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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799X


DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40502


ESCOLA PARA DESVALIDOS: A FORMAÇÃO DA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL INDUSTRIAL1


Francisco Carlos Oliveira de Sousa2


Resumo

Propomo-nos analisar a formação da rede federal de educação profissional industrial no Brasil. A análise das fontes apoia-se nos referenciais propostos por Magalhães (2004), Nosella e Buffa (2007), segundo os quais compreender a genealogia de uma instituição educativa pressupõe relacionar a sua função social com o contexto no qual está inserida. Criada em 1909, a rede escolar analisada objetivou, sob a crença no industrialismo, a formação profissional para desvalidos da sorte. Em síntese, a investigação evidenciou os limites dessa proposta em uma sociedade de incipiente industrialização.

Palavras-chave: Instituição educativa; Educação profissional; Desvalidos.


SCHOOL FOR DISADVANTAGED: THE ESTABLISHMENT OF THE FEDERAL NETWORK OF VOCATIONAL AND INDUSTRIAL EDUCATION


Abstract

We aim to analyze the establishment of the Federal Network of Vocational, Scientific and Technological Education in Brazil. The source analysis is supported by theoretical references proposed by Magalhães (2004), Nosella e Buffa (2007). According to them, to comprehend the genealogy of an educational Institution presupposes to relate its social function to the context in which it is located. Created in 1909, the analyzed institution had, under the industrialism belief, the purpose of vocational training for the disadvantaged students. In sum, the investigation demonstrated the limits of this proposal in a society of incipient industrialization.

Keywords: Educational institution; Vocational education; Disadvantaged students.


ESCUELA PARA DESFAVORECIDOS: LA FORMACIÓN DE LA RED FEDERAL DE EDUCACIÓN PROFESIONAL INDUSTRIAL


Resumen

Nuestro objetivo es analizar la formación de la red federal de educación profesional industrial en Brasil. El análisis de los datos se apoyan en los referenciales propuestos por Magalhães (2004), Nosella y Buffa (2007), según los cuales, comprender la genealogía de una institución educativa presupone relacionar su función social y el contexto en el que está inserta. Fundada en 1909, la institución analizada tuvo, bajo la creencia del industrialismo, el objeto de formación profesional para los desfavorecidos. En suma, la investigación evidenció los límites de esa propuesta en una sociedad de incipiente industrialización.


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1 Artigo recebido em 30/09/2019. Primeira Avaliação em 18/10/2019. Segunda Avaliação em 19/10/2019. Aprovado em 24/11/2019. Publicado em 23/01/2020.

2 Doutor em História da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN. Professor de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte-IFRN, Campus Natal- Central. E-mail: francisco.sousa@ifrn.edu.br. Orcid: 0000-0002-4303-5019.

Palabras-clave: Institución educativa; Educación profesional; Desfavorecidos.


Introdução: a escola no quadro das instituições educativas


Abordar a escola como objeto de estudo implica, inicialmente, compreender sua historicidade e natureza institucional. Na multidimensionalidade que o caracteriza, o conceito de instituição agrega-se às ideias de permanência, sistematicidade e normatividade. Essa compreensão conceitual, segundo Justino Magalhães (2004, p. 58), identifica a instituição como resultante de “uma combinatória de finalidades, regras e normas, estruturas sociais organizadas, realidade sociológica envolvente e fundadora, relação intra e extra-sistêmica.” Assim, entre as diferentes instituições existentes na sociedade, encontram-se aquelas de natureza educativa, como, por exemplo, o Estado, a família, a Igreja e a corporação.

Por essa perspectiva, “à noção de instituição corresponde uma memória, um historicismo, um processo histórico, uma tradição, em permanente atualização – totalidades em organização” (MAGALHÃES, 2004, p. 62). Do raciocínio exposto, depreende-se que, além de sua natureza institucional, a escola se constitui em uma forma específica de instituição educativa. É nesse sentido que abordaremos aqui essa instituição: “Como uma unidade escolar, espacialmente localizável [...], com componentes identificáveis na memória coletiva, tais como as aspirações coletivas fundadoras” (WERLE, 2004, p. 18). Em outras palavras, como alertam Ester Buffa e Gelson Pinto, a contínua e consagrada utilização de determinados conceitos, como o de escola, por exemplo, tornou-se tão habitual “que pensamos terem tido eles sempre o mesmo significado, que sempre foi assim. Não foi.” (BUFFA; PINTO, 2007, p. 129). Ignorar isso corresponde a desconhecer a própria historicidade da instituição escolar. Portanto, considerando-se a relevância conquistada pela instituição educativa escolar no paradigma ocidental, como, em síntese, organizou-se em seus fundamentos e suas funções sociais?

Conforme Magalhães (2004, p. 68), “o processo histórico de institucionalização da escola compreende uma complexificação crescente nos planos material e organizacional.” Pensada e originada do privado, dilatando a obra dos grupos familiares, a escola, em sua feição moderna, substituiria a família e se sobreporia aos

domínios familiar e privado, como instituição pública confiada ao Estado. Sendo ela uma instituição educativa dotada de historicidade e identidade, cumpre-nos investigar como se processou a consolidação de seus aspectos constitutivos nos termos legados ao mundo moderno no Ocidente, o que nos permitirá compreender as funções sociais assumidas por essa instituição em seu percurso histórico.

Como é perceptível, características da escola moderna, difundidas a partir da Europa, foram adotadas no Brasil. Afinal, “como não enxergar nessas descrições a [...] matriz pedagógico-espacial de nossas escolas?” (BUFFA; PINTO, 2007, p. 153, grifo dos autores). De acordo com esses autores, as semelhanças são verificáveis em múltiplas instituições escolares contemporâneas em nosso país, o que tornaria legítimo o questionamento formulado.

Na perspectiva de Saviani (2007, p. 12), as propriedades dessas instituições vinculam-se à consolidação do modo de produção capitalista, que provocou mudanças determinantes na educação, inclusive naquela de caráter confessional, e realçou o “protagonismo do Estado, forjando a ideia da escola pública, universal, gratuita, leiga e obrigatória, cujas tentativas de realização passarão pelas mais diversas vicissitudes”, até mesmo no que concerne ao entendimento de como essa pretendida instituição educativa incorporaria os desvalidos da sociedade industrial.

Nesse sentido, o pesquisador português António Ferreira (2005, p. 195) relembra que, na Europa Ocidental, até a primeira metade do século XX, “se manteve uma organização escolar que tratava, de forma desigual, as crianças que vinham de meios sociais diferentes”. Embora reconheça os avanços ocorridos, Ferreira (2005, p.

196) enfatiza: “na melhor das concepções políticas, a instrução podia ser disponibilizada a todos mas nunca ser igual para todos”. Essa constatação, na perspectiva do autor, colocaria em xeque o entendimento difundido pelo liberalismo, segundo o qual o indivíduo seria definido por sua determinação e habilidade pessoal, e não por sua origem social familiar.

Assim sendo, podemos subentender que a escola, ao incorporar funções sociais na esfera da educação profissional, “deve [...] ser entendida como uma instituição que serve um tempo determinado e que se configura em função das características dum determinado tempo” (FERREIRA, 2005, p. 179). Por isso, ao

questionar a retórica elaborada (no passado e no presente) acerca do alcance educativo da escola, esse autor refuta o discurso de caráter abstrato sobre a instituição e propõe uma reflexão com base em inquietações concretas:


Ela [a escola] só existiu e existe como tem existido porque se verificaram e verificam condições tecnológicas, económicas e políticas que a tornaram necessária e insistem na sua manutenção, ainda que com concretizações bem diversas tal como propicia o jogo dos factores que nelas influem (FERREIRA, 2005, p. 179).


À luz dessa compreensão, consideramos pertinente o seguinte questionamento: sendo a escola moderna uma instituição educativa cuja existência se relaciona com as condições históricas que permitiram sua emergência e seu desenvolvimento, em determinado tempo e espaço, como se configurou essa instituição no Brasil republicano em atendimento às necessidades educacionais de grupos sociais desfavorecidos, sobretudo no âmbito do ensino profissional?


O contexto histórico: a instituição escolar no Brasil da Primeira República


Na perspectiva teórico-metodológica defendida por Magalhães (2004, p. 133- 134), “compreender e explicar a realidade histórica de uma instituição [...] é integrá-la de forma interativa no quadro mais amplo [...], nos contextos e nas circunstâncias históricas [...].” Caso contrário, reforçam Nosella e Buffa (2009, p. 27), nas investigações que se distanciam de tal perspectiva, “a sociedade que produziu a escola fica esmaecida”. Considerando-se que a instituição escolar investigada neste artigo teve sua formação na designada Primeira República (1889-1930), o citado pressuposto constitui-se, desse modo, no suporte para a reconstituição delineada a seguir.

Afinal, o paradigma institucional escolar moderno ocidental foi adotado no Brasil, em seus aspectos constitutivos, desde o período imperial. Mas foi a partir da instalação do regime republicano que ele se consolidou no país, principalmente no que diz respeito à escola como instituição educativa laica, pública, responsável não só pela formação geral mas também pelo ensino profissional, em larga escala, no território nacional.

No início do recorte temporal definido na historiografia brasileira como a

Primeira República, a ruína do regime monárquico e a posterior promulgação da Constituição de 1891 trariam novo alento a determinados segmentos sociais. A mudança na forma de governo seria, na perspectiva dos representantes desses segmentos, o passaporte para o progresso e o rompimento com o passado arcaico (CARVALHO, 1990; BUENO, 2002, ARAÚJO, 2009). Nessa fase de transição, aquela ordenação social existente durante o Império, centrada no binômio senhor-trabalhador escravizado – cuja resultante classificaria os demais elementos como desajustados sociais –, estava em gradual processo de desaparecimento, especialmente a partir do início do século XX, quando, nas palavras de Nagle (1974, p. 27), “emerge a nova ordem social competitiva”.

Como se observa também na análise de Machado (1989), a composição dessa intricada organização social exigia instituições complexas capazes de equacionar as demandas geradas pelas contradições existentes. Desde as últimas décadas do período imperial, sobressaía no Brasil uma economia agrário-exportadora, com ênfase na produção cafeeira. Conectada a ela, havia a concentração fundiária, fonte de controle político oligárquico, cujos interesses, especialmente no ambiente rural, eram defendidos pelo coronelismo.

Essas características, que estavam arraigadas e eram difundidas em todos os setores da sociedade, nutriam-se na manutenção de uma arcaica estrutura socioeconômica, na frágil ação do Estado em proveito dos desfavorecidos, no analfabetismo das massas e no controle oligárquico dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), em flagrantes contradições com os ideais modernizadores da República.

Certamente a reconstituição aqui delineada diz respeito aos traços definidores da organização social brasileira em seus setores hegemônicos, que, por sua vez, tiveram diferentes repercussões nas demais regiões brasileiras. Ela corresponde a uma caracterização desse período em seus traços gerais, como reconhece Nagle (1974, p. 98), “pois as transformações se deram mais em determinados Estados ou regiões, e menos, ou quase nada, em outros”, como ocorreu, por exemplo, em estados do Nordeste.

O mesmo se constatou no tocante ao proletariado industrial, cuja formação,

especialmente no Sul e Sudeste do país, conforme Nagle admite (1974, p. 28), vincula-se “a uma multiplicidade de condições”, quando as frágeis experiências de industrialização e a ampliação de centros urbanos incrementaram a “mão de obra disponível e de baixo custo, que é empregada nas modalidades cada vez mais diferenciadas do trabalho artesanal e industrial.” Uma das resultantes desse processo de propagação do capitalismo no Brasil adquiriu forma na questão social, cujos contornos tornaram-se mais evidentes a partir da segunda década do século XX, como demonstram as múltiplas formas de organização e as crescentes reivindicações do movimento operário naquele período (BATALHA, 2000).

Apesar de seus limites e contradições, a implantação da República no Brasil trouxe à baila discussões que, embora já estivessem presentes na época do Império, adquiriram maior dimensão na sociedade. Nesse sentido, a Constituição republicana assegurava a todos – inclusive aos descendentes de etnia negra e ex-escravizados – a igualdade de direitos perante a lei. Decorre daí, segundo Veiga (2010, p. 404), um dos problemas enfrentados pelo novo regime: “Como possibilitar a incorporação da população aos novos preceitos políticos, sociais e culturais que a nova era prometia?” Em decorrência disso, tornou-se necessário o rompimento da inclusão fortuita, desordenada e rebelde dos indivíduos na sociedade. Mas como promover a inclusão

– mesmo a educacional – sem macular a organização social vigente?

De acordo com a concepção teórico-metodológica defendida por Nosella e Buffa (2009), é nesse contraditório quadro histórico, no qual se conciliam costumes arraigados e transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, que se deve analisar a organização da educação escolar brasileira em seus diferentes aspectos. Além disso, ressalva Souza (2008), as mudanças internacionais ocorridas na escolarização elementar, em especial no início do século XX, repercutiram no Brasil e provocaram a entusiasmada adesão de alguns de nossos principais intelectuais, a exemplo de Rui Barbosa. Tal interpretação é compartilhada por Jorge Nagle, como atesta a seguinte afirmação:

O entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico, que tão bem caracterizam a década dos anos vinte, começaram por ser, no decênio anterior, uma atitude que se desenvolveu nas correntes de ideias e movimentos político-sociais e que consistia em atribuir importância cada vez maior ao tema da instrução, nos seus diversos níveis e tipos

(NAGLE, 1974, p. 101).


Entretanto, os dirigentes iniciais do regime republicano – de diferentes matizes ideológicas (liberais, positivistas e jacobinos) –, aos quais se agregaram ex- monarquistas (representados pelo Marechal Deodoro da Fonseca), tinham projetos distintos e interesses por vezes contraditórios. Para Carvalho (1990), os três principais grupos lutaram de forma intensa desde o princípio da República (1889) até o triunfo da corrente liberal, ocorrido na transição para o século XX. Em resumo, não existia unidade no conjunto das forças políticas interessado na mudança do regime imperial para o regime republicano, cuja composição integrava diferentes segmentos sociais que, à época, abrangia, entre outros, cafeicultores, profissionais liberais e militares. Mas, no plano da educação popular, como se posicionaram as correntes divergentes? Para aqueles que formariam a força de trabalho nacional, as lideranças políticas, em sua maioria, defendiam a “importância dos ofícios manuais, em suas dimensões preventiva e corretiva” (CUNHA, 2000, p. 24, grifo nosso). Em outras palavras, defendiam a conservação de secular tradição dualista de ensino, que revela “oposição histórica entre espírito e mãos, entre escola secundária clássica e escola

profissional [...]” (NOSELLA; BUFFA, 2009).

A manutenção dessa dualidade, em contradição com os anseios por mudanças substanciais, oficializou a distância existente entre a educação proporcionada às classes dirigentes – expressa nas escolas secundárias acadêmicas e nas escolas superiores – e a educação popular – concretizada nas escolas primárias e nas profissionais. Na concepção de Romanelli (2006, p. 41), essa dualidade retratava a organização social brasileira. “O que [...] não ocorria ao sistema assim consagrado era o fato de a nova sociedade brasileira, que despontava com a República, já ser mais complexa do que a anterior sociedade escravocrata.” Não discernir isso, na avaliação da autora, criou obstáculos para o projeto modernizador republicano.

Com uma taxa de analfabetismo que atingia cerca de 80%, lideranças da sociedade brasileira, até o final do período imperial, trataram esse problema social com certa leniência. Com a implantação da República, exaltada como a suposta alvorada do progresso, os índices de analfabetismo do país envergonhavam cada vez mais os intelectuais brasileiros. Assim se tornou inadiável a tarefa de incluir o Brasil

entre os países considerados civilizados, e a instrução foi avaliada como a única alternativa para a vitalização de nosso povo (PAIVA, 2003). Dessa forma, crescia a pressão para que o governo central interviesse e auxiliasse os estados da Federação no enfrentamento do problema. Diante da gravidade do quadro educacional escolar brasileiro, como se promoveria a modernização do país? Como se colocariam em prática as pretensões modernizantes dos republicanos?

A pretendida modernização esboçou-se, em parte, na educação elementar, com a implantação dos grupos escolares, ocorrida ainda no final do século XIX. Sendo assim, o processo de modernização escolar do Brasil assemelhava-se àquele verificado na escolarização ocidental e implicava mudanças consideradas imprescindíveis (MAGALHÃES, 2010). Mas a criação dos grupos escolares atenderia às necessidades da educação popular?

As preocupações com os desfavorecidos, no início do século XX, já não se resumiam ao combate ao analfabetismo. Os crescentes problemas sociais se avolumavam de forma gradativa e se temiam, inclusive, os efeitos de agitações políticas entre o incipiente proletariado (BATALHA, 2000). Nesse contexto, ocorreram relevantes transformações na sociedade brasileira, dentre estas o paulatino processo de urbanização e de industrialização nas principais cidades do país. De forma concomitante, esclarece Cunha (2000), as mobilizações populares e a crescente organização das classes trabalhadoras urbanas colocaram em alerta os segmentos sociais hegemônicos. Na concepção desses segmentos sociais elitizados, era preciso articular respostas consistentes aos novos desafios.

Uma dessas respostas, nos maiores centros urbanos do país, viria na defesa do industrialismo – concepção que atribuía à indústria a primazia de promover o progresso da nação. Para seus propositores, a indústria seria a solução simultânea para o desenvolvimento, a independência econômica, a democracia e a integração do Brasil à civilização. Na perspectiva dos industrialistas, segundo pesquisa desenvolvida por Cunha (2000, p. 15), a ocupação do contingente populacional urbano ocioso “(que, de outra forma, poderia provocar inquietações e revoltas) e a criação de condições para o seu bem-estar eram vistos como a contribuição da indústria para resolver a chamada questão social.”

Para atingir esse objetivo, os industrialistas não poderiam desconhecer as funções sociais da escola popular moderna. Ela deveria difundir, necessariamente, saberes úteis à existência contemporânea e à instrução do povo. Por isso, conforme esclarece Souza (2008, p. 20), os conteúdos da instituição escolar primária foram redefinidos nas primeiras décadas republicanas, no Brasil, “em função das novas finalidades atribuídas à educação popular.” Era preciso mudar a escola para poder transformar o País.

Essa arraigada crença dos industrialistas foi mantida, mesmo quando os conflitos sociais se intensificaram, no início do século XX, nos principais centros urbanos, sob contexto que envolvia a convivência entre imigrantes e ex-escravizados nas manufaturas, as tentativas de embranquecimento da força de trabalho e a difusão da ideologia das classes perigosas (CHALHOUB, 2012). Nessa conjuntura, sustenta Cunha (2000, p. 16), seus mentores chegaram a defender a prioritária ação do Estado na imposição do ensino obrigatório e a secundarização das leis sociais. “Ao lado do esperado efeito moralizador das classes pobres, o ensino profissional era visto como possuidor de outras virtudes corretivas.” Entre estas, o combate ao bacharelismo predominante entre as camadas médias, fato destacado no clássico Raízes do Brasil, quando o autor adverte quanto ao fato de que “as nossas academias diplomam todos os anos centenas de novos bacharéis, que só excepcionalmente farão uso, na vida prática, dos ensinamentos recebidos durante o curso” (HOLANDA, 1995, p. 156, grifo nosso).

É a partir dessas crenças que, na análise de Cunha (2000), desde o início do século XX, os industrialistas e seus aliados, entre eles um presidente da República, Nilo Procópio Peçanha (1909-1910), defenderam a ação do Estado na implantação do ensino profissionalizante. A obrigatoriedade desse ramo de ensino foi questionada por setores privilegiados da sociedade, pois, para estes, estava claro quem deveriam profissionalizar, para que e por quê. Essa modalidade de ensino teria, segundo as convicções de seus adeptos, o desejado efeito moralizador sobre a população carente, ocuparia de forma útil os desfavorecidos da fortuna e formaria a força de trabalho necessária à incipiente indústria brasileira, até mesmo nas mais distantes regiões do país. Caso contrário, acreditavam, os mais humildes estariam à mercê da

ociosidade, do vício e do crime.

Nesse contexto, no entendimento de Queluz (2000, p. 14), a qualificação da força de trabalho e a “disciplinarização dos futuros operários”, em meio às diferentes concepções de ensino técnico na Primeira República, só seriam exequíveis sob a institucionalização do ensino profissional, caracterizado pela composição do chamado alfabetismo técnico adequado às necessidades e às condições existentes no Brasil.

Para os industrialistas, não existiam dúvidas: era preciso agir e colocar a instituição educativa escolar em harmonia com as necessidades do mundo do trabalho industrial. A fim de alcançarem esse intento, tornou-se indispensável a participação do Estado brasileiro e sua intercessão em todas as unidades da Federação. Como se desenvolveu esse processo é o que investigaremos a seguir.


As escolas de aprendizes artífices: o ensino profissional para desvalidos


De forma ampla, no quadro teórico proposto por Magalhães (2004, p. 58), registrar a história de uma instituição educativa consiste em entender e esclarecer os processos e os compromissos sociais sob os quais ela se constituiu. Decorre daí que, na concepção do autor, “conhecer o processo histórico de uma instituição educativa é analisar a genealogia da sua materialidade, organização, funcionamento [...]” e de suas práticas. Qual seria, então, a genealogia da rede escolar investigada?

Como delineado antes, no início do século XX, formava-se gradualmente o ambiente favorável ao desenvolvimento do ensino profissional em nosso país. Cresceu, enfim, a compreensão de que o Governo federal deveria intervir nesse problema com o intuito de efetivar algo que já se tornara reivindicação do meio social, em especial no tocante às aludidas classes perigosas (CHALHOUB, 2012).

Em sintonia com esse anseio, Afonso Augusto Moreira Pena, durante a cerimônia de sua posse na Presidência da República, em 15 de novembro de 1906, defendeu a propagação de instituições de ensino técnico-profissional como suporte valoroso para a evolução das indústrias, “proporcionando-lhes mestres e operários instruídos e hábeis” (FONSECA, 1986, p. 172). Segundo o autor, essa declaração era emblemática, pois nenhum presidente do Brasil fizera referência anterior ao tema em

seu programa de governo. Em suma, apesar dos avanços e recuos, a conjuntura tornou-se favorável aos intentos daqueles que defendiam o ensino industrial profissionalizante.

Como expôs Fonseca (1986, p. 172), o discurso de posse do presidente Afonso Pena, a dotação orçamentária prevista pela Câmara Federal para 1907 – destinada às negociações com os estados para a instalação das escolas profissionais –, a ampliação do orçamento aprovada pelo Senado e as propostas difundidas pelo Congresso de Instrução, ocorrido no Rio de Janeiro, integraram o conjunto de elementos que expunham a tendência “para a concretização do ideal de ver implantado no Brasil o que outras nações já ensaiavam no campo do ensino de ofícios.” Estariam, então, dadas as condições históricas para a emergência de uma rede escolar federal de ensino industrial?

Outro acontecimento agregou novo componente a esse complexo e contraditório contexto. Não por coincidência, nesse período, os assuntos educacionais passaram da jurisdição do Ministério da Justiça e Negócios Interiores para o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, ao qual, desde sua criação, por determinação do Decreto nº 1606, de 29 de dezembro de 1906, em seu artigo 2º, competia regular “o ensino profissional, compreendendo os estabelecimentos industriais” (BRASIL, 1906). Tal Decreto foi sancionado pelo presidente Afonso Pena, que, como se observou, havia pouco mais de um mês proferira discurso de posse exaltando o ensino profissionalizante industrial.

Percebiam-se, em vários segmentos da sociedade, aspirações coletivas de diferentes procedências, anseios que se generalizavam direcionando-se para o mesmo intuito de constituir, no Brasil, o tipo de instrução que possibilitasse o incremento da indústria nacional. Fonseca (1986, p. 173) explica, com propriedade, aquelas aspirações: “Era a preparação psicológica, necessária à cristalização da ideia, que estava em franca evolução.” De fato, mesmo imersa na predominante concepção agroexportadora, oligárquica, a elite dirigente brasileira começava a se render a determinados argumentos dos industrialistas e de seus aliados.

Embora ainda incipiente na maior parte da Federação, a indústria brasileira cresceu nos maiores centros urbanos. Num período de vinte anos, o crescimento foi

considerável: quando da proclamação da República, em 1889, o País contabilizava, oficialmente, 636 estabelecimentos industriais; daquele evento histórico até 1909, foram fundadas 3.362 novas indústrias, sobretudo no Sudeste. O incremento foi inquestionável: mais de 500%. Pelo visto, “o desenvolvimento da indústria indicava a necessidade do estabelecimento do ensino profissional. Urgia, ao Governo, tomar providências” (FONSECA, 1986, p. 174).

Entretanto, os elementos explicativos para o desenvolvimento industrial brasileiro constituem controvérsia historiográfica. Suzigan (2000), por exemplo, identifica quatro interpretações: a teoria dos choques adversos (crises externas teriam deslocado capital para atividades internas e promovido política de substituição de importações); a ótica da industrialização liderada pela expansão das exportações (produtos primários, sobretudo o café, seriam as fontes para o acúmulo de capital aplicável à indústria); a teoria do capitalismo tardio (em economia periférica como a nossa, o desenvolvimento industrial vincular-se-ia primordialmente a fatores internos e, de forma secundária, a fatores externos); e a perspectiva da industrialização intencionalmente promovida por políticas governamentais (contesta a versão que atribui insignificância à ação do Estado na promoção da industrialização anterior a 1930).

Controvérsias à parte, no início do século XX, a nação parecia despertar para as necessidades geradas pela industrialização em curso. Em meio a esse processo, a 14 de junho de 1909, Afonso Pena faleceu e, na mesma data, Nilo Procópio Peçanha assumiu a Presidência da República. As discussões sobre as necessidades de formação do proletariado brasileiro não eram estranhas ao novo governante. Três anos antes, ainda como presidente do estado do Rio de Janeiro, ele fora o responsável pelo Decreto nº 787, de 11 de setembro de 1906, que autorizou a instalação de quatro instituições educativas profissionais em diferentes cidades daquele estado: Campos, Petrópolis, Niterói e Paraíba do Sul. Como registra Fonseca (1986), à exceção da escola instalada na última cidade, as demais eram destinadas ao ensino de ofícios industriais. Considerando-se o processo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro, as necessidades formativas exigidas pela industrialização e os riscos sociais advindos da crescente urbanização, o terreno encontrava-se fértil para o

lançamento das sementes preconizadas pelos industrialistas.

Não obstante o predomínio da economia primária agroexportadora, cresceram os argumentos daqueles que viam nas mudanças ocorridas no início do século XX, entre estas a industrialização, a oportunidade para o desenvolvimento nacional. Imerso no caleidoscópio em que se tornara o Brasil, Nilo Peçanha assumiu o Executivo federal e apoiou a reivindicação dos industrialistas. Cerca de três meses após sua posse, lançou as bases legais da rede federal de educação profissional industrial. Segundo Santos (2010, p. 212), “o pensamento industrialista converteu-se em medidas educacionais, pela iniciativa do presidente da República Nilo Peçanha”, avaliado como o criador do ensino profissional no país. Evidentemente, não fora ato isolado de um homem impetuoso: sua decisão sustentou-se nas condições históricas presentes naquele contexto.

Foi sob a influência do industrialismo que o governo do então presidente da República, Nilo Procópio Peçanha (1909-1910), determinou, nos termos do Decreto nº 7566, de 23 de setembro de 1909, a criação de 19 Escolas de Aprendizes Artífices, de ensino primário profissional, público e gratuito, subordinadas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, com instalações previstas para as capitais dos estados brasileiros (BRASIL, 1909). Assim, esse Decreto corresponde a uma espécie de atestado de nascimento das Escolas de Aprendizes Artífices, instituições educativas cuja genealogia se entrelaça com as demandas oriundas dos processos de urbanização e industrialização ocorridos nas principais cidades do Brasil, no início do século XX.

Apenas duas capitais estaduais não foram contempladas com unidades das Escolas de Aprendizes Artífices. As exceções foram o Rio de Janeiro, à época Distrito Federal (em razão de divergências com o governo estadual, que negou auxílio à instalação do estabelecimento – daí que, nesse estado, a Escola instalou-se em Campos), e Porto Alegre, onde já funcionava, a contento, o Instituto Técnico Profissional, vinculado à Escola de Engenharia da capital gaúcha – depois denominado Instituto Parobé –, o qual, posteriormente, foi incorporado à rede federal de ensino profissional (FONSECA, 1986).

Ao analisar as possíveis inspirações para a fundação das Escolas de

Aprendizes Artífices, Gilson Queluz (2000) identificou três fontes: aquelas instituições de ensino profissionalizante criadas pelo próprio Nilo Peçanha, em 1906, no estado do Rio de Janeiro (com o ensino de ofícios e o curso noturno de primeiras letras); a proposta encaminhada ao Governo federal pelos organizadores do Congresso de Instrução de 1906 (com a ideia de implantar uma escola profissional em cada município brasileiro); e o Asilo de Meninos Desvalidos (em seu caráter assistencial), inaugurado no Distrito Federal, em 1875.

Além dessas instituições educativas, acrescente-se, como antecedentes dignas de registro, as Casas de Educandos Artífices. Criadas ainda no século XIX, no período de 1840 a 1865, foram instaladas dez dessas instituições em diferentes províncias do Império. Da mesma forma que as Escolas de Aprendizes Artífices, as antigas Casas de Educandos (assim como outras instituições similares precursoras) tinham como propósito oferecer uma educação cujos objetivos institucionais eram “incutir hábitos de trabalho” (QUELUZ, 2000, p. 26) direcionados aos menores desvalidos da sorte. Ou seja, integrantes das classes ditas perigosas (CHALOUB, 2012). Tal propósito acompanharia a tendência até então verificada, e perduraria, ao longo de nossa história, no ensino técnico profissional, fato que, segundo Lucília Machado (1989), demonstra a estreita relação existente entre a educação profissional e a divisão social do trabalho.

Apesar das semelhanças com instituições educativas do passado, já no ano letivo de 1910, as 19 escolas criadas pelo presidente Nilo Peçanha começaram a funcionar em todo o Brasil, com distintas datas de inauguração. As dificuldades inerentes às reais condições existentes nos diferentes estados explicam, de certa forma, essa falta de sincronia. Afinal, as negociações do Governo central com os governos estaduais ocorreram sob condições diferenciadas. Uma dessas dificuldades atrelava-se aos edifícios nos quais as escolas seriam instaladas, que eram, em geral, conforme Fonseca (1986, p. 182), “inadequados e em precárias condições de funcionamento de oficinas. A eficiência não poderia deixar de ser senão pequena”. Mas a principal dificuldade inicial, de acordo com o autor, foi a falta de professores e mestres de oficinas capacitados para suas funções.

Todavia, as dificuldades iniciais não foram suficientes para arrefecer os ânimos

com a criação das Escolas de Aprendizes Artífices. Era uma medida pioneira, que marcava o princípio da atuação direta do Governo federal na esfera da formação profissional. Por isso, problemas verificados no processo de instalação das instituições educativas nas unidades federadas foram minimizados e soluções postergadas. Daí a improvisação verificada em diferentes localidades. As autoridades federais estavam imbuídas do propósito de inaugurar a rede de escolas profissionalizantes e, salvo a exceção verificada no Rio de Janeiro, contavam com o apoio das oligarquias estaduais.

Os dados reproduzidos, no Quadro 1, sugerem a complexa tarefa que foi inaugurar, no início do século XX, 19 instituições educativas em diferentes estados da Federação.


Quadro 1 – Inauguração das Escolas de Aprendizes Artífices (por unidades da Federação)


Piauí

1º de janeiro de 1910

Goiás

1º de janeiro de 1910

Mato Grosso

1º de janeiro de 1910

Rio Grande do Norte3

1º de janeiro de 1910

Paraíba

6 de janeiro de 1910

Maranhão

16 de janeiro de 1910

Paraná

16 de janeiro de 1910

Alagoas

21 de janeiro de 1910

Rio de Janeiro (Campos)

23 de janeiro de 1910

Pernambuco

16 de fevereiro de 1910

Espírito Santo

24 de fevereiro de 1910

São Paulo

24 de fevereiro de 1910

Sergipe

1º de maio de 1910

Ceará

24 de maio de 1910

Bahia

2 de junho de 1910

Pará

1º de agosto de 1910

Santa Catarina

1º de setembro de 1910

Minas Gerais

8 de setembro de 1910

Amazonas

1º de outubro de 1910

Fonte: Quadro elaborado a partir de Fonseca (1986, p. 181) e de Mensagem do presidente Alberto Maranhão (RIO GRANDE DO NORTE, 1910, p. 7).


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3 No caso da Escola de Aprendizes Artífices do Rio Grande do Norte, Fonseca (1986, p. 181) registra a data de 3 de janeiro para a inauguração. Entretanto, a documentação primária consultada atesta a data da inauguração em 1º de janeiro de 1910 (RIO GRANDE DO NORTE, 1910, p. 7),

Apesar de toda a argumentação favorável à necessária qualificação técnica dos trabalhadores brasileiros (elaborada principalmente pelos industrialistas), a análise do Decreto nº 7.566, de 23 de setembro de 1909, oferece elementos esclarecedores quanto às razões mais amplas que motivaram a criação das Escolas de Aprendizes Artífices. Em seu preâmbulo, o documento apresenta as seguintes justificativas:


[...] Considerando:

que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência;

que para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vicio e do crime;

que é um dos primeiros deveres do Governo da República formar cidadãos úteis à Nação [...] (BRASIL, 1909, p. 1).


O texto apresenta, inicialmente, evidente relação entre o processo de urbanização, o crescimento demográfico e o aumento dos problemas sociais para os operários e para seus descendentes. De forma explícita, propõe, para a resolução do problema assinalado, a oferta do ensino técnico, de caráter preventivo e regenerador, capaz de transmitir hábitos proveitosos para os “filhos das classes proletárias, menores percebidos como potenciais elementos de desordem social” (QUELUZ, 2000, p. 29, grifo nosso). Em resumo, o Governo republicano assumiu como sua, nos termos expostos, a tarefa de proporcionar aos estudantes uma educação escolar de formação utilitária adequada aos interesses da nação. Que formação seria essa e em quais bases estaria assentada?

No Decreto nº 7.566, em seu artigo primeiro, consta que a instituição da rede educativa criada em 1909 era destinada ao ensino profissional primário gratuito. Interessa-nos, então, identificar os objetivos desse alegado ensino profissional, sobretudo porque legalmente norteariam o ensino e as práticas formativas da rede educativa investigada durante período considerável de seu percurso histórico. Vejamos o que diz a respeito dessa questão o artigo 2º, do Decreto sob análise:


Art. 2º. Nas Escolas de Aprendizes Artífices, custeadas pela União, se procurará formar operários e contramestres, ministrando-se o ensino

prático e os conhecimentos técnicos necessários aos menores que pretendem aprender um oficio, havendo para isso até o número de cinco oficinas de trabalho manual ou mecânico que forem mais convenientes e necessárias no Estado em que funcionar a escola, consultadas, quanto possível, as especialidades das indústrias locais (BRASIL, 1909, p. 1).


Pelo exposto, além dos intentos recomendados no artigo 1º, como visto anteriormente, a finalidade dessas escolas era a precoce formação de operários e contramestres (auxiliares dos mestres de oficinas), mediante ensino prático e conhecimentos técnicos que fossem mais convenientes e necessários às unidades da Federação em que funcionassem as Escolas de Aprendizes Artífices. Ou seja, que os cursos oferecidos ao corpo discente (composto de menores) considerassem as peculiaridades da economia local, especialmente aquelas relacionadas ao setor industrial.

Mas a formação escolar realizada por essa rede de instituições educativas criada no Brasil seria compatível com os objetivos propostos nos marcos legais? Magalhães (2004, p. 69) constata que, inseridas em espaços e em tempos históricos diferenciados por elementos de caráter sociocultural, contextos e situações históricas peculiares, as instituições educativas, conforme sua análise, apesar de “estruturadas por uma matriz de base e perseguindo objetivos comuns, existem de forma própria e este quadro existencial fomenta representações e apropriações, elas mesmas diferenciadas.” Se esse autor admite que as diferenciações sejam inerentes às instituições educativas, também reconhece que, em um conjunto delas, tais diferenças não significam necessariamente a anulação de objetivos em comum. Identificados os objetivos legais das Escolas de Aprendizes Artífices, outro questionamento se impõe: quem, de fato, seriam os menores para os quais se direcionavam os fins educativos institucionais?

O artigo 6º, do Decreto nº 7.566, definiu os requisitos exigidos aos menores que pretendiam estudar nas Escolas de Aprendizes Artífices, nos seguintes termos:


Art. 6º. Serão admitidos os indivíduos que o requererem dentro do prazo marcado para a matrícula e que possuírem os seguintes requisitos, preferidos os desfavorecidos da fortuna:

  1. idade de 10 anos no mínimo e de 13 anos no máximo;

  2. não sofrer o candidato moléstia infectocontagiosa, nem ter defeitos que o impossibilitem para o aprendizado do oficio.

§ 1º. A prova desses requisitos se fará por meio de certidão ou atestado passado por autoridade competente.

§ 2º. A prova de ser o candidato destituído de recursos será feita por atestação de pessoas idôneas, a juízo do diretor, que poderá dispensá-la quando conhecer pessoalmente as condições de requerente à matricula.

(BRASIL, 1909, p. 2).


Além de estabelecer os limites de idade (mínima e máxima) e preocupações higienistas, típicas da época, o artigo 6º deixa evidente a preferência concedida aos denominados desfavorecidos da fortuna. A estes eram destinadas, de forma inquestionável, as vagas disponibilizadas a partir de 1910. Admitindo-se a dualidade reinante no sistema educacional brasileiro, as provas exigidas para a demonstração das condições sociais dos alunos seriam basicamente protocolares. Nas circunstâncias históricas do período aludido, sob a vigência de preconceito com o ensino de ofícios, seria improvável que pais ou responsáveis de melhores condições sociais pleiteassem o ingresso de seus filhos ou tutelados nas Escolas de Aprendizes Artífices.

Quanto ao número de matriculados no primeiro ano de funcionamento daquelas instituições, existem divergências entre dois dos principais estudos realizados sobre a história do ensino industrial no Brasil. Para Fonseca (1986), foram 2.118 alunos. Entretanto, segundo Cunha (2000), ocorreu um total de 1.982 matrículas, conforme registrado no Quadro 2, a seguir.


Quadro 2 – Matrículas nos cursos diurnos das Escolas de Aprendizes Artífices (1910)


Amazonas

33

Pará

20

Maranhão

74

Piauí

52

Ceará

128

Rio Grande do Norte

100

Paraíba

143

Pernambuco

120

Alagoas

93

Sergipe

120

Bahia

45

Espírito Santo

180

Rio de Janeiro (Campos)

209

São Paulo

135

Paraná

219

Santa Catarina

100

Minas Gerais

32

Goiás

71

Mato Grosso

108



Fonte: Quadro elaborado a partir de Cunha (2000, p. 93).


Apesar das divergências assinaladas entre os dois autores, as matrículas registradas em todo o Brasil deram novo alento ao ensino industrial.

As condutas, tarefas e funções dos alunos matriculados em todo o país, bem como dos professores, gestores e demais funcionários das Escolas de Aprendizes Artífices, foram determinadas em dois documentos normativos: o Regulamento de 1911, definido por meio do Decreto nº 9.070, de 25 de outubro de 1911, e o Regulamento de 1918, com poucas alterações em relação ao anterior, estabelecido pelo Decreto nº 13.064, de 12 de junho de 1918. Em ambos, procurava-se resolver as pendências iniciais verificadas na implantação da rede escolar federal de ensino técnico industrial (BRASIL, 1911, 1918). A tarefa, entretanto, não seria fácil; mesmo porque, em cada estado da Federação – além dos problemas de amplitude nacional

–, ganharia contornos próprios, peculiares. Dentre esses, a seleção de professores capacitados para lecionarem disciplinas de formação técnico-profissional, a construção do perfil do corpo discente, a frágil estrutura física de diversas unidades

escolares e as limitações do embrionário mercado de trabalho industrial para o qual, teoricamente, deveria encaminhar seus formandos.


Considerações finais


Na síntese analítica realizada, constatamos que a instituição escolar, em sua historicidade, adquiriu proeminência entre aquelas de natureza educativa. No mundo ocidental, em sua configuração moderna, ela assumiu múltiplas funções sociais, dentre estas a de formar crianças e jovens, inclusive no âmbito profissional. Essa instituição, que em seus traços constitutivos foi reproduzida da Europa para o Brasil, encontrou entre nós, na Primeira República, sob a égide do industrialismo – à época exaltado como imprescindível alavanca para o progresso do país – o suposto contexto favorável para desenvolver a sua função institucional de formar trabalhadores para a indústria nacional. Essa tarefa, como exposto, competiria às Escolas de Aprendizes Artífices, criadas em 1909. Porém, na conjuntura aludida, essa empreitada encontraria múltiplos obstáculos em uma sociedade caracterizada por expressiva desigualdade social, arraigado preconceito com os mais humildes, não raras vezes designados como integrantes das classes perigosas, e débil processo de industrialização.

Dessa forma, a análise da genealogia da rede escolar de educação profissional industrial, aqui estudada, abrange um núcleo de assuntos interdisciplinares, cuja condição epistêmica se determina e se concretiza pela vinculação com as temáticas centrais da educação, “designadamente as referentes ao contributo da escolarização para as mudanças socioculturais e para a modernização das economias e das sociedades” (MAGALHÃES, 2004, p. 121).

Considerando-se como válidas as reflexões produzidas no âmbito do nosso referencial teórico-metodológico e considerando-se, ainda, que o objetivo oficial para o qual foram criadas as Escolas de Aprendizes Artífices era, em essência, a formação profissional para o mercado de trabalho, sobretudo na esfera industrial, então se constata que tal intento, nas primeiras décadas do período republicano – apesar da reconhecida relevância dessa inciativa –, apresentou alcance insuficiente. Da mesma forma, embora reconheçamos as expressivas mudanças e reconfigurações ocorridas ao longo de mais de um século de sua concepção, a análise histórica aqui

empreendida permite identificarmos, na criação das Escolas de Aprendizes Artífices, a genealogia da rede federal de educação profissional industrial no Brasil.

Referências


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