganhar cada vez mais influência nos debates educacionais, buscando uma intervenção direta no processo educacional. É um processo de intervenção que caminha simultaneamente à agudização da luta de classes em virtude da intensificação da crise e de seus efeitos. Esse processo possui grande capilaridade em setores da sociedade que se afinizam com o ideário conservador em virtude dos elementos supracitados, como o medo da violência social, o irracionalismo do fundamentalismo religioso como resposta às questões colocadas pela realidade, a falta de esperança em virtude do aumento do desemprego e da ausência de investimentos sociais do governo, além da própria difusão ideológica e organização da sociedade de maneira a fomentar o individualismo descolado de quaisquer laços coletivos e sociais, sobretudo, despojado de seus laços de classe.
Assim, a “crise educacional” de uma sociedade em crise passa pelas mesmas justificativas ideológicas dos setores conservadores e ligados ao capital: a presença da esquerda que busca impor sua forma de pensar aos alunos, doutrinando-os, em vez de ensiná-los os conteúdos das disciplinas; a estabilidade do servidor público, em especial do professor, que gera uma acomodação; a quantidade de greves que, independente de sua motivação, acabam por atrapalhar o processo educativo (Nagib, s.d.). Enfim, os culpados pelo fracasso do sistema educacional se tornam os
professores, ao imporem para os sujeitos os seus valores, o que inclui a famigerada “ideologia de gênero” responsáveis por destruir a família tradicional, e, consequentemente, desestabilizar a sociedade brasileira.
Ocorre uma íntima articulação com base nos postulados da Escola liberal Austríaca, entre um ultraliberalismo econômico, a defesa da privatização da desregulamentação dos direitos trabalhistas, e do não investimento do Estado, e o conservadorismo no campo ético-moral, em especial no que concerne às questões de gênero e de diversidade sexual. Ocorre uma ação deliberada das organizações ligadas ao grande capital e de busca de sua difusão ideológica que
É, em linhas gerais, a posição do Instituto Millenium (o principal think tank da direita brasileira, criado em 2006 e financiado por empresas nacionais e transnacionais), com eco na linha editorial de parte da grande imprensa e popularizada por jornalistas como Rodrigo Constantino (MIGUEL, 2016, p. 593).
Nesse sentido, os avanços conservadores na educação já eram nítidos durante o próprio Governo PT, como o recuo da presidenta Dilma Roussef na implementação do material de combate à homofobia nas escolas, apelido pelos segmentos reacionários de “kit gay”, que acusavam o governo PT de promover a homossexualidade nas escolas e incentivar jovens e crianças a uma sexualização precoce, interferindo no papel educativo da família. Além disso, também houve o recuo no próprio processo de discussão do Plano Nacional de Educação em que os termos gêneros e orientação sexual foram retirados do documento, no trecho que constava a parte de combate às diversas formas de opressão e preconceito.
O golpe que levou Michel Temer à Presidência intensificou uma série de ataques à educação, em especial à educação pública. A vitória de Jair Bolsonaro nos dá todos os indícios de aprofundamento dessa lógica de enfrentamento e precarização, ainda que com cerca de 100 dias de governo e diante da própria crise que racha o grupo político de Bolsonaro, não se tenha medidas significativas para o campo educacional.
Podemos destacar como verdadeiras atrocidades no campo educacional, a Emenda Constitucional que realiza o Teto de Gastos. Essa Emenda, com a prerrogativa de controlar os gastos públicos e evitar o endividamento brasileiro, atua para congelar os investimentos do governo nos investimentos sociais e garantir a remuneração do capital privado por meio do mecanismo da dívida pública.
Além disso, ao não garantir os investimentos públicos, o governo promove um sucateamento da estrutura pública, precarizando os mais diversos serviços, jogando a população contra o serviço e o funcionalismo público e engendrando condições subjetivas para promover a sua privatização e a retirada dos direitos trabalhistas dos funcionários públicos, como as sucessivas tentativas de ataque à sua estabilidade.
Outro elemento relevante foi a Reforma do Ensino Médio, cujo mote foi a flexibilização do ensino, a superação de um caráter “conteudista” para a preparação e autonomia do educando. Entretanto, é uma proposta deveras complicada, pois
o governo realizou a alteração do currículo do Ensino Médio por medida provisória, um instrumento atípico em democracias como a nossa quando se trata de assunto de alta relevância social. A medida provisória não permitiu a participação da sociedade no debate, não criou instâncias de atuação popular, não consultou conselhos. (GONÇALVES, PUCCINELLI, 2017, p. 74).
A redução da carga horária relativa à Base Nacional Comum; a complementação via itinerários formativos que não possuem obrigação de serem ofertados em sua totalidade pelas escolas; o recrutamento de docentes via notório saber; tudo isso faz com que a escola se torne ainda mais fragmentária, seletiva, aprofundando o caráter de classe do processo educativo.
Por fim, o grande golpe reacionário na educação é o projeto Escola Sem Partido, e é neste que iremos nos deter com mais profundidade. A consolidação da educação enquanto um dos polos de maior resistência da classe trabalhadora aos imperativos do capital logo faz com que Miguel Nagib (fundador do Movimento Escola Sem Partido
MESP), partícipe do Instituto Millenium, um think thank neoliberal, que tinha como bandeiras a privatização total da educação, sua organização de acordo com a lógica de mercado, busque discursar contra a “contaminação ideológica de esquerda” nas escolas, e defendesse o ideário liberal econômico na educação, como a defesa total da propriedade privada e da sociedade de mercado, com a responsabilização individual e a meritocracia (SILVA, 2017).
O movimento data de 2004, mas nunca obteve qualquer importância nos debates educacionais, só assumindo alguma relevância no período pós-crise, em especial a partir das Jornadas de 2013. Isso só se dá, quando de maneira oportuna/oportunista Miguel Nagib busca articular a sua luta contra a perspectiva de esquerda às questões de gênero e sexualidade, angariando para o seu movimento as
parcelas mais conservadoras da sociedade e assumindo uma crescente importância nos debates educacionais.
No momento em que a “ideologia de gênero” se sobrepõe à “doutrinação marxista”, o discurso do MESP dá outra guinada. A defesa de uma educação “neutra”, que era predominante até então, cede espaço à noção da primazia da família sobre a escola. A reivindicação é impedir que professoras e professores transmitam, em sala de aula, qualquer conteúdo que seja contrário aos valores prezados pelos pais. O foco principal é a “ideologia de gênero”, mas a regra contempla também as posições políticas sobre outras questões e mesmo a teoria da evolução das espécies ou o heliocentrismo. Se as escolas privadas poderiam incluir cláusulas contratuais que garantissem a possibilidade de apresentação de determinados temas em sala de aula, as públicas teriam que se curvar aos vetos de tantos pais de alunos quantos quisessem se aproveitar da prerrogativa (MIGUEL, 2016, p. 601).
O ESP se converte então numa verdadeira cruzada que incorre na culpabilização dos professores pelos insucessos da educação pública, ignorando completamente as questões atinentes às condições de estudo e trabalho, o alvo do ESP e de seu fundador são os professores, acusados de doutrinar os seus alunos. “A pretexto de transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalecesse da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo” (NAGIB, s.d., s.p.).
Essa articulação logo se capilariza de maneira exponencial com grande apoio em segmentos religiosos e também no parlamento, sendo em 2014, a primeira apresentação de um Projeto de Lei com o teor do Escola Sem Partido, “pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a partir de modelo elaborado por Nagib. [...] No mesmo ano, no município do Rio de Janeiro, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC) apresentou projeto de lei com o mesmo teor do seu irmão, o deputado” (CUNHA, s.d., p. 35).
Os segmentos de direita vislumbrando os ganhos políticos junto ao eleitorado conservador embarcam na onda do Escola Sem Partido, o que faz com que o Projeto assuma um grande vulto com grande apoio parlamentar, sendo apresentado em centenas de municípios, diversos estados e também no Senado e no Congresso. Isso se materializa no próprio site do Escola Sem Partido que possui uma aba específica para que se possa imprimir o Projeto de Lei base, elaborado por Nagib, preparado
para a apresentação nas mais diversas instâncias, demonstrando a grande organização e capilaridade do movimento.
Ignorando o seu próprio argumento de neutralidade política, vemos no site do ESP o apoio a vários candidatos nas eleições que se afinizam com as suas propostas. Atualmente, há um site de ampla divulgação do ideário do movimento, em que é possível encontrar até mesmo os candidatos às eleições que apoiam as posições do ESP, além de também possuir “espaço para relatar supostos casos de ‘doutrinação político-ideológica em sala de aula’, ter acesso a instrumentos de denúncia e materiais de divulgação do movimento” (SILVA, FERREIRA, VIEIRA, 2017, p. 52).
No PL preparado para apresentação em nível federal, há o seguinte texto:
Art. 2º - II: neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; VIII: direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos, assegurado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Art. 3º. O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos estudantes nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero; Art. 4º. No exercício de suas funções, o professor: I -não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; II - não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III - não fará propaganda políticopartidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; V - respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções (ESP, s.d.a., s.p.).
Assim, a proposição do ESP articula em seu texto elementos nítidos de classe como a discussão de eventos políticos, o tratamento de atos e reivindicações relativos aos interesses dos sujeitos, com o combate ao que se denominou “ideologia de gênero”, que, na verdade, corresponde à luta pela igualdade de gênero e de respeito à diversidade sexual. O professor deve seguir o padrão heteronormativo, base da família nuclear burguesa, sob risco de punição, denúncia, processo, etc., caso, haja qualquer defesa em sentido contrário, inclusive em uma situação de agressão/constrangimento de alunos que não se enquadrem nesse perfil, se constituiria uma atividade doutrinária.
Há cerca de sete PLs relativos à doutrinação nas escolas tramitando no Congresso. “O PL 7180/2014 e o PL 7181/2014 são, ambos, de autoria do deputado baiano Erivelton Santana (hoje no PEN, mas filiado ao PSC quando apresentou o projeto). Ligado à Assembleia de Deus, ele é integrante da Frente Parlamentar Evangélica” (MIGUEL, 2016, p. 604). O teor dos PLs é o mesmo, soberania da família no que diz respeito à educação moral, ensino de valores, em que a escola só pode se imiscuir quando for para reafirmar os valores presentes nas famílias. É um veto aos termos gênero e orientação sexual, impedindo que uma série de estudos do campo da psicologia, sociologia, história, filosofia, consigam chegar aos sujeitos, buscando obstaculizar qualquer tipo de crítica à naturalização dos papeis sexuais, que, por sua vez, implicam em um impedimento do combate à violência de gênero, do feminicídio, da homofobia.
Além disso, o site do ESP também conta com um espaço para a realização de denúncias de professores que doutrinam os seus alunos, um espaço para denúncias anônimas que nem provas são exigidas para que as denúncias sejam acatadas, instaurando-se um verdadeiro clima de desconfiança nos sujeitos envolvidos no processo educativo. O doutrinador é definido a partir das seguintes características:
se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional; adota ou indica livros, publicações e autores identificados com determinada corrente ideológica; alicia alunos para participar de manifestações, atos públicos, passeatas, etc.; não só não esconde, como divulga e faz propaganda de suas preferências e antipatias políticas e ideológicas; utiliza-se da função para propagar ideias e juízos de valor incompatíveis com os sentimentos morais e religiosos dos alunos, constrangendo-os por não partilharem das mesmas ideias e juízos (ESP, s.d.b).
O professor, então, que trabalha temáticas mais amplas, não esconde suas posições, aborda ideias contrárias às professadas no seio familiar e religioso do aluno se constituiria em um doutrinador de jovens e crianças.
Ao advogar a neutralidade, o projeto se contrapõe necessariamente aos valores associados à esquerda e àquilo que não é considerado tradicional ou natural de acordo com as diversas correntes religiosas, faz parte, do ataque ideológico que MÉSZÁROS (2012) nos mostra de atribuir negativamente o sentido de ideológico a tudo aquilo que for crítico à ordem em vigor e os seus valores. Isso faz ainda mais sentido em uma dinâmica de classes instável como a nossa, marcada pela agudização
dos problemas do capitalismo, em que mesmo as manifestações mais superficiais de crítica ao sistema, ainda mais durante uma crise como a que enfrentamos, se torna uma ameaça. O caráter de classe se encontra presente justamente por buscar evitar qualquer tipo de crítica possível, tendo em vista o protagonismo que a juventude vem tendo nas últimas lutas sociais, o movimento estudantil sobretudo, com as ocupações de escolas.
A promoção da despolitização do espaço escolar é uma tentativa de tentar evitar a qualquer custo que grande parte da classe trabalhadora que não tem acesso a conteúdos próprios de seu interesse de classe, apenas aos produtos ofertados pelos grandes conglomerados midiáticos, possam ter minimamente um espaço de reflexão e organização da classe. “Despolitização refere-se à impossibilidade de as grandes massas trabalhadoras participarem dos principais direcionamentos e definições dos rumos acerca da política, economia e direitos sociais no país” (GONÇALVES, PUCCINELLI, 2017, p. 77).
Assim, os movimentos reacionários na educação, especialmente o ESP, tem como objetivo fundamental a criminalização e cerceamento do trabalho docente, ou seja, é um projeto de classe muito bem definido, que tem como objetivo central a manutenção dos elementos ideológicos correspondentes à necessidade de acumulação do capital.
É aí que o fundamentalismo e o ultraliberalismo se encontram: de diferentes maneiras, ambos veem o Estado como o inimigo a ser combatido. E ele é esse inimigo exatamente porque, nele, vigoram – ainda que de maneira muito insuficiente – regras de igualdade que ameaçam as hierarquias que se reproduzem seja nas relações de mercado, seja na esfera doméstica. O slogan da educação “neutra” esconde a compreensão de que a escola precisa ser neutralizada, para que a autoridade que os pais exercem sobre os filhos possa ser absoluta (MIGUEL, 2016, p. 617).
À escola restaria apenas um papel de atuar em conformidade com os princípios e valores da ordem do capital. Qualquer mínima contradição de classes ou possibilidade crítica deve ser calada em virtude tanto da crise do capitalismo, o que, já implicaria em uma redução dos espaços possíveis de questionamento da ordem pelo capital, quanto da própria condição de dependência que faz com que a escola possua ainda mais limites para a sua atividade crítica.
Todo esse processo persecutório e de criminalização dos docentes busca engendrar um novo princípio da realidade em que, envoltos pelo medo do
constrangimento, da judicialização, inclusive da demissão que resultaria na impossibilidade de garantir a sua sobrevivência, se consolide um estado de passividade diante das problemáticas sociais e das opressões mais corriqueiras. Por mais que ainda não haja uma aprovação do PL relativo ao Escola Sem Partido, um de seus objetivos já foi alcançado que foi a construção de um clima de vigilância permanente e desconfiança entre alunos, professores, suas famílias, mas também entre professores entre si, que passam inclusive no âmbito escolar fiscalizar o trabalho de seus colegas.
Sendo assim, diante do risco inerente de sofrer qualquer tipo de constrangimento, muitos docentes acabam por consolidar um novo princípio de realidade em que as suas alternativas concretas se baseiam nos aspectos mais imediatos de sua sobrevivência material e espiritual, como o medo de denúncias, de difamações, perseguições, etc. Por outro lado, no que diz respeito ao conjunto da sociedade, há justamente o objetivo de desacreditar o Estado, a educação pública, assim como tudo aquilo que é público, fomentando as condições subjetivas para a promoção de um amplo processo de privatizações e abertura de novos espaços de acumulação de capital. Nos sujeitos, é a tentativa de formação de um princípio da realidade capturado por falsas promessas ideológicas de liberdade e respeito aos valores tradicionais, em que o desprazer seria ver seus filhos sendo “doutrinados”, tornando os professores seus inimigos, em especial os professores de “esquerda”.
O conjunto dos projetos educacionais do governo Temer, em especial o Projeto Escola Sem Partido, pode ser visto como a síntese da ofensiva liberal-conservadora do capital, pois, busca desarmar os trabalhadores docentes de sua condição de classe, desarticular as mínimas possibilidades de formação crítica, de negação da ordem do capital, mesmo que bastante superficialmente, assim como uma escalada conservadora que busca reafirmar os papeis de gênero e da família nuclear heteronormativo a despeito das necessidades de segmentos historicamente oprimidos da população. Isso é ainda mais evidente em um país como o nosso, com índices absurdos de feminicídio e de assassinatos da população LGBT.
O golpe que resultou no impedimento de Dilma Roussef fortaleceu ainda mais esses segmentos perante à sociedade abrindo a margem necessária para que um candidato assumidamente machista, homofóbico e racista se tornasse Presidente da República, podendo suscitar a abertura de um novo ciclo abertamente autoritário no país. A educação não passaria incólume nesse processo, já que Jair Bolsonaro aponta como caminhos a privatização dos serviços públicos e a militarização da educação como forma de combater quaisquer possibilidades críticas. É um ataque ao conjunto da classe trabalhadora, mas que, como sempre, com consequências ainda mais funestas para os grupos historicamente oprimidos.
Dessa forma, ocorre a reafirmação da condição de dependência do país em novas bases, inclusive no campo cultural mediante a promoção do obscurantismo e da negação de qualquer perspectiva progressista, ampliando ainda mais a nossa condição de heteronomia social, política, econômica e cultural e o atraso/retrocesso civilizatório. As mudanças educacionais teriam por consequência amplificar a situação de desigualdade da classe trabalhadora em relação à burguesia e suas camadas mais próximas, uma desigualdade não apenas financeira mas de acesso aos recursos materiais e simbólicos produzidos pela humanidade, possuindo como consequência um princípio de realidade que se choca ainda mais com a realidade objetiva, mas que deve ser contido mediante o aumento do autoritarismo e da escala repressiva, vide a defesa da truculência e do autoritarismo das forças armadas e do poder judiciário.
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