V. 18, nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40509
A QUEM SERVE A “NEUTRALIDADE”? ANÁLISE DO MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO À LUZ DA IDEOLOGIA GERENCIALISTA1
Resumo
Catia Eli Gemelli2
Desde 2014, diversos Projetos de Lei foram apresentados nos poderes legislativos brasileiros, sob a alcunha de combate à “doutrinação ideológica nas instituições de ensino”, em um movimento que se autodenomina como “Escola sem Partido” (ESP). A partir da compreensão de que o ESP possui determinações mais profundas e menos visíveis, este artigo propôs-se a examinar o movimento com base em suas interlocuções com a profusão da ideologia gerencialista nos espaços educacionais e a retomada do discurso de defesa de uma educação tecnicista.
Palavra-chave: Escola Sem Partido; Ideologia Gerencialista; Educação Tecnicista.
Resumen
Desde 2014, varios proyectos de ley fueron presentados en los poderes legislativos brasileños, bajo el apodo de combate a la “adoctrinamiento ideológico en las instituciones de enseñanza”, en un movimiento que se autodenomina como “Escuela Sin Partido” (ESP). A partir de la comprensión de que el ESP posee determinaciones más profundas y menos visibles, este artículo se propuso examinar el movimiento a partir de sus interlocuciones con la profusión de la ideología gerencialista en los espacios educativos y la reanudación del discurso de defensa de una educación tecnicista.
Palabra chave: Escola Sem Partido; Ideología Gerencialista; Educación Tecnicista.
Abstract
Under the pretext of combating “ideological indoctrination in the educational institutions”, since 2014 several bills have been presented in Brazilian legislative powers by a political movement that calls itself “Unpolitical School”. From the understanding that “Unpolitical School” has deeper and less visible determinations, this article proposed to examine the so-called movement based on its interlocutions with the profusion of managerial ideology in educational spaces and the resumption of a speech that defends technical education.
Keyword: Unpolitical School; Managerial Ideology; Technicist Education.
1 Artigo recebido em 22/07/2019. Primeira avaliação em 09/09/2019. Segunda avaliação em 19/08/2019. Aprovado em 10/01/2020. Publicado em 23/01/2020.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul na área de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho. Professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul/Campus Osório. E-mail: catia.gemelli@osorio.ifrs.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7163-0494.
O campo educacional é um espaço de disputas sociais que, dado o seu papel formativo, suscita conflitos políticos e ideológicos, tanto pela manutenção, quanto pelo enfrentamento de hegemonias. Movimentos internacionais de caráter político, econômico e social como o Tea Party3 e o No Indoctrination4, e nacionais como o Movimento Brasil Livre (MBL) repercutem diretamente na esfera educacional, mesmo quando suas reivindicações não aparentam uma relação direta com a área da educação. Análises detalhadas desses movimentos, sob diferentes óticas, permitem descortinar as suas determinações mais profundas e menos visíveis e, portanto, são fundamentais para a compreensão do seu surgimento e crescimento. Com base nisso, este artigo propõe-se a examinar o movimento Escola Sem Partido e suas interlocuções com a profusão da ideologia gerencialista nos espaços educacionais.
Quando observado além do simplismo aparente da sua autodenominação, o ESP pode ser definido como a expressão de um movimento de cerceamento da educação, desqualificação da educação pública e enfraquecimento do trabalho docente. Além disso, o movimento baseia-se em concepções neoliberais e objetiva o esvaziamento político dos debates em sala de aula (MIGUEL, 2016; RAMOS; STAMPA, 2016; FRIGOTTO, 2016; MACEDO, 2017; RAMOS; SANTORO, 2017;
KATZ; MUTZ, 2017). Ele expressa, como mote, a defesa de uma educação neutra, ao mesmo tempo em que reivindica a hierarquia estrita da família sobre a escola, ou seja, que os professores e as professoras não abordem qualquer conteúdo que seja contrário aos valores e costumes prezados pelos pais e mães (MIGUEL, 2016). As premissas do ESP propagam um intenso discurso de “crise da escola” (KATZ; MUTZ, 2017), especificamente, da escola pública, que tem seu trabalho deslegitimado. Às instituições escolares, credita-se a solução de vários problemas sociais, econômicos, políticos e culturais. No centro dessa problematização sobre o fracasso da educação, está a discussão permanente sobre as funções sociais das
instituições de ensino (IE) na contemporaneidade (KLAUS, 2017).
3 https://www.britannica.com/topic/Tea-Party-movement. Acesso em 16 de janeiro de 2019.
4 https://newhumanist.org.uk/articles/4232/education-not-indoctrination. Acesso em 16 de janeiro de 2019.
Esse papel é o da formação de sujeitos preparados para a vida em sociedade, que é regulada, em grande medida, pelas relações de trabalho que se modificaram drasticamente a partir da modelagem da sociedade pela empresa. Dentro da lógica de mercado, a socialização escolar assume a função tanto de formação de trabalhador/a ideal, dotado/a de habilidades mercadológicas, como de difundir e naturalizar a ideologia hegemônica da ordem econômica.
Compreende-se que, pautando-se em meios pacíficos para sua manutenção, o capitalismo carece de uma certa submissão voluntária dos indivíduos e que o espírito do capitalismo é a ideologia que justifica, ancora e respalda o engajamento nesse sistema econômico (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Esse sistema apresenta especificidades em momentos distintos de seu transcurso global, sem necessariamente alterar a concepção do processo de alocação de recurso em que se situa a gênese da acumulação do capital (COSTA; GODOY, 2012).
Entre as transformações provocadas pelas determinações do capitalismo contemporâneo, nota-se que as instituições, independentemente de sua natureza, reproduzem em suas práticas discursivas os fundamentos do ideário capitalista. Essa dinâmica se dá pela propagação de um modelo ideológico que difunde os preceitos de um sistema econômico o qual legitima o lucro como finalidade (GAULEJAC, 2007). Diversos/as autores/as (GAULEJAC, 2007; BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; ONUMA; ZWICK; BRITO, 2015; SHEPHERD, 2018)
corroboram a afirmação: nunca antes a ideologia gerencialista foi tão difundida como na sociedade atual.
A base ideológica do capitalismo promulga a pluralização de competências comuns, associadas a influências institucionais prescritivas, que se estabelecem de fora para dentro e são constantemente reproduzidas por meio dos processos de socialização familiares e escolares (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). A educação contemporânea ocidental, permeada pelas injunções capitalistas, é uma educação neoliberal (LAVAL, 2004). Seu princípio é a instrumentalização do indivíduo a serviço da economia (BRUNO; CLÉMENT; LAVAL, 2010) e a sua formação como alguém que possua condições de responder positivamente à racionalidade de mercado, por suas características de diferenciação competitiva, sendo inovador, empreendedor, criativo, eficiente e flexível (PENSIN, 2018).
A formação do trabalhador, entendida como processo educativo, tem como uma de suas principais premissas o atendimento às demandas do capital, que atualmente requer um trabalhador polivalente, capaz de desempenhar várias tarefas e adaptar-se rapidamente às mudanças que o progresso tecnológico impõe (RIBEIRO, 2019). O sujeito na sociedade neoliberal deve seguir as leis da eficácia: intensificar esforços e minimizar os custos. Dessa forma, é preciso fabricar – utilizando a própria linguagem do management – o homem eficaz: indivíduos úteis, dóceis ao trabalho e dispostos ao consumo. Sendo assim, aprender é um fator fundamental no processo de formação desse sujeito de mercado. A cultura da empresa pode ser aprendida desde a escola e, da mesma forma, as vantagens do capitalismo sobre qualquer outra organização econômica (DARDOT; LAVAL, 2016). Diante do exposto, este texto apresenta a análise dos dois Projetos de Lei do
ESP protocolados no âmbito federal na gestão 2015/2018 (PL 867/2015 e PL 193/2016) e o projeto de 2019 (PL 246/19), bem como escritos e imagens dos dois sítios eletrônicos mantidos pela organização ESP, à luz da ideologia gerencialista. Considerando as concepções dos sociólogos franceses Vincent de Gaulejac, Christian Laval, Pierre Dardot e Luc Boltanski e da socióloga francesa Éve Chiapello, argumenta-se que as proposições do ESP não podem ser analisadas com fim nelas mesmas, assim como suas origens e repercussões não se limitam à escola, aos discentes e aos docentes. Muito além da denúncia e combate à suposta falta de neutralidade no ensino, o ESP possui determinações mais profundas e menos visíveis, muitas delas ligadas ao alastramento da ideologia gerencialista e à forte retomada de uma educação tecnicista.
Desde 2014, diversos Projetos de Lei têm sido apresentados nas três esferas legislativas brasileiras, sob a alcunha de combater a doutrinação ideológica nas instituições de ensino, em um movimento que se autodenomina como Escola Sem Partido (ESP). Tal movimento considera que sua origem se deu em 2004, pelo advogado e procurador Miguel Nagib. Após ouvir de uma de suas filhas que seu professor de história comparou as trajetórias de vida de São Francisco de Assis e Che Guevara durante a aula, o advogado tentou uma mobilização de outros pais
para propor medidas contra o docente sob a justificativa de que sua fala foi ideológica e ofensiva aos princípios de sua religião (católica). Ao não obter êxito, decidiu construir suas próprias ferramentas para ajudá-lo no combate à suposta doutrinação em sala de aula, dando início ao movimento ESP (SALLES, 2017).
O ESP se autodefine como sendo: “uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior” (ESP, 2019). Sua consolidação pode ser observada a partir de três fases, com base na análise de Katz e Mutz (2017): a) fase inicial reprodutivista, em que a identidade do movimento ainda está em construção e se pauta na reprodução de textos de diversas fontes;
b) fase em que o ESP começa e receber projeção nacional, ao ser noticiado em diversos veículos; e c) fase que se inicia em 2014, com a primeira tentativa de proposta de lei oriunda do movimento.
Como principais bases que fundamentam seu surgimento/crescimento, apontam-se a crise do capitalismo (GAWRYSZEWSKI; MOTTA, 2017); o fundamentalismo religioso e sua politização (RAMOS; STAMPA, 2016; MIGUEL, 2016; MACEDO, 2017; KATZ ; MUTZ, 2017; SARAIVA; VARGAS, 2017); o avanço
de discursos conservadores no debate público brasileiro (MIGUEL, 2016; GAWRYSZEWSKI; MOTTA, 2017); o anticomunismo (MIGUEL, 2016); a expansão do pensamento neoliberal (KATZ; MUTZ, 2017; SARAIVA; VARGAS, 2017; GAWRYSZEWSKI; MOTTA, 2017); a reprovação ao crescimento acadêmico do marxismo (KATZ; MUTZ, 2017); e o crescimento do discurso meritocrático (MIGUEL, 2016).
Ressalta-se que essas bases não são estanques – nem ingênuas/reducionistas – e é justamente sua inter-relação que denota a complexidade do movimento. Um exemplo é a aliança entre o avanço de discursos conservadores nos debates de esfera pública e a expansão do pensamento econômico neoliberal, que deu origem a uma corrente ideológica que Bianchi (2006) denominou como conservadora-liberal. Heterogênea, contraditória e ainda não consolidada, essa linha de pensamento promulga padrões regulatórios morais, éticos e punitivos, ao mesmo tempo em que exige a mínima intervenção do Estado. Fundamentado no conservadorismo, o ESP possui caráter regulatório e punitivo, que incita a coação e a intimidação de docentes (SARAIVA; VARGAS,
2017) ao propor rígidas regras de condutas aceitáveis e promover canais de denúncias daquelas consideradas inadequadas. Trata-se de um controle e neutralização do trabalho docente, em um amplo processo de despolitização da educação e eliminação da pluralidade de concepções pedagógicas garantidas pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB). É o cerceamento da liberdade de ensinar (RAMOS; SANTORO, 2017).
O nome adotado pelo movimento sinaliza a intenção de “sensibilizar a sociedade ao reduzir a micropolítica que atravessa a sala de aula à macropolítica partidária” (SARAIVA; VARGAS, 2017, p.69) por meio da adoção de uma expressão simples e de fácil adesão. No entanto, apesar de basear-se nesse discurso de neutralidade ideológica e isenção político partidária, o ESP foi acolhido e apropriado por partidos brasileiros de direita e extrema direita como o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Partido da República (PR), Partido Social Cristão (PSC), Partido Progressista (PP), Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Partido Republicano Brasileiro (PRB), Partido Social Democrático (PSD) e, o recém-criado, Partido Social Liberal (PSL).
No Congresso Nacional, o ESP foi proposto pela primeira vez pelo Projeto de Lei (PL) 867/2015 que “Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o Programa Escola sem Partido” de autoria do deputado federal Izalci Lucas do PSDB. Após doze tentativas infrutíferas de votação do parecer, o projeto teve sua tramitação arquivada em dezembro de 2018 com o encerramento da legislatura, podendo ser reiniciado em 2019. Um projeto de igual teor foi encaminhado ao Senado Federal, o PL 193/2016, articulado pelo senador Magno Malta (PR) e retirado de tramitação pelo próprio autor.
Em concomitância e/ou sequência do PL 867/2015, foram protocolados outros PLs nas Assembleias Legislativas dos seguintes estados: Rio de janeiro – PL Nº 2974/14 de autoria de Flávio Bolsonaro (PSC); Goiás – PL Nº 2.861/14 de autoria do deputado Luiz Carlos do Carmo (MDB); São Paulo – PL Nº 960 /14 de autoria do deputado José Bittencourt (PRB); Ceará – PL Nº 250/14 de autoria do deputado Esmael de Almeida (PSD); Distrito Federal – PL Nº 53/15 de autoria do deputado Rodrigo Delmasso (PRB). Também foram protocolados PLs nos estados do Rio Grande do Sul (PL 190 2015), Paraná (PL 748/2015), Amazonas (PL 102/2016), Pernambuco (PL 823/2016) e Mato Grosso (PL 403/2015). No estado de
Alagoas o Projeto de Lei foi nomeado Escola Livre e aprovado pela câmara, no entanto foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, por isso, suspenso.
Seguindo seu caráter regulatório e punitivo, o ESP deu origem a uma proposta visando criminalizar os/as docentes. O PL 3235/2015, de autoria do Deputado Marco Feliciano (PSC), propôs um acréscimo à Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que "Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências", indicando também que “criminaliza comportamento que induza à ideologia de gênero” (Câmara dos Deputados, 2019). Tal pedido proibia o uso de termos e expressões como orientação sexual, identidade de gênero, discriminação de gênero, questões de gênero e assemelhados.
Inicialmente, o ESP concentrou-se no combate à doutrinação marxista, pautado principalmente no discurso neoliberal e com foco no campo político. Ao integrar o combate à ideologia de gênero a sua pauta principal, transferiu a discussão para o âmbito moral, e aliou às suas premissas o discurso conservador (MIGUEL, 2016).
Com as mudanças na Câmara Federal resultantes das eleições do ano de 2018, um novo PL, o 246/19, foi apresentado no primeiro dia de trabalho dos/das deputados/as na nova gestão (2019/2022), de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL/DF). A única mudança em relação ao anteprojeto de Miguel Nagib encontra- se no Art. 7º, que exclui a frase “as escolas que não realizarem ou não disponibilizarem as gravações das aulas”.
Como exemplo de resistência ao ESP, cita-se a apresentação do Projeto de Lei n° 6005/2016, da gestão anterior da Câmara Federal, protocolado pelo Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ): "Institui o programa 'Escola livre' em todo o território nacional" como apensado ao PL 867/2015 e a criação do movimento “Professores contra o Escola Sem Partido”. Na gestão atual, as deputadas federais Talíria Petrone, Luiza Erundina, Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim, todas do PSOL, apresentaram em conjunto o PL 375/2019, batizado de “Escola Sem Mordaça”. No texto, pedem que seja garantida a livre expressão de pensamento e a opinião a todos/as os/as professores/as, estudantes e funcionários/as de escolas.
No mês de julho de 2019, o fundador do ESP, Miguel Nagib, anunciou o fim das atividades do movimento, conforme noticiado por diversos veículos de
comunicação, tais como a Carta Capital5 e O Globo6. De acordo com as matérias desses dois veículos, Miguel Nagib justificou esse encerramento pelo acúmulo de funções e sufocamento financeiro. Declarou ainda que a falta de apoio do Presidente da República Jair Bolsonaro gerou frustração e contribuiu para a decisão. Na sua página no Facebook, o ESP declara que, a partir do fim de suas atividades, denúncias, pedidos de auxílio e orientações deverão ser dirigidas ao MEC, secretarias de educação, Ministério Público e políticos que se elegeram a partir da bandeira do movimento.
Apesar da decisão do fundador do ESP de encerrar as atividades do movimento, o PL 246/19 continua tramitando na Câmara de Deputados. Ademais, a declaração do fim do movimento não suspende a propagação do seu discurso que prega a “descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas” (ESP, 2019), por meio da vigilância sobre a escola e à docência.
As percepções de Boltanski e Chiapello (2009) sobre como o espírito do capitalismo justifica, ancora e respalda o engajamento neste sistema econômico, amparam a reflexão de que uma nova ideologia – a ideologia gerencialista – perpassa as diversas esferas da vida, ancorada nos preceitos da gestão. Esta é, definitivamente, um sistema de organização de poder que se ampara em uma aparente neutralidade. Observando seus fundamentos e características, é possível compreender como o poder gerencialista evoluiu consideravelmente no tempo, tornando-se uma ideologia dominante – a ideologia gerencialista (GAULEJAC, 2007). O discurso da gestão empresarial, por sua vez, constitui a forma primacial pela qual tal ideologia é incorporada e oferecida como algo que deve ser compartilhado (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).
Evidenciar o caráter ideológico da gestão é expressar que, por trás dos instrumentos, dos procedimentos, dos dispositivos de informação e comunicação,
5 Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/escola-sem-partido-anuncia-o-fim-de- suas-atividades/. Acesso em 07 outubro de 2019.
6 Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/escola-sem-partido-anuncia-
suspensao-de-atividades-criador-do-movimento-desabafa-esperavamos-apoio-de-bolsonaro- 23817368. Acesso em 07 outubro de 2019.
encontram-se em ação uma certa visão de mundo e um sistema de crenças. “Sob uma aparência objetiva, operatória e pragmática, a gestão gerencialista é uma ideologia que traduz as atividades humanas em indicadores de desempenhos, e esses desempenhos em custos ou benefícios” (GAULEJAC, 2007, p.40).
Nascida na esfera do privado, a ideologia gerencialista tende a se espalhar para os setores públicos e não comerciais. Suas convenções adentram as mais variadas esferas por meio de um discurso gerencial constituído por uma linguagem própria: a linguagem do management. Seu vocabulário econômico faz com que diferentes temas da instância coletiva sejam tratados por meio do enfoque da empresa (GAULEJAC, 2007), tais como a família, a religiosidade, a educação e o trabalho.
Em suma, como o âmago da sociedade passa a ser a utilidade e a rentabilidade, o indivíduo é reconhecido de acordo com suas capacidades de melhorar o seu próprio “funcionamento”. A proficuidade dos seus conhecimentos passa a ser medida a partir da sua utilidade para a organização. Ou seja, todo saber que não for útil é considerado como sem sentido ou, na linguagem gerencialista, sem valor. Sob esse prisma, o objetivo não é mais “produzir conhecimento em função de critérios de verdade, mas segundo critérios de eficiência e rentabilidade dos objetos fixados pelo sistema” (GAULEJAC, 2007, p. 78). Diante disso, a formação humana torna-se uma formação para o trabalho e o sistema educacional, permeado pela racionalidade do capital, reproduz em suas práticas as premissas do modelo empresarial.
Quando a profusão da ideologia gerencialista é percebida também nos espaços educacionais, os processos formativos e educativos, que ao mesmo tempo são constituídos e constituintes das relações sociais, assumem sentidos a serem incorporados pelo discurso gerencial. Sob os preceitos da gestão, a formação humana torna-se, primordialmente, uma formação para a produtividade.
Dessa forma, os espaços escolares que antes se centravam também nos valores sociais, culturais e políticos, passam a orientar-se pelos valores profissionais e incorporam, de forma gradativa e generalizada, os objetivos da economia globalizada, dando origem ao modelo de escola neoliberal (LAVAL, 2004). Em ressonância às convenções do capital, nesse modelo educacional, o saber é percebido em uma dimensão de recurso privado e de ferramenta para agir,
ou seja, como um instrumento de crescimento social e de rentabilização futura. O sistema educacional atende aos interesses do mercado, que prospecta a melhoria da produtividade econômica por meio do aumento da qualificação/formação dos indivíduos para o trabalho.
As relações entre trabalho e educação são complexas e envolvem uma rede de determinações, mediações e tensões entre as diferentes esferas sociais: econômica, social, política e cultural. Por isso compreender esse campo requer um esforço de reflexão aprofundada que vá além do imaginário popular que associa altos níveis de escolaridade com empregos mais valorizados e bem remunerados ou profissões de prestígio (MANFREDI, 2002).
No Brasil, a visão produtivista da educação empenhou-se no primeiro período, entre os anos de 1950 e 1970, em organizá-la de acordo com os ditames do taylorismo-fordismo por meio da chamada pedagogia tecnicista. Com a Lei nº 5692 de 1971, buscou-se implantar nas escolas brasileiras os mecanismos de objetivação do trabalho vigentes nas fábricas (SAVIANI, 2005), apoiando-se em ideias positivistas que influenciavam fortemente o pensamento brasileiro da época. A partir da década de 1970, consolidou-se como modelo hegemônico, influenciando as políticas educacionais, os currículos e a gestão escolar.
A educação tecnicista é um modelo que se fundamenta nos pressupostos de neutralidade e da cientificidade, e segue premissas de eficiência, racionalidade e produtividade. Dessa forma, na tentativa de atender às exigências de trabalho da sociedade da época, o pensamento tecnicista promoveu uma reestruturação do processo educativo sob a justificativa de torná-lo mais objetivo e operacional. Essa remodelação projetou racionalizar a educação de tal forma que as influências subjetivas que pudessem interferir na sua eficiência fossem neutralizadas (SAVIANI, 1984).
O discurso positivista/tecnicista promove a objetividade da ciência e formas de conhecimento que podem ser verificados e experimentados, a fim de comprovar sua veracidade. Nos anos 1970, os positivistas se empenharam em combater a
escola humanista/religiosa e impulsionar as ciências exatas, em defesa de um conhecimento prático, útil, objetivo, direto e claro (ISKANDAR; LEAL, 2002).
Nessa organização educacional racional, docentes e discentes assumiram o papel de “executores do processo cuja concepção, planejamento, coordenação e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais” (SAVIANI, 1984, p. 17). O conhecimento fragmentado levou à elaboração de currículos com separação por áreas e conteúdos, restringindo qualquer tipo de relação entre diferentes disciplinas (ISKANDAR; LEAL, 2002).
Além disso, diversas áreas foram reduzidas ou eliminadas dos currículos, como Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física. A oscilação da presença dessas áreas nos currículos das escolas brasileiras permanece até hoje, influenciada pelo imperativo do setor produtivo, conforme as exigências de formação que se gestaram no interior do sistema econômico e social (VIANNA; LOVISOLO, 2009; SFORNI; BELIERI, 2016). No Brasil, a aliança entre militares e empresas, no período marcado pelo Regime Militar (1964-1985) implementou a ideologia tecnocrática e um modelo de modernização autoritária do capitalismo (Ferreira Junior & Bittar, 2008). Os efeitos e a continuidade desse movimento na história da educação brasileira são persistentes e não se findam com a redemocratização (SAVIANI, 2008).
Após 1980, a educação brasileira passou por uma nova fase de remodelação. Do investimento de uma educação pautada na fragmentação e especialização de cunho produtivista, começou um período destinado a uma educação que visava desenvolver habilidades e competências para entendimento e atuação de todo o processo (OLIVEIRA; ALMEIDA, 2009). O ensino puramente tecnicista, com foco nas habilidade não dava mais conta da formação dos perfis profissionais almejados pelo mercado. À educação coube transmitir, além de conhecimentos, preceitos éticos, práticas sociais e habilidades consideradas básicas para a manutenção e o controle do ambiente econômico, cultural e social (MIZUKAMI, 1986).
Ao mesmo tempo, nos últimos anos da década de 1980 e anos 1990, ocorreu um movimento de democratização do ensino e fortalecimento da educação popular, fomentado principalmente pelas ideias de Paulo Freire. Além disso, expandiram-se, significativamente, as oportunidades de acesso e permanência na escola pública para amplas camadas da população (NÉSPOLI, 2013).
A partir de 1990, a ofensiva dos grupos empresariais sobre a educação foi um fenômeno dissipado em escala mundial. A Conferência Internacional de Educação para Todos, realizada em Jomtien em 1990 e organizada pelo Banco Mundial, deu origem a um documento de análise da educação publicado em 1995 e intitulado “Prioridades y Estrategias para La Educación”. Esse documento estabeleceu, como prioridade e estratégia, a celeridade dos países para reformarem seus sistemas educacionais e se tornou base para a elaboração das diretrizes político-educacionais em escala global. Seu principal objetivo era a universalização da educação e o aumento da qualidade e equidade do ensino, com vistas a vincular a educação às demandas de uma economia marcada pela produção flexível.
Fundamentada no pressuposto de que o crescimento do acesso à educação para a classe trabalhadora aumenta em igual proporção a capacidade de produção do sistema econômico, a teoria do capital humano influenciou fortemente as políticas pedagógicas a partir dos anos 1990 (FRIGOTTO, 1999). Nessa perspectiva, a formação/qualificação do trabalhador é o combustível para o bom desempenho econômico de um país, sendo assim, as instituições escolares funcionariam como local que proporciona o treinamento e a formação para o trabalho (FRERES; GOMES; BARBOSA, 2015). Cabe ressaltar que suas origens no contexto brasileiro se dão ainda no Regime Militar, com as reformas na educação ocorridas após 1964 (FERREIRA JUNIOR; BITTAR, 2008).
Em uma análise do contexto educacional brasileiro na contemporaneidade, diversos/as autores/as refletem que vivemos a era do Neotecnicismo (FREITAS, 2012; MIRANDA, 2016; OLIVEIRA, 2017; SILVA, 2018) com o início de um novo
ciclo de modernização conservadora (MIRANDA, 2016). “Este neotecnicismo se estrutura em torno a três grandes categorias: responsabilização, meritocracia e privatização” (FREITAS, 2012, p. 383) e atende aos atuais critérios de flexibilidade, eficiência e produtividade do sistema econômico.
A escola sofre a pressão de atender às novas demandas de um sistema de produção que exige flexibilidade, multifuncionalidade e adaptabilidade do trabalhador, além da habilidade de adequar-se aos meios tecnológicos disponíveis (MIRANDA, 2016). Surge, assim, uma perspectiva educativa ancorada em novas práticas e ordenamentos pedagógicos que oportunizem resultados imediatamente aptos aos interesses do mercado (GONÇALVES; SILVA, 2019).
Na primeira página do sítio eletrônico oficial da organização “Programa Escola Sem Partido” está uma citação atribuída a Max Weber, constando a referência apenas ao nome do autor, mas não à obra ou ano a que pertence. Trata- se do seguinte pensamento:
Em uma sala de aula, a palavra é do professor, e os estudantes estão condenados ao silêncio. Impõem as circunstâncias que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carreira; e que ninguém dos presentes a uma sala de aula possa criticar o mestre. É imperdoável a um professor valer- se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimento e de experiência científica – Max Weber (ESP, 2019).
O trecho em questão foi extraído da obra Wissenschaft als Beruf - traduzido no Brasil como A ciência como vocação – resultado de uma palestra proferida por Weber no ano de 1917 na Universidade de Munique, pouco tempo antes de sua morte em 1920. Nesse ensaio, o autor dissertou sobre o significado e a importância da ciência para o mundo moderno e o seu papel em um contexto político, social e econômico de grande transformação. O desconhecimento das obras anteriores de Weber somado à leitura de um excerto aleatório desse seu ensaio – sem o conhecimento de todas as reflexões que ali foram expostas – resulta na utilização inadequada desse autor como embasamento de um Projeto de Lei que ataca, justamente, o que Weber considerava como a tarefa moral da ciência: a clareza.
No documento com as justificativas para o seu surgimento e ações, o movimento afirma que: “a pretexto de transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo” (ESP, 2019).
O Artigo 2° do PL 867/15, redigido pelo movimento, determina os princípios a serem atendidos pela educação nacional. O primeiro princípio é de “neutralidade política, ideológica e religiosa do estado” (Brasil, 2015). Ainda sob esse pressuposto
de neutralidade, o Artigo 4° exprime os deveres do(a) docente, sendo o primeiro: “não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária” (Brasil, 2015).
A neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado é também o segundo princípio listado como balizador do PL 246/19. No seu site, o ESP acusa docentes de infringirem esse princípio constitucional:
O professor que se aproveita de suas funções e da presença obrigatória dos alunos em sala de aula para promover suas próprias concepções e preferências ideológicas, políticas e partidárias viola o princípio constitucional da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado (ESP, 2019).
No site do movimento, há uma seção nomeada Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar, que discorre sobre o principal objetivo do ESP de defender os/as alunos/as de uma doutrinação política e ideológica e garantir à família o direito de que seus/suas filhos/as recebam a educação religiosa e moral de acordo com suas convicções. Nessa seção, consta a afirmação “lutamos pela descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas” e o trecho abaixo:
A pretexto de “construir uma sociedade mais justa” ou de “combater o preconceito”, professores de todos os níveis vêm utilizando o tempo precioso de suas aulas para “fazer a cabeça” dos alunos sobre questões de natureza político-partidária, ideológica e moral (ESP, 2019).
Observa-se que a forma como é utilizada a expressão “tempo precioso de suas aulas” indica uma abordagem produtivista e racional da atividade escolar. Trata-se, claramente, da defesa de um modelo de educação tecnicista. Da mesma forma, o termo ideologia é sempre citado como um conceito negativo que é necessário censurar. Como apontam Dardot e Laval (2016, p. 151), “o combate ideológico é parte integrante do bom funcionamento da máquina”. E este combate ideológico é a principal bandeira do movimento ESP sob sua premissa de neutralidade. A questão central é o que seus/as defensores/as compreendem como sendo de caráter ideológico. O que se observa, na maioria dos casos, é que se considera ideológico tudo o que se distancia da linguagem da racionalidade econômica.
Em suas reflexões, Dardot e Laval (2016) compreendem que uma das bases da sociedade no modelo empresarial é a normatividade, cuja pretensão é a economização da vida com a expulsão do político. Desse modo, a concepção gerencialista contribui diretamente para a naturalização de políticas e normas baseadas em uma falsa neutralidade que mascaram as relações de dominação existentes na gestão (DELBRIDGE; KEENOY, 2010).
Defendendo-se das acusações de que esse cerceamento ao trabalho docente é uma forma de censura, o movimento declara:
Censura consiste no cerceamento à liberdade de expressão. Acontece que o professor não desfruta de liberdade de expressão em sala de aula. Se desfrutasse, ele sequer poderia ser obrigado (como é) a transmitir aos alunos o conteúdo da sua disciplina, pois quem exerce liberdade de expressão fala sobre qualquer assunto do jeito que bem entende (ESP, 2019).
Em sua análise jurídica do ESP, principalmente sobre os aspectos relacionados à censura e liberdade de expressão, Costa (2018) destaca que a Constituição Brasileira de 1988 prevê expressamente que a liberdade é um dos mais relevantes direitos fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito. Diante disso, a escola é o espaço destinado a garantir a docentes e discentes o exercício da liberdade de expressão de pensamento científico, tal como estabelecido na Constituição. Portanto, a afirmação do ESP de que o/a docente não desfruta de liberdade de expressão em sala de aula fere um direito constitucional.
Ademais, defender a necessidade de um Projeto de Lei que balize as atividades docentes em tal nível de profundidade é uma desvalorização da capacidade reflexiva desses/as profissionais. E como afirma Frigotto (2016), a depreciação do trabalho docente justifica o sequestro da sua função e a fácil substituição por outro/a que esteja disposto/a a atender aos anseios do mercado. Sob a justificativa de que a iniciativa privada possui maior eficiência, essa desmoralização docente promove o trabalho de especialistas técnicos, alinhados à racionalidade do mercado. Como exemplo, é possível buscar reportagens7
7 Exemplos: https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/economia/nacional/noticia/2018/12/14/grupo- estacio-faz-nova-demissao-em-massa-de-professores--365592.php, acesso em 07 de outubro de 2019; https://www.blogdobg.com.br/demissao-em-massa-unp-demite-professores-com-mestrado-e- doutorado-e-revolta-alunos/, acesso em 07 de outubro de 2019; https://paragrafo2.com.br/2019/07/24/demissoes-em-universidades-de-curitiba-expoem-face-cruel- da-mercantilizacao-do-ensino-superior/, acesso em 07 de outubro de 2019.
veiculadas nos mais diversos meios de comunicação informando sobre demissões em massa de professores/as com longa formação acadêmica e a sua substituição por profissionais com menor formação ou apenas com conhecimento de mercado.
Além de ter dado origem a uma proposta no sentido de criminalizar o trabalho docente (PL 3235/2015), o caráter regulatório e punitivo por parte do ESP fica evidente na lista dos “deveres do professor” presente nos três Projetos de Lei (PL 867/2015; PL 193/2016; PL 246/19). No PL 246/19, também há um Artigo que assegura aos alunos e alunas:
o direito de gravar as aulas, a fim de permitir a melhor absorção do conteúdo ministrado e de viabilizar o pleno exercício do direito dos pais ou responsáveis de ter ciência do processo pedagógico e avaliar a qualidade dos serviços prestados pela escola (BRASIL, 2019).
Outrossim, o site do programa possui uma aba intitulada Flagrando o Doutrinador que apresenta uma lista de dezessete ações/comportamentos docentes que indicariam que o/a aluno/a está sendo vítima de doutrinação ideológica. Em outra aba estão disponíveis depoimentos de pais e alunos/as descrevendo situações consideradas como doutrinadoras:
Divulgaremos neste espaço depoimentos de estudantes que tiveram ou ainda têm de aturar a militância político-partidária ou ideológica de seus professores. Esperamos, com isso, alcançar um duplo resultado. O primeiro é ajudar outros estudantes a identificar as estratégias de doutrinação e propaganda utilizadas por seus professores e, naturalmente, se precaver contra elas. O segundo é mostrar aos professores que porventura se reconheçam em tais depoimentos o grande erro que vêm cometendo ao tentar fazer de seus alunos futuros ‘agentes de transformação social’, a serviço desse ou daquele partido ou ideologia (ESP, 2019).
O ESP também prega uma remodelação e controle dos currículos escolares (RAMOS; STAMPA, 2016; REIS; CAMPOS; FLORES, 2016) para atender às
necessidades empresariais, exacerbando as competências técnicas em detrimento das análises críticas e reflexivas. De tal modo, vende-se a perspectiva da empregabilidade. Defende-se a neutralização e até exclusão das disciplinas que suscitam o pensamento crítico, tais como Artes, Filosofia e Sociologia, substituindo- as por conteúdos e disciplinas que priorizam a formação tecnicista. Essa ação
fortalece a formação de um sujeito econômico preparado unicamente para o trabalho e para o consumo. Como destacam Dardot e Laval (2016), no modelo empresarial a ordem é fabricar sujeitos úteis, dóceis ao trabalho e dispostos ao consumo.
O discurso hegemônico de desmerecimento das Ciências Humanas e Sociais em detrimento das Ciências Exatas e Biológicas tem origem no pensamento positivista e se fundamenta em uma percepção de que a educação está a serviço do capital/mercado. A filosofia, a sociologia, as artes e outras áreas neutralizadas nessas políticas são fundamentais para o desenvolvimento de um pensamento crítico.
Por fim, como indica a historicidade da educação brasileira, entre meados da década de 1980 e durante os anos 1990, o movimento de democratização do ensino e fortalecimento da educação popular emerge a partir da pedagogia freiriana, que defende uma educação para além dos preceitos tecnicistas. Não à toa, Paulo Freire é o autor mais atacado pelo ESP, o que se evidencia nos artigos publicados no site oficial do movimento.
No site do movimento ESP estão publicados nove artigos de diferentes autorias, que atacam Paulo Freire, tais como o de Reinaldo Azevedo:
A escola brasileira acabou, morreu, foi para o ralo. Virou lixo. Foi vítima de “progressiste” aguda. A “progressiste” é uma infecção provocada por um vírus cuja letalidade se deve à mente torta de Paulo Freire, que muita gente considera um santo. Não é que ele tenha criado o bichinho original. Mas foi quem o espalhou. A “progressiste” — que é o progressismo na sua fase terminal — inverte a lógica da educação: em vez de o professor ter algo a ensinar ao aluno, é o aluno que deve levar a sua experiência ao professor (AZEVEDO, 2014).
A implementação de um modelo de educação neoliberal, embora seja um discurso hegemônico, não se dá sem enfrentamentos e disputas de concepções dentro do campo da educação e, por extensão, ou vice-versa, no campo da política. Nesse cenário, a pedagogia crítica, de base freireana, emerge como algo a ser combatido, denunciado, criminalizado, pois instiga estudantes a questionarem e a desafiarem as crenças e práticas que lhes são ensinadas. Essa é uma das ênfases do ESP que, diferentemente da abordagem crítica que considera as contradições e a historicidade do pensamento, postula que a tarefa da escola é ensinar conteúdos,
instruir competências e habilidades para ganhar o sustento da vida. Promulga, portanto, uma perspectiva gerencialista e tecnicista do papel social da educação.
A formação ética e moral, por meio da educação de hábitos e sentimentos, é tarefa da família e visa adaptar ao meio em que se vive (MACEDO, 2017). Esse dualismo, por si só, já está questionado, direta ou indiretamente, nos pressupostos da pedagogia crítica, pois, como postulou Freire (1996), ensinar não é transferir conhecimentos e conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Ensinar é criar as possibilidades de e para a produção ou construção dos conhecimentos.
A discussão apresentada neste texto parte da compreensão de que, para a efetividade da organização capitalista do trabalho, faz-se necessária a constituição de indivíduos que, além de uma formação ideal, estejam dispostos a engajar-se nesse sistema. Dessa forma, sob a égide capitalista, a socialização escolar assume a função tanto de formação de trabalhador/a ideal, quanto de naturalização da ideologia hegemônica da ordem econômica.
A partir das concepções dos sociólogos franceses Vincent de Gaulejac, Christian Laval, Pierre Dardot e Luc Boltanski e da socióloga francesa Éve Chiapello, analisou-se o movimento Escola Sem Partido. Evidenciaram-se suas interlocuções com a profusão da ideologia gerencialista nos espaços educacionais e à forte retomada de um discurso de defesa de uma educação tecnicista.
Sob um pressuposto de neutralidade, o ESP fere a liberdade de cátedra e deslegitima o trabalho da escola, principalmente da escola pública, e da docência. Há uma desvalorização da capacidade reflexiva dos/as docentes, assim como dos/as discentes. A análise, tanto dos textos dos dois Projetos de Lei propostos na câmara dos deputados, quanto do material publicado no site do movimento, indica uma visão produtivista do papel das instituições de ensino, pautada na racionalidade econômica.
Ressalta-se que, ao contrário da maior parte dos Projetos de Leis, o ESP já está presente nas salas de aula e já regula o trabalho docente, a partir da adesão de alunos/as, familiares e até de próprios/as funcionários/as das IEs ao discurso
reacionário do movimento. Por fim, espera-se que o debate proposto neste ensaio colabore com as discussões sobre a necessidade de defesa e fortalecimento da educação pública e valorização do trabalho docente.
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