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v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X


LUTA POR MORADIA E CONTRA A PRECARIZAÇÃO DA VIDA: CONVERSA COM O MTST1


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Fonte: Fotos Públicas. Ocupação Zumbi dos Palmares, do MTST, em São Gonçalo, Rio de Janeiro, 6 de novembro de 2014. Disponível em: https://fotospublicas.com/ocupacao-zumbi-dos-palmares-mtst-em-sao-goncalo-rio-de- janeiro/. Acesso em: 04, agosto e 2019.


Entrevista à Fabiana Batista realizada por Luiz Augusto de Oliveira Gomes2


A falta de acesso à habitação é um dos grandes problemas enfrentados no Brasil. O país está entre os com maior déficit habitacional do mundo, concentrado principalmente na região sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo). De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV)3, essa questão foi agravada entre os anos de 2015 e


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1 Entrevista recebida em 01/08/2019. Aprovada em 08/08/2019, pelos editores. Publicada em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38052

2 Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense.

3 Fundação Getúlio Vargas. Análise das Necessidades Habitacionais e suas Tendências para os Próximos Dez Anos. Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias - ABRAINC - Relatório Técnico Final - 2ª Versão 17 de outubro de 2018. Disponível em: https://www.abrainc.org.br/wp- content/uploads/2018/10/ANEHAB-Estudo completo.pdf. Acesso em: 18 Jul. 2019.

2017, período marcado pela alta taxa de desemprego e redução dos créditos de financiamento de imóveis.

Isso revela uma sociedade extremamente cruel, onde é negado o mais básico dos direitos à fração mais explorada da classe trabalhadora. Se levarmos em consideração as habitações em condições precárias, a situação é ainda mais preocupante. Conforme assinala Regina Ferreira (2012, p.1)4, “a falta de moradia ou a falta de moradia em condições adequadas para se viver de maneira digna sempre representaram um grave problema social, poucas vezes tratado como um problema público prioritário a ser respondido pelo Estado”. Esse quadro de precariedade é acentuado no país principalmente com a implementação das políticas neoliberais no final da década de 1980, cortando drasticamente os investimentos sociais.

Essa conjuntura de precariedade potencializou a ação dos movimentos sociais que lutam pelo direito à moradia. Só na cidade de São Paulo são mais de 160 entidades, das quais podemos citar a União de Movimentos por Moradia (UMM), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Frente de Luta por Moradia (FLM), o Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ) e a Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM). Os movimentos sociais organizados ganham força no final da ditadura empresarial-militar, principalmente em “torno das lutas pela moradia, regularização fundiária, saúde e saneamento” (FERREIRA, 2012, p.2). Podemos destacar a ação de dois principais grupos do período, a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM).

A luta por habitação, em especial no meio urbano, pressupõe também o direito à cidade. Essa concepção ganhou força no Brasil quando os movimentos de luta por moradia passaram a se articular com outros movimentos sociais.

Criado no ano de 1997, a partir da necessidade de organizar a luta dos trabalhadores em torno da moradia digna e da reforma urbana, um dos grupos de grande inserção na classe trabalhadora é o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Oriundo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e atuando nos centros urbanos, encontra-se, atualmente, em 14 estados brasileiros. O MSTS afirma que sua maior luta é contra o sistema capitalista e o Estado burguês, pois nesse


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4 FERREIRA, Regina Fátima Cordeiro Fonseca. Movimentos de moradia, autogestão e política habitacional no Brasil: do acesso à moradia ao direito à cidade. 2º Fórum de Sociologia “Justiça Social e Democratização”, realizado em Buenos Aires, de 01 a 04 de agosto de 2012. p 1-18.

modelo de sociedade não há espaço para atender os interesses da classe trabalhadora. Entretanto, para combatê-los é necessário um acúmulo de forças.

A Revista Trabalho Necessário traz uma entrevista com Fabiana Batista, historiadora e militante do MTST. Fabiana atua na área de comunicação, em nível nacional, além de fazer trabalhos de base no município de Niterói e ajudar a organizar uma cozinha comunitária no município de São Gonçalo. A entrevista foi realizada em 16 de julho, em Niterói, também no estado do Rio de Janeiro:


Trabalho Necessário: Vivemos em uma sociedade onde a proteção da propriedade privada é mais importante que qualquer outro direito básico contido na Constituição brasileira. O reflexo disso é o imenso déficit habitacional no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015)5, o déficit é de cerca de 7,757 milhões de moradias. Esses dados revelam uma sociedade extremamente cruel, onde é negado o mais básico dos direitos à classe trabalhadora. Esses números são agravados se levarmos em consideração as habitações em condições precárias. Diante disso, como você compreende as ações dos movimentos sociais de luta por moradia em um país com uma desigualdade social tão absurda como o Brasil?


Fabiana Batista: Uma ocupação acontece independente de um movimento social organizado. Quando as pessoas começam a ficar sem casa, a crise aperta e tem espaço vazio, seja um prédio ou um terreno, elas enxergam ali uma oportunidade para desafogar. Muitas vezes pagam o aluguel e não conseguem comprar comida, ou compram comida e acumulam meses de aluguel. Isso é muito comum nas periferias do Rio de Janeiro. Acredito que as ocupações existem por consequência do acirramento econômico. Não é só o problema que envolve moradia, mas da própria precarização da vida (falta de emprego ou a existência do emprego precarizado). O movimento social acaba organizando esse processo, é assim que o MTST se coloca. Por isso, existe uma diferença entre ocupação e invasão. A invasão é pensada por



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5 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Domicílios e déficit

habitacional. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/habitacao.html. Acesso em: 18 Jul. 2019.

pessoas que encontram um espaço vazio e invadem, sem um projeto político mais amplo. Já uma ocupação construída a partir de um movimento social tem a ver com a negociação. Tem como objetivo negociar a melhoria do espaço, dar uma estrutura para as pessoas viverem com dignidade. Fazendo uma retrospectiva da história recente, eu acho que o governo Lula foi muito importante na conquista de direitos. As pessoas foram inseridas em espaço que normalmente elas não estariam, como uma universidade ou em um emprego melhor. Entretanto, essas pessoas ainda continuaram vivendo precariamente, continuaram pagando aluguel, contudo, levando uma vida financeira menos apertada e conquistando direitos que sempre foram negados. Contudo, nessa conjuntura maluca que vem se desdobrando de 2014/2015 até os dias de hoje, a situação do trabalhador mais necessitado piorou bastante. O aluguel aumentou absurdamente e as pessoas começaram a viver em condições ainda mais precárias. Nesse momento é extremamente necessário que os trabalhadores e trabalhadoras se organizem. Nosso movimento viu na ocupação uma saída para que as pessoas de fato tenham uma moradia e possam viver dignamente sem precisar pagar.


Trabalho Necessário: Estamos presenciando um momento delicado na história do Brasil. A classe trabalhadora vem sofrendo com vários ataques aos direitos conquistados historicamente. Como a questão da luta pela moradia se insere neste momento? Você observa alguma mudança na característica das pessoas que participam das ocupações? Por que elas lutam?


Fabiana Batista: Primeiro, essa questão da criminalização. Eu entrei no MTST em 2014. Eu sou de São Paulo, mas nesse período já morava no Rio e nem conhecia o movimento. Quando entrei para militar comecei a perceber uma certa repressão por parte do Estado e da população com o movimento. Por parte da população era muito mais um ataque verbal do tipo "vai trabalhar, vagabundo". De lá para cá tudo mudou. O discurso de ódio ganhou potência. Agora eu escuto frequentemente ameaças tipo "se entrar aqui vai ter uma arma esperando" ou “vocês merecem morrer". Frequentemente marcam a página do MTST na internet em publicações de pessoas armadas com várias ameaças de morte. Eu sinto que tem muito mais ódio e isso dá

bastante medo. Se você é de movimento social você pode morrer em qualquer esquina. Eu sinto que a criminalização do movimento é impulsionada pelo governo. Se o governo diz que precisa combater por exemplo, o MST, como a gente sempre lê nos jornais, isso influencia muita gente, desde o fazendeiro que ganha aval para matar até os que se dizem “cidadãos de bem”. São essas pessoas que vão assassinar os nossos. A criminalização já existia em 2013/2014. Só lembrar das grandes manifestações. Mas acho que hoje em dia participar de movimentos sociais está ainda mais perigoso, principalmente com um governo que fala que tem que matar os militantes de esquerda. Eu por exemplo não saio mais com a camisa do MTST na rua. Por medo mesmo. Eu e os companheiros não saímos por medida de segurança. Não só pelos xingamentos. O risco agora de sofrermos um atentado é bem real. Em relação ao perfil das pessoas: A última vez que ocupamos aqui no Rio foi em 2017 e eu já notei uma grande diferença. Minha experiência de militância aqui no Rio de Janeiro me mostrou que a galera que procura as ocupações já é muito pobre. Quem vai ocupar é a galera que não tem condição nenhuma. Se for fazer um panorama nacional do MTST, as pessoas do Rio são as mais necessitadas. Em São Paulo por exemplo, tem uma galera que tem seu carro para trabalhar, consegue trabalhar, paga minimamente um aluguel. No Rio de Janeiro eu entendo que desde 2014 as pessoas que procuram as ocupações já são muito pobres. Além de muita gente sem casa, recebemos muitas pessoas que moram em terrenos de posse e na maioria das vezes em áreas de risco. Aqui é muito comum as pessoas morarem em posse. Que já é uma ocupação muito antiga, né? Isso tem muito sobre a história do Rio de Janeiro e as ocupações das favelas. Um problema que enfrentamos é a resistência de boa parte das pessoas que viveram um pouco melhor no governo PT. Essa galera que cursou ensino superior, ou ganha um pouquinho de dinheiro acaba não se associando a um sem teto. Não se identificam com uma necessidade de moradia. Por exemplo, eu mesma pago aluguel e tenho um bloqueio muito grande em me associar à luta por moradia para conseguir uma casa própria. Tem aquela velha lógica de quem fez ensino superior não é tão pobre. Só que isso não é real! Eu pago mais da metade do meu salário em aluguel. Definimos por sem teto aquelas pessoas que pagam mais de 70% do seu salário só em aluguel. Isso já define como sem teto. Eu vivo isso. A nossa geração, dos seus 25/30 anos vive isso. Tem um pouco a ver com a consciência de classe. A galera pensa que faz parte de uma classe mais abastada, mas continua

pobre. Aqui no Brasil entendendo classe de uma forma muito doida. O cara que ganha R$ 2.000,00 reais não entende que ele faz parte da mesma classe do cara que ganha R$ 300,00 reais por mês catando latinha. Tem muita gente pensando que é rico e isso dificulta a luta. O MTST tem um projeto bacana lá em São Gonçalo que é a cozinha comunitária. Desde o início do projeto até agora, o número de pessoas triplicou. Isso tem muito da nossa participação na região, mas também é efeito da crise econômica que o país passa. Antes eram por volta 80 pessoas e hoje já são mais de 200 que vão lá almoçar todo domingo [na cozinha comunitária]. Percebo que não é só uma mudança de perfil das pessoas que passaram a frequentar. Percebi também que quem já frequentava teve o seu perfil modificado. Pessoas que passaram a morar em lugares muito ruins, pessoas que viraram alcoólatras e que foram morar na rua. Desde 2014 que a gente acompanha as pessoas lá na cozinha. Tem alguns idosos que frequentam desde o início e hoje estão morando na rua ou moram em um cômodo que os meninos (tráfico de drogas) cedem para eles dormirem. Como assim, né? Percebo que o negócio começou a apertar mesmo a partir de 2017. Nossa tática antes de 2017 era que ninguém dormisse de primeira na ocupação. As pessoas conheciam primeiro, participavam das assembleias e dormiam as vezes. Entretanto, depois de 2017 tinha gente implorando para ficar na primeira vez por que não tinha onde dormir. Parava de pagar aluguel e já chegava com tudo o que tinha. A maioria das ocupações do MTST são de lona e bambu. Depois a galera coloca madeira e outras coisas. Imagina isso? É uma realidade muito dura. No primeiro momento, as pessoas lutam pela sobrevivência, por um teto, por trabalho e comida na mesa. Isso que a gente se depara em uma ocupação. Depois quando entendem que a luta é muito maior do que a sobrevivência elas passam a lutar por dignidade, justiça e uma vida decente para sua família e as pessoas que estão ao seu redor.


Trabalho Necessário: Os movimentos sociais, os coletivos e os partidos políticos desempenham um papel importante ao tentar barrar as agendas impostas pelo Estado. Entretanto, a partir da posse do atual presidente Jair Bolsonaro, vêm sofrendo ainda mais com as retaliações por parte do Estado. Em janeiro, foi decretada a Medida Provisória nº 870/2019, um feroz ataque aos anos de luta dos trabalhadores e trabalhadoras, em especial aos movimentos

indígenas e da luta pela reforma agraria. Nessa conjuntura nefasta, como o movimento de luta pela moradia se organiza? Houve alguma mudança na forma de organização para combater esses avanços?


Fabiana Batista: Houve sim! Como falei anteriormente, estamos vivendo em um período sinistro. Não tem política pública para moradia, as pessoas estão vivendo de forma precária. O MTST passou a agir tentando compreender esse momento. Uma das coisas que acabamos cedendo foi o das pessoas morassem no terreno de primeira. Não que era proibido, mas não era aconselhado. Sempre alertamos que a situação de uma ocupação do MTST é bastante difícil, mas mesmo assim a galera dormia. Outra coisa foi que percebemos que nessa conjuntura não conseguiríamos que o Estado construísse as casas populares nos terrenos ocupados. Foi aí que em várias partes do país passamos a construir com nossas próprias mãos. O pessoal do MTST de Brasília está vivendo uma experiência muito difícil. Conseguimos um terreno, mas a galera está construindo na raça suas casas e no meio do barro. Infelizmente foi a única saída para a galera conseguir sair do aluguel. Começamos a ver também que o movimento não pode atuar somente pela questão da moradia. Talvez no ano que vem isso não seja a única bandeira do MTST. A ideia é que o movimento seja maior que isso: consiga trabalho, alimento, casa. Pensar que a moradia é só mais uma necessidade, mas o trabalhador primeiro precisa trabalhar e se alimentar. As primeiras experiências com o movimento atuando assim partiram da realidade do Rio de Janeiro. Agora outros Estados estão adotando isso.


Trabalho Necessário: No ano de 2018, o edifício Wilton Paes de Almeida situado no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo desabou matando 7 pessoas. A sociedade brasileira assistiu a cobertura do acontecimento a partir das lentes da grande mídia do capital que denunciou a precariedade da moradia e os supostos abusos das lideranças da ocupação. Com isso, como você vê a ação da grande mídia como mediação entre as ocupações de moradia e o restante da sociedade brasileira?


Fabiana Batista: A impressa existe para atrapalhar desde sempre. Em grande parte das vezes só a mídia alternativa de esquerda que se propõem a entender os

movimentos sociais. Se bem que já vivi vários problemas com impressa de esquerda, entretanto, isso não se comparar com a projeção que a mídia hegemônica tem. O William Bonner te dá boa noite todas as vezes, aí um certo dia ele dá uma opinião sobre as ocupações. Muita gente vai acreditar, né?! É o cara que te dá boa noite todo o santo dia. Tem um lado dessa grande imprensa que é muito importante. É uma faca de dois gumes. Uma coisa que é recorrente em todas as ocupações que o MTST faz é que muita gente chega lá para ver como é porque acaba escutando pela televisão. Mesmo que o jornal fale mal da ocupação as pessoas que realmente precisam vão aparecer. Essa é a parte menos ruim da grande mídia. Por outro lado, essa visibilidade quando ganham um caráter negativo e uma parte da população compra o discurso da imprensa, ficamos na mira de muitos malucos. Se a pessoa vai na ocupação obviamente ela percebe que não é aquilo que a imprensa falou, mas se ela não conhece, ela acaba ficando com a pior referência possível de como é uma ocupação. Essa questão do prédio é um bom exemplo. Lá de fato cobravam aluguel. Obviamente é errado cobrar aluguel. O MTST nunca fez isso. Se você está em uma ocupação é por que não tem condições de pagar. No período do acontecimento, a grande mídia associou a cobrança de aluguel e queda do prédio ao MTST e a sua principal figura, o Guilherme Boulos. Automaticamente, a opinião pública passou a crucificar o Guilherme e o MTST. Imagina só! Uma notícia, misturada com Fake News e opinião pública. O cenário que se criou foi o pior possível. Muitas pessoas que precisavam não procuraram mais o MTST por causa da cobrança dos alugueis. Como eu disse, é uma faca de dois gumes. É o papel da imprensa burguesa bater e assoprar. Existe grupos de jornalistas da grande impressa que cobrem dignamente uma ação que a gente faz, isso dá muita visibilidade para a luta por moradia. Em outros muitos casos, outros jornalistas que, às vezes, fazem parte da mesma imprensa distorcem o ocorrido e fazem uma cobertura sensacionalista como foi a do prédio. Vivemos nessa democracia esquisita, se é que a gente pode chamar o que a vivemos de democracia.


Trabalho Necessário: Sabemos que o movimento de luta pela moradia é plural. Só em São Paulo são mais de 150 grupos distintos. Como você entende essa diversidade? Isso contribui para fragmentação das lutas? Existem momentos em que os grupos caminham juntos?


Fabiana Batista: A nossa atuação é principalmente em terrenos nas periferias. Queremos aglutinar pessoas e, entendemos que cabe muita gente em um terreno. Com isso conseguimos construir uma luta que vai além da questão da moradia, que envolve as questões comunitárias, transporte, educação, saúde. Nossa luta é muito mais voltada para as políticas públicas. Pensamos que a ocupação só vale a pena se for para as pessoas conquistarem um lugar digno para morar, mais do que só ocupar e continuar vivendo precariamente. Entendemos que é importante o espírito de coletividade. Existem outros movimentos que entendem que a tática da ocupação do prédio público é mais eficaz e interessante, pois é muito mais fácil reformar um prédio do que construir várias casas. Isso não diz que há uma fragmentação das lutas, mas apenas formatos diferentes. É muito importante que tenham diferentes formatos porque quem não ocupa terreno vai ocupar prédio e vice-versa. Por exemplo, em Porto Alegre o MTST já começou a ocupar casa. O movimento social milita conforme a realidade do lugar, a partir das possibilidades concretas. Lá em São Paulo nós ocupamos alguns prédios, mas nosso foco é o terreno. Os movimentos se juntam em diversas frentes. Por exemplo, aqui no Rio de Janeiro e em São Paulo existe uma frente da resistência urbana que cumpre um papel de espaço aglutinador dos diversos movimentos. Existe outros espaços como fóruns para pensar a luta conjuntamente. Em Niterói, acompanhamos um grupo que se chama “Fórum de luta por moradia”, que é responsável por juntar todas as comunidades que tem alguma luta por moradia. As pessoas que participam não são necessariamente de movimentos sociais organizados. Tem uma galera de outras frentes que participam também para unificar as lutas. O papel do MTST nesse fórum tem sido de pensar nas lutas de rua. Defendemos que é na rua que vamos conseguir as coisas. Realizamos alguns atos unificados junto com o pessoal do fórum. No Município do Rio de Janeiro estamos fechando com vários movimentos para conseguir pleitear políticas públicas. É isso, existem táticas diferentes. Obviamente a gente sabe que existem movimentos sociais que são problemáticos, tipo o de São Paulo que cobrava aluguel. Logicamente não fechamos com eles. Entendemos que é um tipo de formato que não vale. Na verdade, são aproveitadores.


Trabalho Necessário: Como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto é organizado internamente? É a partir de uma liderança (ou

lideranças)? Podemos dizer que se trata de um de um processo autogestionário? Existe uma hierarquia? Como você avalia esse tipo de organização?


Fabiana Batista: Depende muito da ideia de autogestão e liderança que você está falando. No MTST existem referências, pessoas que são do território e se tornam referências de luta, ou referências de temas e tarefas. Existe uma coordenação que não necessariamente decide, mas organiza o pensamento de assuntos que foram debatidos. Exemplo foi a ocupação de 2017 do Sapê. Na época eu e muitos companheiro achávamos que não era para acontecer aquela ocupação, mas as pessoas que estavam nas assembleias debatendo democraticamente levantaram a possibilidade de ocupar. Com isso, a coordenação ajudou a organizar o que foi debatido. Essas referências locais e as referências da coordenação nacional vieram da militância da própria ocupação. Foram pessoas que quiseram dar um passo à frente nas lutas. Era a que chegava na cozinha e assumia uma função, ou que ajudava os companheiros a construírem suas casas, ou que passava a dar mais opinião na assembleia e assumir funções de organização. Isso cria um corpo de pessoas que querem contribuir mais do que só ir no ato ou conseguir um cantinho. É tipo um ‘start’, sabe? As pessoas passam a entender que não podem lutar só pela conquista da sua casa, mas lutar para que todo mundo tenha casa e uma vida digna. Com isso, existe uma coordenação de pessoas que surgem desse ‘start’. Escolhemos essa coordenação democraticamente. Não é bem uma eleição, mas uma aprovação se a pessoa vai estar disposta a militar. Isso é necessário por que às vezes a pessoa é fajuta. Está ali só para se aproveitar da situação. Fala muito, mas não constrói nada. Normalmente quem coloca a cara são pessoas que não tem nada a dever. Estão ali mesmo pela militância, entretanto, é sempre bom prevenir. Essa questão das referências é muito bacana de acompanhar. É legal ver aquela velhinha que só ia a igreja começa a participar ativamente da ocupação. Com isso, ela passa a ser uma referência política, tornando-se formadora política de outras pessoas dentro e fora da ocupação. Existem essas referências locais, estaduais e nacionais. Por exemplo, eu milito na parte de comunicação. Ajudo pessoas do lá do Ceará, Manaus e Rio Grande do Sul. De certa forma eu atuo nacionalmente. O Guilherme Boulos por exemplo, não atua só nacionalmente. Ele atua localmente resolvendo picuinhas dentro das

ocupações. Seria um sonho se todas as pessoas pudessem se reunir e decidir nacionalmente tudo, mas as nossas condições estruturais inviabilizam. Além disso existem as emergências locais que tornam impossível essa aglutinação a nível nacional. O MTST tem como proposta ser um movimento grande, e por ser grande existem algumas coisas que precisam acontecer na hora. Eu brinco que quanto mais projeção nacional você tem, mas tarefa você acumula. A gente tem um princípio básico no MTST: "Decide quem atua". É impossível alguém que não atua, não milita de verdade decidir alguma coisa do movimento. Outra instância muito importante são os espaços de assembleia. Lá é que surgem as demandas para tocar omovimento.


Trabalho Necessário: Além do “trabalho de ocupação” (digamos assim), quais são as formas individuais e coletivas de geração de trabalho e renda? Como as pessoas sobrevivem? Em que trabalham?


Fabiana Batista: O perfil das pessoas é do trabalho de serviços. O cara que é pedreiro, a mulher que é doméstica, o camelô, o catador de materiais recicláveis. Lá em Recife o movimento só existiu porque se juntou com a galera que trabalha como camelô. Tem uma moça que virou deputada estadual em uma espécie de mandato coletivo. Ela é camelô e atua no movimento dos trabalhadores informais. Semana passada mesmo ela estava em um evento na sede do MTST de São Paulo sobre o trabalho informal. Aqui no Rio de Janeiro nós criamos um projeto que se tornou uma frente de luta chamado 'contrate quem luta' (CQL). A gente faz uma lista de pessoas do MTST e quais os serviços que elas prestam. Divulgamos essas listas para vários empregadores. Já tivemos um retorno muito positivo. Nosso trabalho é uma espécie de ponte. Uma das coordenadoras do MTST aqui de Niterói foi contra de carteira assinada a partir da experiência do CQL. Quando tem ato ela falta o trabalho de boa, pois o empregador já sabe que ela é militante. Outros Estados estão adotando esse projeto. A ideia do MTST é ampliar as frentes de luta e uma delas é o trabalho não precarizado. Hoje é muito mais difícil ter trabalho de carteira assinada, ainda mais com essa reforma da previdência. Nosso intuito é de como podemos contribuir para que as pessoas tenham trabalho digno, e não que paguem para trabalhar. Já aconteceu de pessoas da lista serem chamadas para trabalhar e o contratante querer pagar uma miséria, não quer pagar a passagem. Isso acontece muito com as mulheres que trabalham como empregadas domésticas. Riscamos esse tipo de empregador da lista.



Trabalho Necessário: O trabalho da diretora Eliane Caffé, Era o Hotel Cambridge (https://vimeo.com/218663574), retrata o interior de uma ocupação por moradia, mostrando a pluralidade, aflições, alegrias e desvelando as contradições condidas no espaço. No filme, é apresentado que, além de sanar paliativamente a necessidade de moradia, o cotidiano da ocupação também representa um momento em que as pessoas tentam satisfazer suas necessidades de afeto, de proteção, de participação, lazer, criação, liberdade.... Na sua percepção, a ocupação por moradia cumpre um papel que vai além da questão da moradia? O que a sua experiência nos diz?


Fabiana Batista: Eu acho que a ocupação vai além da questão da moradia. A questão da moradia é apenas uma entre várias outras coisas que passam na luta por moradia e em especial nas ocupações. Ao longo da minha militância, observei que as pessoas que participavam das ocupações acabavam interagindo quase como uma família. A ocupação era uma espécie de refúgio, onde encontravam respeito e afeto. Pessoas que sempre tiveram suas vozes caladas, seja em casa ou no trabalho tinham a possibilidade de escutar e falar nos espaços da ocupação. Lembro de uma moça que sofria violência doméstica. Ela largou do marido e começou a passar muita necessidade. Acabou participando da ocupação e desemprenhando um papel de liderança. Ela começou a participar das assembleias, mas dava para perceber que no começo ela tinha muito medo de não ser ouvida. Quando ela percebeu que o que ela falava tinha uma importância muito grande ela passou a se destacar e a ganhar autoestima. Lembro também de uma senhora que falava que a ocupação era mais acolhedora que a igreja que ela frequentava, pois na ocupação as pessoas lembravam do seu aniversário e cantavam parabéns e isso tinha um peso muito grande na vida dela. Com isso, acho que o espaço da ocupação é muito maior do que apenas a luta pela moradia. É uma luta por viver dignamente, com trabalho, casa, educação, amigos e carinho.

Trabalho Necessário: Como são as relações de convivência no dia a dia das ocupações?


Fabiana Batista: Na verdade, o maior dos problemas é o que vem de fora. Já batemos de frente com a polícia, os meninos (tráfico de drogas) e com a própria “esquerda vanguarda” que vem achando que sabe mais das coisas e o proprietário do terreno. As questões mais internas, são menos problemáticas, mas sempre gera tensão. O dia-a-dia de uma ocupação é muito simples: quem dormiu pela noite acorda, vai fazer o café da manhã e a vaquinha para compra pão. Tem uma galera que chega ali só para tomar o café e ir trabalhar. No decorrer do dia produzimos algumas atividades. Por exemplo, lá no Sapê foi muito interessante. A escola que ficava próxima da ocupação teve uma participação bem legal. A garotada começou a participar e trouxe os familiares para conhecer e participar das atividades. Já na parte da tarde, construímos e consertamos as barracas, e damos conta das tarefas de manutenção do espaço. A noite sempre tem assembleia para decidir os rumos da ocupação e fica uma galera de prontidão fazendo a segurança em dois turnos. Toda ocupação tem seus percalços. Chega gente de fora tentando se infiltrar. Às vezes é a polícia, outras são moradores do entorno tentando saber se lá cobra aluguel ou outro tipo de diária. Existe aqueles tipos de conflitos internos mais comuns. Vai desde o cortar a batata diferente do que a pessoa responsável pela cozinha gosta, até as brigas por roupa ou um cantinho melhor. Coisas absurdas, mas na hora são motivos de muita tensão. Os casos mais interessantes que observei são com as mulheres. Na ocupação as brigas entre marido e mulher ganham uma proporção muito grande, pois as mulheres não se calam mais quando passam a militar organicamente. Passam a entender que tem os mesmos direitos que o homem e que podem fazer o que antes eram proibidas em suas casas. Aí filho, o bicho pega. São essas mulheres que muitas vezes tomam a frente do movimento. Ainda tem aqueles casos de briga por espaço. É normal a rotatividade na ocupação. Tem gente que some por duas semanas e deixa o barraco vazio. As vezes esse cara que some tinha uma inimizade na ocupação. Chega alguém novo e ocupa o espaço dele. Isso sempre dá problema, eles obviamente responsabilizam quem está mais na organização. Muitas vezes nosso papel é de mediar para não gerar um conflito ainda maior. A gente que acaba ficando mais de frente na organização tenta ocupar ao máximo a cabeça das pessoas com atividades

culturais (desde limpar o lugar, até teatro e formação política). É muito difícil ter que mediar. Já aconteceu comigo de um cara me encarar por causa de picuinhas. A gente não pode recuar, né?


Trabalho Necessário: Como você pensa que o Estado brasileiro deveria resolver a questão da moradia? E como deve ser a participação da população?


Fabiana Batista: Existem duas respostas. Uma resposta via Estado “democrático” burguês e outra a partir de um processo revolucionário. Pensando no real, ou seja, o Estado “democrático” burguês, que hoje nem é tão real assim, acho que a política de moradia deveria ser organizada e liderada pelos trabalhadores. Nada vai acontecer se não for por pressão popular. Aí entraria o papel do Estado que deveria entender que a ocupação é uma necessidade da população e que ela é um dos caminhos para resolver o déficit habitacional. Pensar construções populares com participação da população, na formulação do projeto até a sua construção. Aqui em Niterói o MTST teve uma experiência muito bacana. Mediamos uma conversa entre prefeitura, arquitetos populares e a população que reivindicava moradia. Já o ideal é mais difícil de se concretizar. Na minha opinião o ideal só seria possível com uma radicalização das lutas. Por exemplo, aqui no Rio existe várias casas de veraneio dos “bacanas”. Por que um bacana pode ter 5 ou 6 casas e uma família de trabalhadores, que muitas vezes tem mais de 5 pessoas, mora na rua? Como a gente faz isso ser mediado? Aí filho, é brigar com gente grande, né? Para resolver isso só mesmo um processo revolucionário com todos na rua.