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v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X


POVOS INDÍGENAS E SEU MOVIMENTO DE LUTA PELA EFETIVAÇÃO DO DIREITO COLETIVO À EDUCAÇÃO SUPERIOR NO TERRITÓRIO LATINO-AMERICANO1


Soledad Bech Gaivizzo2


Resumo


No final da década de XX, na região da América Latina, o movimento indígena impulsionou uma intensa campanha pela efetivação do direito coletivo dos povos indígenas à educação superior. A constituição do marco jurídico-legal internacional foi considerada uma conquista histórica pelos indígenas, possibilitando a criação de outros modelos de Ensino Superior. Neste contexto, a interculturalidade emerge como um projeto ético-político e epistêmico.

Palavras-chave: Educação superior indígena; Direito coletivo; Interculturalidade.


PUEBLOS INDÍGENAS Y SU MOVIMIENTO DE LUCHA POR LA EFECTIVA IMPLEMENTACIÓN DEL DERECHO COLECTIVO LA EDUCACIÓN SUPERIOR


Resumen


En el final de la década de xx, en la región de América Latina, el movimiento indígena impulsó una intensa campaña por la efectividad del derecho colectivo de los pueblos indígenas a la educación superior. La constitución del marco jurídico-legal internacional fue considerada una conquista histórica por los indígenas, posibilitando la creación de otros modelos de enseñanza superior. En este contexto la interculturalidad emerge como un proyecto ético-político y epistémico.

Palabras clave: Educación superior indígena; Derecho colectivo; Interculturalidad.


INDIGENOUS PEOPLES AND THE FIGHTING MOVEMENT BY THE RIGHT TO IMPLEMENT THE COLLECTIVE RIGHT TO HIGHER EDUCATION


Abstract


At the end of the xx century, in the region of Latin America, the indigenous movement promoted an intense campaign for the realization of the collective right of indigenous peoples to higher education. The constitution of the international juridical legal framework was considered a historic conquest by the indigenous, making possible the creation of other models of higher education. In this context interculturality emerges as an ethical-political and epistemic project.

Keyword: Indigenous higher education; Collective law; Interculturality.


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1 Recebido em 23/04/2019. Primeira avaliação: 12/05/2019. Segunda avaliação: 17/05/2019. Aprovado em 14/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38131.

2 Doutora em Serviço Social/ PUC RS. Assistente Social. Universidade Federal do Rio Grande – UFRG. Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis – PRAE. Coordenação de Atenção ao Estudante. E-mail: soledadbech@yahoo.com.br.

Introdução


Na América Latina vivem aproximadamente 50 milhões de indígenas3 representados por 665 povos (UNICEF-FUNDOPROIB ANDES, 2009), sobre os quais incide uma extensa história de colonização de mais de cinco séculos, marcada pela expropriação de suas terras, pela exploração de sua força de trabalho, pela captura de sua subjetividade, pela subalternização de sua existência e pela deslegitimacão de suas formas ancestrais de produzir e de circular conhecimento (LÓPEZ, 2011).

Pesquisas sobre a situação educacional dos povos indígenas revelam que os mesmos estão entre o grupo social que menos se beneficiou com a política educacional de cunho universal na América Latina (López, 2011). Desenhada na primeira metade do século XX, essa política garantiu a educação como um direito para todos os cidadãos brasileiros, sem levar em consideração os marcadores sociais de raça, de gênero, de identidade e de classe social. O sistema educacional ocidental foi imposto aos povos autóctones sem considerar as particularidades e as especificidades históricas, culturais e sociais dessas comunidades.

Na segunda metade do século XX, o movimento e as organizações indígenas

– junto a outros movimentos étnicos-raciais – demandaram dos Estados Nacionais a necessidade de implementarem políticas educacionais que levassem em consideração as desigualdades educacionais, que afetam os segmentos populacionais historicamente alijados do acesso à política educacional universalista (Gomes, 2001). Dentre as muitas consequências desse processo, foram implantadas políticas de ações afirmativas em diversas Instituições Públicas de Ensino Superior.

No final século XX, o movimento e as organizações indígenas avançam em suas reivindicações e se mobilizam em relação a elaboração de um sistema de ensino superior mais pertinente a sua realidade sociocultural4. A pauta é a de que o Estado proporcione as condições materiais necessárias para implantar outros modelos de ensino superior, que estejam vinculados as necessidades dos territórios e as formas tradicionais de organização sociocultural. Alguns pensadores indígenas argumentam


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3 Neste artigo, usa-se o termo povos indígenas de maneira genérica; mas se reconhece que, dentro do segmento indígena, há diversidade de grupos étnicos, pois cada um tem uma história particular de contato, de nível de interação com a sociedade e de projetos societários próprios.

4 Tal proposição nasce no ceio do movimento indígena andino – especialmente do movimento indígena boliviano e equatoriano ‒ e, posteriormente, estende-se para outros pontos geográficos da América Latina (WALSH, 2010).

que o sistema de ensino deve estar constituído pela lógica ancestral de produção e de circulação de saberes (Baniwa,2012). Para tanto, as organizações indígenas pressionam e demandam o Estado e a sociedade envolvente a abrirem um espaço na agenda política, na esfera pública latino-americana, para inserção e discussão dessa pauta, que é considerada uma demanda prioritária para os povos indígenas, de modo a ampliar e até renovar a concepção instituída sobre o direito étnico à educação superior.

O propósito deste artigo, assim, é a de analisar o processo histórico de mobilização e de luta dos povos indígenas pelo seu Direito ao Ensino Superior na América Latina. Para isso faz-se necessário examinar o conceito de interculturalidade por ser uma categoria central na proposta de educação universitária desenhada pelos povos indígenas e suas implicações no âmbito do direito étnico.


Relação entre o direito individual, direito coletivo e o direito à educação


As mobilizações e as bandeiras de luta dos povos indígenas pelo acesso a um sistema de ensino superior pertinente emergem, no cenário público latino americano, da tensão que decorre do exercício do direito individual e do direito coletivo no âmbito da educação. Ambos os direitos foram instituídos no marco jurídico internacional e expressam visões de mundo distintas. O direito individual permite aos indígenas gozarem do direito à educação da mesma maneira que todas as pessoas na sociedade e a terem acesso diferenciado ao sistema educacional – por meio de medidas de ações afirmativas. Já o direito coletivo parte do pressuposto de que o sujeito de direito é o coletivo indígena e não o indígena; ou seja, são os povos e/ou as nações indígenas que são os titulares de direitos. Decorrente deste pressuposto, o coletivo indígena pode e tem o direito a exercer ou a opção de autodeterminar quais e como serão os seus processos educacionais (MACAS, 2014; LÓPEZ, 2011).

A conquista do direito coletivo no marco jurídico internacional, assim, contribuiu para adensar o desejo dos povos indígenas de criarem e implantarem, em algumas regiões da América Latina, suas próprias instituições de Ensino Superior e modelos educacionais inovadores e singulares (Macas, 2010; 2014). A materialização desse desejo tem gerado conflitos com os setores conservadores da sociedade civil, que advogam pela hegemonia da ciência moderna e por uma formação universitária exclusivamente voltado para atender as necessidades da sociedade de mercado.

Na contracorrente, os povos indígenas pleiteiam a criação de instituições voltadas para atender prioritariamente os interesses de suas comunidades, de seus territórios, de suas organizações sociais, sem desconsiderar a lógica da sociedade envolvente. Para isso, os povos apostam na construção e na implantação de diversas proposta de formação universitária, estruturadas a partir da legitimação, da validação e da institucionalização do conhecimento científico produzido a partir de uma base epistêmica não ocidental, própria e ameríndia.

Além disso, os representantes dos movimentos indígenas têm manifestado na esfera pública o seu anseio em compartilhar com a sociedade envolvente, mediante as instituições de ensino superior, seus saberes, seus valores, suas cosmologias, suas visões de mundo por meio da estruturação de uma proposta de formação pautada no diálogo interepistêmico (Baniwa, 2012), conforme afirma a líder indígena quéchua, Tarcila Rivera Zea:

Como indígenas, aspiramos a una educación que nos devuelva la dignidad, y ello no se va a lograr con programas educativos “para” indígenas, los cuales en la práctica muchas veces se reducen a trasladar al idioma originario los contenidos educativos laborados desde la perspectiva, la lógica, los contenidos y la tradición occidental. Nuestros saberes, en cambio, en sus múltiples manifestaciones y planos de formulación, deben ser equiparados en importancia y espacio junto a los saberes occidentales para formar un modelo educativo de alcance nacional, es decir, que nos permita encontrarnos a nosotros con los otros. (ZEA, 2011, p. 224).


É possível compreender, sob essa perspectiva, que, a medida que é garantido o direito dos grupos étnicos ao ensino superior, aponta-se, igualmente, a possibilidade de afirmar e de compartilhar seus conhecimentos gerados a partir de suas epistemologias. Essa perspectiva tem sofrido pressões contrárias e até boicotes de determinados segmentos da sociedade. Tal situação suscita problematizar com mais precisão “as razões” que fundamentaram – e ainda fundamentam – a negação e a violação do direito epistêmico dos povos indígenas na atualidade.

A possibilidade do exercício do direito epistêmico, para os povos autóctones, está associado a efetivação do direito dos povos à uma educação superior própria e específica. Diante do contexto atual que assola a América Latina, o exercício livre e pleno do direito epistêmico é considerado uma importante estratégia para o enfrentamento da situação de pobreza e de abandono que afeta os indígenas. Produzir conhecimento próprio, que subsidie os projetos de desenvolvimento territoriais é central para garantir a sobrevivência digna desses povos, entretanto, a

reivindicação do exercício do direito epistêmico associado ao direito coletivo à educação dos povos indígenas forja a construção de uma arena política permeada por conflitos e tensões entre o Estado e representantes da sociedade envolvente, que se posicionam, na maioria das vezes, de maneira contrária à efetivação desses direitos.

O direito étnico tem proporcionado a formulação e a implantação de propostas educacionais. Trata-se de um conjunto diversificado de propostas que vão desde aquelas desenhadas pelas políticas de acesso diferenciado aos cursos de graduação de diversas instituições de educação superior (Lima; Paladino, 2012) até a criação de instituições específicas, comumente denominadas de universidades indígenas e interculturais (Mato, 2008). Ocorre que as propostas em curso são expressão da representação dos atores sociais, que participam do debate no cenário público latino- americano sobre como garantir o direito dos povos indígenas à educação superior.

Desde a década de 1990, na América Latina, busca-se articular os direitos coletivos dos povos indígenas à educação superior. Para além das políticas de inclusão, os indígenas pleiteiam um modelo educacional que leve em consideração a vitalidade de seu patrimônio cultural: as chamadas Instituições de Ensino Superior interculturais, indígenas, entre outras.

Para um melhor entendimento dos direitos individuais e coletivos, a seguir, são brevemente analisadas as principais características que agrupam esses direitos no âmbito da educação superior e sua relação com o direito epistêmico.


Direito epistêmico dos povos indígenas


Uma das formas de compreender os direitos é tratá-los por geração. Os de primeira geração, constituídos ao longo do século XVIII e XIX, são os direitos civis e políticos, que são exercidos pelo homem individualmente e têm por princípio a não interferência do Estado. Os de segunda geração, constituídos no século XIX e XX, são aqueles exercidos pelos homens de forma individual e têm por princípio a intermediação do Estado, pois é este quem precisa provê-los. Os direitos de terceira geração, são os que têm como centralidade os direitos à autodeterminação dos povos indígenas. Eles foram elaborados por meio de pactos entre os povos e as Organizações das Nações Unidas, por exemplo.

Destaca-se ainda que os direitos de segunda geração, vinculados à ótica liberal, são baseados na teoria dos direitos humanos, cujo marco histórico é a Revolução Francesa, datada de 1789. Nascem das necessidades e das demandas da classe trabalhadora, embora exercidos por meio do Estado. Apesar de serem demandas que advêm de um coletivo, como a classe operária, elas são exercidas de maneira individual, ancorando-se na ideia de que o sujeito de direito é individual (COUTO, 2008).

Há uma tênue relação entre os direitos de segunda e terceira geração, a exemplo do direito social dos povos indígenas à educação e dos direitos coletivos dos povos originários ao Ensino Superior. O primeiro foi extremamente importante, uma vez que permitiu a garantia do indivíduo indígena acessar os seus direitos à educação superior. Diante das desigualdades de acesso a este nível educacional entre os segmentos populacionais de um determinado país, a proposta foi a de tratar “com especificidade o sujeito de direitos, que passa a ser visto em sua particularidade e especificidade” (Piovesan, 2008, p. 888). Partindo dessa ótica, determinados grupos étnico-raciais, distintos do grupo dominante, passaram a exigir uma proteção especial do Estado, de modo que “as demandas de grupos devem ser vistas nas especificidades e particularidade de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental, o direito à diferença” (PIOVESAN, 2008, p. 888).

O direito coletivo dos povos indígenas à educação superior tem relação com o direito à autodeterminação e com o projeto de desenvolvimento sustentável de suas comunidades. É do direito à autodeterminação que derivam os demais direitos coletivos, como, por exemplo, o direito à educação superior. Mais do que a preocupação desses povos com as desigualdades de acesso entre os segmentos indígenas e não indígenas à universidade, o centro de atenção recai sobre o tipo de educação que cada comunidade almeja em função de seu projeto societário. Assim, ao lado do direito coletivo à educação superior é necessário ter como ponto de partida o direito epistêmico dos povos e sua relação com outras epistemologias não ocidentais.

Daí que pensadores indígenas5 (Macas, 2013), insistem na importância da criação das universidades indígenas por serem estas as que mais se aproximam das


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5 Prof. Dr. Luis Fernando Sarango Macas. Universidade Amawtay Wasi. Equador.

epistemologias indígenas, sem desconsiderar a importância das epistemologias ocidentais. Essas instituições surgem com a pretensão não só de promover o diálogo interepistêmico, mas de produzir um outro tipo de conhecimento.

Críticos ao modelo de ingresso de indígenas às universidades tradicionais argumentam, ainda, que esse modelo de ensino, em maior ou menor medida, pode ser considerado com uma das formas exercida pelo Estado para manter o controle e estimular a homogeneização dos povos indígenas (Mato, 2008). Contudo, reconhecem que as comunidades indígenas necessitam acessar o sistema de Ensino Superior como uma estratégia de enfrentamento a situação de empobrecimento e de abandono social que assola grande parte dos grupos étnicos que habitam o território ameríndio.

No sistema de ensino superior, o modelo de inclusão de estudantes indígenas

– ancorado no direito individual – segue a lógica que fundamenta a política de ações afirmativas. Ou seja, tem como pressuposto o de enfrentar as desigualdades e as iniquidades educacionais entre o segmento estudantil indígena e o não indígena, promovida por grande parte dos Estados latino-americanos. Guia-se pelo princípio da igualdade de oportunidades e de resultados e corrobora com a concepção hegemônica de como inserir o indígena na sociedade de mercado, o multiculturalismo liberal. Tese que é defendida por vários acadêmicos, representantes de partidos políticos de centro-direita e de centro-esquerda, gestores e pelas agências multilaterais: a Organização das Nações Unidas, pelo Banco Mundial, entre outros (WASH, 2009a).

O exercício do direito individual encontra como base de sustentação o pensamento liberal, que no campo das relações étnico-raciais advoga pela inclusão dos indígenas à sociedade envolvente – com as suas formas próprias de ser e de viver nessa sociedade. Essa vertente tem como meta diminuir as desigualdades sociais/étnico-raciais especialmente no campo da educação e atenuar os conflitos sociais que são decorrentes dessas desigualdades. A concretização dessa perspectiva ocorre por meio do ingresso de estudantes indígenas às universidades que, de outra forma, não teriam chance de ingressar no sistema formal de ensino superior.

Desde outra perspectiva, o exercício do direito coletivo dos povos indígenas à educação superior encontra apoio na vertente da interculturalidade (WALSH,2009a) e no projeto ético-político-epistêmico de interculturalidade proposto pelo movimento

indígena latino-americano (Wash, 2009a; Macas, 2014). Apoiados nessas vertentes, têm surgido inúmeras propostas de criação e de gestão de Instituições de Ensino Superior localizados próximos ou dentro dos territórios indígenas; como por exemplo, a Universidad Autónoma Indígena Intercultural (UAII), localizada na região do Cauca, na Colômbia. Tratam-se de Instituições que são concebidas desde uma base epistêmica contra hegemônica – não só, mas de forma preponderante – instituída pelo e desde o ceio do pensamento indígena. Vale ressaltar que nem todas as experiências de universidades indígenas trabalham sob a mesma perspectiva ou na mesma direção; até porque existe uma variedade de grupos étnicos no território americano em que os grupos possuem cosmovisão e realidades territoriais diferentes. Por isso, é impossível tratar o tema pelo viés da homogeneização cultural, ou seja, pelo viés de um modelo único de universidade indígena.

A produção de conhecimento sob lógica do pensamento indígena não tem a pretensão de ficar encerrado em si mesma, como ocorre na lógica ocidental. Pelo contrário, ela reconhece a diversidade e contextos culturais de produção de saberes gerados pelos distintos grupos étnicos e sustenta a necessidade de compartilhar esses saberes entre os grupos étnicos, incluindo o de matriz ocidental. Por isso, a diversidade cognitiva e a pluridiversidade epistemológica são fundamentais para nutrir as bases de produção de saberes subversivos, contra hegemônicos; indicando de alguma maneira, que existem outras possibilidades de fazer ciência, de produzir conhecimento por caminhos que estão fora dos muros da ciência moderna e que escapam a vigilância epistemológica ocidental.

Desta forma, observa-se uma tensão que decorre da busca pela efetivação do direito individual e o direito coletivo dos povos indígenas de exercer o seu direito à educação superior. O movimento indígena latino-americano tem caminhado na direção de efetivar esse direito em ambas perspectivas, ainda que reconheça que a sua bandeira de luta na esfera educacional seja: o de desafiar as estruturas e os modelos hegemônicos de ensino na sociedade ocidental, propondo uma educação para além da lógica do capital.

Várias organizações indígenas - o Consejo Regional del CAUCA (Colômbia), a Pluriversidad Amawtay Wasi (Equador), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Brasil) - têm procurado ampliar o processo de politização dos direitos coletivos para pleitear o direito de gerir suas próprias instituições de ensino.

Na tradição liberal, o direito à educação deve ser garantido e, ainda o é, por meio de geração de políticas educacionais inclusivas. Esta perspectiva ajusta-se à ideia de que os sujeitos, ainda que tenham natureza coletiva, somente podem usufruir do direito de maneira individual.

Dessa forma, a compreensão acerca dos direitos dos povos indígenas à educação superior centra-se na recusa das desigualdades educacionais, que ainda persistem – em termos de acesso às Instituições de Ensino Superior – entre indígenas e não indígenas. Essa iniquidade é comum e pode ser observada em todo o sistema formal de Ensino Superior (Lima; Paladino, 2012), por exemplo, no Brasil.

No marco do direito coletivo, os povos indígenas, de forma geral, advogam a favor de outro tipo de modelo de ensino, que continua ainda sob a supervisão do Estado, e considera as seguintes problematizações: a qual modelo de Ensino Superior os povos indígenas têm tido acesso e a qual tipo de desenvolvimento ele se propõe? (Muñoz, 2006); esse modelo atende às necessidades e ao projeto de desenvolvimento de suas comunidades de origem? Sob essa perspectiva, poder-se-ia inferir que o acesso à educação seria – em última instância – um processo educacional de homogeneização cultural proposta pela sociedade envolvente?

Entretanto o que se almeja com os direitos coletivos é justamente o contrário, isto é, pretende-se dar mais ênfase a um sistema jurídico-legal que negue, em certa medida, toda e qualquer ação que venha a limitar, para os povos indígenas, o patrimônio cultural, as formas próprias de ser, de saber, de se organizar e de se relacionar com a natureza. É importante destacar ainda que a construção de modelos outros de Ensino Superior, elaborados pelos e com os líderes indígenas, deveriam ter como parâmetro os mesmos indicadores educacionais utilizados pelas Instituições de Ensino Superior indígena, uma vez que tal modelo educacional visa a articular o direito ao diálogo interepistêmico em condições de igualdade entre os saberes indígenas e os de matriz euro-americana.

Qualquer que seja a discussão doutrinária sobre os direitos coletivos dos povos indígenas, o certo é que se trata de uma discussão em aberto, mas que tende a ouvir a perspectiva dos indígenas. Cabe destacar que os povos indígenas vêm liderando esse debate, uma vez que têm questionado os parâmetros de definição, inclusive, quanto ao que se entende por “povos indígenas”. As demandas e as reivindicações por eles pleiteadas, contudo, na esfera pública, visam a garantir o direito ao seu

patrimônio cultural, pois foi ele que lhes permitiu e, ainda lhes permite, serem grupos

étnicos desde a chegada ibérica nas Américas – e além de todas as formas e tentativas sistemáticas do Estado de absorvê-los a uma ordem social diferente.

Frente a tais perspectivas sobre o direito dos povos indígenas à educação superior, qual seria a melhor maneira para pensar na efetivação desse direito na perspectiva do movimento indígena: a interculturalidade poderia ser uma proposta de projeto de Ensino Superior? Com o intuito de refletir sobre essa questão, a seguir, será apresentada a análise sobre a interculturalidade.


Interculturalidade desde o olhar do movimento indígena e de grupos sociais que apoiam o movimento


A interculturalidade é uma das expressões que se faz presente, de forma regular, nos discursos e nos debates sobre a educação e a diversidade cultural no contexto latino-americano. Nesse cenário, existe uma diversidade de conceituações produzidas sobre o termo interculturalidade, entretanto seu uso é empregado, comumente, para criticar os discursos vinculados ao multiculturalismo (Walsh, 2009a) e, pelos atores sociais indígenas, para defender o uso de epistemologias próprias (MACAS, 2014).

A interculturalidade tem como fundamento não só valorizar e respeitar as diferenças culturais, mas promover a interação e o intercâmbio da diversidade étnico- cultural no sentido de possibilitar a construção, por meio de um processo de interação e negociação com as várias visões sociais de mundo existentes na sociedade multiétnica e pluricultural, de outro entendimento social sobre o homem, sobre a sociedade e sobre a natureza (MACAS, 2008).

Na sociedade moderna, coexiste uma variedade de perspectivas associadas à matriz de pensamento indígena, denominada de ancestral. Por exemplo, uma dessas vertentes, a do Abya Yala, proposta pelos povos indígenas quéchuas e aymara, sustenta a ideia de que existem múltiplos paradigmas civilizatórios6, além do ocidental (MACAS, 2011).

Nesse contexto, a interculturalidade pode ser entendida como uma proposta que utiliza o diálogo

[...] para la co-construcción teórica, reflexiva, práctica y compleja que facilite la comprensión del entorno global, nacional y local, articulando las diversas racionalidades y cosmovisiones presentes en las


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6 Quatro paradigmas civilizatórios: o ocidental, o oriental, o africano e o Abya Ayala (MACAS, 2014).

diferentes culturas. Se trata de crear espacios de diálogo, reflexión, debate y co-construcción, que permitan una nueva condición social del saber, del saber hacer y del saber ser, sin que se repliquen las relaciones de poder asimétricas que han primado hasta hoy. (MACAS, 2002, p. 04).


Assim, além das perspectivas associadas à matriz de pensamento ocidental, haveria outras perspectivas associadas a matrizes de pensamento ancestral. Logo, a interculturalidade seria uma ferramenta que oportunizaria produzir novas formas de entender a realidade, a partir da conjugação de pensamento oriunda de matrizes culturais distintas.

Os autores dedicados ao estudo do pensamento indígena e à interculturalidade argumentam que “no se trata de simplemente reconocer, descubrir o tolerar al otro o la diferencia en si” (Walsh, 2009a, p. 45). Pelo contrário, trata-se de proporcionar as condições necessárias para que as pessoas e os grupos oriundos de matrizes culturais distintas possam interatuar entre si, por meio do

[...] diálogo, articulación y asociación entre seres y saberes, sentidos y prácticas, lógicas y racionalidades distintas [...] la interculturalidad es distinta encuanto se refiere a complejas negociaciones e intercambio culturales, y busca desarrollar una interacción entre las personas, conocimientos, prácticas y lógicas, racionalidades y principios de vida culturalmente diferente". (WALSH, 2009a, p. 45)


A interculturalidade, considerada sob a perspectiva indígena, proporciona um processo de “creación y recreación de los conocimientos y saberes adquiridos desde las raíces culturales, desde el corazón de los pueblos y es a la vez una estrategia para acceder y generar nuevos conocimientos” (Cric, 2013). Ainda, é uma proposta, na qual “la sabiduría de los pueblos tiene cabida y igual que el reconocimiento universal donde la sociedad concede el derecho a resinificar el papel de los indios” (Cric, 2013). Ainda, considerando-se essas vozes, a interculturalidade, em sua figuração ideal-típica, está fundamentada em certas asserções que estruturam um sistema de pensamento:

  1. a sociedade é multilíngue e pluricultural, isto é: vivem e convivem, desde a chegada dos movimentos de invasão e de colonização das Américas, grupos de pessoas que pertencem a diferentes matrizes culturais;

  2. a sociedade, o homem e a natureza podem, portanto, ser estudados e compreendidos a partir do diálogo de saberes entre matrizes de pensamentos distintas, neste caso: a ocidental e a ancestral;

  3. no âmbito da produção do conhecimento, implica estabelecer relações horizontais com condições de igualdade, em que a diferença se entenda como virtude,

respeito e compreensão entre culturas (MACAS, 2008; WALSH, 2009a; BANIWA, 2012).

Ademais, é um conceito que está relacionado aos povos indígenas. Ele surgiu no contexto de mobilizações étnicas no cenário público latino-americano, que denunciavam (e denunciam!) as formas históricas de controle, de dominação e de subalternização de seres e de saberes que sofreram racialização por parte do Estado e de setores dominantes da sociedade (WALSH, 2009a; 2010).

Originariamente, a interculturalidade foi elaborada a partir da perspectiva geocultural dos povos indígenas e, portanto, “no es un concepto concebido por la academia” (Walsh, 2009a, p. 14), como alguns acadêmicos ou intelectuais costumam enunciar; pelo contrário, “é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização” (Walsh, 2009b, p. 22). Por isso tem um sentido subversivo, ou seja, atenta subverter a lógica dominante de produção de conhecimento que emerge da academia ocidental; cria possibilidades de inovação de categorias e de outros entendimentos de como ler, de como viver e de como produzir sentido no mundo; oportuniza a possibilidade de desenhar uma outra configuração de futuro (MACAS,2010).

Desde o seu início, a interculturalidade tem significado, antes de qualquer coisa, uma bandeira de luta política que esteve em permanente disputa na arena pública com os setores dominantes da sociedade latino-americana. Essa bandeira esteve relacionada com o desejo dos povos de garantirem o seu direito à educação, enquanto um direito coletivo. Por isso,

[...] no es extraño que uno de los espacios centrales de lucha se la educación, como institución política, social y cultural: el espacio de construcción y reproducción de valores, actitudes e identidades y del histórico-hegemónico del Estado. Por eso mismo, el planteamiento de la interculturalidad sea el eje y deber educativo es substancial. Sin embargo, la genealogía de su uso en el campo de la educación está marcada por una serie de motivos, tensiones y disputas. (WALSH, 2010, p. 79)


Essa genealogia tem início, principalmente, no âmbito das discussões sobre educação escolar indígena, denominada de educação intercultural e bilíngue, na década de 1980. Posteriormente, o sentido e o significado atribuído à interculturalidade ganham novos contornos com a geração de políticas de Ensino Superior delineadas a garantir o direito dos povos indígenas à educação superior, no final da década de 1990 e início de 2000; e à geração e implantação de sistema de

Ensino Superior próprio7, comumente denominados de Universidade Interculturais ou Indígenas, a exemplo da Universidade Autônoma Indígena Intercultural (UAII), na Colômbia, e da Universidade Comunitária Intercultural das Nacionalidades e Povos Indígenas – Amawtay Wasi, no Equador (MATO, 2008).

A interculturalidade começa a constituir-se enquanto uma proposta política liderada pelo movimento e pelas organizações étnicas na esfera educacional latino- americana, mais especificamente em torno das discussões sobre as escolas indígenas e o modelo educacional intercultural (específico e diferenciado). Esses debates inserem-se em um contexto educacional mais amplo na região caracterizada pelo questionamento das políticas sociais universalistas.

Na década de 1980, as organizações passaram, por um lado, a contestar o modelo escolar assimilacionista8 ou integracionista9 adotado pela maioria dos Estados latino-americanos; por outro, a desenhar e a propor outros modelos de educação. Apesar do sentido atribuído pelos atores indígenas, a interculturalidade no âmbito da educação foi assumida pelas instâncias estatais como uma política educacional específica, diferenciada, comunitária e respeitosa dos usos linguísticos dos povos indígenas10. Assim, definindo-se como um espaço educativo intercultural orientado a “trabalhar os valores, os saberes tradicionais e práticas de cada comunidade e garantir o acesso a conhecimentos e as tecnologias da sociedade nacional relevantes para o processo de interação e participação cidadã” (PALADINO; ALMEIDA, 2012, p. 18).

A forma como o Estado assumiu a interculturalidade é amplamente criticada pelas vozes indígenas “no como deber de toda sociedad sino como un reflejo de la condición cultural indígena” (Walsh, 2009a, p. 49). Em outras palavras, ela é encarada como uma proposta que diz respeito somente aos povos indígenas, atribuindo-lhes a


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7 “La educación propia busca potenciar la sabiduría ancestral que nace del corazón, de lo más profundo de cada pueblo en su lucha por persistir, del esfuerzo por hilar los saberes y conocimientos comunitarios y elaborar día a día el tejido de una vida mejor. Es así como se han ido creando escuelas para atender a niños y niñas, desde el Aprestamiento (grado 0), la básica, la media, la formación docente y ahora la dinámica de nivel superior (...) en territorios indígenas” (CRIC, 2013).

8 O modelo assimilacionista foi adotado, principalmente, pelos Estados Unidos no final do século XIX e início do XX. Este modelo está voltado não aos indivíduos, mas aos grupos e segmentos das minorias, procurando fazer com que eles adotassem, de forma coletiva, os valores nacionais. A ideia era impor a ideologia e as línguas nacionais para que as minorias perdessem as suas especificidades culturais e passassem a fazer parte de um povo concebido de forma homogênea (PALADINO; ALMEIDA, 2012). 9 O modelo integracionista foi mais usado pelos países colonizadores. A ideia era que os indivíduos se integrassem gradualmente à cultura nacional, incorporando a língua oficial (PALADINO; ALMEIDA, 2012).

10 Considera que todos os processos de aprendizagem escolar sejam feitos nas línguas maternas dos educandos (PALADINO; ALMEIDA, 2012).

responsabilidade de apreender os valores, princípios, saberes e formas de ser das pessoas e dos grupos que pertencem à cultura de matriz ocidental. Além disso, os demais segmentos populacionais da sociedade ficam desobrigados de realizar os seus estudos em instituições escolares orientados pelo modelo denominado de intercultural, para estudarem nas instituições escolares tradicionais regidas pelo modelo educacional universal.

Dessa maneira, estabelece-se “una de las primeras políticas educativas sobre la interculturalidad, una política con sentido singular y unidireccional de indígenas hacia la sociedad blanco-mestiza y no vice-versa” (Walsh, 2009a, p. 49). A partir desse momento, a interculturalidade começa a assumir, no campo educacional, um duplo sentido: por um lado, “un sentido político-reivindicativo, por estar concebido desde la lucha indígena y con designas para enfrentar la exclusión e impulsar una educación lingüísticamente propia” (Walsh, 2010, p. 80) e, por outro lado,

[…] fue asumiendo un sentido socio-estatal de burocratización. Al legalizar la EIB como derecho étnico y colectivo y como programa educativo para indígenas - algo que sucedió en la mayoría de países con las poblaciones indígenas en los años 80 y 90 (WALSH, 2009a, p. 80-81).


O sentido social-estatal de burocratização é o que tem prevalecido no contexto educacional latino-americano e é a partir dele que foram gerados modelos educacionais para serem aplicados, preferencialmente, a crianças e adolescentes indígenas (Walsh, 2009a; 2010). Em contrapartida, alguns estudos revelam que a interculturalidade foi uma proposta delineada pelas organizações indígenas para ser aplicada a toda a sociedade (CUJI LLUGNA, 2012).

Nos documentos de registro produzidos pela organização indígena – La Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE)11 – está explícito que “las propuestas de los movimientos indígenas fueron pensadas tanto para las nacionalidades y pueblos indígenas en un sentido reivindicativo como para la sociedad ecuatoriana en general” (CUJI LLUGNA, 2012, p. 29).

Essa abordagem refere-se às concepções em que a interculturalidade é assumida como um projeto ético, político e epistêmico – de saberes e conhecimentos


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11 Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) foi consolidada em 1986. Entre suas propostas está presente a criação de um sistema educacional que responda às expectativas dos povos indígenas. Ela conseguiu pressionar o governo a criar, em 1988, a Direção Nacional de Educação bilíngue, que constitui a reivindicação mais importante da organização indígena, não só pelo valor positivo dado pelo reconhecimento do Estado, mas por essa instância ser regida e controlada pela própria organização.

pautados originalmente pelas organizações indígenas latino-americanas (Walsh, 2009a). Posteriormente, outros grupos e organizações sociais de apoio à luta indígena passaram a desenvolver estudos e pesquisas sobre a interculturalidade na região e a subsidiar as ações indígenas, a exemplo do Grupo de Estudos da Colonialidade/Modernidade (MIGNOLO, 2005).

Relacionado com a geopolítica do conhecimento e com a modernidade/colonialidade, tal proposta busca estabelecer conexões entre a interculturalidade e a colonialidade. Portanto, as principais categorias que definem as identidades coletivas, seus projetos políticos e as relações étnico-raciais, são: a diferença étnico/racial, por estar nas fronteiras da modernidade, e a referência teórico- liberal e neoliberal, o lugar “outro” onde poderiam aparecer projetos “outros” de poder, saber e ser (MIGNOLO, 2005; WALSH, 2009a, 2009b, 2010).

A interculturalidade, a partir da perspectiva desses atores sociais, é: a) uma forma de estabelecer diálogo entre saberes diferentes (Walsh, 2009a); b) um projeto político que questiona os lugares de poder desde o quais se produzem representações “mismas acerca de lo que es, y lo que no, reconocido como conocimiento” (Rojas, 2005, p. 09). Dessa maneira, ela se constituiu como uma perspectiva que aponta para outras formas de produção de conhecimento descolonizado (Mignolo, 2005), que sustenta que descolonizar a produção de conhecimento exige, de alguma maneira, subverter a lógica do sistema educacional em todos os seus níveis de ensino. Assim,

[...] subvertir la colonialidad del sistema educativo, no es posible solo incluyendo ahora los saberes indígenas [...] como complemento a los saberes universales en un supuesto dialogo de saberes que cuestiona las lógicas de representación en que se inscribe a unos y otros, reproduciendo las políticas de representación dominantes. (ROJAS, 2005, p. 9)


A interculturalidade no campo da educação e, especialmente, no do Ensino Superior, só é possível de ser realizada na sociedade ocidental se houver uma subversão na lógica dominante que fundamenta o modelo de oferta do último na atualidade. Para isso, considera-se como fundamental discutir com todas as tradições epistêmicas da humanidade a produção de saberes que possibilitem promover o bem comum de todos seres e a preservação da natureza.

Interculturalidade como projeto ético-político e epistêmico


Algumas noções e características especificam a interculturalidade enquanto projeto ético-político e epistêmico. Como projeto político, a interculturalidade delata a situação das comunidades autóctones e propõe estratégias para modificar e transformar essa situação nas várias áreas de domínio do Estado. É nesse contexto que as comunidades denunciam a persistência do eurocentrismo e da política educacional integracionista e assimilacionista e propõem a criação de modelos educacionais estruturados com base na matriz de pensamento de suas comunidades. O projeto intercultural, assim, posiciona os coletivos étnicos frente a outros projetos de sociedade orientados por uma visão de mundo conservadora conforme a ordem existente, segundo a qual o mercado é central. Dessa maneira, esses projetos não estão dirigidos para o atendimento das necessidades e de demandas dos povos indígenas, mas sim para os interesses do grande capital (CFESS, 2013) e, portanto,

para a manutenção do sistema-mundo (QUIJANO, 2000).

Até o século XV, predominava na região a pluralidade de formas de pensar de matriz ancestral. Com a chegada dos colonizadores, impulsionados pelo desenvolvimento do mercantilismo, estes impuseram suas formas de pensar, de viver, de existir e de se relacionar com a natureza. Essa imposição esteve associada à desqualificação do conhecimento, das línguas e das formas e dos modos de vida ancestrais dos povos. São os traços gerais de uma cultura que compõe a ofensiva do pensamento europeu associada a estratégias e práticas (MIGNOLO, 2005).

A partir desse momento, os povos indígenas sofreram influência das várias escolas de pensamento de matriz euro-americana (Walsh, 2010). Diante dessa situação, eles tiveram como tarefa construir uma perspectiva que articulasse duas formas de pensamento: a ancestral e a ocidental. Tal articulação exigiu produzir uma perspectiva pautada no diálogo entre culturas, ou seja, entre os diferentes tipos de saberes que os grupos humanos produzem, criam e recriam nas suas experiências históricas e em cada contexto social.

Essa proposta, portanto, aposta na perda de legitimidade do eurocentrismo e do universalismo no campo epistêmico e na supressão das formas históricas de dominação, de opressão e de subalternização sobre os sujeitos indígenas e de seus coletivos. Trata-se de uma proposta que aposta na transformação da sociedade, das relações e das condições de outros modos de vida que não se referem simplesmente

às relações econômicas, políticas e sociais, mas à possibilidade de produzir outras circunstâncias de existência, nas quais seja possível atribuir novos sentidos e significados à própria vida humana, aos saberes, à memória ancestral, à espiritualidade e à natureza (Mignolo, 2005; Walsh, 2009a; 2009b). Outra característica desse projeto refere-se ao ponto de vista do segmento social que o produz e sua relação com a luta social. Nesse sentido, a interculturalidade nasce do debate propositivo dos grupos e segmentos étnicos que foram vítimas da racialização na sociedade latina (WALSH, 2008ac).

A interculturalidade é princípio ideológico e político, pensado não só para o segmento indígena, mas para o conjunto da sociedade latino-americana, ao ressaltar “o seu sentido contra hegemônico e sua orientação com relação ao problema estrutural-colonial-capitalista” (WALSH, 2009b, p. 22).

En esta tradición, la interculturalidad aparece como discurso político y reivindicativo de poblaciones afectadas por el desarrollo del capitalismo vía despojo de tierra, por la ocupación de sus territorios por colonos portadores de otras tradiciones y valores culturales, por el desplazamiento de sus lugares de origen hacia otro territorios, particularmente las grandes ciudades, en donde se configuran complejos culturales multiétnicos de la democracia transformista que caracteriza nuestro régimen social y político. Ha sido la ubicación de estas luchas – emancipatorias y de resistencia de los pueblos indígenas y afro en América Latina- y de su desarrollo en los nuevos contextos nacionales e internacionales que actualiza la discusión y nos obliga a precisar sus contenidos. (FLAPE COLOMBIA, 2005, apud WALSH, 2009b, p. 89).


Por isso, o projeto intercultural é necessariamente um projeto decolonial, pois tem como pretensão desvendar e enfrentar “a histórica articulação entre a ideia de raça como instrumento de classificação e controle social e o desenvolvimento do capitalismo mundial (moderno, colonial, eurocêntrico)” (Walsh, 2009b, p. 14), que afirma o lugar central da raça como elemento constitutivo das relações de exploração e de dominação social e de subalternização de saberes.

Entender la interculturalidad como proceso y proyecto político dirigido hacia la construcción de modos otros de poder, de saber, ser y de vivir, permite ir mucho más allá de los supuestos y manifestaciones actuales de la educación intercultural (funcional). Es argumentar no por la simples relación entre los grupos, prácticas o pensamientos culturales, por la incorporación de los tradicionalmente excluidos dentro de las estructuras (educativas, disciplinares o de pensamiento) existentes, o solamente por creación de programas especiales que permitan que la educación normal y universal siga perpetuando prácticas y pensamientos racializados y excluyentes. (WALSH, 2009a, p. 91).

Compreender a interculturalidade é, portanto, sinalizar a possibilidade de que existem outras formas e maneiras de produzir conhecimento válido e científico. Com isso, o projeto intercultural coloca, no centro do debate, a necessidade de pensar e de considerar outras lógicas de produção que partem de outras matrizes de tradição não ocidental.

São essas proposições que fazem a interculturalidade ser uma vertente em oposição ao multiculturalismo. Esta parte da ideia de que é necessário reformar o sistema educacional para incluir os estudantes indígenas nas atuais estruturas educacionais vigentes que, historicamente, foram concebidas a partir da lógica da colonialidade do saber.

Em contraposição, a interculturalidade aposta na refundação do sistema educacional, pois acredita que as políticas inclusivas não são capazes de transformar as estruturas, apenas de modificá-las para adequar seu ambiente à nova demanda. Dessa maneira, a perspectiva crítica fornece as bases para “um sistema educacional distinto – desde a escola até a universidade, que poderia desafiar e pluralizar a atual geopolítica dominante do conhecimento com suas orientações ocidentais e euro-usa- cêntricas” (Walsh, 2008a, p. 144). As políticas educacionais inclusivas são criticadas, principalmente, no nível de Ensino Superior, entre as quais, aquelas que fazem referência simplesmente à política de acesso diferenciado às universidades. Essa crítica, que não desconsidera a importância dos avanços na inclusão social no campo das políticas públicas, destacadamente as orientadas pelo princípio da igualdade de oportunidades de acesso ao Ensino Superior, lembra que os povos indígenas

[...] desejam uma formação superior em seus termos, ou seja, para atender suas demandas, realidades, projetos e filosofia de vida. Aqui reside o maior desafio da formação superior de indígenas nos contextos atuais IES, fundamentadas na organização, produção e reprodução de saber único, exclusivo, individualista e a serviço de mercado. (BANIWA, 2012).


Nesse contexto, o autor propõe uma reflexão sobre os limites e as possibilidades de o atual modelo de formação universitária atender às aspirações dos povos indígenas, tendo em vista que está orientado para o atendimento das demandas da sociedade de mercado.

Os povos indígenas, por exemplo, não gostariam de serem enquadrados pelas lógicas academicizas que alimentam e sustentam os processos de produção do capitalismo individualista, que tem gerado uma sociedade cada vez mais em retorno da barbárie e da selvageria, por meio da violência, exploração econômica desumana,

do império da lei do rico e dos que tem poder político à base de democracias das elites econômicas e políticas. Os povos indígenas gostariam de compartilhar com o mundo, a partir da universidade, seus saberes, seus valores comunitários, suas cosmologias, suas visões de mundo e seus modos de ser, de viver e de estar no mundo, onde o viver é um bem coletivo. (BANIWA, 2012).


É na crítica às políticas educacionais inclusivas que a interculturalidade tem fundamentado a geração e a implantação de outros modelos de formação universitária dirigidos a satisfazer as necessidades dos povos indígenas (MATO, 2008).

A interculturalidade centra-se na discussão no enfrentamento do racismo epistêmico, tendo como substrato os direitos coletivos dos povos indígenas à educação superior. Sob esta nova lógica, têm surgido propostas de criação e de gestão de sistemas de Ensino Superior localizados próximos ou dentro dos territórios indígenas. Trata-se de uma proposta que foi construída pelo pensamento indígena, especialmente o andino, na América Latina. Vale ressaltar que nem todas as universidades indígenas trabalham sob a mesma perspectiva ou na mesma direção; até porque existe uma variedade de grupos étnicos no território americano.


Considerações finais


Na América Latina, a interculturalidade consolidou-se após a onda de mobilizações étnico-culturais no final da primeira década do século XX. Sua origem esteve vinculada às organizações indígenas e aos movimentos de apoio à luta desses povos pela efetivação do direito coletivo dos povos originários ao Ensino Superior. A análise da demanda dos povos permitiu, nesse contexto, observar que o cerne da luta de seus povos busca garantir um modelo de ensino específico e diferenciado, situado geograficamente próximo à comunidade, voltado essencialmente para o seu projeto de desenvolvimento, de modo a atender os sujeitos representantes destas comunidades. Trata-se, por conseguinte, de uma proposta de Ensino Superior voltado para os projetos indígenas, que esteja culturalmente desenhado para receber diferentes segmentos estudantis oriundos de outras tradições culturais, que, ao estudarem neste modelo de ensino, tenham a possibilidade de apreender e praticar o diálogo intercultural epistêmico.

De um lado, apresenta-se o direito individual dos povos, que tem como expectativa aumentar a probabilidade de ingresso de estudantes indígenas no Ensino

Superior, tendo como perspectiva teórica o multiculturalismo liberal. Entretanto, esta perspectiva não se opõe ao modelo de educação tradicional voltado para atender os ditames de globalização do conhecimento e os valores éticos e estéticos que sustentam a sociedade de mercado. Como consequência, promove a desautorização epistemológica dos povos indígenas – e de qualquer outro grupo sociocultural de matriz não ocidental e eurocêntrica.

Por outro lado, encontra-se o direito coletivo dos povos indígenas à educação superior, que luta pela valorização epistêmica e pela heterogeneidade dos grupos étnicos, da perspectiva intercultural. Proposta que é liderada essencialmente pelas nações indígenas e que reivindica o direito legítimo dessas nações de desenharem processos e modelos educacionais vinculados a projetos societários autodeterminados por eles - projetos próprios, em sintonia com os saberes das pessoas e suas práticas comunitárias. Projetos que aspiram subverter a lógica dominante do neoliberalismo. Dito isso, em tal perspectiva, as discussões sobre o acesso são deslocadas para o âmbito do “tipo” de Ensino Superior que desejam esses povos.

Ademais, foi possível constatar que a discussão sobre a maneira de inserir os povos no sistema de Ensino Superior está presente na agenda política do movimento indígena. Embora não neguem a importância dessa luta, os grupos étnicos preocupam-se mais sobre como criar e controlar as instituições de Ensino Superior específicas e próprias das comunidades indígenas do que como incluir seus estudantes nas Instituições de Ensino Superior.

A interculturalidade revela-se como a vertente do pensamento que nasce do movimento e das organizações indígenas e que conta com as contribuições da vertente da decolonialidade. Trata-se, assim, de outra forma de pensar o mundo, que advém de outra epistemologia, de outras tradições epistêmicas. Ela tem como um de seus fundamentos valorizar a produção ancestral do conhecimento, com isso, pondo em xeque a epistemologia de conhecimento imposta pelos euro-americanos, tida – até então ‒ como universal e eurocêntrica, o que remete novamente à questão da necessidade apontada pelos próprios indígenas de oferta de um Ensino Superior específico e diferenciado.

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