v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Pedro Clei Sanches Macedo2
Ramofly Bicalho3
Este estudo tem como objetivo analisar a disputa ideológica entre as concepções de Educação Profissional Rural e a Educação do Campo. Trata-se de reflexões sobre a utilização desses conceitos na contemporaneidade: atuação do Sistema Nacional de Aprendizagem Rural na política de formação voltada para o agronegócio e a atuação dos movimentos sociais na defesa do PRONERA. A pesquisa utiliza Gramsci como referencial teórico e metodológico, com revisão de literatura e análise de documentos. Identificamos elementos que intensificaram a disputa pela hegemonia no contexto da educação do campo.
Este estudio tiene como objetivo analizar la disputa ideológica entre las concepciones de Educación Profesional Rural y la Educación del Campo. Se trata de reflexiones sobre la utilización de estos conceptos en la contemporaneidad: actuación del Sistema Nacional de Aprendizaje Rural en la política de formación orientada al agronegocio y la actuación de los movimientos sociales en la defensa del PRONERA. La investigación utiliza Gramsci como referencial teórico y metodológico, con revisión de literatura y análisis de documentos. Identificamos elementos que intensificaron la disputa por la hegemonía en el contexto de la educación del campo.
1 Recebido em 03/04/2019. Primeira avaliação: 09/05/2019. Segunda avaliação: 08/07/2019. Aprovado em 02/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38132.
2 Doutorando em Educação no Programa de Programa de Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da UFRRJ; Mestre em Ciências no Programa de Pós-graduação em Educação Agrícola (PPGEA) da UFRRJ; membro do grupo de Pesquisa Educação do Campo, Movimentos Sociais e Pedagogia da Alternância da UFRRJ. Email: pedroclei@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4873-7242
3 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua como Professor Associado II no Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Integra o Corpo Docente da Licenciatura em Educação do Campo, o Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola (PPGEA) e o Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc). E-mail: ramofly@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0571-6481
This study aims to analyze the ideological dispute between the conceptions of Professional Rural Education and the Field Education. These are reflections on the use of these concepts in contemporary times: the National Rural Learning System's performance in the agribusiness training policy and the social movement's actions in defense of PRONERA. The research uses Gramsci as a theoretical and methodological reference, with literature review and document analysis. We identified elements that intensified the dispute for hegemony in the context of rural education.
O presente trabalho resulta das reflexões sobre a educação do campo e sua relação com as teorias educacionais, desenvolvidas nos estudos do Doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação de Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), tendo como referencial teórico-metodológico as contribuições de Antônio Gramsci para compreender o processo de disputa hegemônica no campo da educação profissional no meio rural. O objetivo principal é demonstrar a diferença dos aspectos teóricos, políticos e ideológicos existentes entre os conceitos de Educação Profissional Rural e Educação Profissional do Campo, a partir das concepções de Educação Rural e Educação do Campo – a concepção rural pensada como instrumento do capital e a concepção de educação do campo construída como demanda histórica dos movimentos sociais populares.
As políticas de educação do campo, implementadas a partir da década de 1990, defendem o termo “educação do campo” e sua variante “educação profissional do campo”, não como um conceito em si mesmo, mas como uma concepção que marca o processo de conquista dos movimentos sociais na luta pela terra e, consequentemente, na garantia de direitos fundamentais, como educação, saúde, moradia e alimentação, (Molina, 2006, 2009; Esmeraldo, 2010). Em contrapartida, no mesmo cenário existem instituições, que, ao defenderem o termo “educação profissional rural”, firmam um “compromisso estratégico” na oferta de cursos e
programas de educação profissional a partir de “condicionamentos socioeconômicos relativos ao capital-trabalho”, como é o caso do SENAR. (SENAR, 2005, p.20).
Essas reflexões são necessárias para compreender melhor a arena de disputa de hegemonia de dois projetos societários para produção e difusão do conhecimento, operada através de seus intelectuais orgânicos. Neste sentido, é necessário compreender o conceito de “Estado Ampliado” e “intelectual orgânico”, a partir da teoria de Antônio Gramsci. Esta abordagem teórica é fundamental para entender a correlação de forças dos projetos hegemônicos em disputa no seio da sociedade civil, e o que cada um representa. Assim, de forma sintética, este artigo apresentará um breve estudo sobre a atuação dos intelectuais orgânicos na implementação de políticas de educação profissional do campo/rural, destacando as correlações de forças que são travadas no interior do Estado. Para tanto, analisaremos duas propostas de formação profissional: a atuação do Sistema Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) na implementação da política de formação profissional rural voltada para o Agronegócio e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) enquanto política pública específica de educação profissional do campo, construída com a participação dos movimentos sociais camponeses.
Para analisar o processo de disputa hegemônica no campo da educação profissional do meio rural no Brasil, é necessário compreender os conceitos de “Estado Ampliado” e “Intelectual Orgânico” e a articulação de posições políticas e ideológicas na correlação de forças antagônicas no seio da sociedade civil. Na sociedade moderna capitalista, a partir do pensamento de Gramsci, o Estado não pode ser tomado como sujeito, nem tampouco como objeto, numa visão reducionista de um “bloco monolítico de órgãos, vazios de atores sociais, portadores de interesses específicos e do qual emanam, de forma igualmente naturalizada, as inúmeras políticas públicas”, mas enquanto uma “condensação de relações sociais”, ou seja, atravessado pelo conjunto das relações de classe presentes na própria formação histórica, incorporando os conflitos vigentes na sociedade (MENDONÇA, 2007, p. 4).
Lamosa (2016, p. 40), ao aprofundar os aspectos teórico-metodológicos da relação entre Estado e Sociedade, aponta para a necessidade de analisar os nexos entre Estado, Classe Social e Educação. É inevitável, portanto, a análise sobre os processos de consolidação da hegemonia da classe dominante no Brasil, momento que consideramos importante para uma melhor compreensão sobre como se aplicam as políticas educacionais de formação profissional no contexto contemporâneo. Cabe destacar que nos últimos 30 anos a classe dominante foi defrontada com o desafio de exercer o poder em pleno período democrático. Esse processo altera consideravelmente a composição da sociedade civil, através de uma ampliação de partidos responsáveis pela formação de novos intelectuais que formulam e difundem a direção política de sua classe.
Para tanto, torna-se necessário compreender o significado de Estado Integral e sociedade civil, a partir das contribuições teóricas de Antônio Gramsci4, para explicar a forma como as classes se relacionam e exercem suas funções no interior do “bloco econômico”. (Simionatto, 2011, p. 47). Sua teoria define o Estado como sendo um dos dois grandes planos da superestrutura, sendo o outro a sociedade civil.
O Estado integral ou Estado ampliado5, indica a relação de unidade-distinção entre Estado e sociedade civil pra exprimir o que ele chama de “Estado em sentido orgânico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil)”. Esses dois planos dialeticamente unidos no conceito de Estado Integral representam a contribuição de Gramsci à teoria do Estado, (GRAMSCI, 2007, p. 244).
Gramsci, no percurso de construção da sua teoria sobre o Estado, distingue dois conceitos de articulação do campo estatal: o Estado em sentido estreito (unilateral) e o Estado em sentido amplo (integral). Em sentido estreito, o Estado considera apenas a burocracia estatal, se identificando com o governo a partir de suas funções coercitivas e econômicas, como os órgãos governamentais,
4 Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Alles, uma pequena cidade agrícola da província de Cagliari, na região da Sardenha, ilha situada a oeste da península italiana. Seu pai era de origem albaneza e sua mãe de ascendência espanhola. Estudou nas escolas elementares de Ghilarza, onde freqüentavam também filhos de camponeses. Desde pequeno despertou o interesse pela leitura, se destacando nos estudos, que tiveram que ser interrompidos pela necessidade de trabalhar para ajudar sua família. Na juventude, desenvolve de rebelião e de indignação contra a classe burguesa e contra as injustiças sociais de seu tempo. A construção de seu pensamento se dá, na militância política e na luta das massas operárias e principalmente, durante o período em que esteve preso através da ação de Mussolini em 1926 (SIMIONATTO, 2011).
5 Expressão também utilizada por Buci-Glucksmann (1980) para definir Estado Integral.
secretarias, exército, polícia, administração. Em sua forma ampliada, o Estado pressupõe um equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil através de uma correlação de forças contraditórias (BUCI-GLUCKSMAN, 1980, p. 128).
No pensamento gramsciano, a sociedade política é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e que se identifica com os aparelhos coercitivos ou repressivos de Estado, que são controlados pelas burocracias (Estado em sentido estrito, Estado-coerção). As classes exercem sempre uma dominação mediante coerção. A sociedade civil é formada pelas organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias - igrejas, partidos políticos, escolas, sindicatos, organizações profissionais, mídia. (Estado ético). É por meio da sociedade civil que as classes buscam exercer sua hegemonia, (VIOLIN, 2006).
No Estado moderno, mais especificamente nas sociedades dominantes e hegemônicas em que o capitalismo de desenvolveu, a sociedade civil apresenta uma articulação mais complexa e o Estado torna-se cada vez mais amplo. O Estado tanto exerce suas funções coercitivas quanto desenvolve o plano ideológico e econômico. Segundo Gramsci (2007), o Estado não é sujeito, isto é, uma instituição que assume a responsabilidade sobre a sociedade e seus conflitos sociais, nem objeto, mas sim uma “condensação das relações sociais que estão presentes numa dada sociedade”, (BUCI-GLUCKSMAN, 1980; SIMIONATTO, 2011).
O conceito de hegemonia, a partir dos estudos de Gramsci será utilizado como importante ferramenta teórica para compreender o processo de construção das políticas de educação no campo no contexto histórico e político no Brasil, nos últimos anos. Este conceito será utilizado para entender que as classes sociais, neste caso, as classes que representam os sujeitos dos campos, como os movimentos sociais, organizações e populações camponesas, produzem e reproduzem ao longo da história as condições objetivas e subjetivas de sua existência, (LAMOSA, 2016. p. 20).
A ideologia começa como um sistema organizado de ideias produzidas pelas classes dominantes para que essa classe apareça como representante dos interesses de toda a sociedade, sendo que ao popularizar-se com a aceitação por parte dos dominados, chega-se ao que se Gramsci denomina de hegemonia, pois quando a classe em ascensão chega ao poder temos a aceitação, por parte de
todos os membros da sociedade, da ideologia dominante. É neste momento que as classes dominantes não dominam apenas os meios materiais da sociedade (meios de produção e o Estado), mas também suas ideias são aceitas por toda a sociedade.
A ideologia é, portanto, a imaterialidade da luta de classes. É sinônimo dos mecanismos utilizados pelas classes dominantes, que envolvem um conjunto de artifícios e práticas sociais, para manter a dominação e camuflar a existência do antagonismo de classes. A luta de classes não se manifesta apenas no confronto direto e material entre as classes sociais, mas por meio de um conjunto de procedimentos institucionais, jurídicos, políticos, policiais, pedagógicos etc. que são utilizados pela burguesia a fim de manter a sua dominação. (CAMACHO, 2014).
A ideologia da classe dominante é produzida/reproduzida pelos seus intelectuais orgânicos no seio da sociedade política (Estado) e da sociedade civil, ou a partir de ações governamentais ou através de propostas construídas no interior dos movimentos sociais reacionários. A classe dominante, que domina os meios materiais e imateriais da sociedade, exerce sua influência, maior do que as classes subalternas, sobre o Estado capitalista, sobre os meios de comunicação, sobre o setor produtivo, sobre a academia. A classe burguesa se utiliza de diversos meios, inclusive do Estado, para disseminar a sua ideologia que justifica a dominação das camadas subalternas, (CAMACHO, 2014).
Os intelectuais orgânicos atuam na sociedade civil, dadas as características gerais e as condições de formação, de vida e de desenvolvimento do grupo social dado, diretamente no campo político e filosófico, e não no campo da técnica produtiva, (GRAMSCI, 2001, p. 24).
Na sociedade moderna, o enorme desenvolvimento obtido pela atividade e pela organização escolar indica a importância assumida pelas categorias e funções intelectuais: assim como se buscou aprofundar e ampliar a “intelectualidade” de cada indivíduo, buscou-se igualmente multiplicar as especializações e aperfeiçoá- las. Isso resulta das instituições escolares de graus diversos, até os organismos que visam a promover a chamada “alta cultura”, em todos os campos da ciência e da técnica, (GRAMSCI, 2001).
Esta análise de Gramsci sobre o papel dos intelectuais orgânicos no seio das instituições de formação profissional torna-se necessária para uma melhor compreensão sobre o processo de disputa hegemônica entre as concepções de
Educação Profissional do Campo e Educação Profissional Rural, pois envolve diversos atores no processo de formação profissional de estudantes, trabalhadores e trabalhadoras do campo. Sobre a necessidade dessa análise, Gramsci faz a seguinte comparação:
Na esfera da técnica industrial: a industrialização de um país se mede pela sua capacidade de construir máquinas que construam máquinas e pela fabricação de instrumentos cada vez mais precisos para construir máquinas e instrumentos que construam máquinas, etc. O país que possuir a melhor capacitação para construir instrumentos destinados aos laboratórios dos cientistas e para construir instrumentos que verifiquem estes instrumentos, este país pode ser considerado o mais complexo no campo técnico-industrial, o mais civilizado, etc. O mesmo ocorre na preparação dos intelectuais e nas escolas destinadas a tal preparação: escolas e instituições de alta cultura são similares. (GRAMSCI, 2001, p. 19).
É importante reconhecer que as políticas públicas realizadas no “Estado estreito” são resultado da força política de determinadas frações de classe e que estas se organizam na sociedade civil em “aparelhos privados de hegemonia”. Antônio Gramsci denomina como aparelhos privados de hegemonia ou instituições culturais: a escola, a Igreja, os jornais e os meios de comunicação de maneira geral. Assim, ao abordar a hegemonia como direção intelectual e moral:
[...] afirma que essa direção deve exercer-se no campo das ideias e da cultura, manifestando a capacidade de conquistar o consenso e de formar uma base social. Isso porque não há direção política sem consenso. A hegemonia pode criar, também, a subalternidade de outros grupos sociais que não se refere apenas à submissão à força, mas também às ideias. Não se pode perder de vista que a classe dominante repassa a sua ideologia e realiza o controle do consenso através de uma rede articulada de instituições culturais. (SIMIONATTO, 2011, p. 49).
Gramsci (1999, p. 399), ao destacar que “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”, evidencia que o Estado Moderno cumpre uma função educativa que se traduz em ações concretas, tanto nas agências estatais, quanto na sociedade, resultado da disputa e dos embates entre interesses antagônicos de classe. Na esfera da sociedade civil, tal embate se traduz na disseminação e multiplicação de organismos que cumprem uma dupla e complexa tarefa: harmonizar os interesses das classes e frações de classe, como também, organizar e organicizar as proposições aos interesses particulares da classe dominante, (SIMIONATTO, 2011; LAMOSA, 2016).
No caso específico da educação profissional do campo/rural enquanto concepção em disputa, o estudo apresenta diferentes leituras constituídas a partir de diferentes paradigmas que incluem distinções de teoria, metodologia, método, perspectiva política, ideológica de intelectuais orgânicos que conceituam essa proposta. Estas concepções levam a construção de diferentes paradigmas que se contrapõem ou dialogam dialeticamente na produção do conhecimento científico sobre a questão agrária, (CAMACHO, 2014).
Compreende-se a Educação Profissional Rural versus Educação Profissional do Campo como um campo em disputa de projetos hegemônicos antagônicos6 – um voltado para o capital e o outro enquanto projeto de educação do trabalhador do campo como resistência ao modo de produção existente. Assim, temos uma concepção de agricultura voltada para o Agronegócio, tendo como lógica o trabalho para reprodução do capital, chamada de “agricultura capitalista” ou “agronegócio”, e no outro polo, uma agricultura voltada para a produção de alimentos como lógica do trabalho para a reprodução da vida, que no contraponto vem sendo identificada como “agricultura camponesa”, (CALDART, 2010; ABRAMOVAY, 2007; CAMACHO, 2014).
A proposta metodológica de educação profissional rural formulada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem (SENAR) no interior da sociedade civil, assim como outras propostas de educação profissional destinadas às populações do campo, apresenta características específicas de concepção de educação, com elementos que sustentam a agricultura do Agronegócio. Esta concepção debate sobre “a metamorfose do campesinato7 em agricultor familiar”. Os camponeses, ao
6 Alguns estudos fazem uma análise mais detalhada a partir dos Paradigmas da Educação do Campo: Paradigma do Capitalismo Agrário - voltado para o capital e para a defesa do Agronegócio e o Paradigma da Questão Agrária, enquanto projeto de educação do trabalhador do campo como resistência ao modo de produção existente. Assim, temos no primeiro paradigma uma agricultura voltada para o negócio, hoje tendo como lógica o trabalho para reprodução do capital, chamada de “agricultura capitalista” ou “agronegócio”, e no outro, uma agricultura voltada para a produção de alimentos como lógica do trabalho para a reprodução da vida, que no contraponto vem sendo identificada como “agricultura camponesa” (CALDART, 2010; ABRAMOVAY, 2007; CAMACHO, 2014).
7 Campesinato é um conjunto de famílias camponesas existentes em um território. Assim, as famílias camponesas existem em territórios, isto é, no contexto de relações sociais que se expressam em
romperem com a questão agrária como movimento de luta e resistência, nem vão se proletarizar nem se transformar em capitalistas. Mas também não continuarão existindo como camponeses, pois as relações camponesas são incompatíveis com as relações de mercado capitalista. Assim, estes sujeitos sofrerão uma metamorfose a partir da sua integração plena ao capital, auxiliados pelas políticas públicas, e se tornarão os agricultores mais eficientes de nossa época. Portanto, ao se transformarem em ex-camponeses, passaram a ser denominados de agricultores familiares, por serem profissionais, modernos, integrados etc. Criando, assim, uma dicotomia na qual o arcaico, ineficiente, miserável e condenado a desaparecer é o camponês; e o moderno, eficiente, próspero e compatível com o mercado é o agricultor profissional, (CAMACHO, 2014; ABRAMOVAY, 2007).
A recomposição da hegemonia burguesa, sob a direção do setor financeiro nacional e internacional, possibilitou a integração subordinada do Brasil na nova divisão internacional do trabalho. Isso amplia a internacionalização da economia nacional em todos os setores de atividade, a partir da difusão de uma cultura de competitividade, racionalização e redução dos custos do Estado, redefinindo as relações entre aparelhagem estatal e sociedade civil, (NEVES, 2010).
Neste contexto, com o restabelecimento da hegemonia burguesa no país, ao longo do processo de redemocratização e progresso das forças produtivas do capitalismo,
novas e renovadas organizações sociais empresariais contribuíram para a difusão de uma visão da sociedade civil como "reino do bem", ou espaço democrático isento de conflitos e contradições entre as classes sociais, dirigindo o processo de conversão de intelectuais e projetos societários ligados aos interesses da classe trabalhadora na direção hegemônica do capital. (NEVES, 2010 p. 82).
A luta pela hegemonia em torno da Educação Profissional no meio rural no país é marcada por embates entre a classe dominante e a classe trabalhadora camponesa. Assim, a proposta de formação profissional pelo Sistema Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) defende a hegemonia do agronegócio, derrotando um modelo de assistência técnica e produção tecnológica voltada à agricultura familiar e ao pequeno produtor.
regras de uso (instituições) das disponibilidades naturais (biomas e ecossistemas) e culturais (capacidades difusas internalizadas nas pessoas e aparatos infraestruturais tangíveis e intengíveis) de um dado espaço geográfico politicamente delimitado. (CALDART, 2012, p. 113).
O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural é uma instituição criada pela Lei Federal nº 8.315 de 23 de dezembro de 1991, e regulamentado pelo Decreto Federal nº 566/92, como entidade de direito privado, paraestatal, mantida pela classe patronal rural, vinculada à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e administrada por um Conselho Deliberativo tripartite. (LINHARES, 2017). O SENAR tem características semelhantes às demais instituições do Sistema S 8, mas com identidade própria e singular. Suas ações e atividades são voltadas ao trabalhador e produtor rural e às pessoas ligadas direta ou indiretamente aos processos produtivos agrossilvipastoris9, contribuindo para o desenvolvimento sócio- econômico do meio rural, (SENAR, 2016b).
Ao analisar as edições da Série Metodológica do SENAR, identificamos elementos teórico-metodológicos de extrema relação com a concepção de educação rural. Os princípios e diretrizes do processo de “Formação Profissional Rural (FPR)”, assim denominado pela instituição, apresentam conceituações próprias de vinculação direta ao desenvolvimento do modo de produção capitalista na agricultura. Nota-se uma intensa participação de intelectuais orgânicos constituída por profissionais de universidades e outras entidades nacionais que colaboraram através de consultoria e fornecendo apoio conceitual e metodológico para a formação profissional rural, (SENAR, 2016a; 2016b).
No aspecto conceitual, o SENAR defende a utilização do termo “Educação Profissional Rural” como sendo
[...] um processo educativo, sistematizado, que se integra aos diferentes níveis e modalidades da educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia, objetivando o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes para a vida produtiva e social, atendendo às necessidades de efetiva qualificação para o trabalho com perspectiva de elevação da condição sócio profissional do indivíduo. (SENAR, 2016a, p. 25).
8 O Sistema S é um conjunto de organizações das entidades corporativas voltadas para o treinamento profissional, assistência social, consultoria, pesquisa e assistência técnica, com características organizacionais similares, tais como: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Social da Indústria (SESI); Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (SENAC). Existem outras instituições com características similares: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop); e Serviço Social de Transporte (SEST).
9 Sistema Agrossilvipastoril é uma modalidade de integração que contempla os componentes agrícola, pecuário e florestal. Ver em http://www.sif.org.br/noticia/ilpf--o-que-e-integracao-lavoura- pecuaria-floresta. Acesso em 30 de junho de 2018.
De acordo com a metodologia educacional do SENAR, a FPR deve vislumbrar o aumento da renda do trabalhador, da capacidade de autogestão no trabalho, da autonomia, pró-atividade e empregabilidade, bem como promover o aumento da qualidade de produtos, processos e a produtividade do setor, de acordo com os princípios de sustentabilidade ambiental, social e econômica, (SENAR, 2016a, p. 25).
Os conceitos utilizados se relacionam diretamente com “setor produtivo rural” e as necessidades do “mercado de trabalho”, termos utilizados com frequência nas edições da Série Metodológica e cartilhas de divulgação da instituição. Como proposta de FPR, o SENAR oferta “cursos estruturados para atender a demanda de formação para os setores produtivos e de gestão da agropecuária, orientados por resultados de pesquisas de investigação das necessidades do mercado de trabalho”, (SENAR, 2016a).
A partir de 1995 o SENAR amplia suas ações e atividades de Formação Profissional Rural, por meio de convênios e ou parcerias nacionais e internacionais com diversas instituições10. Dentre elas, destacamos a parceria com o Ministério da Educação (MEC), a fim de desenvolver programa de educação à distância e implementar o programa de educação profissional para trabalhadores rurais sem escolaridade; e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) 11, para promover cursos de nível técnico e de Formação Inicial e Continuada (FIC) para o meio rural, (SENAR, 2016b).
O SENAR atua nas 27 administrações regionais do Brasil, na oferta de cursos e formações técnicas específicas visando à profissionalização do meio rural. A partir de 2013 adere à Rede e-Tec Brasil, com o objetivo de ofertar educação profissional e tecnológica à distância, cumprindo com o propósito de ampliar e democratizar o acesso a cursos técnicos de nível médio, públicos e gratuitos, em regime de colaboração entre União, estados e Distrito Federal, (LINHARES, 2017).
10 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), para produzir o vídeo institucional “O grito do SENAR” ; Universidade Federal de Viçosa (UFV), para disseminação de metodologias educativas e elaboração de conteúdos técnicos; Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas (SEBRAE), para implantar programas nas áreas de tecnologia, administração rural, cadeias industriais e formação de micro e pequenos empreendedores rurais; Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), para alfabetizar adultos nas áreas rurais do país; Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e o SEBRAE, na oferta de cursos de formação profissional aos trabalhadores sem escolaridade do Nordeste; Agência Brasileira de Cooperação (ABC), Ministério das Relações Exteriores (MRE) e o Instituto do Desenvolvimento Agrário (IDA) e o Governo Angolano, para levar a metodologia SENAR ao Continente Africano.
11 Programa criado pela Lei nº 12.513 de 26/10/2011, publicado no D.O.U. de 27/10/2011, p. 1.
De acordo com o relatório de atividades do SENAR, em 2014 a instituição teve 2 milhões e 700 mil brasileiros atendidos, com 53.000 matrículas em cursos do PRONATEC e um investimento de R$ 79 milhões nesses cursos distribuídos em 953 municípios do território nacional. Em 2016, houve uma ampliação nesse atendimento: 3 milhões e 400 mil brasileiros atendidos, com 115.000 matrículas de educação à distância e 5.400 matrículas de educação formal técnica de ensino médio, (SENAR, 2014; 2016c).
Linhares (2017), ao fazer um estudo sobre a investidura de entidades ligadas ao setor agrário, apresenta o SENAR enquanto instituição organizacional que está fortemente ligada a uma perspectiva de “desenvolvimento agrícola” vinculada ao agronegócio e à imposição de uma política econômica de submissão do campo ao latifúndio e uso de agrotóxicos e transgênicos. Seu projeto de educação profissional rural está fundamentado no reforço do empreendedorismo individual, a partir de metodologia de ensino própria: a Assistência Técnica Gerencial (ATeG) com Meritocracia. Esta proposta metodológica está fundamentada em quatro pilares específicos: a adequação tecnológica, a capacitação, a gestão e a meritocracia. A ATeG se organiza na produção de outros cinco projetos: o Assistência Técnica e Gerencial Projeto Rural Sustentável; o Assistência Técnica e Gerencial do Rural à Mesa; o Programa Especial SENAR em Campo; o SENAR em Campo – Histórias de Sucesso e o Assistência Técnica e Gerencial Mapa Leite. Neste sentido, o SENAR, enquanto instituição educacional viria a ser
um espaço de reprodução de uma ordem estabelecida por uma classe específica para conquista e manutenção de hegemonia ao promover, inclusive, parcerias com Institutos Federais de Educação reforçando sua entrada na formação de estudantes por todo o país. É neste sentido que a própria “missão” instituída pelo SENAR se apresenta em forma de mensagens motivacionais e justificativas através do discurso em prol da sustentabilidade e avanços sociais no campo, ao mesmo tempo em que avança na ideia de competitividade aos moldes empreendedores. Essas três diretrizes estariam intimamente ligadas a partir da realização de ações diretas visando a “formação profissional, assistência técnica e promoção social”, como podemos ver cristalizado nas maneiras de atuação da entidade. (LINHARES, 2017, p. 6).
O SENAR, enquanto visão hegemônica de liderança socioeconômica e política de setores empresariais, configura-se como
uma representação da classe proprietária dos meios de produção e, desse modo, promotora de determinada visão social e ideológica sobre educação e formação profissional, supostamente necessária
aos mecanismos de funcionamento da sociedade, produzindo políticas formativas capazes de atender aos seus interesses imediatos e, contraditoriamente, negar o atendimento coletivo das necessidades educativas e culturais para o conjunto da população. (DEITOS e LARA, 2016).
Neste sentido, a funcionalidade reivindicada pelos setores empresariais e pelas instituições orgânicas de gestão do capital evidencia a difusão de um diagnóstico da deficiência do próprio sistema educacional para atender aos requerimentos socioeconômicos modernizantes, ancorados no discurso do novo desenvolvimento. Assim, as políticas de educação profissional rural estão submissas aos ditames das orientações teórico-ideológicas hegemônicas, com fundamentos educacionais que resultam em um discurso propositivo e relativamente crítico, mas, na disputa das forças internas e externas aos ditames da política nacional, suplantado pelo discurso hegemônico, fechando o circuito de orientações das políticas socioeconômicas e educacionais adotadas, (DEITOS e LARA, 2016).
Na concepção de Educação Profissional Rural, a agricultura de base familiar moderna se diferencia da agricultura camponesa por apresentar as seguintes características: a natureza empresarial, o dinamismo técnico, a capacidade de inovação, a integração plena ao mercado e a capacidade de responder à intervenção do Estado. Nesse caso, a formação profissional e a inovação são requisitos que separaram a agricultura arcaica, camponesa, da moderna, familiar, (ABRAMOVAY, 2007; CAMACHO, 2014).
A análise da construção dos conceitos de “Educação Profissional do Campo” e “Educação do Campo” é formada por intelectuais orgânicos que defendem a “questão agrária” como um problema estrutural, logo, poderá ser resolvida a partir da luta contra o capitalismo. Nesta concepção, com o desenvolvimento do capitalismo no campo ocorre uma inevitável destruição do campesinato, mas a partir de um movimento desigual e contraditório. Assim, o campesinato é uma classe social e um modo de vida heterogêneo e complexo inerente à contradição do modo de produção capitalista e não um resíduo social em vias de extinção, na qual se recria por meio da luta pela terra na resistência ao capital, (CAMACHO, 2014).
A resistência é um conceito presente na concepção de Educação do Campo, na perspectiva do debate da permanência camponesa pela luta na/pela terra- território. Esse movimento se vincula às abordagens de destruição e recriação do campesinato e seus territórios, sendo a resistência “todo embate do campesinato frente às condições impostas pelo capital, quer seja desterritorializando/proletarizando ou monopolizando o território camponês”. Portanto, a característica marcante que delimita o processo de disputa hegemônica e antagonismo dialético entre a Educação Profissional Rural e Educação Profissional do Campo é a afirmação da luta de classe, e, consequentemente, o envolvimento dos movimentos sociais camponeses como parte inerente dessa luta, (CAMACHO, 2014; ABRAMOVAY, 2007).
Neste sentido, analisando o contexto das políticas públicas de educação profissional do campo no Brasil, cabe ressaltar as experiências educativas na educação profissional pautadas por outros movimentos que não sejam o da reprodução das desigualdades sociais. Isto é, uma educação profissional do campo que não seja pensada para o campo, mas sim com os povos do campo, sendo construída com a participação dos movimentos de trabalhadores no contexto das lutas pela Reforma Agrária, pela terra e pelos direitos sociais, políticos e culturais.
A concepção de educação empregada pela classe dominante e a barbárie provocada pela implantação violenta do modelo capitalista de agricultura provocam o aumento da desigualdade social das famílias trabalhadoras do campo. Assim, ao mesmo tempo em que se confirma a ausência de políticas públicas que garantam o direito à educação para os camponeses e trabalhadores do campo, por outro lado, ampliam-se a participação dos movimentos sociais no cenário das lutas e embates políticos, enquanto sujeitos coletivos que reagem a esta situação social. Torna-se urgente pensar em uma outra concepção de campo e de projeto de desenvolvimento que sustente a qualidade de vida da população que vive e trabalha no campo, (CALDART, 2004).
Para Caldart (2004), o desejo por uma nova concepção de educação com os sujeitos do campo se constitui a partir de uma contradição entre a agricultura capitalista e a educação do campo, uma vez que o modelo capitalista sobrevive da exclusão e morte dos camponeses. Com o processo de industrialização, as necessidades da população do campo foram deixadas em segundo plano,
prevalecendo a produção em larga escala para exportação e consumo, desvalorizando e inferiorizando o trabalho manual do camponês.
O modelo de escola rural proposto pelas políticas públicas vinculadas ao capitalismo se fundamenta na divisão entre campo e cidade, na expropriação da terra, dos meios de subsistência e da força de trabalho do camponês. Nesse modelo de desenvolvimento, que considera o Brasil apenas como mais um mercado emergente, camponeses e indígenas são vistos como espécies em extinção, não havendo necessidade de políticas públicas específicas para estas pessoas. Bastaria um tipo de política pública compensatória à sua própria condição de inferioridade e/ou diante das pressões sociais, (ARROYO, 2011, p.21).
As práticas de educação do campo são marcadas pelas contradições existentes no cenário das políticas públicas. Houve avanços e recuos no enfrentamento das políticas neoliberais para a educação e para a agricultura, na disputa do espaço público e da direção político-pedagógica de práticas e programas, assim como na atuação das diferentes organizações de trabalhadores, conforme o cenário das lutas mais amplas e da correlação de forças de cada momento, (CALDART, 2012 p. 262).
É neste contexto de exclusão dos povos do campo, e ao mesmo tempo um espaço de lutas e disputas, que nasce, ainda na década de 1990, o movimento “Por uma Educação do Campo”, com o objetivo de garantir os direitos educativos dos sujeitos do campo, sendo um ponto de partida para um conjunto de reflexões sociais.
A partir da realização do I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (Enera), realizado em 1997, ocorre uma série de desdobramentos no campo das políticas públicas, como a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), oficializado em 16 de abril de 1998, o surgimento da Articulação Nacional por uma Educação do Campo e a elaboração pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) das Diretrizes Operacionais para Educação Básica das Escolas do Campo.
A I Conferência Nacional “Por uma Educação do Campo”, ocorrida em 1998, em Luziânia - Goiânia, planejada durante o I Enera, é considerada um marco para o reconhecimento do campo enquanto espaço de vida e de sujeitos que reivindicam sua autonomia e emancipação. No processo de organização do documento de
subsídio para a I Conferência, e durante os debates ocorridos nos encontros estaduais que antecederam o evento nacional, estão os argumentos do batismo do conceito “Educação do Campo”:
Decidimos utilizar a expressão campo e não a mais usual meio rural, como o objetivo de incluir no processo da Conferência uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência deste trabalho. Mas quando discutimos a educação do campo estamos tratando da educação que se volta ao conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, sejam os camponeses, incluindo os quilombolas, sejam as nações indígenas, sejam os diversos tipos de assalariados vinculados à vida e ao trabalho no meio rural. (ARROYO, 2011, p. 25, grifos do autor).
Caldart (2012, p. 257), ao aprofundar o conceito de Educação do Campo, destaca o protagonismo dos movimentos sociais camponeses no batismo originário deste termo, ajudando a compreender o que essencialmente essa experiência é e na consciência de mudança que assinala e projeta para além dela mesma. Este novo conceito substitui, portanto, o que é denominado de educação rural. Diante deste contexto de luta e resistência camponesa, o Pronera12 foi fundamental para promover melhorias na vida dos sujeitos camponeses, na medida em que considerou as diversas práticas e experiências pedagógicas desenvolvidas pelas diversas organizações sociais e universidades.
O Pronera foi criado como estratégia política para incluir jovens e adultos assentados excluídos das políticas públicas de educação do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), governo este que mais se ocupou em racionalizar gastos públicos e reformou o ensino a partir de uma visão economicista. A participação dos movimentos sociais na elaboração do Programa foi muito significativa na consolidação de políticas públicas para o Estado, que historicamente vinha menosprezando as demandas e as especificidades educacionais do campo. (MOLINA, 2009).
Pensando na ampliação do conceito de educação do campo enquanto espaço de luta e resistência dos movimentos sociais, outro desafio é proposto com o objetivo de firmar esse conceito também no contexto da educação profissional no Brasil. Na conjuntura de uma política de expansão da Educação Profissional a partir
12 Criado em 1998, por meio da Portaria nº 10/98, através do Ministério Extraordinário da Política Fundiária, foi incorporado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2001, por meio da Portaria nº 837/2001.
da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, com a criação dos Institutos Federais e da Rede de Educação Profissional e Tecnológica, em novembro de 2009, em Brasília, ocorre o I Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica (FMEPT). Durante a realização deste do I FMEPT, a conferencista Roseli Caldart (2010), na mesa de debate sobre “Educação Profissional do Campo” (com a Conferência “Educação, Ética, Inclusão e Diversidade”), apresenta uma síntese propositiva de conceitos e compreensões fundamentais de uma concepção de educação profissional que vise interpretar e orientar a construção de práticas e políticas voltadas para a formação de trabalhadores inseridos nos processos de produção agrícola. Sua proposta tem como base
[...] as experiências e reflexões feitas no âmbito da Educação do Campo, notadamente em torno de práticas dos Movimentos Sociais Camponeses em diálogo com o debate atual sobre educação profissional, nos seus vínculos necessários tanto com a educação básica quanto a educação superior. A perspectiva da abordagem é a de pensar a formação dos trabalhadores, considerados como classe e como sujeitos de um projeto histórico com objetivos de justiça, igualdade social e emancipação humana. (CALDART, 2010, p. 229).
O texto-síntese apresenta uma breve descrição do conceito de “Educação Profissional do Campo”, construído a partir de documentos e debates em seminários realizados no contexto de discussão das políticas e experiências do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)13. Caldart apresenta a seguinte definição:
Compreendemos a “Educação Profissional do Campo”, expressão que está na chamada desta mesa, como indicadora aqui de uma reflexão sobre educação profissional feita desde os parâmetros político-pedagógicos da Educação do Campo. A ideia fundamental na compreensão da perspectiva desta proposição é de que não se trata de pensar uma educação profissional em separado do campo, específica para seus sujeitos e fragmentada do debate geral (isso seria desastroso em relação aos objetivos de transformação social e de emancipação humana que nos orientam), mas sim trazer para o debate geral de concepção e de políticas de educação profissional questões que têm sido formuladas desde a realidade, esta sim específica, do trabalho no campo, dos embates de projetos de
13 Caldart (2010), destaca três textos importantes que serviram de base para a elaboração da síntese: “Documento do Seminário sobre Educação Profissional para as Áreas de Reforma Ágrária da Região Sul: que educação profissional, para que trabalho e para que campo? Cadernos do Iterra, ano VII, nº 13, setembro de 2007, p. 179-2001”; “Educação do campo: notas para uma análise de percurso”. Revista Científica da EPSJV/FIOCRUZ, Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.7, n.1, p. 35- 64, mar./jun. 2009; e “Educação Profissional no contexto das áreas de reforma agrária”, documento elaborado para o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), dezembro 2008.
desenvolvimento, de modos de fazer agricultura e das experiências de formação profissional dos seus sujeitos. (CALDART, 2010, p. 30).
O Pronera, como política de educação profissional do campo, tem como público-alvo jovens e adultos pertencentes às famílias beneficiárias de Projetos de Assentamentos da Reforma Agrária criados ou reconhecidos pelo INCRA e do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), buscando assim, atender as especificidades das demandas educacionais das comunidades assentadas. Assim, como política pública focada no desenvolvimento dos assentamentos da reforma agrária, o Pronera proporcionou aos assentados acesso aos diversos níveis de escolaridade, através de parcerias com governos municipais e estaduais, instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos e movimentos sociais e sindicais de trabalhadores rurais. As características assumidas pelo Pronera se integram à política de educação do campo, no desenvolvimento de projetos de educação de jovens e adultos, de formação continuada de professores de áreas de reforma agrária e de formação profissional de nível técnico ou superior para jovens e adultos de áreas de reforma agrária, (GONÇALVES, 2016).
Para a implementação de políticas de educação profissional do campo é preciso romper com o projeto hegemônico de desenvolvimento do campo existente no Brasil. Este se apresenta como um projeto de expansão do capitalismo no campo, tendo como característica principal o controle da agricultura pelo capital financeiro internacionalizado14. Tem como traço fundamental de seu paradigma a crescente artificialização da agricultura, transformando-a num ramo da indústria e subordinando a natureza aos interesses de empresários capitalistas. (CALDART, 2010).
Cabe destacar que apesar dos avanços na implementação de políticas de educação agrária nos últimos anos, a educação profissional do campo ainda enfrenta muitos percalços, pois:
Não basta a formalização de diretrizes e de programas para a efetivação do direito à educação dos povos do campo. É necessário que haja um acompanhamento das organizações sociais no desenvolvimento dos programas, pois políticas públicas como o Pronera, por se tratarem de prestações devidas pelo Estado, exigem a liberação dos recursos. Assim, a cada exercício orçamentário as pressões devem ser retomadas, para garantir a execução dessas políticas. (GONÇALVES, 2008, p. 385).
14 Ver Caldart (2010, p. 231).
Nesse viés, os movimentos sociais continuam desempenhando um importante papel de atores político-sociais na representação de interesses sociais legítimos. As políticas públicas em educação do campo exigem um altíssimo grau de organização, conscientização dos sujeitos, coerência com os valores e princípios defendidos pelos movimentos sociais, devendo ser vistas como possibilidades de formação política e identitária, lutas e resistências. A multiplicação, cada vez mais acentuada, dos debates acerca da educação do campo nos encontros regionais, estaduais e nacionais, são fundamentais para os movimentos sociais enfrentarem as dificuldades de implementação das políticas públicas (Bicalho, 2018). A finalidade da educação profissional na perspectiva da educação do campo
é a formação do trabalhador e da trabalhadora rurais com competência para enfrentar os desafios da produção e da vida contemporânea. Esse aprendizado articula-se com o trabalho cooperativo e com uma produção em harmonia com os seres humanos e a terra, tendo como meta a constituição de relações sociais democráticas e solidárias. Os movimentos sociais populares rurais/do campo não querem hoje apenas uma escola das quatro séries iniciais, mas exigem educação infantil, educação básica, educação profissional e ensino superior direcionados à produção familiar e à cultura dos povos do campo. (RIBEIRO, 2013, p. 196).
No contexto contemporâneo, portanto, pensar a educação profissional do campo implica assumir a existência do contraponto de lógicas, preparando os trabalhadores para a análise da realidade e das contradições reais envolvidas. Portanto, “é do enfrentamento das questões centrais colocadas pelo contraponto de lógicas que se projetam novidades qualitativas para o debate da educação profissional e da educação dos trabalhadores como um todo”, (CALDART, 2010).
O movimento dialético no interior da sociedade moderna capitalista através dos aparelhos privados de hegemonia e a formação de seus intelectuais orgânicos, se materializou, neste trabalho, com o estudo conceitual dos termos “educação profissional rural” e “educação profissional do campo”. A luta de classes está presente em todas as ações e procedimentos dos dominantes e dominados para manter ou destruir a dominação. Logo, as ideologias educacionais apresentadas como “modernas” estão cada vez mais presentes nas propostas metodológicas de
formação profissional para as populações campesinas. A luta pela hegemonia no contexto da educação profissional do campo/rural está marcada por embates no interior da classe dominante.
Para Camacho (2014), estes embates nascem da busca de relacionarmos a teoria com a realidade. É esta busca constante que cria os paradigmas, com suas teorias, métodos, metodologias e ideologias, constituindo-se em formas distintas de explicação da realidade. Assim, as diferentes interpretações, como é o caso do conceito de “educação profissional do campo” e “educação profissional rural”, geram disputas na criação e destruição dos movimentos sociais, das políticas públicas, das pesquisas acadêmicas. Entretanto, a ausência da disputa entre concepções antagônicas não permite o avanço do conhecimento científico, que necessita do diálogo e da refutação entre diferentes grupos de intelectuais orgânicos.
O conceito de “educação profissional rural” a partir da proposta metodológica do SENAR, e o conceito de “educação profissional do campo” construído no interior dos movimentos sociais, apresentam-se como perspectiva para análise das sociedades contemporâneas e a correlação de forças inseridas no Estado brasileiro. Para tanto, torna-se necessário analisar a inserção de instituições de educação profissional e a consequente ampliação de vagas em cursos técnicos voltados para o agronegócio e a agroindústria15, propostas em ações governamentais, que na maioria das vezes, não são discutidas com a sociedade, tão menos com os movimentos sociais.
Na contramão dessa política, os programas educacionais de Reforma Agrária sofrem com a escassez e a redução de verbas para a formação profissional dos assentados. Nos últimos 20 anos, mais de 186 mil estudantes fizeram cursos de alfabetização e pós-graduação em 100 instituições de ensino distribuídas nos diversos municípios do Brasil por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Em 2017, o número de estudantes novos do programa diminuiu consideravelmente. Os recursos orçamentários para a educação no campo
15 No estudo intitulado “Dinheiro Público, Oferta Privada: a dinâmica do financiamento e da oferta de educação profissional no Sistema S”, o autor destaca a ação estatal voltada ao mesmo tempo para o financiamento do setor privado e à desresponsabilização com a manutenção dos sistemas públicos. (PEREIRA e AMORIM 2015).
diminuíram de 70 milhões de reais em 2008 para menos de 12 milhões no ano de 2017.16
O Pronera representa uma das grandes conquistas da luta dos movimentos sociais, possibilitando que milhares de camponeses e assentados da Reforma Agrária tenham acesso à educação escolar e permitindo, ao mesmo tempo, a troca de experiência e aprendizados com as Universidades, Institutos Federais e instituições parceiras. Mas o grande desafio é garantir que o programa se torne uma política pública permanente e possa ser ampliado a todos os sujeitos do campo, garantindo, a partir da luta dos movimentos sociais, o respeito à realidade e às especificidades da luta pela terra e pela educação pública e gratuita.
A Educação Profissional do Campo não pode ser pautada nas políticas públicas apenas como uma “escola agrícola”, pois ela inclui a preparação para diferentes profissões que são necessárias ao desenvolvimento do território, onde a base do desenvolvimento está na agricultura, mas sem desconsiderar que a produção agrícola é a base da reprodução da vida. Por este motivo, esta educação deve centralizar-se na formação para o trabalho do campo, ou seja, fundamentalmente preparar trabalhadores para o enfrentamento do contraponto de paradigmas, o que inclui uma compreensão teórica rigorosa da realidade atual, especialmente das contradições reais envolvidas no embate de projetos. Que esta formação profissional contemple não apenas um preparo científico e tecnológico a partir de sua realidade, mas também, que leve os trabalhadores a compreender cientificamente os fundamentos da própria polarização, para que estes assumam o desafio da construção teórico-prática do projeto alternativo, (CALDART, 2010).
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16 Informação divulgada pela Câmara dos Deputados – Brasília – DF, 2018. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/559045-MEC-DIZ-QUE- REDUCAO-DE-INVESTIMENTOS-NO-CAMPO-SE-DEVE-A-CORTES-NO-ORCAMENTO.html
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