V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40506
“Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos”
(José Murilo de Carvalho)
https://www.youtube.com/watch?v=CuDooAdduoA&list=PL4dgZR1yTWeL2WS DaAlaB0VletBhsYDLz&index=2&t=119s
1 Documentário recebido em 12/11/2019. Avaliado, revisado e aprovado pelos editores em 07/12/2019. Publicado em 23/01/2020.
“O Rio dos trabalhadores” é um vídeo documentário que pretende levar a um público ampliado, em linguagem atual e mais accessível, o trabalho acadêmico desenvolvido com estudantes, em cinco anos de pesquisa sobre fotografias de trabalho e de trabalhadores, em arquivos públicos e privados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Esperamos que a memória nele presente possa ser útil ao diálogo com os estudantes, com os movimentos sociais e os trabalhadores, favorecendo a afirmação de sua identidade e alimentando as lutas do presente “para não apagar o futuro”3.
Neste texto, apresentamos os fundamentos de seu roteiro4: questões teórico- metodológicas que envolvem os problemas conceituais e de método da fotografia como fonte histórica; o conceito de mundo do trabalho; os trabalhadores e a cidadania frustrada; a memória oficial da cidade do Rio de Janeiro; a modernização da cidade e a Reforma Pereira Passos; a comemoração do Centenário da Independência e o arrasamento do Morro do Castelo; o mundo fabril da época (1900-1930) e a memória da construção da democracia pelas classes subalternas.
A fotografia é contemporânea de uma visão estética do mundo, por oposição a um olhar racionalista e ético que acompanha os tempos modernos. Ë neste campo fascinante e movediço, tanto o da história dos homens quanto o das linguagens, dos discursos e das interpretações que eles constroem, que se move este tema de estudo, quando falamos da fotografia como fonte histórica.
3 Este texto tem por base a pesquisa que coordenei sobre “O mundo do trabalho em imagens – A fotografia como fonte histórica”, no período 1996 a 2001, desenvolvida com apoio da UFF, CNPq e FAPERJ, no Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (NEDDATE) da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
4 O vídeo “O Rio dos Trabalhadores” (20’) tem roteiro de Maria Ciavatta e Paulo Castiglioni, direção de Paulo Castiglioni e foi realizado a partir da pesquisa acima mencionada. Foi apresentados no VI Congresso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana, realizado em San Luís de Potosí, México, de 19 a 23 de maio de 2003. Foi premiado no 9º. Concurso de Curta-metragem da Riofilme 2003.
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A linguagem cotidiana expressa a compreensão pelo olhar, os modos de ser, as relações que estabelecemos em nosso contato com pessoas e objetos. Se a imagem sempre existiu como representação da realidade, como memória e expressão da cultura de um povo, de uma época, a comunicação informatizada da linguagem verbal e visual multiplicou seu alcance e ampliou seus efeitos na cultura e na formação humana. Em todo este processo, a educação não teve apenas ampliados os espaços sociais de sua realização, mudou a qualidade dos processos educativos. A educação do olhar como forma de compreensão do mundo, como domínio dos conceitos e criação de novas formas de sociabilidade educativa é parte deste universo complexo, estetizado pela imagem, misto de um claro-escuro do aparente e do não revelado sob o fragmento visível.
Buscamos nas imagens a verdade dos fatos e nos encontramos com meras imagens da verdade, a aparência dos fatos. Metodologicamente, trata-se de fazer a arqueologia da imagem, a crítica interna das ideologias de legitimação da realidade ou das formas de apresentação da realidade pelas fotografias; a função da produção e do consumo das imagens na construção da modernidade, elemento substantivo da condição pós-moderna.
O que significa fazer a decodificação das mensagens subjacentes, a “desconstrução” de seus elementos e a busca das relações ocultas ou menos aparentes. Significa buscar ir além da fragmentação da realidade e da perda de sentido das partes, dos elementos e dos aspectos, operada pela imagem. A busca da compreensão pela totalidade implícita mas oculta na fotografia, supõe o esforço de articular as partes em um todo com seus significados. Isto supõe investigar o contexto da produção, da apropriação e do uso da fotografia.
A imagem interiorizada, refletida na retina, não é apenas uma impressão de natureza sensível. Ela é uma mediação complexa do universo dos sentimentos e das emoções que são parte da inteligência, orientam as escolhas, impulsionam os gestos e as ações. Como outras linguagens, cristaliza-se em uma memória que garante a visão do passado, alimenta as identidades e orienta a projeção do futuro.
Como ponto de partida, assumimos que não há uma identidade das classes trabalhadoras. A idéia da identidade como uma construção social perpassa o tema. Neste sentido, não há uma identidade, mas tantas as identidades quantas forem as construções subjetivas a partir da cultura (SODRÉ, 1996) ou quantas forem as
memórias individuais ou coletivas preservadas pelos indivíduos ou pelos grupos sociais (POLLAK, 1989 e 1992) ou pela dissolução das monoidentidades - identidades nacionais, étnicas, regionais (CANCLINI, 1995).
Para Sodré, a questão da identidade deve ser vista como o lugar onde se faz a interseção do sujeito com as identificações que somos obrigados a assumir na vida cotidiana. Atribuir ou assumir identidades implica atribuir valores ou utilizar categorias de pensamento, do pensamento ocidental, por exemplo, em que o colonizador europeu ocupa um lugar na história do outro e lhe atribui valores cristãos, valores da burocracia estatal, padrões pedagógicos ou industriais. O autor concebe o “problema identitário” não apenas como um problema cultural mas, também, político-econômico, indissociável da adequação do sistema produtivo aos recursos humanos e materiais de uma região específica.
Para Michel Pollak (1992) sendo um fenômeno construído social e individualmente, a memória possui estreita ligação com o sentimento de identidade (imagem de si, para si e para os outros). A identidade, individual ou de um grupo, se desenvolve em referência a outros indivíduos e a outros grupos, em meio a um processo de negociação e conflito, orientado por critérios de aceitabilidade e credibilidade. Memória e identidade podem ser negociadas, não devendo, pois, ser compreendidas enquanto essências de uma pessoa ou grupo.
Tratando de memória e esquecimento, o mesmo autor destaca a seletividade de toda memória, seletividade que ocorre em meio a um processo de “negociação” para conciliar memória coletiva e memórias individuais. O autor defende a existência de uma memória visual que seria reconstruída continuamente, e considera interessante o estudo das mudanças e da significação das imagens.
Embora neste caso, ele se refira à memória visual como parte da história oral, para ele não existe uma diferença fundamental entre fonte oral, fonte escrita e fonte iconográfica, mas destaca a história oral como aquela que põe em movimento as “memórias subterrâneas” que permanecem em silêncio diante da lógica imposta por uma memória coletiva oficial, aflorando nos momentos de crise, engendrando conflitos e disputas. Trabalhando também com memória, esquecimento e silêncio, para a construção da identidade, destaca os sentimentos de continuidade no tempo, de fronteiras físicas (o corpo) ou as fronteiras de pertencimento ao grupo, de coerência entre os elementos que constituem o sentimento de identidade.
Gilberto Velho (1988) destaca as relações entre memória, identidade e projeto, observando sua importância para a constituição da(s) identidade(s) e de projetos de futuro. A memória dá uma visão retrospectiva, do passado; o projeto permite uma visão prospectiva, projetando o futuro. Ambos contribuem para situar o indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações nas diversas conjunturas da vida. O autor distingue a identidade socialmente dada (étnica, familiar etc.) e a identidade adquirida em função de uma trajetória com opções e escolhas, que definem diferentes conjuntos de valores. Esta seria uma das marcas da sociedade moderna.
O que vemos na Primeira República é uma profunda dissociação da função produtiva dos trabalhadores de sua possível identidade enquanto cidadãos, sujeitos de direitos enquanto trabalhadores livres. A historiografia disponível aponta as muitas tentativas dos trabalhadores de se constituírem como classe social, demarcando seus espaços de atuação, reivindicando direitos, organizando-se, lutando nas ruas e nas fábricas. De outra parte, como aponta Sidney Challoub (1986), a patronagem e o clientelismo, a cooptação de trabalhadores pelos patrões em troca de benefícios e privilégios, suscitavam divisões entre os próprios trabalhadores. Estes eram valores profundamente arraigados nas relações entre patrões e escravos, entre patrões e trabalhadores livres, presentes desde a época colonial, como mostra Maria Sylvia Carvalho Franco (1983).
Não obstante suas lutas, esses fatos tiveram uma influência profunda na exclusão das classes trabalhadoras da participação de direito nos benefícios da riqueza social e na preservação de sua memória. A negação de seu protagonismo, enquanto criadores de riqueza e bem-estar, e de uma história heróica do trabalho em todas as frentes da vida social, explica sua ausência explícita nos arquivos oficiais. Os trabalhadores permaneceram à sombra, como mais um dos inúmeros objetos presentes nas fotografias das obras e das reformas levadas adiante pela Prefeitura, no início daquele século.
A memória é fragmentada, sendo que o sentido de identidade depende, em parte, da organização desses fragmentos, organização que varia conforme os momentos e as situações.
A presente pesquisa evidenciou a quase ausência, nos arquivos públicos, de uma memória organizada sobre os trabalhadores ou pelos próprios trabalhadores.
Os fragmentos dessa memória, trabalhadores entre pedras, valas abertas, trilhos, máquinas, paisagens urbanas etc., é o material de que dispomos para a reconstrução aproximada da memória dos trabalhadores no período, e sobre sua identidade como classe social subalterna.
Por mundo do trabalho entendemos o trabalho livre e os trabalhadores urbanos, a formação profissional, o ambiente e as relações de trabalho, as condições de vida e suas lutas de emancipação. Entendemos o trabalho na sua forma ontológica6, fundamental, criativa, estruturante de um novo tipo de ser, o homem, ser social, no qual a delimitação entre a reprodução estritamente biológica e a produção/reprodução própria do homem é constituída não apenas pelo produto do trabalho, mas pela consciência, pela capacidade de representar o ser, o produto, de modo ideal, na sua imaginação criadora (LUKÁCS, 1978; CIAVATTA-FRANCO, 1990, p.43). Isso ocorre de tal forma que
“No ato mesmo da reprodução não se modificam apenas as condições objetivas - por exemplo, uma vila torna-se uma cidade, um deserto torna-se terra cultivável - modificam-se os próprios produtores, enquanto extraem novas qualidades de si mesmos, desenvolvem-se na produção e se transformam, criam novas forças e novas representações, novos modos de relacionar-se, novas exigências e uma nova linguagem”7.
Apenas enfocando o trabalho na sua particularidade histórica, nas mediações específicas, isto é, nos processos socais que lhe dão forma e sentido no tempo e no espaço, podemos apreendê-lo ou apreender o mundo do trabalho na sua historicidade, seja como atividade criadora, que anima e enobrece o homem, ou como atividade aviltante, penosa ou que aliena o ser humano de si mesmo, do
5 Parte destas reflexões constam de Ciavatta, 2002.
6 O conceito de ontologia (o estudo do ser), aqui empregado, difere da tradição da metafísica clássica, assim como das correntes positivistas e neopositivistas que compartilham de uma visão estática e reificada do ser. Utilizamos o termo no sentido que lhe dão Marx (1979) e Lukács (1978) que têm no trabalho uma categoria central, estruturante de um novo tipo de ser, o homem, e de uma nova concepção da história com base na realidade externa, objetiva, na produção da existência humana.
7 Marx, K., Grundisse, p. 394, apud Kosik, 1976, p. 172.
conhecimento produzido, dos produtos de seu trabalho e de sua relação com os demais.
Para o historiador inglês E. P. Thompson (1988), “o fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da história econômica”. O que significa que tanto os trabalhadores participam como produtores da riqueza social, quanto da criação dos padrões e valores históricos e culturais que estruturam a vida individual e coletiva da sociedade a que pertencem. Contudo, a memória preservada e o exame da história, na sua visão mais corrente e tradicional, não registram o cotidiano estafante e penoso de milhares de homens e mulheres, que arcam com os trabalhos mais humildes ou com os mais embrutecedores. A memória que se conhece e a história que se ensina é a dos príncipes, dos reis e da nobreza, dos governantes das altas hierarquias e da administração dos negócios do país, é a história dos ricos e dos ilustres
Há muitas explicações para este fato, aparentemente, tão natural, pelo que nos mostram os livros de história, as placas com os nomes das ruas, os quadros emoldurados das autoridades governamentais, os sobrenomes da moda e da alta sociedade nos jornais e revistas, o noticiário sobre as pessoas que são notícia na televisão. A explicação mais simples e visível é que eles são os patrões, pertencem a famílias de grandes proprietários, a famílias de políticos, ou são os artistas que, de origem rica ou pobre, alcançaram a fama.
Uma outra explicação nos diz que eles são donos dos meios de produção, proprietários de empresas e de latifúndios. O que significa que eles detêm o capital que oferece emprego e salário para muitos homens e mulheres que não têm outros bens senão sua força física e mental para vender no mercado de trabalho, e daí retirar os meios de vida para si e para suas famílias.
Se avançarmos em mais um nível explicativo, visualizamos o poder material e ideológico que os proprietários e seus descendentes têm para registrar e difundir seus feitos e sua memória na literatura, na escrita da história, nas artes, nas praças e ruas, nos monumentos, nos modernos meios de comunicação como o rádio, a televisão, o vídeo, a fotografia.
Essa aparente “naturalidade” de como se faz e se perpetua a história que conhecemos está manifesta nos arquivos públicos e privados da cidade do Rio de Janeiro onde, para estudar a fotografia como fonte histórica, nos dispusemos a
procurar fotografias de trabalho e de trabalhadores das primeiras décadas do século XX (1900-1930). O trabalho inicial se caracterizou (i) pela descrição da organização dos arquivos em função da localização do tema e da compreensão da catalogação do acervo e (ii) pela descrição da documentação com o fichamento de cada foto pré- selecionada, buscando identificar, de modo preliminar, o conteúdo e o discurso fotográfico.8
Foi um trabalho extenso de revisão de quantidades de fotografias, já que, poucas vezes, encontramos nos arquivos as séries (ou entradas) trabalho e trabalhador. Assim, tivemos que pesquisar outras entradas, tais como: as diversas obras realizadas na cidade, demolições, construção de edifícios, fábricas, relevo, ruas, indústrias, cais do porto, arrasamento do Morro do Castelo, exposições industriais, escolas profissionais etc9.
Salvo exceções, as fotos encontradas limitam a visão dos trabalhadores aos seus locais de trabalho, onde eles quase se confundem com os materiais, equipamentos e instrumentos utilizados. Tomando como referência o conceito de mundo do trabalho do historiador Eric J. Hobsbawn (1987), ampliamos a visão restrita da expressão manual do trabalho para o conceito de mundo do trabalho. O autor inclui, neste conceito, tanto as atividades materiais, produtivas, como os processos de criação cultural que se geram em torno da reprodução da vida. Assim, com este conceito ampliado de trabalho, queremos evocar o universo complexo que, às custas de enorme simplificação, reduzimos a uma de suas formas aparentes, tais como a profissão, um produto do trabalho, as atividades laborais, se não levarmos em conta a multiplicidade de relações sociais que estão na base dessas ações.
Também Thompson (1988) amplia a noção de classe trabalhadora, de um conteúdo meramente econômico (proprietários e não-proprietários dos meios de produção), para suas dimensões sociais e culturais. Os autores se propõem a caracterizar a classe operária observando as especificidades do contexto ao qual pertencem e suas experiências de vida como trabalhadores.
8 Agradecemos às equipes de estudantes que nos auxiliaram neste trabalho e, particularmente, ao primeiro grupo formado por Cláudia Linhares Sanz, Hugo Belluco e Rebeca Gontijo.
9 Os arquivos onde pesquisamos foram os seguintes: Arquivo Nacional (AN), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), Museu da Imagem e do Som (MIS), Museu da República, Fundação Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Nacional, Centro de Pesquisa do Museu do Telefone, Centro de Pesquisa, Documentação e Dados de História Contemporânea (CPDoc/FGV), Centro Cultural da Light e Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ-UFRJ).
O que encontramos nos arquivos são imagens fotográficas sobre o trabalho livre e os trabalhadores urbanos, a formação profissional, o trabalho feminino e o trabalho infantil, o ambiente, as moradias, as condições de vida e de trabalho durante as reformas urbanas da cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX10. Naquele momento, no Brasil, lançavam-se as bases para a industrialização que viria a tomar força no final dos anos 20 e, principalmente, a partir da Revolução de 1930.
Buscando ir além da memória restrita do trabalho e dos trabalhadores nos arquivos públicos e privados, que consideramos a “memória oficial”, preservadas pelos governantes, pelas grandes empresas e as elites, passamos a indagar onde estaria e como seria a memória preservada pelos próprios trabalhadores sobre si mesmos. Com isso queremos chamar a atenção para a importância da preservação da memória de sua vida e de suas lutas pelos próprios trabalhadores, como parte da constituição de sua identidade, para o reconhecimento de seu papel na sociedade, na conquista da cidadania e na construção da democracia.
“Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos”. É com este duplo paradoxo que o historiador José Murilo de Carvalho (1987) assinala “a castração política” da cidade do Rio de Janeiro, neutralizada politicamente pela República, impedindo seu auto-governo e reprimindo a mobilização política da população urbana. Vários são os aspectos que concorrem para essa visão, desde a restrição do poder em mãos das elites e a concepção restrita de cidadania, até a transformação da cidade em “vitrina” pelas reformas a que foi submetida (p. 162). O que também é sinalizado pela memória tênue sobre o trabalho e os trabalhadores, quase uma ausência nos registros fotográficos dos arquivos públicos da cidade. Qual a importância dessa memória na construção da identidade dos trabalhadores? Como a noção de cidadania nos ajuda a compreender essa quase ausência de imagens dos próprios trabalhadores?
O sentido da cidadania no período pode nos dar alguma compreensão de sua relação com a memória preservada pelo poder oficial ou patronal e a identidade que
10 Detalhes deste processo estão em Franco, 2001.
se forjava entre os trabalhadores livres. Carvalho relata ainda que “O povo assistiu bestializado à Proclamação da República, segundo Aristides Lobo; não havia povo no Brasil, segundo observadores estrangeiros, inclusive os bem informados como Louis Couto; o povo fluminense não existia, afirmava Raul Pompéia” (op. cit., p. 140).
Estas imagens depreciativas, preconceituosas ou verdadeiras dos contemporâneos da época, revelam uma dissociação entre o projeto das elites e a população, expressa por uma apatia, um desconhecimento incompatível com a ideia liberal de cidadania. Mas a própria questão da cidadania é, originalmente, uma questão alheia à constituição histórica da sociedade brasileira, situação que teria se prolongado sob o fenômeno da exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social. A questão subjacente, até hoje, é sobre quem pertence à comunidade política, como deve ser a participação da população em um processo que se pretende democrático e, consequentemente, quem são os cidadãos e quais são os seus direitos de brasileiros.
No início da República nasceram ou se desenvolveram várias concepções de cidadania. Com base nas práticas de cidadania no Rio de Janeiro. Carvalho registra duas manifestações particulares: a da cidadania inativa e a da cidadania ativa. A apatia política da população diante da Proclamação da República exemplifica o primeiro caso. O comportamento insurgente na Revolta da Vacina é o exemplo do segundo caso, a cidadania ativa. O desenvolvimento da análise das duas concepções e, especialmente, as práticas globais da sociedade política da época mostram que ambas as formas eram geradas pelo próprio sistema, como dois lados de uma mesma moeda.
A mudança de regime político que despertara em certos setores da população “a expectativa de expansão dos direitos políticos, de redefinição de seu papel na sociedade política, razões ideológicas e as próprias condições sociais do país” se encarregaram de frustrar essas expectativas. A elite republicana vitoriosa nem sequer ateve-se ao conceito liberal de cidadania e criou todos os obstáculos à democratização política, que era também um cerceamento sócio-econômico. Tudo que fosse julgado ameaça à ordem instalada encontrava resistência (id. ibid., p. 64). O que não era um fato novo e tinha antecedentes na forma subordinada como se proclamou a “Independência do Brasil”.
A historiadora Hebe de Mattos (2000) mostra a principal contradição da cidadania liberal (sob as idéias de liberdade, igualdade, fraternidade) no Brasil. A Constituição de 1824 assegurava a igualdade a todos os cidadãos nascidos no país, mas também garantia a propriedade dos escravos pelos seus donos, em um país de 3,5 milhões de habitantes onde 40% eram escravos (p. 16). A Lei Magna definia a igualdade entre patrões e escravos como cidadãos e a frustrava garantindo a propriedade dos primeiros e legitimando a “cidadania” desigual. O direito de voto era garantido aos homens alfabetizados com propriedades significativas. Além disso, retirou-se da Constituição de 1881 a obrigação do Estado fornecer instrução primária e de promover os socorros públicos. E o Código Criminal de 1890 tentou proibir greves e coligações operárias, em descompasso com o que ocorria na Europa.
Na política de “modernização econômica” do governo Rodrigues Alves, no início do século XX, o Rio de Janeiro, capital federal do país, seria a vitrine de um Brasil que se queria civilizado segundo os padrões europeus. Para isso, dizia-se, era necessário “limpar” a cidade de seus restos coloniais para fazê-la ingressar na civilização. O que ocorreu em dois momentos principais: a Reforma Pereira Passos (1903-1906) e os preparativos para a Comemoração da Independência (1920-1922). O Prefeito Pereira Passos, investido de plenos poderes pelo governo federal, passou a impor de forma autoritária, a transformação do espaço urbano, negando e condenando quaisquer formas de tradicionalismo ou elementos da cultura popular. Semelhante a seu mestre na engenharia urbana, Haussmann, o Prefeito de Paris, Passos criou o cargo de fotógrafo da Prefeitura, e Augusto Malta se tornou fotógrafo oficial para registrar os principais acontecimentos e as obras de transformação da
cidade, além das inaugurações, passeios e solenidades em geral.
Augusto Malta exerceu um papel singular na transformação do Rio de Janeiro no início do século. Por mais de trinta anos, seu olhar, vinculado a um olhar oficial, emoldurou imagens da cidade, guardando em suas composições histórias sobre gente dos mais variados tipos, profissões, personalidades, pessoas simples, trabalhadores, paisagens, demolições. Malta e alguns outros fotógrafos da época nos legaram um discurso expressivo sobre os trabalhadores que faziam parte da
paisagem que eles retratavam. Construíram uma memória que, como todas as memórias, revela e oculta sempre uma parte do sentido da vida dos retratados.
Guardadas em arquivos públicos e privados da cidade do Rio de Janeiro, as imagens do trabalho e dos trabalhadores, permanecem à sombra da cultura que as gerou. Elas registram a monumentalidade das obras públicas e a mão-de-obra farta e barata, a modernização do espaço urbano e as moradias nos morros e nos subúrbios distantes, o trabalho nas ruas, nas oficinas e na indústria nascente, a fábrica disciplinar e a grande “família da fábrica” (CIAVATTA, 2001).
No silêncio do anonimato e do congelamento da imagem, os trabalhadores revelam a sociedade de classes a que pertencem, a divisão do trabalho, a diferenciação social, os costumes, as funções humildes e o abandono que acompanhou a “libertação” dos escravos e acompanha, até hoje, os pobres no país.
No Brasil, no início do século, desde a passagem da economia escravista ao trabalho livre, no século anterior, até a industrialização dos anos 30, desenvolve-se um importante processo de transformação da classe trabalhadora como ator coletivo legítimo no cenário político da nação. A classe trabalhadora se constitui tanto como um fato de história econômica, quanto de história política e cultural. A memória preservada pelas imagens do trabalho se relaciona a um projeto contraditório de cidadania, de construção da identidade da classe trabalhadora pelas elites, onde “a maioria não conta para a construção da cidade” (LOBO ET AL., 1986).
Já em 1901, o Presidente Rodrigues Alves anunciara que o saneamento da cidade constituía prioridade em seu projeto. O “Rio civiliza-se” era a ordem do dia nos debates políticos e jornalísticos. O centro da cidade foi eleito o lugar de onde os maus costumes e os espaços “doentes” deveriam ser erradicados.
Uma das prioridades anunciadas pelo novo presidente, Rodrigues Alves, foi a modernização do Porto do Rio de Janeiro, acompanhando as necessidades postas pela acumulação e reprodução do capital, pela circulação de mercadorias e de força de trabalho imigrante e pelas exigências fiscais do próprio Estado (BENCHIMOL, 1992). À remodelação do porto corresponderia uma reestruturação do espaço físico
da cidade que o governo acreditava estar a caminho de transformar-se em uma metrópole à altura dos grandes centros industriais e comerciais do mundo.
Seguindo o exemplo parisiense, Passos manda arrasar as vilas coloniais, cria jardins públicos, persegue os ambulantes, constrói a imponente Avenida Central, moderniza o sistema de transportes com a introdução dos bondes com tração elétrica. Por sua vez, o “bota-abaixo”11 do casario, as reformas sanitárias e a remoção das camadas pobres para a periferia atendiam ao novo sistema político e econômico. Projetava-se espacialmente, a estrutura de classes necessária a uma economia capitalista.
“Passos vence a rotina. Declara guerra aos bacalhoeiros da rua do Mercado, aos tamanqueiros do becco do Fisco (...) e outros autores do atrazo nacional; do fundo dos armazéns manda arrancar toneladas de lixo, derrubar construções archaicas (...) extingue a cainçalha que vivia infestando as ruas da cidade, acaba com os ambulantes que vendiam vísceras de rezes apodrecendo ao sol, cercados pelo vôo contínuo do mosqueiro, alarga ruas, crêa praças, arboriza-as, calça- as, embelleza-as, termina com a immundicie dos quiosques e diminue a infâmia dos cortiços “ (EDMUNDO, 1938, p. 34).
O arrasamento do Morro do Castelo, iniciado na gestão de Pereira Passos e que iria ser concluído na gestão do Prefeito Carlos Sampaio, era objeto de polêmica. Preparava-se a cidade para a comemoração do Centenário da Independência, e o problema era referência constante no cotidiano da capital.
As reformas não ficaram restritas ao espaço físico da urbe. Eliminar os cortiços e proibir os quiosques significava também erradicar hábitos populares que não se integravam à rotina da nova divisão do trabalho. A construção do novo em matéria de hábitos, organização do espaço e da reprodução do capital foi permeada de conflitos e contradições, uma vez que a modernização da cidade constitui-se a partir de um processo de restrição das liberdades civis. A imposição da ordem
11 “Por toda parte, funcionavam as picaretas do Bota-abaixo, que, no entanto, só destruíam o que era necessário destruir, o que estava condenado, o que era preciso reconstruir e melhorar”. R. Magalhães Júnior. Eles construíram o Rio: Pereira Passos, o grande prefeito. Guanabara em revista, Rio de Janeiro, no. 1, ago. 1986, apud Rebelo, Marques e Bulhões, Antonio. O Rio de Janeiro do Bota- abaixo. Rio de Janeiro: Salamandra, 1997, p. 7.
articulou a dominação econômica a práticas de normatização do espaço e da cultura (CAVALCANTE, 1986). O Morro do Castelo com a religiosidade marginal das “casas de preto” e demais hábitos ligados à cultura africana, figurava como um escândalo ao lado de símbolos civilizados como a Avenida Central, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes.
Marco histórico da fundação da cidade, o Castelo era reverenciado também por abrigar as igrejas de São Sebastião do Castelo (a dos Capuchinhos), onde estavam os ossos de Estácio de Sá (o fundador da cidade) e a Igreja de Santo Inácio (dos jesuítas), transformada, posteriormente, em Hospital Militar e sede da mais antiga Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Espécie de guarda da cidade, o Castelo assinalava a entrada dos navios. Era de lá que se levantava, nos dias de sol, o balão anunciando ao povo que era meio-dia, e que se localizavam o relógio da torre e o observatório astronômico.
De lá também partia o aviso de que havia incêndio na cidade. Local de proteção e defesa, quando os inimigos foram os franceses, habitação de ricos, quando o perigo passou a ser representado pelas epidemias oriundas da região pantanosa, baixa e muito quente, localizada a seus pés. Moradia de uma população pobre de cerca de cinco mil pessoas, distribuídas em mais de 400 casas, quando, no dizer de Luiz Edmundo (1938), “os que descem na escala da vida vão morar para o alto...”, o morro era um marco constante na vida cotidiana da capital do país. Lugar de magia e misticismo, com a missa dos Barbadinhos, às sextas-feiras de madrugada, e com as “casas de pretos”, onde a macumba ressoava, o Castelo estava envolto ainda num profundo mistério. Lá os jesuítas teriam escondido seus tesouros antes de serem expulsos no século XVIII; falava-se em doze apóstolos de ouro maciço em tamanho natural enterrados nos subterrâneos do morro (LIMA BARRETO, 1997; MOTTA, 1992).
No Rio de Janeiro de 1922, o arrasamento do Morro do Castelo – marco de fundação da cidade e local de identificação da população carioca – constitui um evento emblemático das múltiplas faces da modernidade, uma vez que a derrubada do Castelo exigiu um complexo processo de decisão, com o registro na imprensa dos prós e contras da demolição e do arrasamento, e sobre o que seria uma cidade moderna. Predominou o argumento oficial de abrir o horizonte do centro da cidade para o mar, para os “ventos da civilização”.
As mudanças no mundo do trabalho no século XIX depois da libertação dos escravos, seria um problema para as elites brasileiras. O trabalhador escravo era propriedade do senhor, e o mundo do trabalho estava, portanto, inserido em um princípio maior ligado a essa propriedade. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre impôs às classes dominantes brasileiras a necessidade de uma reajuste no seu universo mental. A lei de 13 de maio "nivelara", de um dia para o outro, todas as classes sociais provocando um deslocamento de profissões e hábitos.
A imposição pretendida de uma ordem capitalista na cidade exigia, também, a redefinição do conceito de trabalho. Era preciso dar-lhe uma conotação positiva em oposição aos tempos da escravidão, definindo-o como princípio regulador da sociedade, uma vez que a nova ordem implantada com a República assentava-se na exploração direta do trabalhador livre.
Criam-se estratégias de controle social, empreendidas pelas autoridades policiais e judiciárias. Geram-se, também, formas de resistência àquele controle, bem como às diversas manifestações do conflito de classes que então intensificavam-se na capital federal, palco de transição de uma ordem senhorial- escravista para uma sociedade de tipo burguês-capitalista.
As novas formas de controle social vão além do espaço estrito do trabalho fabril. Como no tempo da escravatura, em que todas as esferas de vida eram sujeitas ao regime escravo, a nova ordem reinstaura os controles em todas as relações sociais. A construção das vilas operárias onde os trabalhadores moravam, as festas e comemorações locais, o trabalho feminino e infantil são algumas das faces desse processo de organização social e da inculcação de novos valores na vida do trabalhador livre.
O problema do disciplinamento das classes populares ia muito além de seu controle no ambiente de trabalho, alcançando também espaços como a rua e o botequim, lugares que tradicionalmente abrigavam o lazer popular. Note-se que tal esforço foi também um esforço moralizador, pois a definição do homem de bem, do
homem trabalhador, passa também pelo seu enquadramento em padrões de conduta familiar e social compatíveis com sua situação de indivíduo integrado à sociedade e à nação.
O desenvolvimento industrial tem um papel fundamental nesse processo. Generaliza-se, durante a virada do século, entre as elites, a ideologia do progresso. Para os industrialistas, o agente da transformação social ou do “progresso” seria a indústria. Enfatiza-se a identificação do crescimento industrial e da divisão social do trabalho com o discurso nacionalista.
Defendia-se que o sucesso da produção dependia de uma hierarquização rígida do trabalho industrial. A defesa da rigidez hierárquica na fábrica era, sobretudo, uma forma de disciplinarização da classe trabalhadora. À desvalorização da mão-de-obra associava-se a necessidade de tornar o “trabalho” um valor positivo. A presença do taylorismo e do positivismo nos debates em torno da indústria, realizados em exposições internacionais, congressos e conferências, evidenciam esse esforço da burguesia industrial em evitar o tema da luta de classes, escamoteando-o em nome de idéias como a de “cooperação” e a “harmonia”, garantidas por uma certa “organização científica” da fábrica e a cooperação entre as
classes.
Mas os industrialistas não usavam apenas do despotismo para subordinar a mão de obra ao capital. Havia também as estratégias paternalistas e a geração de um consenso sobre a “nova ética” do trabalho. O paternalismo garantia a eficácia do projeto industrial de constituir as primeiras fábricas no Rio de Janeiro. Para que o trabalho assalariado fosse aceito adotavam-se medidas “protetoras e beneficentes”
No setor têxtil, vigorava o uso frequente de métodos coercitivos para disciplinar a mão de obra, mas também formas paternalistas de controlar o trabalhador. Este controle iniciava-se no recrutamento, pois não eram aceitos elementos “agitadores”, e a remuneração era feita através de contra-mestres que recebiam uma parcela de acordo com a produção de seus subordinados. Apesar da disciplina desta indústria não seguir uma linha mais despótica e arbitrária com os trabalhadores, vigorava o sistema de multas e sanções em caso de atraso e desobediência e dos trabalhadores serem revistados diariamente na saída da fábrica (TURAZZI, 1989).
Também a localização das fábricas em bairros distantes, com o isolamento dos trabalhadores de outras fábricas e outros grupos operários, é dado como um “fator decisivo para o maior controle da mão de obra”. O paternalismo expressava-se ainda nos progressos técnicos introduzidos na vida das famílias dos trabalhadores. Eram progressos e melhorias tais como água encanada, eletricidade, máquinas de costura, abrir mão dos aluguéis das casas durante a epidemia da “gripe espanhola” (1918/19), a criação da primeira escola fabril, a instalação de uma estação de combate a incêndios no bairro, a construção da igreja, de uma sociedade musical, de um clube, a construção das casas, a cessão de terreno para auto-construção.
A fábrica contou com grande adesão e colaboração dos trabalhadores e participação nas atividades de lazer, adesão religiosa e falta de greve. Tratava-se da construção de relações sociais, políticas e econômicas capazes de sujeitar indivíduos ao trabalho assalariado fabril. O patronato não podia abrir mão da adesão dos trabalhadores ao novo modo de produção. Os patrões transformavam sua autoridade e poder numa administração paternal, chegando a apadrinhar casamentos, batizados e outros eventos da vida do funcionário. A imprensa elogiava alguns industriais comprovando a necessidade de afirmação e reconhecimento da autoridade patronal e do “ethos” industrialista daquela sociedade.
Forja-se o mundo do trabalho onde o viver regado, as distrações e o laser saudável aparecem como itens necessários para o desempenho do trabalhador e, portanto, para a conquista da felicidade. O patronato tentava introjetar na mão-de- obra o sentimento da dignidade do trabalho e a crença numa ascensão social. Progressivamente, a moral burguesa universaliza-se e as qualidades estéticas da classe dominante transformam-se em paradigma para toda a sociedade. O consumo fazia parte da adesão ao novo tempo marcado pela interferência do progresso técnico no cotidiano das pessoas.
A classe trabalhadora em movimento demonstra que as ações de seu dia-a- dia criam um padrão ideológico que contém em si os limites necessários da consciência de classe destes homens e mulheres em um determinado momento histórico. As práticas cotidianas de resistência são múltiplas e variadas e os conflitos na relação patrão e empregado estão presentes tantos nas ações individuais dos trabalhadores como nas ações coletivas das categorias. De um lado, percebiam a relação com o patrão como uma relação de cooperação paternalista; por outro lado
percebiam que tratava-se de uma relação conflituosa. Interiorizar certos conceitos da nova ideologia trabalho implicava em sérias conseqüências para esses homens (CHALLOUB, 1986).
Nas primeiras décadas do século XX, as propostas dos socialistas são as que mais se aproximam da concepção clássica de cidadania12. Os operários reivindicavam o direito de intervir nos negócios públicos através de uma organização partidária que defendesse seus interesses dentro do sistema representativo. Essa reivindicação apoiava-se na consciência de que, embora marginalizado politicamente, o trabalhador “constituía o principal fator de progresso do Brasil e de todas as nações.” No entanto, todas as tentativas partidárias, desde o início da República e ao longo das duas primeira décadas, duraram pouco, algumas nem completaram um ano13.
Outras análises, que se debruçam sobre o imaginário popular que se gerou no país, sugerem uma aproximação possível com a cidadania, relativizando os conceitos de cidadãos inativos e cidadãos ativos. Oitenta por cento da população não tinha o direito de participação política pelos mecanismo eleitorais, e os outros 20% tinham o direito mas não se preocupavam em exercê-lo. Mas havia, também, outras razões para não o exercerem. “Além de ser inútil, votar era muito perigoso. Desde o Império, as eleições na capital eram marcadas pela presença de capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados (...) O povo do Rio quando participava politicamente, o fazia fora dos canais oficiais, através de greves políticas, de arruaças, de quebra-quebras “ (CARVALHO, op. cit., p. 87-8).
Outra forma de participação é pelo envolvimento em festas religiosas e folguedos populares como o entrudo, o carnaval. A cidade mantinha suas “repúblicas”, seus núcleos de participação nos bairros, nas irmandades religiosas, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas, nos grupos étnicos, nos cortiços, nas “maltas de capoeiras”. Eram estruturas que não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo conservador dominante na política. Parece também ser sintomático da
12 Carvalho cita os líderes socialistas França e Silva, Vicente de Souza, Evaristo de Moraes, Gustavo de Lacerda.
13 Dois eram os principais obstáculos à ação dos socialistas: os que defendiam a cooperação direta com o governo, a “estadania”, e os anarquistas que rejeitavam totalmente o sistema político, qualquer tipo de autoridade, principalmente a estatal e se dividiam em duas correntes principais: os anarquistas comunistas que eram pela revolução social, pela abolição da propriedade privada e do Estado, mas aceitavam o sindicato como arma de luta; e o segundo grupo, os anarquistas individualistas, além da abolição do Estado, eram contra toda forma de organização que não fosse espontânea, e queriam a propriedade privada após a revolução (op. cit.).
predominância do polo comunitário que, em janeiro de 1912, houvesse, na cidade, 438 associações de auxílio mútuo, com 282.937 associados, o que representava, aproximadamente, 50% da população de mais de 21 anos, organizadas com base em grupos comunitários (religião, etnia, local de origem, fábricas ou empresas, bairros)14.
Os jornais operários queixavam-se constantemente de gerentes e mestres mas, em geral, os donos das fábricas eram poupados. Para o movimento trabalhador, a autoridade patronal no lócus da produção colocava-se de maneira controvertida. Também o potencial revolucionário do operariado brasileiro, neste momento, tinha como contraponto as formas de incorporação e subordinação do proletariado às relações capitalistas. Os industriais tentavam, inclusive, apropriar-se de manifestações e ritos dos trabalhadores, como o 1o. de maio, e oferecer os funcionários como eleitores para determinados candidatos.
Ideologia, disciplina, dedicação profissional, pontos fundamentais da ideologia veiculada pela classe dominante e elementos estruturais dessa ética trabalhista, eram absorvidos pela classe trabalhadora. As condições precárias de trabalho (baixos salários, insalubridade, jornada extensa, repressão às atividades sindicais) somadas à abundância da força de trabalho serviam para aumentar a competição interna na classe trabalhadora.
Mas Chalhoub coloca a questão da classe trabalhadora não ser simplesmente um objeto subordinado.
É que a classe trabalhadora é, em certa medida, sujeito de sua própria dominação. (...) É necessário pensar nos elementos da ideologia popular que facilitam a reprodução dessas relações sociais. Ou seja, existem elementos na visão do mundo da classe trabalhadora que a transforma em agente inconsciente de sua própria dominação (op. cit., p. 102).
Se é verdade que as condições de vida, por um lado, propiciavam a absorção de valores que facilitavam o controle social, também é verdade que esses valores eram "lidos" pelos trabalhadores de acordo com uma visão própria de mundo. Há um
14 “Trabalho encomendado a Ataulfo de Paiva que procedeu a um estudo extremamente cuidadoso. ” Assistência pública e privada no Rio de Janeiro (Brasil). História e estatística. Rio de Janeiro, Typographia do “Anuário do Brasil”, 1922, p. 747-8, apud CARVALHO, 1987, p. 183.
diálogo onde a subordinação acontece, mas não sem antes haver uma certa forma de negociação onde os trabalhadores modificam, em certa maneira, esses valores15. A classe trabalhadora em movimento demonstra que as ações de seu dia-a-
dia criam um padrão ideológico que contém em si os limites necessários da consciência de classe destes homens e mulheres em um determinado momento histórico. As práticas cotidianas de resistência são múltiplas e variadas e os conflitos na relação patrão e empregado estão presentes tanto nas ações individuais dos trabalhadores como nas ações coletivas das categorias. De um lado, havia homens que percebiam a relação com o patronal como uma relação de cooperação paternalista; por outro lado havia aqueles que percebiam que se tratava de uma relação conflituosa.
Organizar sindicatos e reivindicar direitos de classe era uma experiência difícil e contraditória para os trabalhadores porque, além de se opor à ideologia patronal, acirrava as disputas entre estrangeiros e brasileiros. Não obstante isso, o período 1917 a 1920 foi marcado por intensa mobilização operária, tendo sido registradas 107 greves, inclusive uma greve geral nos principais centros do país, e criaram-se 52 associações de trabalhadores, enquanto que deputados e senadores de espírito avançado apresentaram 15 projetos de legislação do trabalho16.
Em 1919, o Brasil se filia à Organização Internacional do Trabalho (OIT), obrigando-se o Estado a maior intervenção nas relações patrões e empregados. As lutas sociais das primeiras décadas do século e, particularmente, dos anos vinte são decisivas para a conquista dos direitos dos trabalhadores das empresas privadas,
15 Gramsci, discutindo a relação entre o senso comum, religião, filosofia e cultura, mostra como é um fato político, uma exigência de ação, quando um grupo “toma emprestada a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que lhe é estranha (...)” (GRAMSCI, 1981, p. 15). Estudando o fenômeno das culturas populares no capitalismo e a construção da hegemonia, Canclini observa o que pode ser visto desde a Colônia, “como desde Gramsci se pensa com maior sutileza”, isto é, de que não bastam apenas a sujeição militar, nem mesmo a concorrência econômica desigual, a violência, a exploração e a geração do consentimento. A construção da hegemonia deve basear-se também na divisão em classes, no manejo da fragmentação cultural e na produção de outras divisões: entre o econômico e o simbólico, entre a produção, a circulação e o consumo e entre os indivíduos e seu marco comunitário imediato (CANCLINI, 1983, p. 76).
16 Acidentes de trabalho, duração da jornada, código do trabalho, regulamentação do trabalho feminino e de menores, criação de creches em estabelecimentos industriais, contrato de aprendizagem, comissões de conciliação e conselhos de arbitragem com representantes patronais e operários, comissão de legislação social (MORAES FILHO, 1960; GOMES, 1979).
através dos vários decretos e leis que vão tomar forma após a Revolução de 30, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as Juntas de Conciliação e a criação do Ministério dos Negócios da Indústria e do Trabalho no governo de Vargas.
Onde está a memória dessas lutas? Quem as preservou? A busca de uma memória “não oficial” nos conduziu à busca de outros arquivos de fotografias de trabalho e de trabalhadores. E fomos encontrá-los em acervos mais singelos que os primeiros, preservados pelos próprios trabalhadores e pelos intelectuais orgânicos das organizações e movimentos progressistas17. É o caso do Arquivo Edgar Leuenroth que leva o nome de um dos mais importantes militantes da imprensa operária, e do CEDEM – Centro de Documentação e Memória da UNESP (Universidade do Estado de São Paulo) e no AMORJ – UFRJ (Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro da Universidade Federal do Rio de Janeiro) Além de acervos pessoais de militantes dos partidos de esquerda, estão preservados documentos escritos e iconográficos coletados por pesquisadores dessas universidades. E encontramos fotografias de trabalho e de trabalhadores preservadas nos jornais operários da época.18 Também localizamos um acervo parcialmente identificado no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Antigos sindicalistas da indústria naval de Niterói, que entrevistamos, preservam fotografias pessoais, ainda não devidamente localizadas, cujo destino é incerto, mas que, certamente, fazem parte de uma identidade de trabalhadores que se empenharam em muitas lutas pela democracia, pelo socialismo e por uma vida digna para o trabalhador brasileiro.
Finalmente, se o passado nos ajuda a pensar o presente e a projetar o futuro, a memória mais recente é da participação dos trabalhadores na conquista das liberdades democráticas. São os trabalhadores do ABC paulista. Sua presença nas ruas com o ressurgimento da esquerda organizada, que apressou o ocaso da Ditadura, é o exemplo emblemático da luta pela passagem de classe subalterna a cidadãos políticos plenos, ativos, construtores da democracia no Brasil. É uma memória, amplamente documentada pelo desenvolvimento dos meios de
17 Valemo-nos, aqui, do conceito gramsciano de intelectual (GRAMSCI, 1982).
18 Importante acervo de jornais operários foi retirado do país durante a Ditadura, vindo a constituir, depois de micro-filmado pela Fondazione Giancomo Feltrinelli, em Milão, o Archivio Sociale della Memória Operaria Brasiliana (ASMOB) (CIAVATTA, 2003, p. 4).
comunicação, registrada no rádio, no cinema, na televisão, em vídeo e fotografia, por profissionais e amadores.
Mas é uma memória que está, hoje, condenada à sombra silenciosa pelos parcos recursos reservados à atividade arquivística. Diante das prioridades postas pela crise acelerada de desemprego, precarização do trabalho e pobreza que atingem os trabalhadores, pelo esvaziamento dos sindicatos que buscam alternativas concretas de formação e geração de trabalho e renda para os associados e sua sobrevivência como organizações, mesmo os setores progressistas do sindicalismo declinam da preservação e organização de sua memória. Mas, naquilo que se registra e alguém guarda, permanece a história vivida e contada, um patrimônio oculto alimentando as identidades de classe e as lutas do tempo presente “para não apagar o futuro”.
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