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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO1


XAVIER, Michelle Tinoco. Pescadoras: reflexões sobre trabalho e resistência feminina na pesca artesanal. 2019. 126p. Dissertação (Mestrado em Serviço Social e Desenvolvimento Regional) - Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2019. 2


Resumo expandido


A pesquisa de dissertação sobre a qual versa esse resumo foi realizada no curso de mestrado do PPGSSDR-UFF entre os anos de 2018 e 2019. Visa entender as transformações referentes às práticas profissionais, domésticas e relacionais das mulheres pesqueiras que moram na Comunidade do Jequiá (Colônia Z-10), na Ilha do Governador, bairro do Rio de Janeiro (RJ) assim como suas principais demandas e expectativas, tratando além de seu trabalho produtivo e reprodutivo, como elas percebem e usam o espaço que ocupam.

Tratamos aqui das transformações sociais sofridas por essa comunidade e modos de vida de pescadores(as) locais frente aos impasses impostos pelo “desenvolvimento” capitalista à pesca. Essas transformações decorrem tanto dos investimentos na modernização da pesca através de políticas públicas, como pelas relações desiguais de poder que o Estado e a indústria petrolífera exercem sobre o território, na apropriação dos recursos naturais.

Para traçar um “diagnóstico” dos conflitos, enfocamos as memórias dessas mulheres sobre a atividade pesqueira. Estudamos suas formas de existência e resistência na produção do espaço e reprodução da vida nesta comunidade, a partir de recorte temporal que se assenta sobre três eventos significativos para aqueles que vivenciaram seu momento anterior e posterior: a implementação da Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU) do Jequiá em 1993, o controle


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1 Resumo recebido em 28/03/2019. Aprovado em 25/04/2019, pelos editores. Publicado em 04/07/2019.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29381.

2 Assistente Social. Mestre em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pelo PPGSSDR/UFF. E-mail: michelle_tinocoo@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4326-5028.

do local transferido da Marinha do Brasil para a Prefeitura em 1994, e mais tarde, o derramamento de óleo da Petróleo Brasileiro S/A (PETROBRAS) na Baía de Guanabara, no ano 2000, o que praticamente inviabilizou o pescado no local.

Com isso, evidenciamos a lógica que associa a dinâmica da acumulação capitalista à distribuição discriminatória dos riscos ambientais, como propõe Acselrad (2002), expondo que as injustiças ambientais são decorrentes da natureza inseparável das opressões de raça, gênero e classe.

Nossa hipótese considera que o trabalho dessas mulheres é fundamental para manutenção do modo de vida e memória pesqueira e configura uma forma de organizar o social, econômico, ecológico e cosmológico que está em tensão com a produção de conhecimento pautada na racionalidade moderna capitalista, racista e patriarcal (LUGONES, 2014).

Percebemos que essas mulheres vivenciam redirecionamentos de suas atividades e reconstruções do seu sentido. Essas refuncionalizações advêm das mudanças estruturais na acumulação capitalista e dos impactos predatórios sobre o ambiente e a vida relacionados à dinâmica endógena do capital (MÉSZAROS, 2009). Portanto, consideramos que a invisibilidade sobre os trabalhos e as formas de existência e de resistências dessas mulheres é produzida como violação nessa sociabilidade pelo próprio Estado – constituído na Modernidade como patriarcal, mercantil e racista.

Para problematizar as particularidades que o trabalho assume nessa sociabilidade para essas mulheres, que são pretas, indígenas e oriundas de povos tradicionais em geral, refletimos sobre o escravismo colonial como um elemento constitutivo da formação das classes no Brasil.

A leitura em torno das relações sociais de sexo e de raça expõe que o trabalho das mulheres pesqueiras não é reconhecido como tal e tratado de forma subsidiária ao trabalho dos pescadores. Para compreender a atividade em sua totalidade, é necessário então resgatar as especificidades da condição feminina no “setor”, frequentemente desconsideradas, desqualificadas e não contabilizadas em estudos e dados oficiais. Isso porque quando se faz referência à pesca, a principal atividade reconhecida como própria de sua categoria de trabalhadores é a pesca em alto mar, geralmente realizada por homens - construção que reitera a demonstração de Beauvoir (1960) sobre a alteridade realizar-se no feminino.

Ressaltamos que sociabilidade burguesa conta com o racismo e o patriarcado enquanto formas estruturais de dominação, invisibilizando os sujeitos na sua diversidade. Como indica Martins (2014), para organizar a dominação simultânea das oligarquias econômicas e dos colonizadores, dentro e fora da Europa, é fundamental a classificação do mundo em dualismos opostos e hierarquizados.

Nesse sentido, como primeira categoria social da modernidade, segundo Quijano (2006), é fundada a ideia de raça, naturalizando relações de poder que impõem aos povos que possuíam diversas autodeterminações, a identidade racializada de “índios” e “negros” enquanto inferiores ao “branco” que os subjuga. Assim como é forjado o patriarcado, um “projeto de dominação-exploração da categoria social homens” (SAFIOTTI, 2001, p.115) em relação às mulheres, auxiliado pela violência.

Na pesquisa, ao darmos enfoque à divisão social, sexual e racial do trabalho, trazendo um elemento importante para pensarmos o grau de exposição à exploração e opressão vivenciado pelas mulheres nessa sociabilidade, precisamos pôr em relevo a definição da categoria “trabalho” nas diferentes formas em que é compreendida e no seu deslocamento e centralidade que adquire na modernidade – e especificamente em um país periférico, de marcas escravistas. Consideramos importante entender como essa construção traz determinada concepção de mundo, de ser humano e de natureza, expressos a partir de um lugar – a Europa, e suas bases cristãs. É no século XIX que Marx vai rediscutir o sentido e a especificidade do trabalho no âmbito da sociedade burguesa.

Tratamos também dessa categoria pela perspectiva das diferentes contribuições feministas a respeito, que são fundamentais para complexificar sua compreensão.

Os movimentos feministas dos anos 1970, preocupados em analisar o trabalho doméstico não remunerado, majoritariamente realizado por mulheres, também questionam o conceito marxiano de trabalho, problematizando a dualidade entre trabalho produtivo/improdutivo e apontando a importância da reprodução da força de trabalho para a acumulação de capital. Dessa forma, indicam que a divisão sexual do trabalho, que sob a ação do patriarcado naturaliza que as tarefas domésticas sejam realizadas exclusivamente pelas mulheres, mantém sua invisibilidade para a sustentação do trabalho dito produtivo.

Porém, ao tratarmos do trabalho feminino nas Américas, é preciso nos atentarmos para a condição das mulheres “negras”, que o vivenciaram sob a forma da subjugação violenta da escravidão, destoando da imagem de mulher frágil, dócil e cuidadora do lar atribuída às mulheres brancas, como trata Davis (2013).

Historicizamos e debatemos a categoria trabalho expondo suas determinações violentas numa sociabilidade anunciada como “civilizatória”, especialmente na América Latina.

Ao tratarmos da pesca artesanal, trabalho que não está vinculado diretamente aos mecanismos da economia industrial, destacamos que as teorias da modernização e desenvolvimento que reafirmam a oposição entre atraso/progresso, campo/cidade desenvolvido/subdesenvolvido, tornam as atividades correspondentes a populações tradicionais sinônimo do atraso que deve ser superado pelo progresso, com base na Europa e na sociedade norte-americana fortemente idealizada, como modelo universal a ser seguido.

A despeito das invisibilidades, opressões e contradições do desenvolvimento predatório capitalista, entendemos que essas mulheres constituem formas de resistência no território em relação aos seus modos de vida específicos, de acordo com a perspectiva de Lugones (2014, p.939):


[...]em vez de pensar o sistema global capitalista colonial como exitoso em todos os sentidos na destruição dos povos, relações, saberes e economias, quero pensar o processo sendo continuamente resistido e resistindo até hoje. E, desta maneira, quero pensar o/a colonizado/a tampouco como simplesmente imaginado/a e construído/a pelo colonizador e a colonialidade, de acordo com a imaginação colonial e as restrições da empreitada capitalista colonial, mas sim como um ser que começa a habitar um lócus fraturado, construído duplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente, onde os "lados" do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla.


Com base na abordagem da autora, que entende a resistência como a tensão entre a sujeitificação e subjetividade ativa, não pretendemos pensar a resistência e as formas de existência como um fim em si mesmo, mas como uma possibilidade de luta política. Nesta linha, a interpretação de histórias, rituais, manifestações de anseios e da produção de conhecimento sobre a pescaria é nosso principal recurso para compreender as “brechas” criadas pelas mulheres da comunidade contra as

investidas de mercantilização da pesca - que assolam de distintas formas as comunidades pesqueiras.

Assim, percebemos que a luta pelo reconhecimento das demandas da pesca não é somente por políticas públicas que contemplem os/as pescadores/as, mas por uma cultura política que os reconheça como sujeitos.


Referências


ACSELRAD, Henri. Justiça Ambiental e Construção Social do Risco. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Ed. UFPR, Curitiba, v. 5, p. 49-60, 2002.


BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960.


DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. Tradução Livre. Plataforma Gueto. 2013.


LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.


MARTINS, Paulo H. O ensaio sobre o dom de Marcel Mauss: um texto pioneiro da crítica decolonial. Sociologias, Porto Alegre, v. 36, n. 16, p. 22-41, 2014.


MÉSZÁROS, István. A Crise Estrutural do Capital. Trad. Francisco Raul Cornejo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.


QUIJANO, Alberto. Os fantasmas da América Latina. Em: NOVAES, Adauto (org).

Oito visões da América Latina. São Paulo: SENAC, 2006, p. 49-85.


SAFFIOTTI, Heleieth I.B. Contribuições Feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu (16) 2001: p.115-136.