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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40512


TESE DE DOUTORADO


REIS, Renata1. A “Grande Família” Do Instituto Oswaldo Cruz: a contribuição dos trabalhadores auxiliares dos cientistas no início do século XX2. 2018. 272 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Niterói - RJ, 2018.


Resumo Expandido


No Brasil da Primeira República, o legado do longo período de escravidão, aliado aos interesses de manutenção da propriedade privada, dos privilégios das elites agrárias, e, por outro lado, as lutas e resistências das classes subalternas, resultaram na conformação de um processo social que combinou a construção de uma nova ideologia do trabalho, como sinônimo de progresso e dignidade, e a repressão à ociosidade das chamadas classes perigosas.

Neste processo, a incorporação de outras formas ideológicas de manutenção e expropriação da força de trabalho envolveu relações sociais que se assemelhavam a vínculos paternais e envolviam a cordialidade e o favor como mediações principais.

No Instituto Oswaldo Cruz (atual Fiocruz), enquanto uma instituição situada neste tempo histórico, os afetos operaram como recursos que buscaram amenizar a exploração do trabalho e os possíveis conflitos emergentes da desigualdade, gerados principalmente, por mecanismos de poder, autoritarismo e distinção de classe que se manifestavam na totalidade da construção do trabalho livre e na particularidade do cotidiano do trabalho em Manguinhos.

Não são poucos os estudos que tratam da história da Fiocruz na perspectiva da construção da ciência e da saúde pública no Brasil. Muitos são os sujeitos dessa história.



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1Resumo recebido em 09/11/2019. Aprovado pelos editores em 21/11/2019. Publicado em 23/01/2020. 2Professora e pesquisadora da EPSJV/Fiocruz; Doutora em Educação; E-mail: rbatistella007@gmail.com. ORCID: 0000-0001-9033-3068. Tese orientada pela Profa. Doutora Maria Ciavatta.

No entanto poucas pesquisas se ocuparam do trabalho e dos trabalhadores subalternos da Instituição.

Para nós, pesquisadores do campo Trabalho-Educação, é necessário aprofundar aspectos da história presentes nos arquivos que guardam interpretações a ser desvendadas, e que nos possibilitem “pensar analiticamente e atuar socialmente sobre os processos educativos em sua relação com o mundo do trabalho”. (CIAVATTA, 2017, p.5) Quem eram estes trabalhadores? Como ingressaram no Instituto? Que histórias podem ser reveladas a partir destes personagens? Como eram as relações de trabalho no IOC à época? Como se estabeleciam essas relações entre eles? Como se estabeleciam as relações destes com os cientistas? E entre sua formação e a prática

profissional?

Estas foram algumas interrogações que esta pesquisa buscou enfrentar na busca de elucidar alguns dos muitos aspectos da história do trabalho na Fiocruz.

Apesar de declaradas como fraternas e cordiais, dando a impressão de um sentimento de pertencimento, de igualdade e de família, essas relações mantinham uma tradição fortemente hierarquizada, apoiada por uma herança escravocrata, acompanhada de uma lógica de benevolências carregada de contradições que pressupunham formas de exploração do trabalho muito particulares desta época histórica.

Quando tratamos de um objeto de pesquisa e sua historicidade, convém considerá- lo no campo das contradições, mediações e determinações que o constituem. Isso requer concebê-lo de forma inseparável de uma perspectiva que é ao mesmo tempo conjuntural e estrutural, e que implica examiná-lo não como um somatório de fatores isolados, mas imbricados através de mediações que o constituem como parte de uma totalidade.

Desta forma, as concepções e ideologias relativas aos trabalhadores técnicos e, em nosso caso particular, aos trabalhadores técnicos da saúde, assumem um sentido histórico quando percebidos no conjunto de relações sociais de produção da existência e dentro de um determinado contexto.

A despeito do lugar subalternizado que ocupavam na instituição, mediado pelo favor e dissimulado pela cordialidade, os trabalhadores auxiliares dos cientistas prestaram uma efetiva contribuição para a construção do Instituto Oswaldo Cruz e, consequentemente, para a ciência e a saúde pública brasileira. Buscando reforçar este argumento, parto do pressuposto de que a participação e contribuição desses trabalhadores foram subtraídas pela desvalorização histórica do trabalho manual,

normalmente reputado como um trabalho simples destituído de conhecimentos superiores, e pela evidência de relações de subordinação fortemente hierarquizadas entre os cientistas e seus auxiliares.

Ao ingressar no Instituto, os trabalhadores auxiliares passaram por experiências diversas que produziram uma transformação no seu lugar histórico, pois adquiriram conhecimento, reconhecimento e valor profissional. No entanto, isso não implicou em rompimento com o lugar institucional de subalternos. As relações de trabalho entre os auxiliares de laboratório e os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, ao mesmo tempo em que colocavam os primeiros em uma situação de submissão vinculada à retribuição do favor e ao apelo pela conquista de laços de pertencimento de família que garantissem um reconhecimento profissional, colaborou para fortalecer entre os próprios subalternos a construção destes laços expressos através de práticas de solidariedade e de apoio mútuo. Na intenção de confirmar estas hipóteses, o objetivo mais geral deste estudo foi a descrição e análise dos processos, da divisão do trabalho e das relações sociais daí engendradas, visando apreender a participação dos trabalhadores auxiliares de laboratório dos cientistas na construção da ciência e da saúde pública brasileira nas três

primeiras décadas do século XX.

Como objetivos específicos, pretendi a) identificar e analisar os percursos de formação/qualificação profissional e de vida dos trabalhadores auxiliares dos cientistas, b) a reconstrução da sociabilidade (em suas formas subjetivas e objetivas) construída nos espaços de trabalho e de vida, considerando a articulação espaço de trabalho/espaço doméstico/local de moradia, dos auxiliares de laboratório e c) identificar e analisar aspectos das condições de vida e da divisão social do trabalho nas fontes documentais e iconográficas disponíveis.

O lócus principal de coleta de dados foram os documentos pertencentes ao Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, que constituem um acervo composto por mais de 100 fundos e coleções, documentos institucionais e pessoais dos gêneros textual, iconográfico, cartográfico, sonoro e filmográfico. A maior parte das fotografias utilizadas como fonte de pesquisa foi produzida por J. Pinto, fotógrafo contratado por Oswaldo Cruz que atuou mais de 40 anos na instituição produzindo imagens de pesquisadores, instalações, construções, laboratórios, funcionários, visitantes, além das microfotografias que subsidiavam os estudos e pesquisas realizados no Instituto.

A tese ficou assim organizada: no primeiro capítulo, abordamos as questões teórico-metodológicas que embasaram esta investigação, os principais autores e conceitos trabalhados, as fontes utilizadas e o tratamento metodológico de cada gênero documental. No segundo capítulo, apresentamos a conjuntura histórica em que viveram estes trabalhadores e os aspectos ideológicos e políticos que compuseram uma determinada visão de mundo no período da Primeira República brasileira. Mais particularmente nos campos da educação, da saúde pública, do trabalho e da habitação no Rio de Janeiro. O terceiro capítulo retrata o Instituto Oswaldo Cruz, desde sua gênese, a partir de um olhar sobre o lugar atribuído aos trabalhadores subalternos nos quatro Regulamentos institucionais que vigoraram neste período. Em seguida, apresentamos um esboço inicial da trajetória profissional e de vida de seis trabalhadores técnicos que viveram no período temporal do estudo. Através destas pequenas histórias buscamos apresentar alguns sujeitos de nossa pesquisa e oferecer uma aproximação inicial dos aspectos que nos permitem conhecer as mediações presentes na construção das relações de trabalho do Instituto Oswaldo Cruz. Ainda neste capítulo, outro tópico abordado tratou da dinâmica das relações que o IOC estabeleceu com os trabalhadores auxiliares que moravam em seus terrenos e como estas se modificaram ao longo do tempo. Por fim, destacamos a participação destes trabalhadores nas expedições científicas realizadas no período. No quarto e ultimo capítulo, apresentamos a análise das relações de trabalho em Manguinhos, a partir de suas particularidades inscritas na totalidade histórica mais geral. As considerações finais apresentam uma síntese e uma reflexão sobre este processo de pesquisa e construção de conhecimento sobre a história do trabalho subalterno na saúde, na singularidade do Instituto Oswaldo Cruz.

Esse estudo procurou mostrar que o trabalho subalterno desempenhado pelos auxiliares de laboratório do Instituto Oswaldo Cruz, nas pesquisas experimentais, na produção de medicamentos, vacinas, soros e outros insumos, e no trabalho de campo das expedições, foi fundamental para o desenvolvimento da ciência e da saúde pública brasileira.

No entanto, a divisão de classe presente nas relações de trabalho do Instituto Oswaldo Cruz, reproduziu uma divisão social do trabalho que limitou o reconhecimento do trabalho e dos conhecimentos adquiridos pelos auxiliares de laboratório. Essas relações foram mediadas pelo paternalismo, pela lógica do favor e da cordialidade.

Essas mediações estiveram presentes desde o recrutamento e seleção desses trabalhadores, passando pela moradia no local de trabalho, por sua ascensão funcional, nas estratégias de transpor o acesso ao conhecimento científico e na relação com os cientistas.

Por outro lado, agindo como sujeitos de suas próprias histórias, os trabalhadores subalternos souberam transitar pelos meandros de uma hegemonia cultural da instituição, que tentava impor um modo de vida onde o cientista era incontestavelmente soberano.

A moradia no Instituto, ao mesmo tempo em que os submetia a um regime de trabalho quase que ininterrupto, favoreceu as relações de solidariedade e ajuda mútua entre os companheiros de trabalho, como a organização de práticas associativas que pressupunham a institucionalização de sociabilidades de diferentes ordens. Da mesma forma, o aprendizado no cotidiano de trabalho dos auxiliares de laboratório constituiu-se como um mecanismo de resistência, situado nas disputas do campo do trabalho- educação. O acesso à educação formal, limitado por sua condição social, não impediu que estes adquirissem os conhecimentos necessários para o bom desempenho de seu trabalho. O aprendizado com os cientistas e com os colegas de laboratório no Instituto proporcionou uma ascensão profissional por dentro da classe, mas não chegou a representar uma ruptura com a condição de subalterno.

Com base na reflexão de Thompson (2015) sobre a categoria do “teatro da lei”, é possível compreender o modo como os auxiliares de laboratório criaram e recriaram suas próprias interpretações sobre seu trabalho, sua condição de subalternidade e sua relação com os trabalhadores de nível superior.

Sujeitos de sua própria história buscaram nas brechas da instituição e na construção de relações de reciprocidade entre si, trabalhar e viver suas vidas, ora se submetendo e ora subvertendo o curso da história.


Referências


CIAVATTA, Maria. Como se escreve a história em trabalho-educação: caminhos para a historiografia. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2017. Mimeo.


THOMPSON, E. P. Patrícios e Plebeus. In: THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo. Companhia das Letras, 2015, p. 25-85.