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v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X


BRINCAR, SORRIR, LUTAR POR REFORMA AGRÁRIA POPULAR: A EXPERIÊNCIA DE AUTO-ORGANIZAÇÃO DAS CRIANÇAS SEM-TERRINHA DO MST/RS1

Vanessa Gonçalves Dias2 Dynara Martinez Silveira3 Daniel do Nascimento4


Resumo


O presente artigo apresenta a experiência realizada com crianças de 03 a 12 anos de idade do Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST) no Rio Grande do Sul (RS), investigando as formas de participação e de auto-organização das crianças Sem-Terra no Encontro Regional das Crianças Sem- Terrinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre no ano de 2017. O estudo fundamentou-se no materialismo histórico dialético (TRIVIÑOS, 1987; VÁZQUEZ, 2007). Como resultados apontamos que a auto-organização e a participação das crianças têm protagonizado novas estratégias educativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, quando articula a experiência do brincar com as lutas sociais em defesa da Reforma Agrária Popular e da Educação do Campo.

Palavras-chave: Infância; MST; Auto-organização; Sem Terrinha; Movimentos Sociais.


JUGAR, SONREÍR, PELEAR POR LA REFORMA AGRARIA POPULAR: LA EXPERIENCIA DE AUTOORGANIZACIÓN DE LOS NIÑOS SIN TIERRA DE MST/RS


Resumen


El presente artículo presenta a experiencia realizadas con niños de 03 a 12 años de edad del Movimiento de los Trabajadores Rurales (MST) en Rio Grande do Sul (RS), investigando las formas de participación y de autoorganización de los niños sin tierra en el Encuentro Estadual de los Niños Sin Terrinha, en la Región Metropolitana de Porto Alegre, en el año de 2017. El estudio se fundamentó en el materialismo histórico dialéctico (TRIVIÑOS, 1987; VÁZQUEZ, 2007). Como resultados apuntamos que la autoorganización y la participación de los niños han protagonizado nuevas estrategias educativas del Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra, cuando articula la experiencia del juego con las luchas sociales en defensa de la Reforma Agraria Popular y de la Educación Rurales.

Palabras clave: Niñez; MST; Auto-organización; Sin Terrinha; Movimientos Sociales


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1Recebido em 01/04/2019. Primeira avaliação: 08/04/2019. Segunda avaliação: 18/04/2019. Aprovado em 19/08/2019. Publicado em 27/09/2019.DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38046

2 Pedagoga. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEDU na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante dos Grupos de Pesquisa: Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (TRAMSE/UFRGS). Bolsista CAPES. vanygd@yahoo.com.br. https://orcid.org/0000-0001- 8419-9376

3 Pedagoga. Professora de Educação Infantil. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEDU na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante dos Grupos de Pesquisa: Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (TRAMSE/UFRGS). dynara.silveira@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-2771-7920

4 Bacharel em Serviço Social. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural

- PGDR Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Setor Educação MST/RS. Bolsista CAPES. danipn1990@gmail.com

TO PLAY, TO SMILE, TO FIGHT FOR THE POPULAR AGRARIAN REFORM: THE SELF- ORGANIZATION EXPERIENCE OF LANDLESS CHILDREN FROM MST/RS.


Abstract


This article presents the experience of children from 03 to 12 years old of the Rural Workers Movement (MST) in Rio Grande do Sul (RS), which investigated the ways of participation and self-organization of Landless Children in the Landless Children Regional Meeting in the Porto Alegre Metropolitan Region in 2017. The study was based on dialectical historical materialism (TRIVIÑOS, 1987; VÁZQUEZ, 2007). In terms of results, we point out that the self-organization and the participation of children have been leading new educational strategies of the Landless Rural Workers Movement, when it articulates the experience of playing with the social struggles in defense of the Popular Agrarian Reform and the Rural Education.

Keywords: Childhood; MST; Self-organization; Landless Children; Social movements.


Introdução


Na América Latina, crianças e adolescentes somam quase a metade da população total. Metade dessa metade vive na miséria.

Sobreviventes: na América Latina, a cada hora, cem crianças morrem de fome ou de doenças curáveis, mas há cada vez mais crianças pobres em ruas e campos dessa região que fabricam pobres e proíbe a pobreza. Crianças são, em sua maioria, os pobres; e pobres são, em sua maioria, as crianças. E entre todos os reféns do sistema, são elas que vivem em pior condição. A sociedade as espreme, vigia, castiga e às vezes mata; quase nunca escuta, jamais a compreende. [...] Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana.

(Eduardo Galeano, 2011).


Os estudos sobre a infância vêm mostrando os desdobramentos da sociedade capitalista na limitação dos direitos à infância e do empobrecimento das crianças, que afetam principalmente as crianças da classe trabalhadora, reafirmando espaços de “não participação” das crianças na esfera política e no distanciamento com o mundo do trabalho. Nesse sentido, ao não aceitar a exclusão e a imposição fatalista de ocupar a margem menos favorecida da sociedade, os movimentos sociais, por meio de suas lutas, vem produzindo novos sujeitos sociais, os quais acabam questionando e contestando a forma hegemônica produzida pelo capitalismo. Conforme ressalta Caldart.

[...] ser Sem-Terra é também mais do que lutar pela terra; sem Terra é uma identidade historicamente construída, primeiro como afirmação de uma condição social: sem-terra, e aos poucos não mais comouma

circunstância de vida a ser superada, mas como uma identidade de cultivo: Sem-Terra do MST! (CALDART, 2001, p.211).


Assim, as crianças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), podem dar uma grande contribuição aos estudos da infância. As crianças nos assentamentos e acampamentos do MST têm um papel ativo fundamental na organização e na luta pela terra e pela educação no Brasil. As discussões em torno da educação infantil e da infância no MST emergiram da necessidade de compartilhar com as famílias sem-terra os cuidados da educação dos filhos. No começo as necessidades deram início às primeiras experiências de atendimento organizando crianças em assentamentos a partir da participação das mulheres nas cooperativas de produção e do avanço da participação das mulheres na militância (cursos, formações, reuniões). Experiência de creches permanentes nas cooperativas e creches itinerantes nos acampamentos impulsionaram as primeiras discussões sobre a educação das crianças pequenas. Posteriormente surgiram os “círculos infantis” que se tornaram as “cirandas infantis”, conforme afirma a pesquisadora Ramos.

Com a desapropriação da terra, fase importante para a formação do assentamento, o MST precisa dar resposta organizativa à luta inicial na organização desses espaços. Nesse caminho, luta por formas alternativas de produção da vida coletiva, luta por escolas nos seus territórios e outras práticas educativas, consideradas alternativas como a organização da Ciranda Infantil e Jornada dos Sem Terrinha, vivências que os coletivos do MST foram socializando e desenvolvendo práticas de formação, educação e produção na base do Movimento em todo Brasil. (RAMOS, 2016, p. 60).


O primeiro Congresso Infantil do MST, no ano de 1994, com o slogan “Com a luta infantil mudaremos o Brasil” em Porto Alegre, foi a primeira atividade de mobilização infanto-juvenil organizada pelo setor de educação do MST. As mobilizações logo se expandiram para outros estados e passaram a ser chamadas de “Encontros Sem- Terrinha”. Percebe-se que ao longo dos anos, os Encontros Estaduais das Crianças Sem-Terrinha no estado do Rio Grande do Sul têm contribuído para a mobilização e organização das crianças e de seus familiares como espaço de denúncias contra as condições que as crianças enfrentam nos assentamentos/acampamentos e nas escolas.

Assim, o próprio movimento da luta é responsável por educar seus sujeitos. Caldart (2001, p. 220), afirma que, “deve-se ter presente que a pedagogia que forma novos sujeitos sociais, e que educa seres humanos não cabe numa escola. Ela é muito

maior e envolve a vida como um todo”. O que não significa que o movimento não reivindique o direito a escolas, o que se quer é que essa educação aconteça de forma ampla, não dentro de uma educação tradicional, em que, constantemente, prevalece a hegemonia burguesa. Desse modo, objetivamos investigar as formas de participação e de auto-organização das crianças sem terra no Encontro Regional das Crianças Sem-Terrinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre.

O presente trabalho foi fundamentado na perspectiva do Materialismo Histórico Dialético, que é um método que visa não apenas interpretar a realidade, mas fornecer as bases teóricas para sua superação. “O materialismo histórico dialético, como método e como filosofia, serve por sua vinculação consciente como uma práxis revolucionária à transformação do mundo”. (VÁZQUEZ, 2007).

Nessa perspectiva direcionamos nosso percurso metodológico em dois eixos, sendo eles: a) fontes bibliográficas sobre a concepção de infância e auto-organização nos documentos do MST; b) a realização de observações participantes e entrevistas com crianças e educadores/as do MST. Ao longo do texto são discutidos três aspectos; em primeiro lugar, situamos a discussão sobre as concepções de infância ao longo da história da humanidade; em seguida, tratamos sobre o MST, a infância e a Educação do Campo e por fim, apresentamos a experiência do Encontro das Crianças Sem-Terrinha Regional ocorrido em Nova Santa Rita no Rio Grande do Sul- RS no ano de 2017.


Breves considerações sobre as concepções de infância


Para que possamos vislumbrar ao horizonte a perspectiva de uma emancipação humana, é preciso que haja um movimento da sociedade em busca de uma transformação social, e na perspectiva de Mészáros (2008), esse caminho passa pela educação que não se limita às paredes, pelo contrário transcorre por toda a vida, a fim de superar a opressão, a exploração entre os seres humanos. E se tal movimento perpassa toda vida, o faz também pela infância, pela vida da criança.

Ao pesquisar e escrever sobre “infância” fica claro o papel de Philippe Ariès (1981), importante historiador francês do séc. XX, nessa história e campo de investigação. O estudioso foi o pioneiro no resgate das fontes até então desconsideradas pela história tradicional, no sentido de considerar a infância como

categoria social. Sendo assim, os estudos internacionais sobre a infância influenciaram muitos dos conhecimentos e das discussões acerca do tema no Brasil, trazendo, segundo Gouvêa (2007, p. 17), “em seu bojo a discussão sobre a multiplicidade de vivências das crianças definidas pelos diferentes pertencimentos sociais, étnicos, religiosos, familiares, de gênero, etc.”. Contudo, não pretendemos delinear a infância, tal qual o modelo que norteia às políticas públicas, que não considera a diversidade cultural e econômica, nem mesmo asdesigualdades sociais. Essas transformações sociais emolduraram, ao longo dos séculos, distintas imagens por vezes desbotadas, por vezes coloridas da infância. Melhor dizendo, das infâncias: medieval, europeia, americana, pobre, rica, branca, negra, etc. Devemos considerar, segundo Charlot (2013, p. 349), que “toda criança apresenta uma personalidade social e desenvolve comportamentos que refletem seu pertencimento de classe”. Já entre o século XV e XVI a infância foi laicizada, e mesmo retratada, mas foi efetivamente em meados do séc. XVII que a ideia de infância foi associada à natureza humana e à cultura. Nesse período surge também a ideia de amor maternal, atrelado ao sentimento de dependência e proteção. Aos poucos os caminhos se

abriram para que a infância passasse a ser estudada por cientistas educadores.

Tais conceitos acerca do interesse pelos infantes na modernidade são resultados das observações de historiadores, por vezes na esfera cultural, outras na esfera econômica. Esse foi um período de transformações, como já foi assinalado anteriormente. Deste modo, a infância não é algo que resultou da “natureza”, mas da modernidade, responsável pela construção histórica do sentimento de infância. De acordo com Freitas (2009, p. 12), essas proposições “revelam um século vazado pela ideia de que o desenvolvimento econômico é uma política preventiva global contra o desamparo da infância”. A infância, para Kuhlmann Jr. (1998, p.16), “[...] tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado é função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel”. (KUHLMANN JR., 1998, p. 16).

De acordo com os escritos de Heywood (2004), a idade adulta continuou sendo a fase fundamental da vida, ainda no século XX, enquanto a infância era um período de preparação, cujos estudos davam ênfase à evolução e à socialização com objetivo claro de transformar em um adulto maduro, completo, aquele que outrora foi uma

criança imatura, irracional, incompetente, associal e acultural, ou seja, fazer da criança um sujeito civilizado segundo costumes socialmente validados. Dessa forma, cada discurso vai trazer sua forma de representação de si mesmo e dos outros. Independente desta representação a criança cresce, sua personalidade sofre transformações, está inserida em um espaço social adulto, ao qual ainda está se adaptando.

Gouvêa (2007) destaca que há uma diferença entre a história da infância e a da criança. A primeira resulta da relação cultural e social dos adultos com certo período etário; já a segunda surge a partir da própria criança em interação com o outro (adulto) e entre si, com a sociedade e a cultura. Para Leite (2009), a infância não consiste em uma fase biológica do ser humano, mas sim em uma construção cultural e histórica. Assim os termos “criança” e “infância” devem ser compreendidos de formas distintas, até porque “a infância deve ser compreendida como uma construção social” (HEYWOOD, 2004, p.12).

Consideramos que há uma distância entre o que realmente é ser criança e o que os adultos percebem ser, especialistas as veem como uma “possibilidade”, o que pode ou deve vir a ser. Sendo assim, o estudo da infância é comparativo, já que ocorre historicamente na sua inexistência/existência, e mesmo na relação a outras classes etárias. A própria infância é classificada, já que em seu interior há distribuições sociais, sejam elas classes sociais, etárias, culturais, de gênero, raça, em diferentes situações ambientais, sociais, educacionais. Inseridas nessas especificidades é que as infâncias se ajustam refletindo diferentes sentimentos, direitos e valores. A infância deixa de ser um período vazio para se tornar um período de maturação, afinal,

[...] ela não é mais ausência de humanidade e simples promessa de humanidade, mas presença de humanidade e risco de desumanização. Não é mais um período maldito e oco, marca da natureza humana perfectível. A infância não é mais julgada com referência a uma norma ideal de humanidade projetada no futuro, mas tendo em vista o dinamismo de seu desenvolvimento, que encontra sua fonte na verdadeira humanidade. A infância é humanidade e simboliza o que há de melhor na natureza humana: a inocência, a confiança, a liberdade, a criatividade, a perfectibilidade. (CHARLOT, 2013, p. 182-3).


Para Câmara (2007) a modernização e o progresso que perpassavam o início do séc. XX vieram acompanhados da preocupação de instituir o lugar que sujeitos sociais diferentes ocupariam com isso, o poder estatal cada vez mais interveio na esfera privada das famílias. Principalmente, através de políticas de proteção e

assistência às crianças pobres que se efetivavam por meio de ações jurídicas associadas à medicina e à educação. Aspectos como a pobreza, o trabalho infantil e até mesmo as relações entre a família e a escola contribuíram para que a infância fosse produzida e permanecesse como problema de governo. Podemos dizer que, de certa forma, a infância no Brasil foi “criada” após a Proclamação da República.

Na mira de intelectuais, políticos e reformadores estava a criança pobre que, segundo Câmara (2007, p. 266), “adquiriu uma multiplicidade de identidades, passando a configurar-se como abandonada, delinquente, desvalida, menor, deserdada da sorte, desamparada, infeliz, desprotegida”. Com isso, a produção da infância passa a ser um problema do Estado, afinal se defrontam o público e o privado, e neste contexto a escola surge como uma instituição civilizatória, capaz de produzir novas atitudes e valores.

Em 1990 entrou em vigor uma lei que tratava da proteção de crianças e adolescentes de forma integral, a Lei nº 8.069, de 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente. A referida lei considera como criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, tendo garantidos os mesmos direitos de toda pessoa humana e de viver em um ambiente que permita o seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Mais recentemente outro documento - as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - conceitua criança como:

[...] sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2010, p. 12).


A pedagogia construiu a infância como um campo de conhecimento. É sobre o corpo infantil que a educação escolar deposita seu agir, e é na instituição escolar que a infância é encerrada. A pedagogia, e não poderíamos deixar de fora a psicologia infantil e a pediatria, foram responsáveis por operar e fornecer sentidos sobre a infância na modernidade. Ainda nos primórdios do século XX, ligada à ideia de infância produzida pela Modernidade, a escola se afirmou como agência de socialização/formação. Articulada à escolarização está o conjunto de tempos-espaços de “produção dos sujeitos” que estão ligadas às representações e práticas do que é ser e viver a infância no mundo do trabalho e na família.

O MST, a infância e a Educação do Campo.


Como foi retratado ao longo deste texto, o século XX, precisamente no Brasil, foi permeado por transformações que atingiram o cerne das relações sociais, políticas, culturais, econômicas e, por extensão, educacionais. Assim, deve ficar claro em que sociedade estamos inseridos, ou seja, em um capitalismo dependente que acentua as desigualdades e cuja classe dominante, “acresce à violência da expropriação da classe trabalhadora, especificamente capitalista, o estigma e os métodos da herança dos quase quatro séculos de escravidão” (FRIGOTTO, 2010, p 20).

Contudo, é fato que nenhuma transformação se dá na inércia, na estagnação de um ou mais grupos sociais, muito pelo contrário, é no seio dos Movimentos Sociais que as pessoas se unem para reivindicar, através da luta, seus direitos, muitos já dispostos na legislação nacional, mas esquecidos ou destituídos de concretude. Nessa perspectiva, os Movimentos Sociais podem ser compreendidos como,

[...] sujeitos organizados que se colocam na sociedade como expressão política de si mesmos, sem intermediações, que tem nas condições de reprodução da vida, que se relaciona com o trabalho e possibilidades de vida digna, o mote da sua existência. Neste sentido são portadores de reivindicações que apontam para a real universalização dos direitos. Aspectos que caracterizam estes Movimentos, apesar das especificidades, são a explicitação das contradições sociais, a construção de sujeitos, certa organização, capacidade de articulação, de mobilização, de luta coletiva, de construção de alternativas cotidianas e, dependendo do nível de politização, de articulação das lutas imediatas com as estruturais, das locais com as nacionais e internacionais, colocando-se na perspectiva de acúmulo de poder e de transformação social. (PALUDO, 2011, p. 02).


Os sujeitos e objetos em espaços relacionais constituem um território, em que rural e urbano, são perpassados por conflitos de interesse expressos em relações de poder que se inserem dentro de uma sociedade capitalista, como um campo de disputa (Cruz, 2008). Assim, Aued e Vendramini (2009, p.35) destacam que “[...] as últimas décadas têm sido marcadas, não apenas pela diversidade, mas, sobretudo, pela adversidade contraditória em relação às condições de existência social”.

Com isso, podemos dizer que existem territórios distintos dentro do campo: um camponês, heterogêneo, cujo objetivo da organização é o da subsistência e da existência através da produção de alimentos; e outro do agronegócio, homogêneo, que se organiza em torno da produção de mercadorias. Esse último vem se territorializando rapidamente, destituindo os espaços antes pertencentes à agricultura

camponesa, e assim, aumentando as desigualdades sociais e econômicas entre ambos. Dessa forma,

[...] o campesinato é uma classe que, além das relações sociais em que está envolvido, tem o trunfo do território. A cada ocupação de terra, ampliam-se as possibilidades de luta contra o modo capitalista de produção. E pode se fortalecer cada vez mais se conseguir enfrentar e superar as ideologias e as estratégias do agronegócio, se conseguir construir seus próprios espaços políticos de enfrentamento com o agronegócio e manter sua identidade sócio-territorial. (SANTOS, 2008, p.50-51).


Com isso, para Ribeiro (2010, p. 188), é indispensável, “focalizar a produção camponesa como a que envolve o trabalho familiar, trabalho esse que assume uma dimensão educativa, daí porque a importância de articular ensino e trabalho”. Esses sujeitos não reivindicam apenas terra, também trabalho e escola para seus filhos. A partir dos anos 1980, famílias inteiras começam a participar do Movimento para ocupação de terras improdutivas, principalmente organizadas e orientadas pelo MST de forma ativa, em diferentes frentes, provocando e sendo provocado pelas disparidades em que vivem os povos do campo. Esse movimento que tem conseguido despertar e aumentar o nível de consciência destes sujeitos, em relação aos seus direitos e do acesso ao conhecimento para que o meio rural se desenvolva. Desse modo, o MST tem por princípio educativo o trabalho. Frigotto entende que,

[...] a mais orgânica e ampla e, por isso, a mais combatida pela classe burguesa brasileira, é a do projeto societário e educativo do Movimento dos Sem Terra. Por articular a educação a mudanças radicais no projeto societário, é ali que vislumbramos os elementos mais avançados de uma educação que busca ir além do capital e, portanto, é contra-hegemônica ao projeto social e educacional de capitalismo dependente no Brasil. (FRIGOTTO, 2010, p. 34).


O MST a fim de construir um novo sujeito principia pela conquista da terra e, concomitantemente, estende sua luta rumo ao direito à educação. De acordo com Caldart (2001), a articulação do MST deu-se entre o período de 1979 e 1984, nesse ano, ocorreu o 1° Encontro Nacional dos Sem-Terra reunião que se tornou o ponto de partida do conhecido, e por que não dizer polêmico MST, inaugurando uma nova fase de luta pela terra no país. Para o MST (2005, p. 12), “ocupar e acampar são as formas encontradas pelos Sem-Terra para pressionar o governo a resolver o problema agrário, a cada dia mais profundo”.

As lutas do Movimento refletiram positivamente na construção da Constituição Federal de 1988, com o artigo 184, sobre a desapropriação de imóveis rurais que não

estejam cumprindo sua função social, e o artigo 186, sobre o cumprimento da função social. Tais fatos elevam o MST a um segundo nível de sua luta, fazer com que essas medidas sejam efetivadas, bem como a construção de novas relações sociais e um novo projeto de desenvolvimento para o campo e para o país. Para Frigotto (2010, p. 38),

[...] na educação e pedagogia do campo, parte-se da particularidade e singularidade dadas pela realidade de homens e mulheres que produzem suas vidas no campo. Todavia, não se postula o localismo e nem o particularismo, mediante os quais se nega o acesso e a construção do conhecimento e de uma universalidade histórica rica, porque é a síntese do diálogo e da construção de todos os espaços onde os seres humanos produzem sua vida. Educação e conhecimento apontam para uma sociedade sem classes, fundamento da superação da dominação e da alienação econômica, cultural, política e intelectual.


Para Caldart (2001) dentro do MST ocorre um movimento pedagógico de formação desses sujeitos, que adquirem uma nova maneira de ser humano capaz de pensar e, assim, tomar uma posição frente aos acontecimentos que se desenvolvem em seu tempo. Na luta, os Sem-Terra se politizam ao compreender seu problema num contexto mais amplo, constroem novas formas de conviver e viver nos assentamentos, em comunidades no campo, onde o que predomina é o interesse e o bem-estar de todos, do coletivo contrariando a forma dominante capitalista. Para Vendramini (2007,

p. 132), isso se dá porque há uma organização, articulação “com outras esferas da vida e outros sujeitos sociais tem permitido a reflexão sobre o sentido da escola. Além disso, tem-se constituído num confronto à educação mercantilista que caracteriza os sistemas de ensino na atualidade”.

A Pedagogia do movimento inspira-se na Pedagogia Socialista5, pois busca nos processos de luta pela terra e nas formas de resistência o resgate do trabalho como principio educativo, trazendo a dimensão pedagógica do trabalho e da organização coletiva. E na pedagogia da alternância6 que possibilita uma educação que conta com o processo de integração, socialização das experiências vividas nos diferentes tempos e espaços formativos. A caracterização da identidade cultural e histórica da luta pela terra e as formas de resistência são trabalhadas através da pedagogia da


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5 Aprofundar em Fundamentos da Escola do Trabalho, Pistrak (2000); Rumo ao politecnismo, Shulgin (2013); A Construção da pedagogia Socialista, Krupskaya (2017).

6 Ver em Dicionário da Educação do Campo (2012).

cultura-histórica, que resgatam memórias e simbologias construídas ao longo da trajetória sem terra.

Essa metodologia educativa permite a auto-organização das crianças, amplia a capacidade formativa de integração da teoria com a prática estabelecendo vínculos educativos, históricos, culturais com a sua realidade social fomentando a emancipação humana através das dimensões da formação humana e produção de novo conhecimentos. Dessa forma,

[...] aprendemos que o processo de formação humana vivenciado pela coletividade Sem Terra em luta, é a grande matriz para pensar uma educação centrada no desenvolvimento do ser humano, e preocupada com a formação de sujeitos da transformação social e da luta permanente por dignidade, justiça, felicidade. Buscamos refletir sobre o conjunto de práticas que fazem o dia-a-dia dos Sem Terra, e extrair delas lições de pedagogia, que permitam qualificar nossa intencionalidade educativa junto a um número cada vez maior de pessoas. A isso temos chamado de Pedagogia do Movimento. (MST, 2005, p. 233).


Como podemos ver até aqui, fica claro que os processos educativos do MST foram moldados, juntamente com a luta pela terra, por garantia de políticas públicas, pelos Movimentos e pelas organizações sociais do campo, principalmente, o MST que, desde o início de sua história, reivindica o direito de ter escola pública em seus acampamentos e assentamentos. Foi na década de 1990 que este movimento ganhou mais força, com a participação da Via Campesina e de outros Movimentos, que erguiam entre suas reivindicações específicas também, a bandeira da educação escolar.

No entanto, a adequação da Educação Básica para a população rural surge nas proposições da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394/96 que, em seu artigo 28, deixa claro que devem ser promovidas “adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região”. Apesar disso, as Diretrizes representam uma vitória e abarcam proposições do Movimento de Educação do Campo. Contudo, somente em 2002 é que as “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo” abordam a necessidade de uma educação diferenciada para os que vivem e trabalham no campo.

Nesse sentido, muitas conquistas educacionais para a população do campo, em específico e para educação dos trabalhadores de modo geral, foram conseguidas pelas reivindicações e lutas dos movimentos sociais, sendo o MST aquele que se destaca no cenário nacional, sem, é claro, esquecer que há outros movimentos que

lutam. A Educação do Campo foi um desses direitos adquiridos pelas reivindicações, lutas e marchas dos Sem-Terra e de seus “Sem-Terrinhas”.


A experiência de auto-organização das crianças no Encontro Regional das Crianças Sem-Terrinha - RS


“Sou Sem-Terrinha do MST, acordo todo dia pra Lutar, você vai ver! Sou sem-terrinha do MST acordo todo dia pra lutar você vai ver lutar por terra, escola, saúde, educação

desse meu direito eu não abro mão!”

(Sem-Terrinha).


“O ânimo rebelde tem estado presente nadignidade dos que se recusam a se deixar assimilar por hordas e manadas; tem se manifestado na dignidade dos que repelem os processos que parecem tender a militarização da vida. Essa certa chama de rebeldia eleva o teor das

formas de existência coletiva”.

(Leandro Konder)


Os Encontros dos Sem-Terrinha são considerados atividades organizativas e políticas realizadas pelo MST, geralmente ocorrem no mês de outubro, correspondendo à Semana da Criança. Essa atividade faz parte do processo de organização das crianças dos acampamentos e assentamentos do MST e é realizado nos estados de todo o país em que o MST está organizado. Tendo uma abrangência regional ou estadual, dependendo das condições de cada Estado, a duração dos encontros é de um até três dias. Nesse espaço as crianças reúnem-se para socializar experiências de suas escolas assentamentos e acampamentos, fazendo oficinas, brincando e estudando sobre diversas temáticas, a cada nova edição uma nova temática é escolhida.

Para o MST a auto-organização é um elemento central, onde são construídos espaços de diálogos junto às crianças para se tornarem ativas no compromisso com a classe trabalhadora. O MST incentiva a participação e apropriação do conhecimento, através da cultura, da arte, do estudo, da socialização, da solidariedade e do direito de ter qualidade de vida no campo, com educação, saúde e alimentação de qualidade.

Entendemos a auto-organização o direito dos educandos se organizarem em coletivos, com tempo e espaço próprio, para analisar e discutir as suas questões, elaborar propostas e tomar suas decisões em vista de participar como sujeitos da gestão democrática do processo educativo, e da escola como um todo. Este é um espaço de aprendizado e como tal deve ser acompanhado por um/a educador/a

que respeite a autonomia dos estudantes. (Caderno de Educação, nº 09, p. 14, 1999).


Os Encontros das Crianças Sem-Terrinha no Rio Grande do Sul ocorrem nas formas regionais ou estaduais. No período analisado aconteceram seis grandes encontros regionais com os temas “Alimentação Saudável: um direito de todos” e “Reforma Agrária Popular e Agroecologia”, envolvendo cerca de 1.500 crianças. Cabe frisar que o MST no estado do RS se organiza em 10 grandes regiões7, porém, devido ao período de fortes chuvas e sem condições de acessibilidade, quatro regiões não conseguiram realizar o encontro. Ambas as edições contaram em sua programação com a preparação para o 1º Encontro Nacional das Crianças Sem-Terrinha, que ocorreu em maio de 2018 em Brasília/DF.

Assim, o objetivo do encontro regional, nessa edição, foi o de construir uma pauta coletiva das crianças com a sociedade em geral sobre os benefícios da alimentação saudável, com vistas a ampliar o consumo e a produção de alimentos sem venenos, conhecer também os malefícios do uso indiscriminado de agrotóxicos através de estudo, práticas e oficinas envolvendo jogos, culinária e atividades culturais.

Na região metropolitana o evento acorreu no Assentamento Capela de Santana localizado no município de Nova Santa Rita/RS, no ginásio da cooperativa COOPAN (Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita) que tem a produção de arroz, frigorífico, panificação e produção leiteira. A cooperativa abrange, aproximadamente, 48 famílias. A organização do encontro deu-se com uma grande equipe de articulação política e pedagógica dentro de um planejamento ampliado com


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7 Conforme informações disponibilizadas pelo setor de Educação do MST/RS e do Jornal Sem Terra: Na Região da Campanha aconteceram as caravanas das escolas, trabalho temático “Sem Terrinha na agroecologia e as sementes” e montagem do “Varal dos Sem Terrinha”. Na Região das Missões tiveram atividades práticas de biofertilizantes com profissionais técnicos e estudos sobre alimentação saudável. Na Fronteira Oeste — São Gabriel ocorreu uma marcha até o Ministério Público e a prefeitura para entrega das pautas de reivindicações e a tarde palestras sobre alimentação saudável e sessão de cinema. Na região da Fronteira Oeste — Santana do Livramento tiveram atividades de formação, com oficinas e brincadeiras e entrega de pauta de reivindicações à Secretaria Municipal de Educação e 19ª Coordenadoria Regional de Educação. Na fronteira Oeste — Manoel Viana, foi realizada uma recepção aos Sem Terrinha e debatidas as demandas da escola e do Assentamento Santa Maria do Ibicuí e o trabalho com a revista Sem Terrinha, debate em preparação ao 1º Encontro Nacional dos Sem Terrinha e estudo sobre a alimentação saudável e agroecologia. E por fim, na região Sul as crianças caminharam pelas ruas da cidade de Canguçu em defesa da saúde, por educação de qualidade e melhorias das condições para viver no campo. Ocorreu também entrega de carta às autoridades locais, com as principais pautas dos Sem Terrinha.

a participação e protagonismo das crianças, por meio de dez reuniões de organização e encaminhamentos, que antecederam o evento.

A ideia inicial foi de articular as crianças do campo e da cidade. Foram realizadas inúmeras reuniões com lideranças das ocupações urbanas de Porto Alegre e da Região Metropolitana, para que as crianças pudessem construir uma pauta única tanto do direito à cidade, quanto às reinvindicações camponesas, no entanto, pela dificuldade em arrecadar verbas as crianças urbanas não conseguiram participar integralmente do encontro. Nossa inserção enquanto pesquisadores se deu de forma a acompanhar e apoiar a organização do evento, em seus dois dias, além de realizar o registro de 12 observações participantes8 e 05 entrevistas (em forma de conversas grupais) semiestruturadas9 com as crianças e educadores vinculados ao MST. O critério de escolha foi o de observar, escutar, conversar e compreender os diferentes pontos de vista pelos diferentes sujeitos no evento (crianças e educadores).

Os temas para as conversas grupais foram desde o resgate histórico dos encontros dos sem-terrinha até a atual importância da mobilização das crianças, além de identificar as formas de participação e auto-organização das crianças durante todo o evento. A organização coletiva nos encontros implicou em repensar necessariamente a participação de todos, o que significa que a direção dos processos foi realizada por muitos sujeitos e que todos puderam participar de todas as suas esferas, desde as ações politicas, ações de autosserviço, bem como dos espaços culturais.

Para isso, os tempos educativos do encontro incluíram: 1) organização política (construção da carta, espaço de construção de escritas coletivas, jornal sem terrinha; 2) momentos culturais; 3) momentos da alimentação e saída de campo. Quanto à organicidade desse encontro, as delegações10 foram divididas nas tarefas de auto-


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8“Definimos observação participante como um processo pelo qual um pesquisador se coloca como observador de uma situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador, no caso, fica em relação direta com seus interlocutores no espaço social da pesquisa, na medida do possível, participando da vida social deles, no seu cenário cultural, mas com a finalidade de compreender o contexto da pesquisa.”. (MINAYO, 2013, p. 70).

9Para Triviños (1987) a entrevista semiestruturada tem como característica questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema da pesquisa. A entrevista semiestruturada “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...]” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).

10 Conforme o setor de Educação do MST: “As delegações são as organizações de cada localidade e/ou acampamentos e assentamento de onde vêm às crianças, para cada delegação há duas crianças que são responsáveis pela sua organização e tarefas anteriores e posteriores ao evento” (2016; 2017).

organização em grupos: de estudo; mística; oficinas e construção de documentos. O autosserviço constava em limpeza do espaço; limpeza da louça; horários de banho; almoço e lanches. Em todas as tarefas havia rodízio das crianças conforme as localidades e assentamentos/acampamentos. Pois, de acordo com Caldart,

A expressão organização coletiva traz certa redundância: não há coletivo sem organização, e o processo coletivo visa geralmente à constituição de um coletivo. Mas aqui o seu uso visa chamar a atenção para um duplo sentido através do qual é possível compreender a sua dimensão educativa. Organização remete ao ato ou processo de organizar-se em vista de realizar coletivamente uma determinada ação; mas também se refere à coletividade produzida através das ações organizadas (CALDART, 2004, p. 342).


Complementando o debate sobre a importância o autosserviço. Pistrak afirma:

A educação para o trabalho deve começar com o trabalho cotidiano, de autosserviço. Para que o estudante seja conduzido às mais altas formas de trabalho industrial, é preciso passar ele mesmo por um determinado período de acumulação de grande variedade de habilidades de trabalho; é preciso começar a partir daqueles com os quais ele se encontra na vida cotidiana. (PISTRAK, 2015, p.172).


Para a realização das ações do encontro o autosserviço abrangeu as práticas de trabalho articuladas com os objetivos do encontro, o trabalho para si e para os outros como a organização dos tempos e dos espaços de alimentação, a limpeza do espaço e das louças. Conforme Pistrak (2002, p. 207) “esse tipo de atividades podem ser realizadas por comissões e grupos temporários, etc., que são dissolvidos quando termina a tarefa”. Como disse uma das crianças sobre as tarefas e a divisão de grupos,


[...] A gente espera o ano todo para ir participar do encontro sem- terrinha, é muito bom a gente se prepara antes com musicas e brincadeiras. Lá nós temos tarefas e nos divididos por grupos, onde cada grupo tem uma tarefa, mas como todo mundo ajuda é bem rápido e divertido”. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com crianças Sem Terrinha, 2017).


No primeiro dia do encontro houve a recepção das crianças sem-terrinha no assentamento com místicas, canções criadas pelas próprias crianças e algumas brincadeiras. Conforme imagem abaixo:

Figura 1: Recepção das crianças


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Fonte: Setor de Educação MST, 2017.


Para crianças bem pequenas havia um espaço de ciranda com canções, brincadeiras camponesas e atividades de pinturas com elementos do assentamento (folhas, galhos, sementes etc). Segundo documentos do movimento:

A Ciranda Infantil é um espaço educativo, organizado com o objetivo de trabalhar as várias dimensões do ser criança Sem Terrinha, como sujeito de direito, como valores, imaginação, fantasia e personalidade em formação, vincular as vivências com a criatividade, a autonomia, o trabalho educativo, a saúde e a luta pela dignidade de concretizar a conquista da terra, a reforma agrária, as mudanças sociais (MST, 2004, p. 37).


Logo após, para as crianças de sete anos em diante ocorreu o debate em grupos sobre as orientações para o 1º Encontro Nacional dos Sem-Terrinha, onde ficaram definidas as tarefas que cada participante na construção do encontro nacional, bem como quem seriam as representações do estado, uma vez que teria vaga para apenas 80 crianças do estado. Além de educar para os acordos e decisões coletivas, as discussões desenvolveram o sentimento de pertencimento de que as crianças podem se conhecer e desenvolver maior confiança e organização coletiva. Conforme imagem abaixo:



Figura 2: Debate e construção do Encontro Nacional


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Fonte: Setor de Educação MST, 2017.


Conforme explicita uma das crianças:

[...] É importante pra nós conhecer as outras crianças, o trabalho que elas fazem no assentamento, a gente aprende bastante e é tudo bem organizado, todos tem tarefa de limpeza e organização do espaço, de cultura e mística, de coordenação do dia e também nós podemos avaliar no final e dizer o que mais gostamos e o que queremos para o próximo encontro. Quando a gente chega de volta no nosso assentamento temos muitas coisas pra contar pra nossa família e para os amigos que não foram. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com crianças Sem Terrinha, 2017).


Figura 3: Jogos e brincadeiras sobre a luta pela terra


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Fonte: Setor de Educação MST, 2017.



Uma das educadoras complementa sobre a importância da auto-organização das crianças como pauta no interior do MST e nos encontros:

[...] Um dos maiores objetivos do encontro dos Sem terrinha é de fortalecer a organicidade das Crianças Sem Terrinha em seus locais (comunidade, escola, assentamento e acampamento), mas também colocar na pauta do MST, enquanto organização, o debate, o trabalho e a organização com nossas crianças; o outro é de estimular espaços de auto-organização e autonomia das crianças Sem Terrinha, a construção dos encontros é uma das formas mais fortes e potenciais para que se potencialize espaços e processos de vivencias organizativas; e por fim, o processo indicação coletivo (nas escolas e por parte das crianças) de participação das crianças nos Encontros são sempre resultados deste trabalho nas bases e na vivencia da identidade das crianças, neste caso a criança vai representando a organização, as demais crianças. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com Educadores do MST,2017).


A coletividade ocorre articulada à capacidade das crianças de trabalharem coletivamente; e a auto-organização compreende responsabilidade, obrigações e, principalmente, compromisso com a coletividade. Apontam para esse debate Pereira e Ramos quando anunciam que,

[...] o espaço de coletividade das crianças do campo se constitui na participação no trabalho, nas atividades políticas, culturais e religiosas, na criação de espaços lúdicos, na luta pelos direitos que têm significação para a comunidade e para as crianças, intervindo do jeito delas e com suas presenças nas atividades que compartilham com os adultos. Do coletivo em que as crianças estão inseridas e das relações que esse coletivo estabelece socialmente, resultam aprendizagens que fortalecem a consciência do direito à vida, ao trabalho, à escola, à participação política e do direito de viver plena e dignamente o tempo da infância. (SILVA, PEREIRA e RAMOS et al., 2012, p. 420).


No período da tarde as crianças participaram da audiência com a Casa Civil em Porto Alegre. Nessa ocasião apresentaram demandas de todas as unidades regionais do MST. A reportagem sobre a audiência na Casa Civil enfatiza que:

Contra a reforma do ensino médio e a Lei da Mordaça. Denunciaram que a política de fechamento de escolas do campo, adotada pelo governo, também reivindicaram ao governo estadual mais segurança e qualidade nos transportes escolares, além da garantia de fiscalização dos veículos e melhoria das estradas. Outra pauta importante foi a alimentação escolar, que em muitas situações é a principal refeição dos educandos. As crianças solicitaram que 80% dos alimentos adquiridos para a merenda venham da agricultura familiar. Os Sem-Terrinha exigiram ainda medidas do governo para assentar famílias acampadas e para proibir a pulverização aérea e combater o uso abusivo de agrotóxicos, especialmente em áreas próximas às escolas. (MST, Jornal Sem Terra, 2017).


O momento de luta é de extrema importância para as crianças, pois elas que pautam e reivindicam as ações junto ao poder público, embora “o esperado encontro” com o governador do Rio Grande do Sul não tenha acontecido, a respeito dessa ocasião, posiciona-se uma das crianças: “[...] a gente gostou de ir lá e ler nossa carta, mas ele não apareceu, demoram um tempão para nos receber e falamos com outro moço”. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com crianças Sem Terrinha, 2017).


Figura 4: Audiência com o chefe da Casa Civil do RS


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Fonte: Setor de Educação MST, 2017.


No segundo dia do encontro as crianças puderam participar e organizar as oficinas pedagógicas de maracatu, agroecologia, jogos, teatro, etc. Esse momento foi bastante importante, pois participaram do encontro crianças quilombolas de outro território fora dos assentamentos do MST, que além de fazer apresentações artísticas, puderam trocar experiências sobre os diferentes modos de vida das crianças quilombolas e crianças assentadas, desde brincadeiras, modos de trabalho escola e alimentação.

A alimentação do encontro contou com doações de alimentos produzidos nos assentamentos, divulgando a diversidade produtiva dos assentamentos para o conjunto da sociedade. Através do cardápio e do debate da “Alimentação Saudável e da Agroecologia” foi possível perceber o quanto é importante e saboroso ter o conhecimento de outro tipo de alimentação, das variedades orgânicas de grãos que não sejam baseados em artificialidade e na exploração do trabalho e na degradação do meio ambiente. A respeito dessa temática, houve uma palestra sobre alimentação

saudável e cuidados com a terra, e uma visita junto às unidades de produção da Cooperativa COOPAN, ambas elaboradas e executadas por crianças e educadores.


Figura 5: Alimentação coletiva


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Fonte: Setor de Educação MST, 2017.


Ao final do encontro foram retomadas todas as combinações para o Encontro Nacional dos Sem-Terrinha; foram realizadas algumas místicas e a avaliação das crianças sobre o encontro além de uma pequena confraternização do Dia das Crianças.

Figura 6: Confraternização Dia das Crianças


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Fonte: Setor de Educação MST, 2017.

Conforme o relato de uma das educadoras:

Os encontros dos Sem Terrinha não só acontecem para comemorar o Dia das Crianças, mas também para que eles se mobilizem e reivindiquem seus direitos. As crianças querem que o governo cumpra sua responsabilidade com a educação do campo, que garanta o direito de ter uma escola com qualidade e vinculada às suas realidades. Elas estão em luta pela alimentação saudável, agroecologia e continuidade da política de Reforma Agrária no estado. (MST, Jornal Sem Terra, 2017).


Dessa forma, ratificamos a necessidade de construir cotidianamente novas formas, radicalmente opostas ao que encontramos hoje nas experiências de participação das crianças nos espaços formais e informais. Além disso, a partir da experiência das crianças sem-terra apontamos a importância das crianças tornarem- se protagonistas ativas de sua própria história. Para que, vivenciem e assumam os mais novos mecanismos de controle dos processos de educação, participação, trabalho e cultura, daí uma das pistas e potencialidades importantes das experiências de auto-organização das crianças sem- terra que podem ser desenvolvidas com vistas a transcender seus papeis de subserviência dentro e fora dos espaços escolares.


Considerações Finais


Este artigo abordou a discussão sobre o protagonismo, a mobilização e a auto- organização das crianças na organização do Encontro Regional das Crianças Sem- Terra, em Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, à luz do materialismo histórico dialético. A discussão realizada pautou-se num estudo sobre a experiência dessas crianças na organização do encontro no ano de 2017 que preparou os debates para o encontro nacional das crianças sem terra no ano de 2018. Deste modo, as reflexões indicaram que a auto-organização e participação das crianças sem-terra tem protagonizado novas estratégias educativas do MST, ao articular a experiência do brincar com as lutas sociais e a defesa da Reforma Agrária Popular.

As crianças se tornam protagonistas nesse processo na medida em que, rompem com a “pedagogia da obediência”, reivindicando melhorias e qualidade nas escolas do campo, qual sejam, transporte seguro e de qualidade, estrutura escolar e autonomia pedagógica nas escolas, denúncias do fechamento de escolas, que entendem a escola do campo como seu espaço de acolhida e integração camponesa. Além da auto-organização na organização das tarefas políticas se percebe a forma

cooperada como as crianças organizam os tempos, os espaços e a operacionalidade dos encontros.

Outra estratégia extraordinária é a forma criativa e não fantasiosa que as crianças têm do processo da produção de alimentos e da importância da alimentação saudável para a sociedade. Os sem-terrinha rompem na prática com a repetição da visão fatalista de que a monocultura e o agronegócio são a fonte da riqueza do campo, as crianças de forma criativa e disciplinada demonstram durante todo o encontro que alimentação saudável de matriz agroecológica é possível e necessária para transformações nas formas de produção e consumo no campo e na cidade.

Assim, as relações estabelecidas evidenciam um processo de construção de consciência crítica da realidade. Quando retornam às suas bases (assentamentos, acampamentos e escolas) as crianças despertam esse sentimento nos seus círculos formativos, consolidando concepções de formação humana que contrapõem a concepção hegemônica do capital, que impõe às crianças desde a mais tenra idade a forma mercadoria nas relações sociais.


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