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v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X


FEIRAS AGROECOLÓGICAS COMO CONTRAPONTO AO PROJETO DO CAPITAL1


Ivonei Andrioni2 Edson Caetano3


Resumo


Tendo como referência o materialismo histórico dialético, este texto tem como objetivo analisar a feira Canteiros de Comercialização Sociossolidária e Agroecológica (CANTASOL), no Assentamento Doze de Outubro, município de Claudia/MT, como alternativa questionadora e de resistência aos ditames da sociedade capitalista, podendo assim, contribuir para a construção de uma sociedade ancorada nos produtores livremente associados. Buscamos evidenciar as contradições e entender as perspectivas que o projeto das feiras agroecológicas traz para os trabalhadores e trabalhadoras que dele fazem parte.

Palavras-chave: Feiras; Feiras Agroecológicas; CANTASOL.


FERIAS AGROECOLÓGICAS COMO CONTRAPONTO AL PROYECTO DEL CAPITAL


Resumen


Teniendo como referencia el materialismo histórico dialéctico, el texto tiene como objetivo analizar la feria Cantariros de Comercialización Sociosolidaria y Agroecológica (CANTASOL), en el Asentamiento Doce de Octubre, en el municipio de Claudia, en el Estado de Mato Grosso, como instrumento cuestionador y de resistencia a los problemas los dictámenes de la sociedad capitalista, pudiendo así contribuir a la construcción de otro modelo societario anclado en la sociedad de los productores libremente asociados.

Palabras clave: Ferias; Ferias Agroecológicas; CANTASOL.


AGROECOLOGICAL FAIRS AS COUNTERPOINT TO THE CAPITAL PROJECT


Abstract


With reference to dialectical historical materialism, this text has the objective to analyze the Canteiros de Comercialização Sociossolidária e Agroecológica fair, in the Doze de Outubro settlement, in Cláudia, State of Mato Grosso, as an questioning and resistance alternative to the dictates of capitalist society, thus contributing to the construction of a society anchored in freely associates producers. We seek to highlight the contradictions and understand the perspectives that the project of agroecological fairs brings to the workers who are part of it.

Keywords: Street Market; Agroecological Fairs; CANTASOL.


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1 Recebido em 03/04/2019. Primeira avaliação: 09/05/2019. Segunda avaliação: 08/07/2019. Aprovado em 02/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38130.

2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação/ Universidade do Estado de Mato Grosso (UFMT). Professor de Sociologia da rede estadual de educação de Mato Grosso. Email: ivoneiandrioni@yahoo.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5399-2750.

3 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Professor Associado II da Universidade Federal de Mato Grosso; Instituto de Educação, Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação. Atua no curso de Graduação em Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Email: caetanoedson@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9906-0692.

Introdução


O presente texto é resultado de uma pesquisa realizada junto a trabalhadoras e trabalhadores do Assentamento Doze de Outubro, no município de Cláudia, no estado de Mato Grosso, entre o mês de maio de 2017 e o mês de maio de 2019, com o objetivo de analisar um grupo de assentados da reforma agrária que optou por produzir a existência tendo como referência o modelo de produção agroecológica e a comercialização sociossolidária.

O presente trabalho pretende conhecer e dar visibilidade à feira CANTASOL por ser um projeto que coaduna com o GEPTE4, que caminha na esteira de questionar as premissas do modo de produção capitalista, bem como de dar visibilidade às formas de produção da existência dos povos e comunidades tradicionais e de outras populações consideradas minoritárias que “vivem a vida a partir de uma perspectiva diversa da lógica capitalista” (CAETANO, 2011, p. 11).

Com o propósito de se evidenciar as contradições existentes entre as feiras livres – cujo objetivo é a reprodução ampliada do capital –, e as feiras agroecológicas

– que buscam a reprodução ampliada da vida –, foi escolhido como objeto de pesquisa a feira CANTASOL, uma vez que esta consiste em uma experiência de materialidade de um projeto de transição agroecológica e sociossolidária.

Com fins didáticos, optou-se por dividir a pesquisa em três momentos. Inicialmente, abordar-se-á a gênese das feiras livres como espaço aberto de comercialização na perspectiva do capital. Em um segundo momento, discorrer-se-á acerca das feiras agroecológicas enquanto espaço de comercialização de produtos limpos e sem ágio, onde se evidencia um modelo de produção em que trabalhadoras e trabalhadores, de posse de saberes tradicionais, buscam o controle dos processos produtivos, como parte de suas estratégias de enfrentamento e luta contra o modo capitalista. Já no terceiro momento, apresentar-se-á como efetivamente se materializa o projeto feira CANTASOL, protagonizado por trabalhadoras e trabalhadores do Assentamento Doze de Outubro, no município de Cláudia, no Estado de Mato Grosso.



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4 Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE), do Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), criado em 2010, vinculado à Linha de Pesquisa “Movimentos sociais, política e educação popular” do Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE) da UFMT. Coordenado pelo professor Dr. Edson Caetano, com o objetivo de “[...] analisam as relações entre trabalho e educação presentes nos processos de produzir a vida associativamente, em especial nas chamadas ‘comunidades tradicionais’ da baixada Cuiabana (Mato Grosso)” (CAETANO, 2011).

A gênese das feiras livres


É complexo afirmar com precisão a origem das feiras livres, pois as mesmas “sempre fizeram parte das práticas humanas” (Porto, 2005, p. 24), “existem desde a época da Mesopotâmia, no Egito Antigo, na Grécia Antiga e na Roma Antiga” (Silva, 2016, p. 53) e são compostas “de uma caoticidade de traços, cores, sons, sotaques, roupas, cheiros, volumes, enfim uma representação fiel dos signos da cidade antiga e moderna, todos dispostos em seu território articulado” (MENEZES, 2005, p. 41).

Tem-se, ainda, que a feira livre “É o lugar onde se dá uma grande diversidade de atividades paralelas, onde se dão uma série de encontros e reencontros, de conversas, de manifestações populares e da sociabilidade em todas as suas dimensões” (DANTAS, 2008, p. 99).

Para Dantas (2008, p. 88), “o principal elemento para o desenvolvimento das feiras, enquanto instituição destinada à troca de produtos, ocorreu justamente quando da expansão dos excedentes agrícolas produzidos no contexto de uma economia de caráter feudal”. O desenvolvimento do comércio europeu, no período de transição entre o feudalismo e o capitalismo, tem “sido um dos elementos principais para o desenvolvimento dos mercados periódicos e das grandes feiras” (Dantas, 2008, p. 89). Huberman afirma que as feiras


[...] eram imensas, e negociavam mercadorias por atacado, que provinham de todos os pontos do mundo conhecido. A feira era o centro distribuidor onde os grandes mercadores, que se diferenciavam dos pequenos revendedores errantes e artesãos locais, compravam e vendiam as mercadorias estrangeiras procedentes do Oriente e Ocidente, Norte e Sul (1936, p. 32).


Para Oliveira e Lima (2017, p. 2) “à medida que a população foi aumentando, os primeiros núcleos urbanos foram surgindo; com a evolução dos meios de transporte, as distâncias entre as nações foram diminuindo e o comércio expandindo”, possibilitando assim que as feiras livres crescessem paralelas aos aglomerados urbanos.

Outrossim, no Brasil, as feiras tiveram sua gênese ainda no período de colonização como um espaço importante para o desenvolvimento da economia interna e atualmente acontecem semanalmente na maioria das cidades brasileiras. Quanto a sua origem, não se sabe precisar ao certo a data da primeira feira livre. O que se pode afirmar é que, em 1548, o rei Dom João III ordenou ao Governador Geral “que nas

ditas vilas e povoados se faça em um dia de cada semana, ou mais, se vos parecerem necessários, feira [...]” (Mott, 1975, apud Santos, 2013, p. 43). Menezes afirma que:


[...] os índios desconheciam completamente esse tipo de troca comercial, eles tinham uma vida muito simples baseada apenas na sobrevivência, não produziam excedentes e desconheciam formas de comercializar. Com o processo de colonização português no Brasil totalmente sedimentado, deram-se as primeiras trocas com os índios sempre no intuito comercial. As primeiras notícias da existência de feiras-livres no Brasil remontam ao ano de 1548, quando o rei de Portugal (D. João III) preocupado em evitar o êxodo rural na colônia instituiu um dia de feira nas cidades, para que os colonos pudessem comercializar seus excedentes e ao mesmo tempo adquirir as mercadorias que necessitassem (2005, p. 9).


Pinto e Moraes (2011, p. 2) afirmam que, no Brasil, as feiras “foram uma herança do colonizador português. As primeiras surgiram por volta do Século XVII sempre pela necessidade de abastecimento alimentar e da comercialização do excedente produzido no campo”. Neste país, o registro mais antigo que se tem de feira livre data de 1732, no sítio Capoame, no estado da Bahia, seguida da feira “da freguesia da Mata de São João, da Vila de Nazareth, de Feira de Santana e da Vila do Conde na capitania da Bahia; de Goiana e Itabaiana, na capitania de Pernambuco e, em muitas cidades de Sergipe” (DANTAS, 2008, p. 91).

As feiras de gado tiveram papel importante como originárias das feiras livres, inicialmente no Nordeste e posteriormente nas demais regiões. Como o gado era conduzido a pé, do sertão para cidades do interior e daí para centros maiores, ao longo do caminho, mais especificamente nos lugares de pousada dos boiadeiros “inúmeros outros comerciantes estabeleceram-se para comercializar sua produção e, desta forma, a grande praça comercial que é a feira torna-se o dia de maior movimento da cidade, onde se dá o verdadeiro encontro entre a vida rural e urbana” (DANTAS, 2008, p. 98).

As feiras a que se aplicam as informações anteriores foram e são as que, ainda que sendo espaços em que transitam burgueses e trabalhadores, objetivam a reprodução ampliada do capital, daí ser comum a competividade, a concorrência, a barganha, a venda, a compra e o consumo de produtos sem que, necessariamente, seja conhecida a origem dos produtos e o modelo de produção utilizado.

Feiras agroecológicas


Por sua vez, as feiras agroecológicas objetivam, para além da comercialização de alimentos, proporcionar espaço de trocas de experiências e de comercialização do excedente da produção. Além do que consistem, também, em espaço de roda de conversas, de socialização de saberes, de apresentações culturais e de troca de sementes, na eminência de outro projeto de sociedade que se contraponha ao projeto do capital5, esse objetivado no agronegócio6.

No que concerne ao projeto do capital, pode-se afirmar que coaduna latifúndio, monocultura, exploração de força de trabalho e produção para atender aos países de economia avançada. Em oposição, o que os feirantes agroecológicos protagonizam é um projeto que tem como princípio a não exploração da força de trabalho alheia, a produção de alimentos livres de veneno, o uso de técnicas de baixo impacto ao meio ambiente e a construção de uma relação entre produtores e consumidores que incorpora “princípios ecológicos e valores culturais às práticas agrícolas que, com o tempo, foram descolonizadas e desculturalizadas pela capitalização e tecnificação da agricultura” (LEFF, 2002. apud GUBUR; TONÁ, 2012, p. 57).

Os feirantes agroecológicos e sociossolidários protagonizam um projeto que vai ao encontro da reprodução ampliada da vida7, que além de valorizar as relações entre as pessoas e o respeito às comunidades, garante alimento saudável e faz dos povos e comunidades verdadeiras trincheiras de combate e de denúncia ao projeto de “patenteamento dos organismos vivos, a tecnologia dos organismos transgênicos


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5 A ordem existente destina uma divisão do trabalho particularmente objeta aos povos privados de sua interdependência, sobretudo aos povos sujeitados ao domínio e ao saqueio colonial. Nas colônias – observa Marx no verão de 1853 referindo-se à Índia -, o capitalismo arrasta ‘povos inteiros no sangue e na sujeira, na miséria e no embrutecimento’ (LOSURDO, 2015, p. 28).

6 A primeira formulação do conceito de agronegócio (agribusness) é de Davis e Goldberg, 1957. Para os autores, agribusness é um complexo de sistemas que compreende agricultura, indústria, mercado e finanças. O movimento desse complexo e suas políticas formam o modelo de desenvolvimento econômico controlado por corporações transnacionais, que trabalham com um ou mais commodities e atuam em diversos setores da economia. Compreendemos que essa condição confere às transnacionais do agronegócio um poder extraordinário que possibilita a manipulação e a dominação dos processos em todos os setores do complexo (FERNANDES, B.; WELCH, 2008, p. 48).

7 [...] a reprodução ampliada da vida, no seu sentido pleno, tem como requisitos a propriedade coletiva dos meios de produção, o controle coletivo do processo de trabalho e a distribuição equitativa dos frutos do trabalho. Em outras palavras, pressupõe culturas do trabalho associado entremeadas por singularidades de gênero, raça e etnia que vão se entrelaçando, tendo a criação da sociedade de produtores livremente associados como horizonte. Nesse processo, novas relações entre seres humanos e natureza e entre os próprios seres humanos se ampliam em todas as esferas da vida biológica e social. Suas bases materiais e simbólicas estão fundadas no respeito à natureza externa e ao ser humano, na produção associada e na autogestão do trabalho e da vida social que permita a homens e mulheres a produção de sociabilidades fraternas e solidárias (TIRIBA, 2018, p. 84).

e, mais recentemente, a monotecnologia” (Gubur; Toná, 2012, p. 58) e que objetiva retirar dos povos do campo o controle sobre as sementes crioulas e submetê-los às determinações de corporações transnacionais.

Cabe, ainda, aos referidos feirantes a preocupação com a reprodução material e também com a reprodução e a recuperação de saberes8 indispensáveis à permanência dos povos e comunidades tradicionais no campo que estão vivendo sob a ameaça do modelo tecnológico hegemônico do capital “que é, em nível mundial, a base de sustentação do agronegócio” (GUBUR; TONÁ, 2012, p. 58).

Ao se elaborar uma comparação entre os produtos vendidos nos dois tipos de feira mencionados tem-se, de um lado, as feiras convencionais que comercializam produtos cultivados a partir de técnicas que incluem “adubos químicos, inseticidas, fungicidas e outros insumos” (Godoy, 2005, p. 102). Neste tipo de feira não existe restrição quanto à venda de produtos cultivados a partir das técnicas modernas onde predomina o uso de adubos sintéticos, “cultivo intensivo do solo, monocultura, irrigação, aplicação de fertilizantes inorgânicos, controle químico de pragas e manipulação genética de plantas cultivadas” (GLIESSMAN, 2001, p.34).

De outro lado, tem-se as feiras agroecológicas em que são comercializados “produtos oriundos do sistema agrícola de base ecológica” (Godoy, 2005, p.16), ou seja, produtos obtidos por meio de técnicas de “reciclagem de resíduos sólidos, o uso de adubos verdes, manejo e controle biológico de insetos, e a exclusão do uso de compostos sintéticos” (Gliessman, 2001, p.34). Portanto,


[...] as duas feiras são completamente distintas. Enquanto a feira ecológica surgiu fruto de um movimento organizado, comprometido com a construção de um espaço de viabilização da agricultura familiar e da agroecologia, a feira convencional surgiu de um ato administrativo do poder público, não possuindo qualquer estrutura corporativa. Em contrapartida, enquanto a maioria dos agricultores ecológicos afirma receber assistência técnica regularmente, pequena parte dos feirantes produtores convencionais acha-se nessa condição. Além do pequeno percentual, a assistência técnica difere nos objetivos, pois enquanto a assistência ao feirante ecológico se desenvolve no afã de fortalecer um sistema de produção, a assistência a que os feirantes convencionais se referem diz respeito, muitas das vezes, à visita realizada por vendedores de insumos que prestam informações na medida em que comercializam seus artigos (GODOY, 2005, p. 223).


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8 [...] a agroecologia orienta práticas de: aproveitamento de energia solar através da fotossíntese; manejo do solo como um organismo vivo; manejo de processos ecológicos – como sucessão vegetal, ciclos minerais e relação predador-praga; cultivos múltiplos e sua associação com espécie silvestre, de modo a elevar a biodiversidade dos agro ecossistemas; e ciclagem da biomassa – incluindo os resíduos urbanos (GUBUR; TONÁ, 2012, p. 58).


Nora e Dutra (2015) afirmam que a feira agroecológica é vista como espaço de “troca de conhecimentos recíprocos dos trabalhadores feirantes e das suas experiências, fato esse que dificilmente poderia ocorrer se fossem utilizados outros canais de comercialização mais individualizados” (Nora; Dutra, 2015, p. 52). Isso pelo fato de que estas populações do campo são as legítimas possuidoras “de um saber legítimo, construído por meio de processos de tentativa e erro, de seleção e aprendizagem cultural, que lhes permitiram captar o potencial dos agroecossistemas com os quais convivem a gerações” (Gubur; Toná, 2012, p. 62). Para Godoy (2005),

[...] este canal de comercialização tem uma característica muito particular de aglutinação, proporcionando a aproximação e a troca de saberes, não apenas entre o rural-urbano, mas, sobretudo, do próprio rural. O “espaço-feira” aprofunda o conhecimento recíproco dos agricultores e das experiências por eles vividas, fato este, que dificilmente poderia ocorrer se fossem utilizados outros canais de comercialização, onde o produtor pode comercializar individualmente a sua produção (p. 184).


Ana Maria Reis9 (2017), tesoureira da feira Sistema Canteiros de Comercialização Sociossolidária Agroecológica (CANTASOL), afirma que,


[...] a feira agroecológica se diferencia da feira convencional por ser um espaço de reciprocidade, comprometimento e cooperação, bem como uma das formas que trabalhadoras e trabalhadores assentados da Reforma Agrária encontraram para comercializar o excedente da produção. Diferente da feira livre convencional, que existe em função do mercado e do lucro, nem que para isso tenha que comercializar produtos contaminados por agrotóxicos. Nós, do CANTASOL, estamos abertos e fazemos questão de receber visita de consumidores e mostrar para eles os processos desenvolvidos desde o plantio até a colheita, como forma de dar visibilidade ao nosso projeto, que objetiva mostrar para a sociedade que é possível sim produzir alimentos limpos, bem como produzir sem exploração da força de trabalho alheia. E isso fez com que muitos consumidores e consumidoras sejam nossos parceiros nas campanhas de esclarecimento da população local acerca dos benefícios que a produção e comercialização direta oferecem para a economia e o meio ambiente.


Assim, o espaço da feira agroecológica, além de servir como meio de comercialização, é também instrumento pedagógico de denúncia de um projeto que as feiras livres convencionais ignoram e a ciência agrária, a serviço do agronegócio,


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9 Entrevista concedida aos autores em 15/05/2017. Ana Maria Reis é uma das coordenadoras do coletivo de produção Mulheres Livres da Amazônia.

não dá conta de resolver. A declaração acima também ajuda a compreender porque os protagonistas da feira CANTASOL asseguram que estão desenvolvendo outro projeto de produção e comercialização incompatível com o sistema capitalista. Marciano Silva10 (2017), ao referir-se a feira CANTASOL, afirma que:


Ali é um espaço oportuno de apresentação para a sociedade, que diferente do agronegócio. Nós do MST produzimos alimentos livres de veneno, produzidos com reduzido impacto ao meio ambiente e o que é melhor: sem exploração da força de trabalho alheia, coisa que o capital não consegue fazer.


Nesta mesma esteira, Girardi (2016, p. 5) assevera que se faz necessário que o trabalhador saiba que


[...] o que chega ao seu prato (o que, quanto e com qual qualidade) não é exatamente fruto de sua própria escolha e muito menos da escolha dos agricultores, mas sim determinado por projetos muito mais amplos que submetem países, povos, agricultores e consumidores às necessidades do processo incansável de acumulação do capital. Como esperança para o drama dos agricultores camponeses empobrecidos, daqueles seres humanos que não comem e dos que comem comida não saudável, estão as propostas da Soberania Alimentar11 capitaneadas pelos movimentos sociais e cuja agricultura camponesa de base agroecológica se apresenta como mais apta a fornecer resultado social e ambientalmente mais sustentáveis (GIRARDI, 2016, p. 5).


Destarte, é possível evidenciar a existência de projetos em andamento e que se contrapõem. Por um lado, o projeto do agronegócio cuja tendência é controlar áreas cada vez mais extensas, bem como a produção, o armazenamento, o beneficiamento e a venda de insumos. Projeto esse, também, responsabilizado por elevar as formas degradantes de trabalho, de modo particular em áreas de fronteira agrícola, bem como pela “subalternização da agricultura camponesa ao capital que agora se dão predominantemente pelo intenso processo de artificialização da produção agropecuária e florestal” (Carvalho; Assis Costa, 2012, p. 31). Já do outro lado, tem- se um projeto protagonizado pelos povos e comunidades tradicionais, que não só se


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10 Assentado da Reforma Agrária no Assentamento Doze de Outubro, no município de Cláudia, no Estado de Mato Grosso. Intelectual orgânico, membro e um dos idealizadores do projeto CANTASOL e COOPERVIA. Entrevista concedida aos autores em 15/05/2017.

11 Soberania alimentar é o conjunto de políticas públicas e sociais que deve ser adotado por todas as nações, em seus povoados, municípios, regiões e países, a fim de se garantir que sejam produzidos os alimentos necessários para a sobrevivência da população de dada local. Esse conceito [...] parte do princípio de que, para ser soberano e protagonista do seu próprio destino, o povo deve ter condições, recursos e apoio necessário para produzir seus próprios alimentos (STÉDILE; CARVALHO, 2012, p. 715).

reconhecem como legítimos detentores de um saber que lhes permite produzir a partir do potencial dos agroecossistemas12, mas que também buscam construir uma sociedade de produtores livremente associados cujo objetivo não é o lucro e sim a emancipação “como busca de uma humanização que se assenta na solidariedade, na justiça e na dignidade para todos” (RIBEIRO, 2012, p. 299).


A feira “CANTASOL”


Criada por trabalhadoras e trabalhadores do assentamento de Reforma Agrária Doze de Outubro, no município de Cláudia, no estado de Mato Grosso, simboliza a materialização de um projeto de produção, de resistência e de esperança para quem foi vítima do trabalho “standartizado, parcelar, fetichizado, coisificado, maquinal, massificado, sofrendo até mesmo o controle de sua sexualidade pela empreitada taylorista e fordista” (Antunes, 2010, p. 12). Sistema esse em que o trabalhador produz não para a reprodução ampliada da vida e sim para a reprodução ampliada do capital e em que,

[...] Só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista ou serve a autovalorização do capital. Se nos for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, diremos que um mestre escola é um trabalhador produtivo se não se limita trabalhar a cabeça das crianças, mas exige o trabalho de si mesmo até o esgotamento, a fim de enriquecer o patrão. Que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensino, em vez de numa fábrica se salsichas, é algo que não altera em nada a relação. Assim, o conceito de trabalhador produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, surgida historicamente e que cola no trabalhador o rótulo de meio direto de valorização do capital. Ser trabalhador produtivo não é, portanto, uma sorte, mas um azar (MARX, 2013, p. 578).


A feira CANTASOL está em construção. Segundo seus protagonistas, camponeses assentados da Reforma Agrária, existe um projeto para o mundo, para o Brasil e para o Mato Grosso, que é produzir com fim exclusivo para o lucro, sem



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12 Agroecossistemas camponeses, desenhados os princípios da agroecologia, buscam relações de maior autonomia com o ambiente econômico externo, seja garantindo diversidade de produção para autoconsumo – e, portanto, gerando renda não monetária - , seja evitando ou minimizando o consumo de insumos e equipamentos industriais – tratores, equipamentos de irrigação, fertilizantes, sementes comerciais e agrotóxicos -, seja diversificando os mercados para os produtos agrícolas gerados nos agro ecossistemas, priorizando os mercados locais e evitando, sempre que possível, relações de subordinação aos mercados capitalistas (MONTEIRO, 2012, p. 69).

considerar os seus impactos para o meio ambiente e para os seres humanos. Para eles, o projeto do campo e o projeto do agronegócio não se coadunam, uma vez que são projetos com características e formas opostas e conflitantes de conceber a natureza, os seres humanos e o trabalho. Tais afirmações coadunam com Fernandes (1999, p. 40- 41), o qual enfatiza que


[...] os territórios do campesinato e os territórios do agronegócio são organizados de formas distintas, a partir de diferentes relações sociais. Um exemplo importante é que enquanto o agronegócio organiza seu território para produção de mercadorias, o grupo de camponeses organiza seu território, primeiro para sua existência, precisando desenvolver todas as dimensões da vida. [...] A paisagem do território do agronegócio é homogênea, enquanto a paisagem do território do camponês é heterogênea. A composição uniforme e geométrica da monocultura se caracteriza pela pouca presença de pessoas no território, porque sua área está ocupada por mercadoria, que predomina na paisagem. A diversidade dos elementos que compõem a paisagem do território camponês é caracterizada pela grande presença de pessoas no território, porque é nesse e desse espaço que constroem suas existências, produzindo alimentos. Homens, mulheres, jovens, meninos e meninas, moradias, produção de mercadorias, culturas e infraestrutura social, entre outros, são os componentes da paisagem dos territórios camponeses.


São trabalhadoras e trabalhadores, em sua maioria, herdeiras (os) “das velhas relações de trabalho agrícola, pastoril e extrativo originadas da crise das duas escravidões que tivemos” (Martins, 2003, p. 12). São, ainda, trabalhadoras e trabalhadores camponeses, operários urbanos, meeiros, assalariados do agronegócio desprovidos do direito à saúde, educação, habitação e que tem em comum um passado de “descartes sociais e de alternativas de vida não realizadas, de destinos não cumpridos, histórias pessoais truncadas por bloqueios de diferentes tipos oriundos de diferentes causas” (Martins, 2003, p. 17). Mas que aprenderam com a vida e com a luta que, no sistema do capital


[...] o trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza ele produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria, tanto mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens. (MARX, 2004, p. 59).

São trabalhadoras e trabalhadores, (ex) agricultores e parte deles (ex) assalariados que frente a uma conjuntura extremamente desfavorável carregam as marcas do desemprego e do subemprego em uma região tomada por “práticas agrícolas de modo extensivo, utilização de agrotóxicos em níveis altamente condenáveis, dando conta de que consumimos quase seis vezes a quantidade média de veneno consumido em território nacional”13. E que vêm no modelo de produção de base agroecológica14 e no trabalho associado formas de organizar e produzir a existência em uma perspectiva em que se materializa a “apropriação do elemento natural para a satisfação de necessidades humanas” (Marx, 2013, p. 261), e não para satisfação do mercado. O mais impactante é que está em curso um projeto que se afirma como contraponto ao projeto do capital no coração de um estado que, em sua porta de entrada, recebe os visitantes com outdoor com os dizeres “Bem-vindos à capital do agronegócio e do Pantanal”.

Os produtores e os fornecedores do projeto CANTASOL não só se opõem ao projeto do agronegócio, como também convivem com contradições internas no assentamento que impactam diretamente na produção agroecológica e na comercialização sociossolidária, por ser um espaço de matrizes ideológicas diversas e divergentes. Observou-se famílias produzindo na perspectiva agroecológica, utilizando-se dos saberes campesinos para a seleção de sementes e a preparação de caldas fertilizantes e de controle de insetos invasores, convivendo lado a lado com famílias que produzem a existência fazendo uso dos métodos convencionais. Em outras palavras, no Assentamento Doze de Outubro convivem migrantes,


[...] ex-acampados de diversos municípios oriundos de diversas organizações; “compradores de lotes” (uma categoria em ascensão) com histórico de vida camponesa e, outros, sem nenhum vínculo com o esse trabalho (empresários, servidores públicos, etc.); profissionais públicos e liberais (da educação e religiosos) que não aspiram viver ali “para sempre”; etc. [...] há quem faz um esforço transformador, das práticas e de si, para produzir com base na agroecológica, seguindo as orientações do CANTASOL (proposta que vem sendo construída


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13 Definição presente na página da feira “CANTASOL”. Disponível em: http://cantasol.org.br/portal/?pg=s_cantasol. Acesso em: 10 mai. 2019.

14 [...] manejo ecológico dos recursos naturais mediante formas de ação social coletiva que apresentam alternativas à atual crise civilizatória. E isso por meio de propostas participativas, desde o âmbito da produção e da circulação alternativa de seus produtos, pretendendo estabelecer formas de produção e consumo que contribuam para fazer frente à atual deterioração ecológica e social gerada pelo neoliberalismo (SEVILLA-GUZMÁN, 2001, apud GUBUR, Dominique Michéle Perioto; TONÁ, Nilciney, 2012, p. 61).

entre a EEFF15, COOPERVIA16 e o Projeto Canteiros/Novos Talentos/CAPES-UNEMAT), da escola e do Movimento, e, ainda, quem esteja totalmente inviabilizado de viver da produção camponesa (SOUZA, 2014, p. 151 - 153).


Os produtores e fornecedores da feira CANTASOL são assentados da Reforma Agrária que produzem sua existência em lotes de tamanhos que variam entre 10 hectares e 12 hectares. O assentamento está localizado às margens da BR 163, entre os municípios de Cláudia e Sinop, no município de Cláudia, no estado de Mato Grosso. Na sede do assentamento, que fica a uma distância de 2 km da rodovia, é possível observar, ainda hoje,


[...] algumas casas da antiga fazenda: em quatro delas moram os professores; em outra está o Posto de Saúde; outra é uma “venda” (espécie de mercearia-boteco); também há casas de “lona-preta-e- palha”, onde se abrigam alguns assentados que possuem lotes mais distantes, como forma de terem acesso à água (na época da seca) e energia (só há energia elétrica para as moradias próximas à sede-BR, as demais, quando têm, é produzida via motor a diesel que resulta num custo bastante elevado); pequenas igrejas o “barracão da cooperativa” que é uma adaptação do antigo estábulo; o “barracão do assentamento” cuja estrutura ameaça cair e, por fim, a escola, uma mescla de casas da antiga sede, salas de compensado e salas de tábuas, estas últimas, construídas em 2013. Este território é denominado internamente como: “área do MST/ o pessoal do MST”, ou “vou lá no 12”, “estou na sede” (SOUZA, 2014, p. 154).


Foram encontradas, na feira CANTASOL, algumas especificidades que a diferenciam das feiras convencionais, entre as quais destacamos: a parceria com estudantes e professores da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT) via projetos de extensão, bem como a parceria com “professores da Escola Estadual do Campo Florestan Fernandes (EEFF), militantes dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e parceiros do Sistema de Comercialização Solidária (SISCOS17)” (Carvalho Camera Filho; Brito, 2016, p. 1534); a produção dos alimentos utilizando-se dos saberes agroecológicos e sem exploração da força do trabalho alheio; e “a comercialização da produção das famílias assentadas por meio da formação de redes de solidariedade


15 Escola Estadual do Campo Florestan Fernandes (EEFF), situada no Assentamento 12 de Outubro, em Cláudia/MT.

16 Coletivo de produção “Cooperativa de Produtores Agropecuários da Região Norte do Mato Grosso” (COOPERVIA), localizado no Assentamento 12 de Outubro, em Cláudia/MT.

17 O Siscos, em atividade desde 2006, é uma iniciativa do Instituto Ouro Verde (IOV), organização não- governamental instalada no município de Alta Floresta/MT. Consiste num sistema de vendas online de produtos agroecológicos, das famílias camponesas da região, baseados nas propostas da Economia Solidária.

entre os diversos atores desse processo: Escola, cooperativa, movimentos sociais, universidade, consumidores” (CARVALHO CAMERA FILHO; BRITO, 2016, p. 1534).

Pesquisadores da UNEMAT afirmam que a feira CANTASOL, além de ser fruto de projeto que abarca vários parceiros,


[...] consiste na comercialização direta de produtos do campo, isentos de ágio e de agrotóxicos, através de um site: www.cantasol.org.br. Pelo fato de termos eliminado a figura do atravessador, o resultado prático observado foi que os produtores puderam vender a preços superiores aos que eram praticados pelo mercado convencional, e os consumidores puderam comprar a preços inferiores em relação a esse mesmo mercado: produtos mais baratos e mais saudáveis. Isso só foi possível devido à atividade extensionista da universidade, na medida em que alunos se organizaram para cumprir a parte dedicada à cidade, quando a comunidade, através de uma cooperativa de assentados e da escola, organizou os produtores (PEREIRA; SOUZA, 2016, p. 110- 111).


O Assentamento Doze de Outubro, onde são produzidos os alimentos disponibilizados na feira CANTASOL, é formado por 140 lotes, ocupados por 140 famílias, sendo que 18 famílias optaram em produzir a existência na perspectiva de transição agroecológica. Foi identificado, também, no assentamento, um grupo de mulheres que trabalha de forma associada e se identifica como coletivo de “Mulheres Livres da Amazônia” que, além de produzir na perspectiva agroecológica em seus quintais, possui um espaço comunitário, anexo à Cooperativa Via Campesina, em que produz conservas, doces e massas para o consumo das próprias famílias.

Para Calixto Crispim dos Reis18 (2017), assentado da Reforma Agrária, líder comunitário, associado da COOPERVIA e fornecedor do projeto CANTASOL:


O CANTASOL é a materialidade de todo um processo de luta dos assentados do Doze de Outubro e que hoje tem a parceria do coletivo “Mulheres Livres da Amazônia”19, a COOPERVIA, por meio da qual pretendemos ser visibilizados pelas políticas públicas e colocar nossos produtos nas escolas públicas via Programa Nacional de Alimentação Escolar, os professores e pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) de Sinop e técnicos e agrônomos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). Pretendemos, além de garantir o direito de uso da terra, que é uma luta do movimento pela reforma agrária, garantir a soberania alimentar, a recuperação do solo degradado pelo uso intensivo de insumos sintéticos e monocultura,


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18 Entrevista concedida aos autores em 15/05/2017.

19 Coletivo de mulheres do Assentamento de Doze de Outubro, no Município de Cláudia, no Estado de Mato Grosso que produzem massas, doces, conservas para o consumo próprio e da família e o excedente é comercializado na feira CANTASOL.

garantir alimentação livre de veneno às famílias do movimento e o excedente disponibilizar para ser vendido no CANTASOL.


A partir do contato com as trabalhadoras e trabalhadores feirantes agroecológicos, percebeu-se a materialização de um projeto de recriação da produção da existência que não só vai na contramão da concentração fundiária e das políticas de fomento do agronegócio, como também protagoniza um projeto que vai muito além da venda direta de produtos frescos e limpos de venenos. Além disso, o referido projeto materializa uma luta em favor da redistribuição de terras, pela recuperação do solo agrícola, por políticas públicas de apoio aos produtores agroecológicos, pela preservação e respeito ao meio ambiente e pelo acesso a uma alimentação de qualidade e por condições de vida mais digna aos povos do campo.

Marciano da Silva20, assentado da Reforma Agrária, associado da COOPERVIA, produtor agroecológico e fornecedor do CANTASOL, ao ser interrogado sobre o que significa o CANTASOL para ele e para o grupo protagonista do mesmo, responde:

O CANTASOL é parte de um projeto maior, não pode ser visto como um projeto isolado da COOPERVIA, da Escola Estadual Florestan Fernandes, do MST, do MAB e de outros parceiros nossos. O objetivo vai para além de produzir, consumir e comercializar alimentos sem ágio, sem veneno e colocar esses produtos direto na mesa do consumidor. A feira é também, espaços para socialização e de denúncia e também de apresentações culturais, trocas de saberes, trocas de mudas e também de sementes. É um espaço democrático em que estão presentes os jovens, as mulheres, os fornecedores e os consumidores. É um meio que o movimento tem para apresentar para a sociedade que nós protagonizamos outro projeto de produzir a existência que é diferente do projeto do agronegócio. O nosso projeto é agroecológico. E esse projeto só se mantem porque é um projeto associado, autogestionário e sem exploração da força de trabalho alheia.


Atualmente a feira tem 180 famílias, consideradas como potenciais consumidoras, cadastradas no site “cantasol.org.br” e que adquirem produtos conforme disponibilidade dos mesmos, uma vez que a produção ocorre em conformidade com os ciclos da natureza. Ao acessar a página web do CANTASOL, são apresentados produtos como: pães, doces, conservas, açúcar mascavo, urucum, taioba, milho, cenoura, beterraba, mandioca, cana, limão, abacaxi, leite, ovos caipiras, queijo, couve, abóbora, cajamanga, manteiga, requeijão, doce de leite, batata doce,


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20 Entrevista concedida aos autores em 15/05/2019.

ponkan, laranja, vagem, feijão de corda, pepino, alface, rúcula, almeirão, mamão, cebola, cebolinha, banana, tomate, castanha do Brasil, coco, sucos, amora, gengibre, erva doce, quiabo, maracujá, caju, acerola, pimenta doce, pimenta malagueta, pimentão etc.

A feira acontece nas quartas-feiras, no período vespertino, no pátio da UNEMAT, Campus de Sinop. O itinerário da feira CANTASOL ocorre da seguinte maneira: os produtores feirantes por meio da coordenação do site “cantasol.org.br”, inserem no sistema os produtos que estão em oferta; b) De quarta-feira à noite até segunda feira às 07 horas, o sistema fica liberado para compra; c) Na segunda feira os produtores ficam sabendo o que efetivamente foi encomendado; d) Na terça-feira, até 15 horas, os produtores colhem e preparam os produtos para a entrega; e) Ainda, na terça-feira, a partir das 15 horas, membros do CANTASOL apanham os produtos nos pontos de coleta; f) Já na quarta-feira, a partir das 15 horas, os produtos são entregues aos compradores no pátio da UNEMAT, Campus de Sinop. No local, também é disponibilizado o que os fornecedores chamam de excedente, de modo que quem não encomendou via site possa ter acesso aos produtos.

Os feirantes produtores e fornecedores da feira CANTASOL, de posse de saberes tradicionais, buscam o controle dos processos produtivos, como parte de suas estratégias de luta e enfrentamento do modo capitalista de fazer agricultura em uma região em que se avilta “a concentração das terras como resultado do privilegiamento da produção em escala, que requer grande extensão contínua de área para a prática de monocultura e tecnologia com uso intensivo de insumos químicos” (Carvalho; Assis Costa, 2012, p. 27-28). Além disso, partem do princípio de que o alimento “é um direito humano, e a produção e distribuição dos alimentos é uma questão de sobrevivência dos seres humanos, sendo, portanto, uma questão de soberania popular e nacional” (STEDILE; CARVALHO, 2012, p. 720).

Destarte, o projeto CANTASOL “luta pela soberania alimentar e energética, pela defesa e recuperação de territórios, pelas reformas agrária e urbana, e pela cooperação e aliança entre os povos do campo e da cidade” (Gubur; Toná, 2012, p. 64). Ou seja, é um projeto que busca, além de garantir o direito de cada país produzir seus produtos, também garantir o direito das populações de consumi-los.

Outrossim, na perspectiva da produção agroecológica, a feira CANTASOL se sustenta a partir de um projeto maior que é o trabalho associado. Esse trabalho foi construído a partir das experiências de trabalhadoras e trabalhadores que estavam na

liderança, em 2002, das famílias acampadas ao longo da Rodovia BR 163, entre o município de Sinop e o município de Cláudia, em Mato Grosso. Essas famílias, hoje, estão no assentamento Doze de Outubro, local onde se realiza o Cantasol.

As referidas lideranças, assim como muitas trabalhadoras e trabalhadores, sabem que além de organizar a escola, o posto de saúde, a igreja, a quadra de esportes, também se faz necessário organizar a produção da existência material, como forma de garantir a permanência das trabalhadoras e trabalhadores no assentamento.

O assentamento Doze de Outubro está localizado, em média, a 70 Km das áreas urbanas de Sinop e Cláudia, cercado por lavouras do agronegócio que têm como um dos princípios o uso de insumos sintéticos e agrotóxicos, bem como o alargamento de fronteiras. Além disso, os trabalhadores e trabalhadoras do assentamento estão fragilizados devido à escassez de recursos para custeio e às potenciais ameaças para que vendam seus sítios e se mudem para a cidade. A estratégia de enfrentamento a essa realidade é a união, a organização em coletivos de produção. É nesse contexto que nasce o CANTASOL como um dos espaços de produção coletiva e que objetiva, além de servir como espaço de comercialização do excedente da produção, também apresentar para a sociedade um projeto de que se contrapõe ao projeto do capital.


Considerações finais


Por meio de entrevistas, com questões semiestruturadas, e dos dados coletados na observação direta das práticas cotidianas das trabalhadoras e trabalhadores que fazem uso dos princípios da agroecologia e da comercialização sociossolidária, foi possível observar que esses princípios orientam as perspectivas do grupo de assentados no Doze de Outubro que os veem como forma de viver dignamente na terra que escolheram para viver. Acompanhando o dia a dia de trabalho e de convivência, foi possível observar que, além de estratégia de sobrevivência material, as iniciativas são uma forma de contestação às relações de trabalho impostas pelo capital.

Observou-se, ainda, nas relações de produção que culminam no CANTASOL, bem como na maneira de se organizar para os enfrentamentos políticos e a luta por direitos e justiça social, a presença de saberes que só trabalhadoras e trabalhadores

camponeses e agroecológicos são detentores. Em outras palavras, a prática diária dessas trabalhadoras e trabalhadores gera saberes sobre o meio, sobre o mundo do trabalho e de como a sociedade pode se organizar de maneira a produzir a vida em outra via, que não a via dos princípios do agronegócio.

Apreendeu-se, nesta pesquisa, que as feiras agroecológicas recebem essa denominação, entre outras razões, porque produzem a partir de técnicas de reduzido impacto ao meio ambiente, sem exploração da força de trabalho alheia e que o excedente da produção é comercializado diretamente ao consumidor, eliminando o atravessador. Nesta perspectiva, observou-se que o CANTASOL materializa dois grandes objetivos, o de eliminar o uso de insumos sintéticos que impactam na saúde dos seres humanos e do meio ambiente e o de eliminar a figura do atravessador, que impacta na elevação do preço do produto.

Conclui-se que a feira CANTASOL é uma das iniciativas de trabalhadoras e trabalhadores que não concordam com o processo de produção imposto pelo capital e que, potencializados por saberes da experiência, tomaram para si os meios de produção e se organizaram para se manterem e produzirem a vida social, a partir de técnicas de base agroecológica, trabalho cooperado e sem exploração da força de trabalho alheia, como estratégia de sobrevivência e ruptura, criando e recriando uma nova forma de organizar a produção da existência humana no interior da sociedade do capital.


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